Acessibilidade / Reportar erro

A OBRA DE MACHADO DE ASSIS NOS ESTADOS UNIDOS: ESTUDO DA BIOGRAFIA DO AUTOR NOS PREFÁCIOS DAS PRIMEIRAS TRADUÇÕES (1952-1984)

THE WORK OF MACHADO DE ASSIS IN THE UNITED STATES: STUDY OF THE AUTHOR'S BIOGRAPHY IN THE PREFACES OF THE FIRST TRANSLATIONS (1952-1984)

Resumo

Este artigo analisa os prefácios escritos para as primeiras traduções de obras de Machado de Assis para o inglês, publicadas entre 1952 e 1984 nos Estados Unidos, com destaque para um assunto recorrente nesses paratextos: a biografia do escritor. O objetivo é evidenciar como o tratamento da vida de Machado de Assis reflete diferentes momentos da crítica literária do século XX, assim como ilustra a circulação de ideias entre as críticas literárias brasileira e estadunidense. O conjunto de interpretações resultantes é diverso e apresenta ao público leitor estadunidense entendimentos contrastantes da obra machadiana.

Palavras-chave:
Machado de Assis; tradução; prefácio; paratexto

Abstract

This article analyzes the prefaces written for the first translations of Machado de Assis’ works into English, published between 1952 and 1984 in the United States. It highlights a recurrent subject in these paratexts: the writer's biography. The aim of this analysis is to show how the treatment of Machado de Assis' life reflects different moments of 20th century literary criticism, as well as illustrates the circulation of ideas between Brazilian and American literary criticism. The resulting interpretations are diverse and present contrasting understandings of Machado de Assis' work to the American reading public.

Keywords:
Machado de Assis; translation; preface; paratext

Malgrados o enorme reconhecimento alcançado em território nacional e a alta qualidade estética, a obra de Machado de Assis foi apenas tardiamente divulgada em nível internacional. Enquanto literatura escrita em língua portuguesa e, portanto, vinculada em sua difusão ao destaque e à importância política do país em que era produzida, o romance e o conto machadianos só começaram a ter maior destaque em âmbito internacional a partir de meados do século XX, quando o Brasil passa a ter maior importância no rearranjo geopolítico do pós-guerra.

Em face dessas circunstâncias, ao estudar a recepção da obra de Machado de Assis nos Estados Unidos das décadas de 1950 e 1960, não se deixa de topar com o reconhecimento, da parte de editores, tradutores e críticos estadunidenses, do descompasso entre aposição do escritor no cânone brasileiro e no cânone ocidental. A perplexidade daí resultante, que deixa espantados aqueles que se veem diante de uma obra excepcional apenas tardiamente conhecida, leva a reclamos para que o autor brasileiro seja devidamente reconhecido e valorizado também em países que não o seu de origem.

Analisar os prefácios das primeiras edições da obra machadiana em inglês é, portanto, buscar compreender os esforços dos autores desses paratextos no sentido de fazer com que essas traduções fossem lidas. Era necessário tornar os romances e contos de Machado de Assis atraentes ao público a que se destinavam. Não se pode ignorar, então, o funcionamento dos paratextos como intermediários estratégicos entre o texto literário e a realidade do público ao qual se quer destiná-lo. Afinal, um prefácio, como qualquer outro paratexto, atua guiado por seu caráter funcional, propriedade essencial que o coloca a serviço do texto (GENETTE, 2009GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Cotia: Ateliê Editorial, 2009., p. 17).

O presente artigo almeja contribuir para o conhecimento do processo de internacionalização dos escritos de Machado de Assis, focalizando os prefácios elaborados para as edições da obra machadiana realizadas a partir da década de 1950 nos Estados Unidos.1 1 Este artigo resulta de pesquisa realizada em iniciação científica durante a graduação em Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, intitulada "A obra de Machado de Assis nos Estados Unidos: Estudo dos paratextos das primeiras traduções (1952-1984)", desenvolvida entre 2021 e 2022, com apoio de bolsa concedida pela Fapesp. Nesses paratextos, há uma variedade de temas e análises que se apresentam ao leitor estadunidense, mas a um assunto é conferido destaque, seja pela recorrência com que é tratado, seja pela extensão que ocupa na maioria dos textos: a biografia do escritor.

Certamente, uma exposição biográfica pode interessar muito ao leitor que desconhece não apenas Machado de Assis, mas o contexto em que nasceu e se formou. No entanto, para além do interesse em verificar como e quais informações são apresentadas ou omitidas, a escolha do tratamento conferido à biografia de Machado de Assis como objeto deste estudo se deve também à presença ou não do movimento de imbricação entre a vida e a obra do escritor. Ou seja, interessa-nos verificar se os prefaciadores abraçam ou rechaçam a lógica de causalidade entre vida e obra, que implica a explicação dos romances e contos de Machado de Assis a partir dos eventos de sua biografia.

