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A CONSTITUIÇÃO DE NORMAS E PRÁTICAS CULTURAIS NAS AULAS DE CIÊNCIAS: PROPOSIÇÃO E APLICAÇÃO DE UMA FERRAMENTA DE ANÁLISE

LA CONSTITUCIÓN DE NORMAS Y PRÁCTICAS CULTURALES EN LAS CLASES DE CIENCIAS: PROPOSICIÓN Y APLICACIÓN DE UNA HERRAMIENTA DE ANÁLISIS

THE CONSTITUTION OF CULTURAL NORMS AND PRACTICES IN SCIENCE CLASSES: PROPOSITION AND APPLICATION OF AN ANALYSIS TOOL

RESUMO:

Atualmente, defende-se que os objetivos do ensino de ciências abranjam a participação dos estudantes nas dimensões conceitual, social, epistêmica e material do trabalho científico. Nesse contexto, emergem estudos sobre como normas e práticas das comunidades científicas podem ser promovidas na escola, criando a necessidade de ferramentas que possibilitem esse processo de análise. Neste trabalho, apresentamos uma ferramenta sustentada em referências que compreendem a construção do conhecimento como uma prática social e que auxilia na identificação de operações de professores e estudantes que evidenciam como normas e práticas científicas são partilhadas em aula. Em um exemplo de aplicação da ferramenta, buscamos apontar suas possibilidades de uso e seu potencial para relacionar normas e práticas.

Palavras-chave:
Ensino de Ciências; Normas Culturais; Práticas Culturais

RESUMEM:

Actualmente se defiende que los objetivos de la enseñanza de ciencias abarquen la participación de los estudiantes en las dimensiones conceptual, social, epistémica y material del trabajo científico. En ese contexto, emergen estudios acerca de cómo se pueden promover en la escuela normas y prácticas de las comunidades científicas, y se crea la necesidad de herramientas que posibiliten ese proceso de análisis. En este trabajo, presentamos una herramienta sostenida en referencias que comprenden la construcción del conocimiento como una práctica social y que auxilia en la identificación de operaciones de profesores y estudiantes que evidencian como normas y prácticas científicas son compartidas en clase. En un ejemplo de aplicación de la herramienta, buscamos apuntar sus posibilidades de uso y su potencial para relacionar normas con prácticas.

Palabras clave:
Enseñanza de Ciencias; Normas Culturales; Prácticas Culturales

ABSTRACT:

Currently, it is argued that the objectives of Science education should promote students’ participation in the conceptual, social, epistemic and material dimensions of scientific work. In this context, studies emerge about how norms and practices of scientific communities can be promoted in the school, creating the need for tools that enable this process of analysis. In this paper, we present a tool based on references that comprise the construction of knowledge as a social practice and that assists in the identification of operations of teachers and students that show how scientific norms and practices are shared in class. In an example of application of the tool, we seek to point out its possibilities of use and its potential to relate norms and practices.

Keywords:
Cultural Norms; Cultural Practices; Science Teaching

INTRODUÇÃO

Em conformidade com as tendências pedagógicas tradicionais que regem as práticas escolares durante a primeira metade do século XX, o ensino de ciências esteve, por um longo período, focado na transmissão de informações (KRASILCHIK, 2000KRASILCHIK, M. Reformas e realidade: o caso do ensino das ciências. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v.14, n.1, p. 85-93, 2000.) que os estudantes deveriam memorizar e replicar, restando pouco espaço em sala de aula para problematização, investigação e argumentação, entre outras práticas características das comunidades científicas (SANDOVAL, 2005SANDOVAL, A.W. Understanding Students’ Practical Epistemologies and Their Influence on Learning Through Inquiry. Science Education, v. 89, n. 4, p. 634-656, 2005.; MUNFORD; LIMA, 2007MUNFORD, D.; LIMA, M.E.C. de C. Ensinar ciências por investigação: em que estamos de acordo? Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte v. 9, n. 1, p. 89-11, jun. 2007.; DUSCHL, 2008; KELLY, 2014KELLY, G. Inquiry teaching and learning: philosophical considerations. In: MATTHEWS, M.R. (ed.). International Handbook of Research in History, Philosophy and Science teaching. Nova York: Springer, 2014.; STROUPE; 2014STROUPE, D. Examining Classroom Science Practice Communities: How Teachers as Students Negotiate Epistemic Agency and Learn Science-as-practice. Science Education, v. 98, n. 3, abr, 2014., 2015STROUPE, D. Describing “Science Practice” in Learning Settings. Science Education, v. 99, n. 6, nov, 2015.).

