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A FOFOCA E O DESEJO DE MAROCAS

THE GOSSIP ABOUT MAROCAS AND HER DESIRE

Resumo

A personagem Marocas, do conto "Singular ocorrência", inscreve-se na linha das personagens femininas intrigantes de Machado de Assis. O texto não informa sua profissão, mas incita o leitor a encontrá-la, por exclusão. Marocas a abandona, para dedicar-se a um homem casado. Tudo "parece" ir bem, até que, em noite de ausência do amante, ela procura outro homem. Tudo "parece" ir bem, pois o leitor conhece a história da personagem a partir do diálogo de dois homens parados numa esquina do Rio de Janeiro. A personagem é filtrada por esse diálogo. Este artigo tem como propósito discutir a construção dessa personagem e pensar, seguindo essa construção, o que esta nos diz dos homens que dialogam. A discussão realizada neste texto se esteia nas ideias de Lacan, sobretudo a de desejo.

mulher; desejo; roupa; olhar; "Singular ocorrência"

Abstract

Marocas, a character in the short story, "A Singular Occurrence," inscribes herself in the line of Machado de Assis’s intriguing female characters. Although her profession is not stated by the text, it urges the reader to find out by the process of elimination. Marocas leaves her profession to dedicate herself to a married man. Everything "seems" to be fine until the night her lover is absent and she seeks another man. Everything "seems" to be fine, because the reader becomes acquainted with her story by reading the dialogue between two men talking on a street corner in Rio de Janeiro. The character is filtered by this dialogue. The purpose of this article is to discuss the construction of the character and based on this construct consider what it tells us about the dialoguing men. The discussion is premised on Lacan's ideas, especially on desire.

woman; desire; clothing; look; "Singular ocorrência"

"Singular ocorrência", conto dos mais interessantes de Machado de Assis, constitui-se por meio do diálogo entre dois homens parados numa esquina, atraídos pela vida alheia: um fala, o outro intervém pouco, incitando a que continue. O leitor se vê frente à bisbilhotice masculina, marcada pela deixa "história de um amigo meu", embora o narrador/mexeriqueiro não se ausente de todo, pois menciona jantares a quatro: ele, o amigo, a amante do amigo e uma quarta pessoa, não nomeada – coisas dos narradores de Machado –, e afirma ter presenciado vários dos momentos narrados. O epíteto "masculina" para a fofoca visa menos a diferenciá-la da feminina, que a marcar a ausência de privilégio de gênero no "invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana",1 1 ASSIS, Esaú e Jacó/Memorial de Aires , p. 11. dirá o narrador de romance futuro.

A fofoca desdobra-se em três: Andrade ouviu parte da história de Leandro; contou o que ouviu e viveu ao narrador; e este, por sua vez, repassou o conteúdo a seu interlocutor. Espécie de passa anel discursivo, o famoso telefone sem fio, cada fala engloba e provavelmente deforma outra, realizando o paradigma da fofoca, o leva e traz. O procedimento é análogo ao do quadro As meninas de Velázquez: o encaixe sucessivo de narrativas no interior da narrativa, como o de quadros no interior do quadro.

A organização do triplo disse que disse realizada pelo narrador – sabiamente sem nome, profissão ou idade, diferente das personagens mencionadas – aponta visões masculinas sobre uma mulher que transita na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Estamos diante de uma passante; esta, sim, com nome, endereço, profissão e idade presumida, no coração do Império. Os três relatos procedem do andar e do modo de vestir da mulher; nos três, preponderam seu olhar e o dos homens. Em meio a essa ênfase sobre ela, há o transe do amigo, supostamente traído por aquela mulher, a quem ele devota fidelidade parcial, já que aquele é casado.

A narrativa começa de repente, sem preâmbulos, num corte brusco, e segue alternando os fatos narrados, que dão conta da vida da mulher, enquanto eles a olham entrando e saindo da igreja, ação trazida à tona a partir do diálogo. A fórmula estaria bem-posta num texto moderno, influenciado pelo cinema, sem deixar de estar no conto. As expressões espaciais e temporais reforçam o momento de enunciação. O dêitico "agora”, o tempo presente das fórmulas verbais – "está vendo", "vai entrando", "não ponha", "está dizendo", "vamos", "conte-me" – situam os interlocutores no aqui/ agora; mais que isso, prolongam o presente por meio da ênfase no gerúndio e pela expectativa de algo que virá – "vamos", "conte-me".

– Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.

– De preto?

– Justamente; lá vai entrando; entrou.

– Não ponha mais na carta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma sua recordação de outro tempo, e não há de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz.

– Deve ter quarenta e seis anos.

– Ah! conservada. Vamos lá; deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo. Está viúva, naturalmente?

[…]

– Olhe; lá vem ela saindo; não é ela?

– Ela mesma; afastemo-nos da esquina.

– Realmente, deve ter sido muito bonita. Tem um ar de duquesa.

– Não olhou para cá; não olha nunca para os lados. Vai subir pela rua do Ouvidor…2 2 ASSIS, Histórias sem data , p. 47; 50.

A ênfase está em "aquela dama". Ela é o eixo do enunciado; a pessoa da qual se fala. O aqui/agora da enunciação será mobilizado por objeto um tanto distante – "aquela dama"; "outro tempo" – e ao mesmo tempo próximo. As duas instâncias – a do enunciado e a da enunciação – exigem um leitor atento. Ele deve olhar para duas frentes: o "agora" da enunciação e o tempo da história passada, contada pelo narrador. Nesse começo, os interlocutores direcionam o olhar para Marocas, e pouco caso se faz da menção ao olhar do narrador feita por seu companheiro de conversa. Questionado sobre o seu pretenso envolvimento com a mulher, ele conta a história do amigo.

A cor da roupa e o corpo da mulher chamam a atenção. De preto e entrando na igreja da Cruz, Marocas, no momento do diálogo, seria chamada d. Maria de Tal, ou seja, teria perdido o "nome familiar" com o qual "florescia" no passado; parece bem-posta, "mulher de truz", e menos não seria em 1860, "Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim".3 3 Idem, p. 47. Quanto a sua profissão, o narrador a designa por exclusão: "Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará".4 4 Ibidem.

Logo no início, o conto apresenta, sem explicitá-las, dissonâncias em relação a expectativas do senso comum. O mexerico masculino é uma delas: dois homens, num momento sem muita ocupação, dão conta da vida de um terceiro; nenhum dos dois tem nome ou endereço, ao passo que o objeto da fofoca, sim, os tem; ao lado dessa fofoca, chama a atenção uma mulher de 46 anos, no século XIX, desejável e bonita. O narrador se vê incitado a contar a história. O "ainda assim" que utiliza sugere a discrepância entre a jovem prostituta e seus modos: vestido afogado e linguagem limpa. Esses descompassos cindem o que se espera e o que se apresenta. Enunciados pelo narrador, indicariam discrepâncias entre as expectativas em relação a Marocas e o que ela oferece: roupa afogada, modos discretos, atração sobre muitos homens.

Nas oscilações, há um jogo entre o ser e o parecer, e neste há lugar preponderante para a visão: a cena que suscita a narrativa – a mulher entrando na igreja da Cruz – e os detalhes da vestimenta, ontem e hoje, são captados pelo olhar. Se não é viúva, a dona Maria de Tal porta-se como se fosse; se não é moça de família, Marocas sugere isso. O detalhe da roupa no conto é dado a não se desprezar.

O encontro entre Andrade – o amigo do narrador – e Marocas dera-se por acaso no Rocio. Chamou-lhe a atenção a mulher bonita que caminhava "parando e olhando como quem procura alguma casa".5 5 Idem, p. 48. Ela parou e lhe mostrou meio encabulada um papel, perguntando-lhe "onde ficava o número ali escrito".6 6 Ibidem. Marocas não sabia ler. À noite, eles se encontram no Ginásio, onde se encenava a Dama das Camélias. Pouco depois, estavam apaixonados. Marocas desistiu de seus namorados e, segundo o narrador, "não perdeu pouco; tinha alguns capitalistas bem bons".7 7 Ibidem. Por não desejar do amante "mais do que o estritamente necessário",8 8 Idem, p. 49. empenhava joias para pagar a costureira.