Esse movimento é relevante, pois escancara como as argumentações construídas refletem tendências diversas da crítica literária do século XX, que, ao longo do seu desenvolvimento, abraçou novos entendimentos e tornou obsoletos outros tantos. Torna-se também possível enxergar a circulação de ideias entre Brasil e Estados Unidos no âmbito da crítica machadiana, ilustrando como críticos estadunidenses tanto encamparam como contestaram conclusões muito cristalizadas na crítica brasileira, formulando, no segundo caso, interpretações novas que, por sua vez, exerceriam forte influência nos estudos machadianos nacionais.

Foram estabelecidos, como limites temporais para este estudo, a tradução pioneira de William Grossman para Memórias póstumas de Brás Cubas, publicada em 1952 sob o título Epitaph of a Small Winner, e a tradução de Helena por Helen Caldwell, de 1984. Julgamos pertinente esse recorte temporal pois ele abarca desde o início da presença da obra machadiana no mundo anglófono até a publicação da última tradução realizada por Caldwell, grande promotora da obra do escritor brasileiro nos Estados Unidos. Nas quinze primeiras edições que identificamos publicadas nesse ínterim, encontram-se doze prefácios originais,2 2 Somente o livrete What Went on at the Baroness', publicado pela The Magpie Press, em 1963, contendo apenas a tradução de Caldwell do conto "O apólogo", não apresenta prefácios, contando, aliás, com parcos elementos paratextuais, em função de seu tamanho reduzido. nove dos quais são objetos da análise por lidarem com a questão da biografia do escritor.3 3 Os outros três prefácios não abordados aqui foram escritos por: Clotilde Wilson, para a sua tradução de Quincas Borba intitulada Philosopher or Dog?, publicada em 1954 pela Noonday Press; pela dupla de tradutores composta por Jack Schmitt e Lorie Ishimatsu, que compilou diversos contos de Machado na coletânea The Devil's Church and Other Stories (University of Texas Press, 1977); e por Helen Caldwell, para The Hand and the Glove, tradução de Albert I. Bagby Jr. Optou-se sempre por recorrer à primeira aparição de cada texto.4 4 Assim, não recorremos às republicações dos três principais romances do escritor, pela Avon Books, em 1978 (Epitaph of a Small Winner), 1980 (Dom Casmurro) e 1982 (Philosopher or Dog?), em suas traduções realizadas por Grossman, Caldwell e Wilson, respectivamente, pois, nessas edições, são repetidos os prefácios dos tradutores, publicados anteriormente.

Localizemos, então, os nove prefácios contemplados neste artigo, escritos por quatro autores distintos:

  1. Dois por William Grossman, presentes em sua tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas, intitulada Epitaph of a Small Winner (Noonday Press, 1952), e em sua tradução, com Helen Caldwell, de alguns contos de Machado na coletânea The Psychiatrist and Other Stories (University of California Press, 1963);

  2. Waldo Frank por apenas um, para Dom Casmurro, tradução de Helen Caldwell (Noonday Press, 1953);

  3. Helen Caldwell por quatro, que constam em traduções suas, todas publicadas pela University of California Press: Esau and Jacob (1965CALDWELL, Helen. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Esau and Jacob. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1965. p. V-XV.), Dom Casmurro (1966______. Translator's Introduction to Dom Casmurro. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1966. p. V-XII.), Counselor Ayres' Memorial (1972______. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Counselor Ayres' Memorial. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1972. p. V-IX.) e Helena (1984______. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Helena. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1984. p. V-IX.);

  4. Albert I. Bagby Jr., finalmente, por dois, em suas duas traduções publicadas pela University of Kentucky Press: The Hand and the Glove (1970BAGBY JR., Albert I. Introduction. In: ASSIS, Machado de. The Hand and the Glove. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1970. p. VII-XX.) e Iaiá Garcia (1977______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX.).

Comecemos por Epitaph of a Small Winner, a primeira tradução de um romance machadiano para o inglês. No prefácio que William Grossman escreveu para essa edição de 1952, o tradutor, após apresentar Machado de Assis como um iconoclasta e pessimista, parte da crítica brasileira de que tinha conhecimento para a exposição da biografia do escritor, afirmando que muito dessa crítica estava direcionada "à solução de dois problemas: como Machado adquiriu o seu pessimismo e como ele conseguiu desenvolver um gosto clássico, vívido em meio ao romantismo predominante. Os eventos conhecidos na sua vida deixam muito a ser explicado" (GROSSMAN, 1952GROSSMAN, William L. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William Grossman. Nova York: Noonday Press, 1952. p. 11-14., p. 12, tradução nossa). É, então, pela vida do escritor brasileiro que Grossman começa a tentar entender a sua visão de mundo, mas já nos alertando de antemão que a biografia não será suficiente para a compreensão total das questões levantadas pela obra machadiana.