Contudo, desde meados do século XX, novas concepções sobre educação ganham terreno no cenário global e os pesquisadores do campo passam a sinalizar a necessidade de realizar-se alterações significativas nos modelos de ensino vigentes, de modo a redefinir os papéis tanto dos estudantes, quanto dos professores, a fim de que esses trabalhem junto com a turma, a partir das ideias que lhes são apresentadas, buscando criar oportunidades para que os estudantes reconstruam e aprofundem suas explicações sobre o mundo natural, enquanto se engajam em processos simplificados de trabalho científico. No interior desse marco teórico, o ensino de ciências é pensado como um processo que envolve a iniciação dos estudantes nas práticas das comunidades científicas (NAYLOR; KEOGH; DOWNING, 2007NAYLOR, S., KOGH, B., DOWNING, B. Argumentation and Primary Science. Research in Science Education, v. 37, n. 1, p 17-39, mar, 2007.), ou seja, nas maneiras como membros das comunidades científicas compreendem o mundo natural e agem sobre esse a fim de construir novas explicações, por meio de um processo de construção, comunicação e análise de proposições.

Todavia, ao falarmos de ensino de ciências como prática, é importante compreendermos que, em virtude dos diferentes objetivos que guiam as práticas científicas e as práticas escolares, essas se constituem, também, de formas distintas, sendo necessária a investigação e caracterização de quais práticas são construídas e partilhadas em sala de aula durante as aulas de ciências.

Tendo isso em vista, neste trabalho, apresentamos uma ferramenta de análise para situações de ensino em que sejam propostas atividades para que os estudantes se engajem em processos simplificados de trabalho científico. Nosso objetivo principal é mostrar a viabilidade da ferramenta como instrumento de organização e análise do conteúdo de interações discursivas para pesquisas que têm em vista a identificação e a caracterização de práticas presentes em aulas de ciências e de normas que organizam a participação de professores e estudantes nesses espaços.

Para tanto, ao longo deste artigo tivemos com objetivo indicar e discutir os referenciais teóricos que embasam a construção da ferramenta; apresentar sua estrutura e aplicação para análise de situações de ensino; e exemplificar as possibilidades de construção e discussão de dados a partir da ferramenta.

NORMAS E PRÁTICAS CULTURAIS NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Acompanhando um movimento mais amplo de mudanças com relação às expectativas depositadas sobre a escola e o papel social dessa instituição, bem como outras transformações com relação à visão sobre o processo de trabalho científico e à velocidade com que as ferramentas, tecnologias e teorias científicas são produzidas, a disciplina de Ciências tem passado por revisões em suas finalidades, conteúdos e exercícios.

Dentre essas revisões, temos a constituição do marco teórico do ensino de ciências como prática em diálogo com a corrente perspectiva cultural que afirma que, uma vez que podemos identificar nas ciências: valores, instrumentos, produtos, regras de funcionamento, procedimentos, agentes e relações objetivas entre esses, é possível que as consideremos como uma forma de cultura. Contudo, não sendo essas normas, repertórios e práticas fixas e imutáveis, mas sim variáveis ao longo dos períodos históricos em decorrência, entre outros, dos paradigmas vigentes ou dos meios disponíveis, é mais coerente que não falemos de uma cultura científica, mas de culturas situadas no tempo e espaço (SCARPA; TRIVELATO, 2013SCARPA, D. L.; TRIVELATO, S. L. F. Movimientos entre cultura escolar y cultura científica: análisis de argumentos en diferentes contextos. Magis(Editorial Pontificia Universidad Javeriana), v. 6, p. 87-103, 2013.).