A escorregadela de Marocas virá, para surpresa dos homens, não num espalhafato, não em indumentária indicativa de sua condição; virá no episódio de Leandro. Na noite em que Andrade parte com a família para a Gávea, ela desiste de jantar com o retrato do amante e encontra, segundo parece, ao acaso, Leandro, um indivíduo destoante dos que frequentava: sujeito "reles e vadio",9 9 Idem, p. 50. vivia da exploração alheia. O encontro não prescinde do detalhe da vestimenta e do olhar. Leandro, apesar da simplicidade da roupa da dama, "viu logo que não era cousa para os seus beiços. […] Ah! um anjo! E que casa, que sala rica! Cousa papafina. E depois o desinteresse […]".10 10 Ibidem.

O encontro havia sido narrado por Leandro a Andrade, na manhã seguinte, quando aquele vai a seu escritório pedir-lhe dinheiro, dois ou três mil réis. Diz, não sem bajular seu interlocutor: "Para Vossa Senhoria é que era um bom arranjo"11 11 Ibidem. – e, como quem não quer nada, menciona o endereço da mulher que encontrara na noite anterior no Rocio, motivo de sua alegria matinal – afinal, ele não parecia merecer "papa tão fina". Andrade, então, lhe paga vinte mil réis para irem juntos ante Marocas e ver sua reação, ao encontrar o homem que levara a sua casa na noite de ausência do amante. Leandro, reles, vadio, mas não bobo, vai pedir dois ou três mil réis, capitaliza o encontro que tivera, sai com vinte, e deixa Andrade em débito pela fofoca. Todos os amigos sabiam do caso de Andrade com Marocas.

O que se segue é o desespero de Andrade, que, atingido pelo golpe, não pensa em linha reta – "estava tão atordoado, que muita cousa lhe escapou"12 12 Idem, p. 51. –, oscila e, segundo o narrador, vai a inverossimilhanças: "chegou a imaginar que a Marocas, com o fim de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir dizer-lhe aquilo; e a prova é que o Leandro […] lhe disse a casa e o número".13 A cena breve, mas dramática, no dizer do narrador, faz que ele a desconheça no seu todo e o leva a cogitar "na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão acanhadas!".14 14 Ibidem. Seu interlocutor arrisca palpite e cita Augier: "a nostalgia da lama"; o narrador rebate: "acho que não".15 15 Ibidem.

O fato é que Andrade e Marocas se reconciliam. Antes, ela foge para uma hospedaria, é encontrada, desmaia, tudo muito pungente e com um quê de romantismo. Diz o narrador "O Andrade nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos braços um do outro".16 16 Idem, p. 53. Malgrado o vácuo do "nada" preparado, ou graças a ele, a história continua. Ela tem um filho de Andrade que morre aos dois anos. Ele vai para o Norte, o narrador/amigo a obriga a ficar no Rio de Janeiro. Andrade morre, Marocas põe luto, "considerou-se viúva",17 17 Idem, p. 54. manda rezar missa no dia de sua morte, nos três anos seguintes, e havia dez anos o narrador a perdera de vista.

Finda a narrativa, fica a dúvida sobre qual teria sido o motivo da traição de Marocas. O interlocutor insiste na "nostalgia da lama", o narrador contesta: ela nunca "desceu até aos Leandros"18 18 Ibidem. e não contava com que o acaso unisse Leandro a suas relações pessoais.

O falar e o olhar estão em primeiro plano no conto. O enredo nasce da fala dos quatro homens, e esta surge a partir do olhar: o dos homens direcionado à mulher, reparando em seu corpo e indumentária, e o de Marocas, direcionado a Andrade e a Leandro. Nesses dois últimos casos, o olhar parte de Marocas, a reciprocidade cria a relação.

Os homens do conto se rendem ao "deuzer", diria Lacan, deus não afeito a especificidades de gênero, e, ainda segundo o psicanalista, um dos atos de gozo. Ato complexo, nele o sujeito simula o contato impossível, enveredando pelo significante, na tentativa de escapar ao malogro da junção com o Outro. A fofoca que o narrador realiza participa dessa tentativa. Nela, há o prazer de saber da vida do outro, de medi-la com a sua e com suas pressuposições, o prazer do vínculo entre o enunciador e o interlocutor. Este, na maioria das intervenções, é marca da função fática; utiliza a língua para que ela continue a simular o contato.