Grossman passa à sua seleção de eventos da vida de Machado de Assis. A filiação e primeira educação do escritor são expostas sem que Grossman ofereça ao leitor o nome de nenhum personagem: os pais de Machado são apresentados como um "pintor mulato" (Francisco José de Assis) e uma "mulher branca de Portugal" (Maria Leopoldina Machado da Câmara). O pequeno Machado é criado pela "amável mulher mulata" (Maria Inês da Silva) que o pai veio a desposar após a morte prematura da mãe. Viveu também a criança por um tempo na velha casa aristocrática de sua "rica madrinha" (Maria José de Mendonça Barroso). Vê-se que Grossman, como todos os demais prefaciadores, não evita tratar da cor da pele de Machado e sua família.

O conjunto de informações expostas no texto ainda abarca outras informações da juventude de Machado de Assis, como o aprendizado em escola pública e do idioma francês com um padeiro vizinho, e seu trabalho como tipógrafo e revisor. A melhora na sua reputação após o sucesso de Memórias póstumas de Brás Cubas é apresentada como um marco em sua carreira, sendo que o prestígio alcançado por Machado lhe garante a eleição como presidente da Academia Brasileira de Letras. Grossman destaca ainda o trabalho do escritor como funcionário público pela maior parte de sua vida e seu casamento com uma mulher branca cinco anos mais velha que ele, uma portuguesa (Carolina Xavier de Novaes), também não nomeada no prefácio.

O tradutor não cita qualquer fonte específica na sua exposição, porém essa leva de informações, aliada à interpretação que ele apresenta do momento da vida de Machado em que teria ocorrido a grande mudança no estilo literário do escritor, não deixa dúvidas com relação à obra que lhe serviu de base: o estudo crítico e biográfico de 1936 elaborado por Lúcia Miguel Pereira. Dizendo que a maior parte da ficção machadiana anterior a 1879 era marcada pela tradição romântica, o tradutor vai então alegar sobre Machado: "naquele ano, a sua saúde, nunca robusta, colapsou de forma tão severa que ele foi forçado a passar alguns meses em um balneário. Ali ele parece ter decidido livrar-se das convenções literárias alheias a sua personalidade" (GROSSMAN, 1952GROSSMAN, William L. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William Grossman. Nova York: Noonday Press, 1952. p. 11-14., p. 13, tradução nossa). O resultado dessa transformação seria nada menos que Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado pela primeira vez um ano após a crise, em 1880.

É inevitável lembrar a obra de Lúcia Miguel Pereira: a ideia de que o ano de 1879 seria crucial para a reviravolta estilística do escritor é devedora da crítica brasileira. É dela uma afirmação como: "Esse retiro forçado parece ter sido de grande importância na sua vida. Entre Iaiá Garcia e as Memórias póstumas de Brás Cubas, entre o romancista medíocre e o grande romancista, existiu apenas isso: seis meses de doença" (PEREIRA, 2019PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Brasília: Senado Federal, 2017., p. 170). Ou, ainda, sobre o mesmo momento da vida do escritor: "Sem dúvida, a evolução já se vinha lentamente esboçando, mas a doença e o recolhimento a apresentaram e aprofundaram" (PEREIRA, 2019PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Brasília: Senado Federal, 2017., p. 173). Grossman se torna mais um a defender esse ponto de vista, que acabaria por se tornar extremamente influente na crítica brasileira de Machado e que é o primeiro a ser apresentado ao público leitor estadunidense.

Dessa forma, a argumentação de Grossman, presente em seu prefácio de 1952, se vale das informações biográficas trazidas no estudo de Lúcia Miguel Pereira (recurso que leva ao uso do termo "mulato", frequentemente utilizado pela estudiosa brasileira para se referir à cor da pele de Machado). No entanto, ele também acaba por abraçar um tipo de lógica característico da obra da brasileira, marcada pelo estabelecimento de uma relação de causalidade muito direta entre a vida de Machado e a sua obra. É bem conhecido o esforço de Lúcia Miguel Pereira de buscar decifrar o autor por meio dos livros que escreveu, o que a leva a conclusões que, pelo caráter fortemente especulativo, foram posteriormente muito contestadas.

A presença dessa lógica se faz presente tanto na interpretação sobre a mudança estilística de Machado de Assis como numa afirmação concernente à saúde do escritor. Segundo Grossman, "epiléptico, míope, raquítico, Machado possuía tanto a timidez como a intensa necessidade de companhia tão comumente encontrada em pessoas doentes" (GROSSMAN, 1952GROSSMAN, William L. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William Grossman. Nova York: Noonday Press, 1952. p. 11-14., p. 13, tradução nossa). Nesse mesmo sentido é a leitura de Lúcia Miguel Pereira em relação ao comportamento de Machado: "essa tendência a se agregar, em franca contradição com a timidez, deve ser em Machado de Assis, fruto daquela 'afetividade viscosa e colante da constituição epiléptica ou gliscroide' de que fala Mme. Minkowska, grande autoridade em epilepsia" (PEREIRA, 2019PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Brasília: Senado Federal, 2017., p. 79). Por meio dessa interpretação, a necessidade da companhia teria necessariamente relação direta com a doença. A importância desta é tamanha para Grossman que seu prefácio em The Psychiatrist and Other Stories, embora destinado à análise dos contos que compõem a coletânea, inicia-se com uma breve apresentação de Machado como "o mulato tímido e epiléptico que alcançou a universalidade dentro dos limites provincianos do Rio de Janeiro oitocentista" (GROSSMAN, 1963______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. The Psychiatrist and other stories. Tradução de William Grossman e Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1963. p. VII-X., p. VII, tradução nossa).