A partir da compreensão de que o conhecimento científico é produzido em comunidades de praticantes, são pensadas diferentes perspectivas para o ensino de ciências a fim de que se garanta que a aprendizagem dos estudantes se dê pela participação em certas práticas das comunidades científicas (DUSCHL, 2008; WINDSCHITL, THOMPSON e BRAATEN, 2008WINDSCHITL, M., THOMPSON, J., BRAATEN, M. Beyond the scientific method: Model-Based Inquiry as a new paradigm of preference for school science investigations. Science Education, v. 92, n. 5, p. 941-967, set. 2008.; STROUPE, 2014STROUPE, D. Examining Classroom Science Practice Communities: How Teachers as Students Negotiate Epistemic Agency and Learn Science-as-practice. Science Education, v. 98, n. 3, abr, 2014., 2015STROUPE, D. Describing “Science Practice” in Learning Settings. Science Education, v. 99, n. 6, nov, 2015.; FORD, 2015FORD, M. J., Educational Implications of Choosing “Practice” to Describe Science in the Next Generation Science Standards. Science Education, v. 99, n. 5, p. 1041-1048, nov, 2015.). Todavia, em virtude da própria indefinição sobre o que caracterizaria essas práticas, não podemos dizer que exista um consenso sobre o que deva ser realizado em sala de aula a fim de promover essa participação, sendo ponto comum, a ideia de que prática não remete a um conjunto fechado de operações específicas nas quais todos os cientistas se envolvem, mas a uma epistemologia do conhecimento científico construída no interior da comunidade científica e mantida por ela. Ao participar de práticas dessas comunidades, os estudantes podem melhor compreender como os cientistas validam suas alegações, ou seja, o que os cientistas têm de fazer para investigar o mundo natural e estabelecer um conhecimento confiável sobre esse.

Partilhando dessa premissa, ao propor algumas diretrizes para o ensino de ciências, o National Research Council - NRC1 1 O NRC é o consellho da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos da América e foi responsável pela condução do relatório A Framework for K-12 Science Education. que, posteriormente, orientou a construção de parâmetros para o ensino de ciências escolar naquele país (Next Generation Science Standards), publicado em 2013. (2011NATIONAL RESEARCH COUNCIL (NRC). A framework for K-12 science education: Practices, crosscutting concepts, and core ideas. Committee on a Conceptual Framework of New K-12 Science Education Standards. Board on Science Education. Division of Behavioral and Social Sciences and Education. Washington, DC: The National Academies Press, 2011.) identifica oito práticas das comunidades científicas nas quais os estudantes devem ser iniciados e que nos ajudam a analisar as práticas construídas nas salas de aulas de ciências. Útil como ferramenta de análise, é importante estarmos atentos ao fato de que qualquer lista está sujeita ao risco de destacar ou descartar práticas. Todavia, optamos por adotar as práticas listadas nesse documento para construção de nossa ferramenta por estarem em acordo com o referencial teórico sobre o ensino de ciências adotado para este trabalho e por serem um esforço de elencar práticas das comunidades científicas de modo a já relacioná-las com o contexto escolar.

Quadro 1
Síntese de práticas que devem estar presentes em sala de aula de ciências conforme NRC (2011)

Em trabalhos que buscam relacionar as práticas das comunidades científicas e o contexto escolar, o trabalho científico é entendido como um processo social realizado em comunidades de pares nas quais o trabalho é orientado por um conjunto de valores e critérios normativas (OSBORNE, 2014OSBORNE, J. Teaching scientific practices: Meeting the challenge of change. Journal of Science Teacher Education. v. 25, n. 2, p. 177-196, mar, 2014.). Tendo isso em vista, parece-nos necessário identificar não somente as práticas, mas também o conjunto de normas estabelecidas em sala de aula e que rege as interações vividas nesse espaço.