Há também, na fofoca, o prazer da aproximação com o objeto desejado, alvo da fala. Falar de Marocas é, de certa forma, possuí-la, tê-la perto de si, o que se explicaria pelo fato de que o narrador, provavelmente, já a tivera, em outro momento, mais próximo do que sua narrativa explicita. Essa proximidade é sugerida por ele mostrar saber da moça mais que o esperado, e ser possessivo em relação a ela: sabia coisas desconhecidas por Andrade, procurou dissuadir o amigo da reaproximação, obrigara-a a ficar no Rio, quando Andrade partira para o Norte, tinha certeza da exclusão de Leandros. Como bom fofoqueiro, o narrador aborda com parcimônia as informações que o envolvem e delonga-se nas que remetem a outros envolvidos. O teor da fala desse narrador leva a pensar, utilizando outra boutade do psicanalista, no "gozume",19 19 Os termos “deuzer” e “gozume” são empregados em LACAN, Mais, ainda (Seminário 20). o gozo do ciúme, que parece ser um de seus motores. Como Santo Agostinho, que olha a criança pendurada no seio e nela vê, aturdido, a invejável unidade com a mãe, o narrador olha Marocas e nela vê a adesão invejável e indesejável a outros homens. Talvez não seja aleatório que, em meio a lugar público, ele destile a vida privada da mulher e de dois conhecidos, um deles seu amigo. Gozos conflitantes: de saber do outro; de aproximar-se de quem se fala; do ciúme do que lhe falta e, presume-se, o outro possui; de socializar a vida alheia.

Falar de Marocas vem substituir o outro gozo, aquele que se tangencia, e é o encontro impossível com o Outro, diria de novo Lacan. Não há hierarquia, há tão somente a busca de um objeto que possa preencher a falta, encobrir um hiato. O objeto modifica-se. Parodiando Machado de Assis, pode ser um botão, um carrinho, Marocas, Rita, Sancha, o capital, uma farda ou um vestido; o que há é o deslizamento de objetos e desejos e, forma das mais instigantes, o deslizamento pode alcançar o significante.

Chega-se, então, à palavra; a palavra, sempre a palavra: origem da criação, da danação; o mais brilhante engodo criado pelo homem para ir de uma ponta a outra do existir. Ela é um dos laços do eu ao outro, forma sutil de adesão a ele. "A palavra é mediação sem dúvida, mediação entre o sujeito e o outro, e ela implica a realização do outro na mediação mesma."20 20 LACAN, Os escritos técnicos de Freud (Seminário 1), p. 61. A fala a partir da qual o conto se constitui é tentativa de agarrar o outro: o interlocutor, pela atenção; Marocas, pelo interesse; ambos, seres que poderão saciar faltas. A questão é que, no meio do caminho, há o narcisismo e, de modo geral, aquele que tenta se conectar e dizer o outro não consegue sair de si mesmo; assim, projeta-se sobre ele.

O que se percebe no conto é a visão de Marocas a partir do outro, que é pleno de preconcepções sobre a mulher que entra e sai da Igreja. Nessa visão, não há lugar para terceira via: exercendo a mais antiga das profissões, a mulher deveria vestir-se a caráter; deveria incorporar, literalmente, o dress code de sua profissão; recalcitrante, ela não faz isso, nem do ponto de vista dos vestidos que usa, nem da linguagem que utiliza. Com seus atos, deixa desnorteados os homens que a observam. Marocas não se encaixa no esperado. Embora só ouçamos sua voz por meio indireto, quando afirma que não jantaria com o retrato de sua mãe, mas com o de Andrade, ela se mostra adepta de uma linguagem desviante frente às expectativas do narrador, de seu companheiro de conversa, de Andrade e de Leandro.

Pode-se identificar, no conto, dupla via na constituição da personagem. De um lado, ela permanece muda diante do olhar e da voz dos homens que a apresentam; por outro lado, as ações e os dados que a caracterizam permitem explicitá-la de modo diferente do exposto pela fala desses homens. Marocas "fala" por meio desses elementos; eles funcionam como uma linguagem desviante. Se, do ponto de vista dos homens, Marocas apresenta-se como mulher desejada, eu diria que Marocas, por meio dos dados revelados pelo diálogo, é uma mulher que não se submete a expectativas a seu respeito e, se é desejada, seja por que razão for, ela se firma como uma mulher desejante.