Não se pode perder de vista a narrativa, de autoria de Lúcia Miguel Pereira, de Machado como um homem que, embora desde o início confrontado por três obstáculos - a origem humilde, a cor e a epilepsia -, conseguiu, graças à sua ambição e ao seu amor pela literatura, superá-los para se tornar um escritor excepcional. No entanto, enquanto para Lúcia Miguel Pereira é impossível ler Machado sem associá-lo à tríade pobreza, cor e doença, Grossman cria apenas vinculações explícitas entre a saúde e a obra do escritor. O tradutor começa a estabelecer a sua própria interpretação ao não demonstrar entender que a cor e a origem humilde são de alguma forma relevantes para a compreensão da obra e do comportamento de Machado.

Efetivamente, Grossman acaba seguindo um caminho distinto do de Lúcia Miguel Pereira em sua conclusão sobre a ironia machadiana, após o término da exposição da vida de Machado de Assis:

Em tudo isso, há pouco para guiar alguém em direção a uma solução aos problemas básicos sobre Machado. Sua saúde precária pode ter sido em parte responsável pela ironia machadiana, mas não pode explicar - ao contrário, torna ainda mais inexplicável - sua rejeição do super-homem [nietzschiano] (GROSSMAN, 1952GROSSMAN, William L. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William Grossman. Nova York: Noonday Press, 1952. p. 11-14., p. 13, tradução nossa).

Grossman acaba por entender que mesmo a saúde do escritor é insuficiente para dar conta da totalidade dos problemas suscitados pela leitura dos seus textos. A figura potente do super-homem de Nietzsche, que parece ao tradutor um alvo de atração natural a um homem como Machado, fisicamente debilitado, é, no entanto, rejeitada pelo escritor que, além disso, segundo Grossman, a ridicularizaria na forma do Humanitismo, filosofia proposta pelo personagem Quincas Borba. Assim, só parcialmente o tradutor adere à interpretação proposta por Lúcia Miguel Pereira, conferindo somente à saúde do escritor um papel determinante, que é, contudo, relativizado.

De maneira bem diversa se posiciona Waldo Frank, ao escrever o prefácio de Dom Casmurro, publicado apenas um ano depois da tradução pioneira de Grossman. Crítico literário que muito se dedicou ao conhecimento da literatura latino-americana, Frank não deixa de apontar diversos fatos da vida de Machado de Assis que Grossman também destaca, como o nascimento em bairro pobre, a cor mestiça (apesar de Frank referir-se a Machado com o termo "man of color", que pode designar qualquer pessoa considerada não branca) e a saúde débil.

Interessa-nos propriamente o fato de Frank não estabelecer relações de causalidade entre a biografia e a literatura do autor, insistindo mesmo na direção contrária. O elemento central explorado em seu texto é a ambiguidade presente na obra de Machado, ambiguidade considerada como um princípio do seu mundo ficcional. Embora Frank entenda que um crítico da vertente biografista teria muitos dados sobre a vida do brasileiro para explicar essa ambiguidade, ele próprio opta por outro caminho: sua suspeita é a de que "polaridades, tensões, irresoluções, existem em todo filho e filha de Adão e Eva, expostos como estamos, ao Éden e à Terra, à Serpente e a Deus" (FRANK, 1953FRANK, Waldo. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Nova York: Noonday Press, 1953. p. 5-13., p. 7, tradução nossa).

Logo, para o prefaciador, insistir na figura do homem Machado de Assis não traz nada que possa ser pertinente para a análise de sua obra, o que o leva a finalizar o seu prefácio de forma categórica: "o fato de essa pequena obra-prima [Dom Casmurro], agora tão bem traduzida para o inglês, ter sido composta pelo filho epiléptico de um mulato pobre, o que ele prova sobre a relevância da raça e da doença para o gênio? Precisamente nada" (FRANK, 1953FRANK, Waldo. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Nova York: Noonday Press, 1953. p. 5-13., p. 13, tradução nossa). Os três conflitos presentes na vida de Machado e elencados por Frank que poderiam ser interessantes ao crítico biografista - os conflitos de sangue, de classe e do corpo doente com o cérebro imperioso -, são equivalentes aos três aspectos centrais da leitura de Machado realizada por Lúcia Miguel Pereira, rejeitados por Frank com muita veemência.