Como uma das autoras que tratam a construção do conhecimento como uma prática social, Longino (2002LONGINO, H. E. The fate of knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2002.) compreende que o processo de construção e negociação do que conta como conhecimento incorpora normas construídas nas interações sociais e normas epistêmicas filosoficamente convencionadas que se aplicam tanto às práticas sociais, quanto aos processos cognitivos. Essas normas regem os processes de elaboração, comunicação, apreciação e validação do conhecimento, garantindo que as novas proposições e as apreciações das ideias propostas estejam alinhadas com os objetivos e com os padrões cognitivos das comunidades científicas. Nesse processo social, pelas interações discursivas críticas, teríamos garantida, também, uma maior objetividade das ciências “não por canonizar uma subjetividade sobre outras, mas por assegurar que o que é ratificado como conhecimento sobrevive à crítica de múltiplos pontos de vista” (LONGINO, 2002LONGINO, H. E. The fate of knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2002., p. 129). Pela análise do processo social de construção do conhecimento, Longino (2002) identifica quatro normas que garantem a ocorrência de interações discursivas críticas e, assim, resguardam a objetividade desse processo, fóruns, receptividade à crítica, padrões públicos de análise e igualdade moderada.

Conforme Kelly (2014)KELLY, G. Inquiry teaching and learning: philosophical considerations. In: MATTHEWS, M.R. (ed.). International Handbook of Research in History, Philosophy and Science teaching. Nova York: Springer, 2014., essas quatro normas podem ser adaptadas para o contexto escolar, fazendo-se, ainda, necessária a investigação de como essas se constituem em sala de aula. Com esse fim, propomos uma possibilidade de adaptação dessas normas, a partir das quais orientaremos a análise com o intuito de identificar e caracterizar as normas que regem o processo de construção de explicações nas alasde ciências.

Quadro 2
Proposta de normas que devem orientar a construção de explicações científicas em sala de aula elaborada a partir das normas para produção do conhecimento científico de Longino (2002LONGINO, H. E. The fate of knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2002.)

A proposição de uma ferramenta de análise

Um caminho possível para as pesquisas que buscam repensar o ensino de ciências na perspectiva de aproximar os estudantes de práticas das comunidades científicas é o da caracterização de quais práticas são produzidas e partilhadas nas salas de aulas de ciências. Para tanto, construímos uma ferramenta que nos ajuda a identificar e categorizar essas práticas conjuntamente das discussões sobre as normas vigentes em sala nos diferentes momentos de trabalho.

A utilização da ferramenta se dá a partir da transcrição de registros em vídeo de interações discursivas vividas em sala de aula e podendo resultar na quantificação de ocorrências ou na qualificação das normas e práticas culturais seja pela caracterização de diferentes operações realizadas por estudantes e professores, seja por permitir evidenciar os processos de constituição das normas e práticas em sala.

Estruturalmente, a ferramenta apresenta-se como um quadro dividido em três colunas principais, sendo que, na primeira delas, são transcritos os turnos enumerados de fala com identificação do locutor, na segunda, as “evidências de normas culturais” e, na última das colunas, as “evidências de práticas culturais”.

Quadro 3
Modelo de mapa de episódio

Como vemos no quadro 3, para organizar as evidências de normas culturais, a segunda coluna pode ser subdividida em até quatro seções onde são descritas as operações ou conjuntos dessas que remetam às normas que regem o processo social de construção de conhecimento (LONGINO, 2002LONGINO, H. E. The fate of knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2002.), tais como adaptadas para este trabalho. Para tanto, quando pensamos em operações que remetem às normas culturais, podem ser destacadas tanto aquelas que promovam, quanto aquelas que dificultem a promoção dessas normas, ou seja, na segunda coluna podem ser descritas, tanto operações que, por exemplo, promovam a apresentação e revisão de hipóteses, evidenciando que a sala, durante o episódio analisado, constitui-se como um fórum, quanto aquelas que frustrem a comunicação e avaliação de hipóteses e, portanto, indiquem que a norma de fórum não está vigente.