A linguagem desviante e desejante de Marocas associa-se, sobretudo, ao olhar; ela sabe incitar o olhar do outro. Sua linguagem limpa é apenas citada pelo narrador; dela, nada se lê ou ouve; mas seu vestir comportado, mencionado três vezes no texto, é elemento que incomoda. Ele atrai a visão dos homens, porém não casa bem com o que eles identificam na mulher: a prostituição, o ser, escancaradamente, objeto de satisfação do desejo do homem. Esperavam de Marocas o espavento, sua diferenciação explícita, no código da fala e da roupa, das outras mulheres. Não é isso que recebem de volta. O narrador menciona duas vezes a mulher de Andrade: bonita, boa, meiga, afetuosa e resignada. Salvo a última qualificação, Marocas quase a replica.

A roupa espera a visão e o desejo do outro, é código social, uma das formas de engajamento ao outro e à cultura. Analisando a sociedade do século XVIII, Engels identifica a roupa como uma das formas de marca de adesão social e de respeitabilidade. Como adesão social, citam-se os tecidos utilizados pelos trabalhadores nas fábricas, como o fustão, tecido grosseiro, normalmente verde ou cinza.

O fustão se tornou a veste proverbial dos homens de classe operária, os quais são chamados de "jaquetas de fustão": eles dão essa designação a si próprios, em contraste com os cavalheiros, que se vestem de roupas finas de cashmere. Quando Fergus O'Connor, o líder chartista, veio a Manchester, durante a insurreição de 1842, ele apareceu, em meio ao aplauso ensurdecedor dos operários, num terno de fustão.21 21 ENGELS apud STALLYBRASS, O casaco de Marx: roupas, memória, dor, p. 59.

A roupa de Marocas, que olham como sua primeira característica, diferente do caso do líder chartista citado por Engels, não indica seu pertencimento a uma classe, mas corporifica sua resistência a lugares predeterminados, sua não conivência com os prejuízos referentes a sua profissão; ela não se veste como prostituta. Esse caráter desviante a torna uma mulher singular, fina nas habilidades do olhar. Quando encontra Andrade, no Rocio, ela o olha por meio do papel que lhe apresenta, indagando onde ficava o número nele escrito. Ele já a vira pela beleza de seu corpo e fica sem saber o que dizer, pois ela, antes de alcançar o número desejado, para com outros transeuntes. É desse questionamento, é do olhar que ela lhe dirige, que nasce a paixão. A deficiência de Marocas leva-a a Andrade; este, benevolente, segundo o texto, ensina-a a ler; e ela aprende rápido, pois começa a ler romances. Deficiência? Analfabetismo? Se há de se duvidar disso, dada a rapidez com que aprende a ler, há de se afirmar, ao contrário, que ela talvez fosse analfabeta da letra, que não reconhecia, mas não do poder dos signos entre os homens. Como os Nambiquaras, que Strauss tem dificuldade em reconhecer como adeptos da escrita, pois a escrita deles não é a sua, Marocas reconhece os signos de seu interesse. Segundo o narrador, ela, apesar da meiguice e da resignação de mulher de Andrade – vejam-se as pressuposições do narrador a seu respeito –, dominou-o; soube seduzi-lo, com seus gestos acanhados e seu vestir afogado. Em seu encontro com Leandro, seu olhar foi também hábil, ao redigir o texto desejado.

A dama vinha atrás dele, e mais depressa; ao passar rentezinha com ele, fitou-lhe muito os olhos, e foi andando de vagar como quem espera. [...] Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto [...].22 22 ASSIS, Histórias sem data , p. 50.

O encontro de Marocas com Leandro permite identificá-la como uma exímia leitora e dona de seus desejos. Leva Leandro para casa e se desinteressa rápido. John Gledson, na introdução da coletânea de contos que organiza, vê nesse texto traços do feminismo de Machado. Vendo sua cama vazia, Marocas a preenche com Leandro, desviando-se da promessa de jantar com o retrato de Andrade, na falta do de sua família: "Não poderia ser que essa insegurança, exacerbada pelo fato de que nesse feriado todos estão com suas famílias, a faça buscar companhia e calor humano – até calor sexual? – da única maneira que lhe é possível?".23 23 GLEDSON, Por um novo Machado de Assis , p. 62.