Em que pese a coerência de sua argumentação, talvez a ideia mais interessante trazida por Frank em seu prefácio envolva diretamente o Brasil. Em vez de focar o indivíduo Machado de Assis, o prefaciador entende que só será possível chegar a alguma especificidade se considerarmos as dinâmicas das relações raciais da época em que Machado despontou como escritor. A perspectiva de Frank é comparatista, já que ele parte da realidade brasileira para compará-la com a sua própria. É assim que o prefaciador conclui que "o sentimento na elite brasileira contra pessoas não brancas nunca pôde ser estratificado como o foi nos Estados Unidos" (FRANK, 1953FRANK, Waldo. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Nova York: Noonday Press, 1953. p. 5-13., p. 7, tradução nossa), apesar de não deixar de reconhecer a exclusão social advinda com a abolição de 1888, que manteve na pobreza os filhos dos escravizados.

Segundo Frank, embora naturalmente houvesse racismo no Brasil, uma pessoa afrodescendente poderia ocupar uma posição na sociedade como brasileira, caso ascendesse em função de suas habilidades ou da mera sorte. No Brasil, "apesar da injustiça econômica e da discriminação social, todas as raças e todas as misturas sentiram eventualmente que podiam respirar" (FRANK, 1953FRANK, Waldo. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Nova York: Noonday Press, 1953. p. 5-13., p. 8, tradução nossa). Fator crucial para essa diferença entre os dois países americanos seria a presença de uma cultura religiosa generalizada, por meio da qual a influência da Igreja Católica teria um alcance excepcional. Para Frank, oriundo de um país cuja maioria religiosa sempre foi protestante, o espírito do catolicismo teria contribuído decisivamente para criar um espaço em que figuras como Machado de Assis e Aleijadinho pudessem exercer seus talentos artísticos.

O prefaciador, portanto, só enxerga como interessante a biografia de Machado de Assis na medida em que consegue estabelecer um elo entre ela e o contexto mais amplo do país de origem do escritor, deixando de lado, nesse movimento, a busca na vida do autor de elementos explicativos da obra. A realidade brasileira serve como explicação para a possibilidade de florescimento de artistas que Frank não entende possível no sul dos Estados Unidos do século XIX, país em que a divisão entre brancos e negros sempre foi mais rígida e binária que no Brasil.

Nos prefácios que escreveu para as edições estadunidenses da obra de Machado, Helen Caldwell sustenta opinião semelhante à de Frank em relação ao tratamento da biografia de Machado de Assis. A tradutora ocupa uma posição de destaque no que concerne à presença de Machado nos Estados Unidos, pois, além de suas traduções da obra machadiana, escreveu também dois livros de crítica sobre o autor. Sua posição como professora de estudos clássicos na Universidade da Califórnia não a impediu de se dedicar apaixonadamente à obra de um autor latino-americano.

Quando a sua tradução para Dom Casmurro é relançada em 1966 pela University of California Press, Caldwell elabora um prefácio em que ressalta como muitos leitores identificaram Bento Santiago, o protagonista do romance, com o próprio Machado, e Capitu, com alguma mulher não identificada de sua vida, em função da verossimilhança com que o escritor constrói seus personagens. No entanto, Caldwell lembra ao leitor que autor e personagem são completamente dessemelhantes: se, de um lado, Bento é homem de posses descendente de ricos proprietários escravistas, cujas atitudes são resultado direto de sua formação, por outro, Machado passou os primeiros anos de sua vida na pobreza (CALDWELL, 1966______. Translator's Introduction to Dom Casmurro. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1966. p. V-XII., p. VIII). A tradutora aposta em colocar lado a lado a vida do escritor e de seu personagem como estratégia argumentativa, afastando definitivamente a possibilidade de se ler a obra do escritor brasileiro a partir de sua biografia.

Caldwell expõe muitas informações, já trazidas anteriormente por Grossman e Frank, que evidenciam as origens humildes do escritor. A visão geral da vida de Machado oferecida pela tradutora só pode, para ela, levar a uma conclusão: "Machado de Assis exibe uma modesta autoconfiança e justa apreciação de seu próprio valor que não são apenas excepcionais em alguém com seus antecedentes humildes, mas também inteiramente diferentes da insegurança de seu herói ficcional" (CALDWELL, 1966______. Translator's Introduction to Dom Casmurro. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1966. p. V-XII., p. X, tradução nossa). Não há, nessa vida, evidências de uma mulher como Capitu ou dos ciúmes que arruinaram a vida de Bento.

Essencialmente, Caldwell está expondo em seu prefácio um dos pressupostos para a defesa da tese já apresentada alguns anos antes, com a publicação d'O Otelo brasileiro de Machado de Assis, de 1960: é necessário superar as leituras biografistas para que se entenda o verdadeiro projeto estético de Machado de Assis. A tradutora está, nesse sentido, em sintonia com os ensinamentos promovidos pelo New Criticism, corrente crítica formalista forte especial e precisamente nos Estados Unidos das décadas de 1940 e 1950. O movimento pugnava pela análise dos aspectos intrínsecos da obra literária, ignorando a vida e a psicologia do escritor, ambas consideradas referências externas ao texto; como nos afirma Keith Cohen, "a tendência para a história e para a biografia foi constantemente desacreditada pelos New Critics" (COHEN, 2002COHEN, Keith. O New Criticism nos Estados Unidos. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2., p. 554).