De forma similar, na terceira coluna, também são realizadas subdivisões que permitem destacar as evidências de práticas culturais, por meio de operações ou conjuntos dessas que remetam às práticas das comunidades científicas descritas e categorizadas, conforme as oito práticas científicas (NRC, 2011) nas quais os estudantes de ciências devem ser iniciados a fim de compreender as ciências como corpos de conhecimento, mas também como prática, como processos de construção baseados em evidências, modelos e teorias pelo qual conhecimentos são construídos e revisados continuamente.

Durante a análise dos dados devem ser mantidas as quatro subdivisões da coluna das normas, bem como as oito da coluna de práticas. Todavia, para garantir uma melhor leitura dos dados, as aulas podem ser, posteriormente, organizadas em episódios que exemplifiquem diferentes experiências com as práticas. Nesses episódios, as subdivisões referentes às práticas ou às normas não evidenciadas podem ser ocultadas, como exemplificado no quadro acima.

O ENSINO DE CIÊNCIAS ENTRE NORMAS E PRÁTICAS

A fim de ilustrar o uso da ferramenta proposta, apresentamos trechos da análise de uma aula organizada a partir da atividade “A travessia do rio” que inicia a Sequência de Ensino Investigativa (SEI) “Navegação e Meio Ambiente”. Essa atividade foi implementada em 2012 em um 3° ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal em São Paulo e, dada a complexidade das interações que ocorrem no espaço escolar, optou-se pelo registro audiovisual da aula seguido de transcrição como forma de coletar com maior riqueza de detalhes os gestos, deslocamentos, falas, entonações, pausas, expressões faciais, entre outros.

Na aula analisada, os estudantes estão reunidos em grupos com cerca de cinco integrantes e, conforme instruções da professora, tentam responder ao seguinte problema: “Três amigos querem atravessar um rio. O barco que possuem suporta, no máximo, 130 quilos. Eles têm pesos de 60, 65 e 80 quilos. Como devem proceder para atravessar o rio, sem afundar o barco?”. Após a resolução em pequenos grupos, é previsto que os resultados sejam partilhados com toda a sala.

Em um momento inicial, a ferramenta foi utilizada para análise dos 228 turnos que compõem a aula a fim de identificar as normas e práticas presentes e de caracterizar as operações por meio das quais elas se evidenciam. Para validação dessa análise preliminar junto com os membros do grupo de pesquisa, foram apresentadas a transcrição da aula e as categorias de análise acompanhadas de sua descrição e das operações que, a princípio, as comporiam. A partir desse material, nas reuniões do grupo, algumas operações foram substituídas, retiradas ou adicionadas, bem como foram revistos pontos da análise em que foram encontradas divergências.

Validada a análise, selecionamos episódios por meio dos quais pudemos discutir algumas relações que se estabelecem entre as normas vigentes e as práticas constituídas e mesmo entre duas ou mais práticas.

O entendimento do problema

Quadro 4
Episódio 1- Atividade 1- A travessia do rio - 17/09/2012

Compreendendo que a norma de fórum se refere à necessidade de a sala de aula se configurar como um espaço de apresentação, crítica e revisão de hipóteses, evidências, métodos, argumentos, entre outros, buscamos nos turnos transcritos a presença desses elementos e, em seguida, descrevemos as operações realizadas com eles, como evidências da vigência dessa norma.

No primeiro episódio, identificamos a apresentação de hipóteses pelos estudantes (turnos 9, 11 e 13) e ilustramos como essas são, constantemente, partilhadas com a turma pela professora e criticadas, seja pela indicação de uma inconsistência, como ilustrado no episódio acima (turnos 10 e 12), ou pela formulação de perguntas, como em passagens dessa aula nas quais as hipóteses apresentadas são colocadas em teste, pela professora ou por outros estudantes, como exemplificado nos turnos destacados

Turno 20. Professora: Um de cada vez? me explica melhor como é que é isso”

Turno 23. Natan: [se for um amigo por vez] como é que você vai trazer o barco de volta?”