Tome-se cuidado para não reduzir a ação de Marocas a uma atitude revanchista. Que o leito estivesse vazio é uma contingência não sem significado, mas inferir daí o encontro de Leandro sugere um flerte com a visão romântica que, por vezes, o narrador nos dá; abandonada, caiu nos braços de outro. O encontro dos dois talvez enseje outra leitura: inscrição e manifestação do desejo de Marocas, que não decorre, necessariamente, da ausência de Andrade. Desejo satisfeito, veio "o desinteresse"; mais perspicaz que o narrador, Marocas parece saber que os objetos de desejo são transitórios, deslizantes, para utilizar o termo de Lacan. Como diriam Lacan e Freud, o desejo feminino assusta e, no caso de Marocas, assusta mais, pois, levando o pobretão Leandro para a cama, ela não apenas se inscreve no circuito do desejo, mas cai fora do da mercadoria e das valorações capitalistas. Duplamente ousada, Marocas une Lacan e Marx.

Frente a Marocas, os homens desse conto são curtos de visão. Querem que ela respeite o "figurino", nas roupas que veste e nos prejuízos românticos atribuídos a ela, os quais casam sua meiguice, seu recato, paixão ardente e sincera com a fidelidade; sexo com o amor. As expectativas são vãs, Marocas é bem mais interessante que elas.

O romance da ex-prostituta com Andrade está em primeiro plano no conto. Dele, advém o impacto da traição de Marocas: apaixonada, por que trairia? Se Gledson faz a associação mencionada, a síntese de Candido refina as ideias do narrador. Após afirmar que Machado "descreve a situação do tipo conjugal de uma antiga e discreta 'moça de costumes fáceis', que vive com um advogado, e se comporta como esposa respeitável e fiel",24 24 CANDIDO, Vários escritos , p. 28. ele narra a situação adversativa:

No entanto, certo dia ela se entrega sem razão aparente a um vagabundo de rua, depois de o haver provocado. O fato é descoberto casualmente pelo advogado, segue-se uma ruptura violenta que suscita na moça um desespero tão sincero e profundo, que as relações se reatam, com a mesma dignidade de sentimentos e atitudes de antes. O advogado morre e ela se conserva fiel à sua memória, como viúva saudosa de um grande e único amor.25 25 Ibidem.

A presença do símile reforça as suposições sobre o comportamento de Marocas: a respeitabilidade, a fidelidade na vida e na morte: "como esposa respeitável e fiel"; "viúva saudosa de um grande e único amor". O narrador dá a deixa; a crítica a sofistica: "Tão modesta! maneiras tão acanhadas", como poderia ser infiel? Acatada essa equação, oscila-se, na tentativa de explicar o encontro com Leandro, entre "halo de absurdo, de gratuidade",26 26 Ibidem. inviabilizador de quaisquer avaliações, e a causalidade, "nostalgia da lama" ou necessidade de calor humano ou sexual, devido à cama vazia.

Tal como os fatos se apresentam, Marocas levou Leandro a sua casa, e do Rocio à Rua do Sacramento não houve recuo. Ela o provocou, afirma Candido. Melhor: ela iniciou a corte e não desistiu do jogo. "Considerou-se viúva", diz o narrador. Verbo pouco assertivo, para admitir-se o que se predica. Do mesmo modo, as missas a que assiste e o vestido preto são pistas pequenas para a "viúva saudosa de um único e grande amor"; além de juízo curto a respeito de Marocas e, quiçá, de Machado. Este participa da embrulhada: a mulher de preto dando esmola no adro ao entrar na igreja poderia sugerir que, além de "viúva fiel", ela é pia e devota.

Não estaria a gênese desses prejuízos ancorada num narrador implicado com Marocas? A traição e o arrependimento, um tanto carregado, que narra não se refeririam apenas a Andrade. Afinal, ele também foi com a família do amigo para a Gávea, nas festas de São João. Se a mulher vestida de preto entrando na igreja pode ser um trompe-l'œil, o olhar do narrador no início da conversa, bem observado, talvez não o seja.