Dessa maneira, Caldwell, como Frank, reflete a atitude do movimento de negar importância à biografia do autor no momento da análise literária. Em seu estudo de 1960, a tradutora reconhece como muitos dos críticos brasileiros de então, desorientados pela sutileza de Machado, "debruçaram-se sobre sua vida, tentando interpretar sua obra em termos de sua origem humilde e sua composição física" (CALDWELL, 2008______. Otelo brasileiro de Machado de Assis. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., p. 12). Insistindo nesse caminho equivocado, os críticos não teriam entendido que, para Machado, os fatos da vida seriam, ao contrário, obstáculos a uma interpretação mais pertinente da sua obra.

É em razão disso que Caldwell atesta em seu prefácio: "além dos fatos, há o testemunho da arte. Se tomamos Machado de Assis como o narrador de Dom Casmurro, devemos aceitar sua narrativa sem questioná-la: ele não tentaria enganar seu leitor" (CALDWELL, 1966______. Translator's Introduction to Dom Casmurro. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1966. p. V-XII., p. X, tradução nossa). O romance seria, assim, um mero melodrama, destituído de seu poder trágico ao renunciar ao conflito moral de seu protagonista. Para Caldwell, tal postura "contraria a intenção do autor, pois, é evidente, a narração, seu estilo, e sua técnica básica são elementos funcionais no âmbito da personalidade do herói do livro - cujos atos cabe a nós, os leitores, julgar" (CALDWELL, 1966______. Translator's Introduction to Dom Casmurro. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1966. p. V-XII., p. X, tradução nossa). Em oposição a Grossman, que dá a ocorrência do adultério como certa em seu prefácio de 1952, a tradutora reafirma a ambiguidade enganadora como elemento central do livro, da mesma forma que o fizera Frank anteriormente.

O trabalho de Hélio de Seixas Guimarães aponta que tal coincidência, no entanto, não é fortuita. O pesquisador demonstrou como a interpretação do romance a partir da ambiguidade e da dúvida foi discutida entre Cecil Hemley, editor da Noonday Press, responsável pela publicação das primeiras traduções de obras de Machado de Assis nos Estados Unidos, e Caldwell, por meio de correspondências mantidas entre setembro e dezembro de 1952, ou seja, antes da publicação da tradução de Dom Casmurro em 1953. Uma carta datada de 8 de outubro de 1952, escrita por Hemley e acolhida com entusiasmo por Caldwell, "expõe, articuladas, tanto a dúvida sobre a consumação do adultério quanto a problemática situação do narrador em primeira pessoa, que, ao mesmo tempo em que faz emergir a dúvida, torna-a insolúvel" (GUIMARÃES, 2019______. Helen Caldwell, Cecil Hemley e os julgamentos de Dom Casmurro. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, São Paulo, v. 12, n. 27, p. 113-141, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/jzNW4GZxTWq3vsFbpjGLZSQ/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 2 jun. 2023.
https://www.scielo.br/j/mael/a/jzNW4GZxT...
, p. 116). Dessa forma, Hemley e Caldwell chegam a um consenso sobre a leitura do romance, e o editor decide encaminhar parte de sua correspondência com a tradutora a Frank, que escreveria o prefácio para a tradução da obra. O latino-americanista, como vimos, abraça a interpretação da ambiguidade como aspecto central do romance, tornando-se mais um, com o seu texto, a contestar a crítica brasileira dominante.

Os prefácios de Caldwell e Frank são, assim, defesas de uma interpretação de Dom Casmurro que teria impacto profundo na crítica brasileira. Desloca-se o foco da análise de Capitu para Bento e fortalece-se a convicção de que a narrativa,da forma como é contada por ele, objetiva enganar o leitor, ideia que Caldwell analisa em seu O Otelo brasileiro de Machado de Assis, de 1960. Nesse ensaio, como assinala o crítico português Abel Barros Baptista, a tradutora buscava, acima de tudo, responder à questão "da culpa ou inocência de Capitu e, do seu ponto de vista, como se sabe, a inocência de Capitu é mais que uma possibilidade" (BAPTISTA, 2003BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003., p. 370). Em seu prefácio, Caldwell contenta-se com a afirmação da ambiguidade levantada pelo discurso do narrador, não proclamando a inocência de Capitu. Não obstante, a sua atitude essencial de contestação da autoridade de Bento, que a possibilita ler o romance contra o protagonista, aparece bem clara ao leitor estadunidense.