Após o entendimento do problema, como pode ser visto nos dois episódios que seguem, identificamos momentos em que os estudantes passam a revisar (turnos 76 e 86) e a justificar (turnos 78, 140 e 193) suas hipóteses a partir das críticas recebidas, o que nos permite dizer que, nessa aula, a sala se configura como um fórum.

Outra norma que discutimos a partir do primeiro episódio diz respeito à apresentação e estabelecimento dos critérios que devem dar suporte à proposição e análise de ideias, ou seja, os padrões públicos de análise vigentes naquele momento no grupo. Pela observação da coluna referente a essa norma, identificamos que, ainda que os critérios para proposição e análise das ideias tenham sido enunciados no problema, esses não são adotados pelos estudantes na apresentação das primeiras hipóteses, seja pela não compreensão ou pelo não acolhimento dos padrões apresentados. Para estabelecimento desses critérios com o grupo, a professora parafraseia ou solicita que os estudantes repitam suas hipóteses para, a partir dessas, definir as condições da situação investigada, como ilustrado nos turnos 10 e 12. Nesse movimento que se estende durante os primeiros minutos da aula, o grupo negocia sentidos e, coletivamente, compreende que a situação não deve ser resolvida dentro da lógica cotidiana, mas sim pelo uso do pensamento matemático.

Analisando, conjuntamente, normas e práticas, identificamos relações entre o estabelecimento dos padrões públicos de análise e uma operação característica da prática de planejar e executar investigações: o mapeamento de condições relevantes para construção de uma explicação. Pelo compartilhamento das respostas apresentadas e pela indicação das condições relevantes explícitas ou implícitas no enunciado do problema (turnos 10 e 12), a professora ajuda a sala a realizar o mapeamento de informações que devem ser levadas em conta para a condução da investigação. Essa operação se assemelha ao realizado pelas comunidades científicas para identificação de variáveis relevantes para compreensão e resolução de um problema e para definição de como essas podem ser observadas, medidas e controladas (NRC, 2011). No problema proposto na aula em análise, as condições não podem ser modificadas, ou seja, as variáveis estão fixas, contudo, é preciso que o grupo identifique quais condições precisam ser consideradas na apresentação e apreciação de hipóteses.

Durante o mapeamento das condições relevantes, a professora registra ideias a serem eliminadas (turno 12) e constrói uma lista na lousa para ajudar os estudantes na resolução do problema. Classificamos essa operação como evidência pontual da prática de análise e interpretação de dados que é comum nas comunidades científicas e pode ser caracterizada, entre outros, pela construção e adoção de ferramentas que permitam organizar dados a fim de utilizá-los como evidências para construção de uma explicação. Acreditamos que, ao adotar uma lista escrita na lousa, a professora tem a intenção de manter visível as hipóteses consideradas incoerentes para resolução do problema e, com isso, garantir que os demais grupos não precisem percorrer as mesmas ideias já invalidadas por não corresponderem às condições do problema. Todavia, essa ferramenta não é adotada pela turma que repete hipóteses sustentadas em ideias, supostamente, já eliminadas e registradas na lista.

O enfrentamento coletivo do problema

O segundo episódio selecionado para apresentação da ferramenta de análise representa o segundo momento da aula no qual a professora e os estudantes passam a trabalhar coletivamente na resolução do problema. Nesse momento, as normas culturais para construção de uma explicação que vinham se construindo mostram-se mais presentes e, conforme os estudantes aproximam-se da resposta esperada, a professora segue comunicando algumas das hipóteses e propondo perguntas que, por relembrarem a todo tempo os dados do problema, evitam que alguma condição seja desconsiderada e criam um espaço de livre apresentação e revisão de hipóteses para construção de uma explicação pela turma.