Assim, o juízo imposto a Marocas diz mais sobre quem o impõe. Marocas atreveu-se com Leandro, o narrador atreve-se com a linguagem: "nenhuma verdade pode ser localizada a não ser no campo onde ela se enuncia – onde se enuncia como pode".27 27 LACAN, O avesso da psicanálise (Seminário 17), p. 59.

O narrador não desmente Lacan; capricha nas firulas, sobretudo nas formas negativas. Raras são as intervenções em que elas não aparecem. Ao advérbio "não", explícita ou implicitamente, incorporam-se formas como "nada", "nenhum", "nunca". Há as negativas simples, a preterição, marca do mexerico, as negativas dobradas e o emprego da forma negativa com valor afirmativo.

Amostras do discurso reticente da fofoca – o dizer não dizendo –, as negativas do narrador, antes de Freud,28 28 Remeto ao texto “A negação”, de Freud, publicado em 1925. mas não dissonantes dele, afirmam negando. As fórmulas variam. Começam com o "não" e sofisticam-se: passam pelo "não lhe digo nada", "não me encobriu nada", "ele não gostou menos", "não juro, mas creio", incluindo o irônico "assim assim", que, malgrado a duplicidade icônica do sim, caracteriza o incerto – nem esse, nem aquele – estado civil de Marocas. As cerejas do bolo, as duas negações finais, arrematam o conto. "Não inventei nada; é a realidade pura",29 29 ASSIS, Histórias sem data , p. 54. diz o narrador na sua antepenúltima fala. Aqui, a negação vem justaposta à afirmação, a negativa não apenas é dobrada, mas o conteúdo também o é, pela justaposição da negativa à afirmativa; o narrador esforça-se "como pode" para dirimir dúvidas de quem o ouve. Néscio no assunto ele não é, pois observara que Andrade suprimira as partes inconvenientes da traição de Marocas, ao narrar o fato na delegacia. Em sua penúltima fala, o narrador afirma: "Não; nunca a Marocas desceu até aos Leandros".30 30 Ibidem. Se a negação dobrada reforça o que se afirma, do mesmo modo, reforça o conflito com a negativa anterior. "Se Marocas nunca desceu até aos Leandros", observe-se o uso do pretérito perfeito, a narrativa certamente não é "pura realidade", pois se soube que isso ocorreu. Se não ocorrera antes, o tempo deveria ser outro. O enunciado desmente a incompatibilidade entre o uso do mais-que-perfeito e um mexerico de esquina: o narrador o utiliza pelo menos quinze vezes em suas falas. A denegação da evidência, a resistência em aceitar a "descida" de Marocas rumo a Leandros, bem marcada no tropeço verbal do narrador, talvez se estenda a inquietações menos explícitas que a amorosa, e vincule o narrador a Andrade, além dos laços de amizade.

Embora menos evidente que os laivos românticos construídos pelo narrador, a economia está referida no conto. Andrade, meio advogado e meio político, poderia ser um dos filhos da "modesta burguesia comercial e burocrática, que irão aparecer, graças ao desenvolvimento também modesto do capitalismo no Brasil, no cenário político e intelectual da segunda metade do século XIX".31 31 CRUZ COSTA, Contribuição à história das ideias no Brasil , p. 139. Vindo do Norte, ainda que um representante da nova modalidade de burguesia, talvez tivesse o pé atrelado à velha aristocracia agrária. Ao referir-se aos namorados que Marocas abandona, o narrador os qualifica como "capitalistas bem bons". Os dois homens que conversam não parecem escapar a esse status. Não são trabalhadores quaisquer. Leandro, que é um joão-ninguém, e a escrava forra de Marocas fogem do tom. O primeiro, reles e vadio, vive de explorar os amigos de seu ex-patrão; a segunda vive a situação ambígua de escrava forra.