No prefácio escrito para a tradução de Esaú e Jacó, publicada em 1965, não é surpreendente encontrar a mesma postura em relação ao tratamento da vida de Machado de Assis. Nesse texto, a tradutora afirma que Aires, embora seja o narrador do romance em terceira pessoa, também se apresenta como um dos seus atores. Agindo como narrador, "Aires permanece rigidamente no personagem: ele é sempre o velho diplomata; ele nunca é Machado de Assis. Como ator, ele confirma o caráter do narrador" (CALDWELL, 1965CALDWELL, Helen. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Esau and Jacob. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1965. p. V-XV., p. VII-VIII, tradução nossa). Não há, aqui, espaço para a leitura de Lúcia Miguel Pereira de que Aires seria uma espécie de sósia do escritor.

Caldwell evita os exageros da estudiosa brasileira mesmo no prefácio de 1972 para Counselor Ayres' Memorial, no qual a tradutora enxerga na personagem Carmo uma representação de Carolina, "como o próprio Machado de Assis admitiu".5 5 Caldwell não cita a fonte dessa informação, mas, de acordo com a argumentação presente em O Otelo brasileiro de Machado de Assis, ela sustenta esse entendimento com referência direta à correspondência do escritor (Ver Caldwell, 2008, p. 58-59). Explorando brevemente a questão da frequente troca, no manuscrito final da obra, dos nomes das duas personagens femininas centrais do romance, Carmo e Fidélia, Caldwell limita-se a perguntar: "que relação, pode-se indagar, tem Fidélia com Carmo? Que relação com a verdadeira Carolina?" (CALDWELL, 1972______. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Counselor Ayres' Memorial. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1972. p. V-IX., p. V, tradução nossa). Partindo dessas questões, ela não almeja encontrar uma resposta definitiva, mas voltar a sua atenção a Aires, o personagem que realmente lhe interessa. Logo, sua atitude não é de fazer especulações de ordens diversas a respeito do papel da falecida esposa de Machado no romance, apesar de reconhecer a pertinência das perguntas que propõe.

No prefácio de sua última tradução de uma obra machadiana, a do romance Helena, publicada em 1984, Caldwell arrisca uma hipótese com relação a um dos personagens a partir da declaração de Machado no prefácio que escreveu para a segunda edição da obra, de 1905, no qual afirma ouvir em seu romance um "eco de mocidade e fé ingênua". O personagem é Estácio, e Caldwell se pergunta: "Estaria o autor se referindo a esse herói com quem, talvez, ele próprio se identificasse e à vida idílica na chácara do Vale, propriedade rural na periferia do Rio de Janeiro?" (CALDWELL, 1984______. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Helena. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1984. p. V-IX., p. VII, tradução nossa). Contribui para esse raciocínio a forma como o escritor pinta a chácara da família Vale: "Em Helena, a chácara é um refúgio romântico de paz e beleza. O restante da ficção de Machado de Assis é quase desprovido de menção à natureza externa. Este romance se demora afetuosamente nas árvores e flores da chácara sob as mudanças de luz" (CALDWELL, 1984______. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Helena. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1984. p. V-IX., p. VII, tradução nossa).

Para relacionar Estácio a Machado é necessário tomar a própria palavra do escritor e ligá-la a um dado biográfico de sua infância, quando, embora de origem humilde, Machado viveu numa chácara semelhante, propriedade de sua rica madrinha. Resultado dessa identificação do escritor com o seu personagem seria a atenção dispensada à natureza que rodeia a chácara no romance, vista pelos olhos de um homem jovem. Independente do mérito que possa ter o raciocínio de Caldwell, importa frisar o reconhecimento da própria tradutora de seu caráter especulativo, não havendo contradição com o conteúdo de seu prefácio anterior para Dom Casmurro.

Os últimos dois prefácios de nosso estudo foram escritos por Albert I. Bagby Jr. para The Hand and the Glove (1970BAGBY JR., Albert I. Introduction. In: ASSIS, Machado de. The Hand and the Glove. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1970. p. VII-XX.) e Iaiá Garcia (1977______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX.), traduções suas de romances da primeira fase de Machado, e, neles, a discussão em torno da vida do escritor brasileiro não pode ser entendida se separada da questão do alegado pessimismo machadiano. A crítica literária brasileira ao longo da década de 1890 já fazia do pessimismo, assim como da ironia e do humorismo, palavra recorrente para se referir à obra de Machado de Assis (GUIMARÃES, 2017GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017., p. 36). No entanto, Bagby Jr. se apresenta como uma voz dissonante que nega o pessimismo do escritor e que chega inclusive a caracterizá-lo com o termo contrário.

O tradutor, que passou dezoito anos no Brasil antes de se tornar chefe do departamento de línguas românicas da Universidade de Corpus Christi, do Texas, utiliza as informações biográficas que expõe longamente no início de seus textos para sustentar a sua tese. No prefácio para The Hand and the Glove, Bagby Jr. afirma enxergar um tema que estaria implícito em Ressurreição e Helena e explícito em A mão e a luva e Iaiá Garcia. Simples de ser resumido, o tema seria "vitória para os fortes (aqueles que desejam e conseguem alcançar seus desejos), e fracasso para os fracos (aqueles que se sujeitam às suas paixões ou que não possuem nenhuma)" (BAGBY JR., 1970BAGBY JR., Albert I. Introduction. In: ASSIS, Machado de. The Hand and the Glove. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1970. p. VII-XX., p. XVII, tradução nossa).