Quadro 5
Episódio 2- Atividade 1- A travessia do rio - 17/09/2012

Ao utilizarmos a ferramenta para análise das aulas, podemos tanto observar relações entre a vigência e ausência de determinadas normas e a experiências de práticas científicas, quanto perceber relações intracategorias, como a identificada entre a norma de padrões públicos de análise e a de receptividade à crítica. Se analisarmos paralelamente as colunas referentes a essas duas normas, encontramos indicações de como os estudantes utilizam as condições estabelecidas pelo grupo para construção de explicações cada vez mais elaboradas e justificadas. Como exemplo, no episódio acima, é possível ver que, ao apresentar suas hipóteses (turnos 74 e 80), Manoel acolhe as críticas feitas e formula uma hipótese que já considera os padrões apresentados pela professora, como “não dá para empurrar o barco de volta” (turno 10), “não pode ir nadando... tem que ir no barco” (turno 12), “tem só AS TRÊS pessoas” (turno 16); e por seus colegas, como “um dos amigos vai... deixa um lá pega o outro e volta” (turno 35), “então vai dois em um barco só um de 60 e 65” (turno 37), “mas não dá o de 80 porque vai dar 140” (turno 49).

Esse processo de apuração das hipóteses nos indica como a prática de argumentação se constrói, ainda que não baseada em evidências, mas em informações do problema discutidas pelo grupo. Compreendendo, como afirmam Gonzalez-Howard e McNeill (2016GONZALEZ-HOWARD, M.; MCNEILL, K.L. Learning in a community of practice: factors impacting english-learning students’engagement in scientific argumentation. Journal of Research in Science Teaching, v. 53, n.. 4, p. 527-553, 2016., p. 529), que não existe um consenso sobre a definição da argumentação científica ou de como essa deve acontecer em sala de aula, neste epispódio, percebemos a argumentação a partir da interpretação de que,

em uma sala de aula de ciências, isso [argumentação] deve incluir o professor criando oportunidades para que os estudantes articulem, por meio da escrita ou conversa, sua compreensão de um tópico. Ao tornar seu pensamento visível para os colegas, outros estudantes podem então desafiar, questionar ou construir sobre esses entendimentos.

Acreditamos que essa interpretação da argumentação como um processo coletivo de apresentação e questionamento de entendimentos pode ser exemplificada entre os turnos 75 e 86, quando a professora, por meio de perguntas, cria oportunidades para que Manoel defenda hipóteses baseando-se nas informações do problema, explicitando uma linha de raciocínio que é, posteriormente, sintetizada por Fabrício ao afirmar que “se o de 60 fosse buscar o de 65... ia dar 125 ai não ia dar porque o de 65 não tem como buscar o de 80” (turno 123).

Como outro exemplo de relações intracategorias, percebemos que o modo como a prática de argumentação se dá a ver nessa aula está relacionado à prática de fazer perguntas. Ao ouvir as hipóteses de Manoel, a professora formula perguntas (turnos 75, 77, 81 e 85) que guiam a construção de um argumento apresentado em fragmentos. De forma similar, como ilustramos no terceiro episódio, as perguntas da professora servem para estimular os estudantes a avaliar e a justificar suas hipóteses a partir dos dados disponíveis (turnos 190, 192 e 194), permitindo que a turma construa uma explicação para o problema proposto, estando, assim, associada, também, à prática de construir explicações.

Em seguida ao episódio acima apresentado, os estudantes prosseguem com a proposição e avaliação de hipóteses por cerca de quinze minutos, mas não conseguem resolver o problema e começam a se dispersar e a pedir dicas para professora. Como resposta às solicitações da turma, a professora propõe um novo caminho para resolução do problema e sugere que uma encenação seja feita pela sala.

A ENCENAÇÃO DO PROBLEMA

No último episódio escolhido para análise, apresentamos parte da encenação do problema realizada pelos estudantes e sua professora. Nessa encenação, três alunos representam os amigos que precisam fazer a travessia, cruzando a sala de um lado ao outro, como se navegassem entre as margens do rio. No início da encenação, o grupo retoma os primeiros movimentos da travessia, até que se deparam com a situação que, até então, não fora resolvida: como concluir as viagens se o amigo de 80kg não pode dividir o barco com ninguém?