Marocas participa da ordem capitalista, embora procure desvencilhar-se da esfera de mercadoria, tentando escapar do valor de uso e de troca. Prostituta, abandona os capitalistas que namorava, para ficar com Andrade. Empenha suas joias para pagar a costureira. O penhor, no século XIX, era expediente para fazer dinheiro e sair do aperto econômico. Stallybrass, em O casaco de Marx, mostra as idas e vindas do casaco do autor de O capital pelas lojas de penhores, para sanar as contas de sua família. As mulheres eram as principais responsáveis pela realização dos empenhos, levavam às lojas, principalmente, roupas e joias, que muitas vezes compravam visando a empenhar no futuro.

Assim, diferente dos homens que encontra, Marocas pensa para si uma terceira via. Diferente de Andrade, que pensa a possibilidade de ela ter pago a Leandro para contar-lhe o encontro e testar seu amor; diferente de Leandro, que capitaliza o encontro com ela – ciente ou não de seu caso com Andrade; diferente do narrador, que separa os homens numa escala de valores, onde há Andrades – "capitalistas bem bons" – opostos a Leandros. Marocas, se não consegue fugir integralmente do capitalismo, resiste a levá-lo a todas as esferas da existência. Se compreender e aceitar seu desejo não é tarefa fácil, mais difícil será aceitar que seu exercício possa se fazer descendo a escala econômica (e talvez, por que não?, sem paga). Tivesse ela permanecido entre os Andrades, a história seria outra. Esses, bovaristas um tanto enviesados, feridos em seus brios de classe, tentam forjar uma Marocas na medida de seus preconceitos: tão recatada, tão apaixonada, como poderia violar a exclusividade dos Andrades?

Descer a Leandros talvez tenha sido a grande heresia de Marocas, imperdoável ao outro, que, sem saber como nomeá-la, "se enuncia como pode" e fala sem parar.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó/Memorial de Aires. São Paulo: Nova Abril Cultural, 2003.
  • ASSIS, Machado de. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1989.
  • CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo; Rio de Janeiro: Duas Cidades; Ouro sobre Azul, 2004.
  • CRUZ COSTA, João. Contribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editor, 1956.
  • FREUD, Sigmund. A negação [1925]. In: FREUD, Sigmund. Obras completas Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, volume 16: O eu e o id, "autobiografia" e outros textos (1923-1925), p. 275-282.
  • GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • LACAN. Jacques. Mais, ainda (Seminário 20). Ed. Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
  • LACAN. Jacques. O avesso da psicanálise (Seminário 17). Ed. Jacques-Alain Miller. Tradução de A. Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
  • LACAN. Jacques. Os escritos técnicos de Freud (Seminário 1). Ed. Jacques-Alain Miller. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
  • STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
  • 1
    ASSIS, Esaú e Jacó/Memorial de Aires , p. 11.
  • 2
    ASSIS, Histórias sem data , p. 47; 50.
  • 3
    Idem, p. 47.
  • 4
    Ibidem.
  • 5
    Idem, p. 48.
  • 6
    Ibidem.
  • 7
    Ibidem.
  • 8
    Idem, p. 49.
  • 9
    Idem, p. 50.
  • 10
    Ibidem.
  • 11
    Ibidem.
  • 12
    Idem, p. 51.
  • 13
    Idem, p. 52.
  • 14
    Ibidem.
  • 15
    Ibidem.
  • 16
    Idem, p. 53.
  • 17
    Idem, p. 54.
  • 18
    Ibidem.
  • 19
    Os termos “deuzer” e “gozume” são empregados em LACAN, Mais, ainda (Seminário 20).
  • 20
    LACAN, Os escritos técnicos de Freud (Seminário 1), p. 61.
  • 21
    ENGELS apud STALLYBRASS, O casaco de Marx: roupas, memória, dor, p. 59.
  • 22
    ASSIS, Histórias sem data , p. 50.
  • 23
    GLEDSON, Por um novo Machado de Assis , p. 62.
  • 24
    CANDIDO, Vários escritos , p. 28.
  • 25
    Ibidem.
  • 26
    Ibidem.
  • 27
    LACAN, O avesso da psicanálise (Seminário 17), p. 59.
  • 28
    Remeto ao texto “A negação”, de Freud, publicado em 1925.
  • 29
    ASSIS, Histórias sem data , p. 54.
  • 30
    Ibidem.
  • 31
    CRUZ COSTA, Contribuição à história das ideias no Brasil , p. 139.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2017
  • Aceito
    02 Ago 2017
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