Quadro 6
Episódio 3- Atividade 1- A travessia do rio - 17/09/2012

Para discutirmos a constituição de igualdade moderada na aula, buscamos identificar passagens em que a professora estimula a apresentação de hipótese, em que os estudantes apresentam contribuições de forma espontânea e em que as proposições feitas sejam acolhidas e utilizadas para construção de explicações ou de um plano de trabalho, evidenciando que naquela sala a igualdade é relativizada por níveis de expertise ou conhecimento, mas não por uma relação vertical de poder entre professora e estudantes, de modo que todos sejam considerados igualmente capazes de contribuir.

A partir do episódio acima, podemos falar da vigência de igualdade moderada em turnos como 181 no qual Maria se antecipa à professora na condução da encenação ou no intervalo entre os turnos 190 e 194 no qual contribuições são solicitadas pela professora e apresentadas pelos estudantes. Ainda sobre a constituição dessa norma, em outras passagens da aula, identificamos duas situações distintas em que as contribuições dos estudantes foram ignoradas pela professora. Na primeira dessas, a professora ignora respostas corretas, possivelmente, como uma maneira de dar voz aos demais estudantes e verificar se o entendimento expressado é partilhado pela turma, o que acreditamos não comprometer a construção de igualdade moderada em sala. Em outras situações, as contribuições foram ignoradas a fim de não interromper um turno de leitura ou explicação da professora, o que interpretamos como um enfraquecimento da norma, uma vez que representam passagens em que a igualdade é moderada por uma relação vertical de poder.

Encerrando a análise das práticas, identificamos a relação entre o fazer perguntas e a construção de uma explicação justificada e baseada na utilização de pensamento matemático, como podemos exemplificar entre os turnos 190 e 194, quando a impossibilidade de colocarmos os amigos de 60kg e 80kg juntos no barco é justificada por meio de um cálculo. De forma similar, essa prática já fora vista no segundo episódio quando a professora solicita que Manoel revise ou justifique hipóteses utilizando pensamento matemático e ele se utiliza do repertório da matemática para construir uma resposta ao problema.

Com esse episódio, encerramos nossa apresentação de possibilidades de uso da ferramenta, ilustrando como as quatro normas para construção de explicações científicas para os problemas propostos e de seis das oito práticas das comunidades científicas nas quais os estudantes de ciências devem ser iniciados. Pela análise completa da aula, identificamos as seguintes operações culturais, por meio das quais podemos compreender as normas e práticas culturais produzidas e partilhadas por esse grupo durante a realização da atividade.

Quadro 7
Síntese das normas e práticas

Como estamos lidando com uma sequência composta por onze atividades, outras práticas são encontradas ao longo de atividades com objetivos, procedimentos e exercícios distintos, entretanto, para ilustrar o uso da ferramenta, centramo-nos na discussão de uma das aulas na qual a SEI foi implementada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho nos propusemos a apresentar as possibilidades de aplicação de uma ferramenta de análise para identificação de quais normas e práticas próprias das comunidades científicas podem ser promovidas em sala de aula e, principalmente, de como essas se caracterizam em virtude das especificidades do contexto escolar.

Essa ferramenta foi construída a partir de referenciais teóricos que compreendem a construção do conhecimento científico como uma prática social e, por isso, tem seu foco nas interações vividas entre professores e estudantes em sala de aula, buscando caracterizar como eles constroem e avaliam explicações a partir dos bens e mensagens que têm em mãos.

No exemplo de aplicação da ferramenta, objetivamos evidenciar seu potencial para análise de normas e práticas de maneira independente, mas também para o estabelecimento de relações entre essas, permitindo-nos discutir como determinada norma influencia a constituição de uma prática, como duas práticas se relacionam e se sobrepõem ou como a vigência de uma norma está atrelada à vigência de outras.

Cumpre destacar que, por se tratar de uma ferramenta para análise de interações discursivas, uma dificuldade inerente do processo é o registro e transcrição das aulas, marcado pela impossibilidade de relatar toda a dinâmica, gestual e entonações vivenciados em sala, bem como por escolhas sobre o que e como descrever o observado.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2018
  • Aceito
    12 Nov 2018
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