Bagby Jr. entende que, em Machado, o sucesso e o fracasso são escolhas, sendo que aos fortes, aqueles que são bem-sucedidos, o escritor reserva a recompensa e a felicidade. A terminologia usada pelo tradutor em sua análise se resume às noções de força, física ou emocional, e de sucesso, como se apenas os esforços de cada personagem fossem decisórios para o alcance da felicidade. Nenhuma outra questão, de qualquer natureza, supera em importância a força de vontade individual, nem recebe mais atenção do que ela nos prefácios de Bagby Jr. Resta completamente esvaziado, portanto, o aspecto crítico presente nas obras de Machado de Assis em relação à sociedade brasileira oitocentista.

Em seu segundo prefácio, para a sua tradução de Iaiá Garcia, de 1977, Bagby Jr. mantém a argumentação ao redor do mesmo tema. Em Iaiá Garcia, importa notar que "uma candidata improvável [Iaiá] se torna provável em função de sua força de caráter e ambição, enquanto uma escolha aparentemente provável [Estela] é privada da felicidade em razão de seu orgulho excessivo e da relutância de seu amante [Jorge] em vencê-lo" (BAGBY JR., 1977______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX., p. XI, tradução nossa). Se há algo de diferente nesse prefácio, em relação ao anterior, é o fato de Bagby Jr. finalmente dizer explicitamente que considera Machado um otimista, na última frase do texto: "Talvez para entender o otimismo de Assis seja apenas necessário ser um realista, um realista firme e pragmático - pois é isso que se requer para apreciar as Iaiás e rejeitar as Estelas" (BAGBY JR., 1977______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX., p. XX, tradução nossa).

Sem dúvida é exagerada a caracterização de Machado como escritor otimista. No entanto, talvez o que mais cause surpresa ao leitor dos prefácios de Bagby Jr. seja a contradição fundamental na justificativa para a origem desse otimismo. Ao final do prefácio de 1977, o tradutor expõe o seguinte raciocínio:

Ao invés de enxergar, então, um Assis cujas desvantagens físicas, raciais e de seu meio social o levaram a uma visão pessimista do mundo, por que não podemos ver um Assis cujos empenhos para superar, cuja ambição febril, cujo sucesso em quase todos os esforços literários com os quais se comprometeu, levaram-no a enxergar a vida como pertencente aos mais fortes? Tal visão era seu direito; não teria ele o merecido? (BAGBY JR., 1977______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX., p. XX, tradução nossa).

A partir dessa declaração, entendemos que a leitura realizada pelo tradutor para defender o otimismo que enxerga na obra do escritor é, afinal, uma leitura cujo método é muito semelhante ao de Lúcia Miguel Pereira. Para explicar a obra, Bagby Jr. remete-se à vida de Machado, não enxergando nesta os motivos para a ironia do escritor, mas, em sentido bem diverso, as justificativas para o seu pretenso otimismo. Bagby Jr. acaba por compartilhar com Lúcia Miguel Pereira a ideia de que a ambição de Machado, voltada para a ascensão social, teria sido um fator determinante em sua vida e, consequentemente, em seus romances.

O motivo da surpresa que essa conclusão pode causar no leitor decorre da ambivalência do tradutor em relação ao uso da biografia de Machado como fonte de explicações para a sua obra. Basta ver, em um de muitos possíveis exemplos, como o tradutor abraça a ideia de que Machado teria mudado completamente em sua estadia em Nova Friburgo, no ano de 1879: "sem dúvida, esses três meses em Nova Friburgo [...] deram ao autor uma perspectiva diferente e mais madura, uma maturidade refletida quase imediatamente em sua escrita" (BAGBY JR., 1977______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX., p. IX, tradução e grifo nossos). Essa constatação, do prefácio de 1977, também figura no prefácio anterior, de 1970, com quase a mesma redação. Simultaneamente, encontramos essa outra argumentação, que leva a uma evidente contradição:

Aqueles que viram uma grande transformação entre o quarto e o quinto romances [de Machado] a explicam como tendo ocorrido durante um período de três meses [...] que o autor passou nas colinas de Nova Friburgo se recuperando de uma séria doença. Se ocorreu de fato alguma mudança, não a vejo como um movimento de um romantismo frívolo em direção a um realismo pragmático, mas sim como um movimento de um estilo de escrita menos artístico em direção a um mais artístico (BAGBY JR., 1977______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX., p. XII, tradução e grifo nossos).

Assim, podemos afirmar que Bagby Jr. fornece ao leitor estadunidense os prefácios mais longos e mais desconexos de nosso corpus. A contradição desses textos se manifesta não apenas nos argumentos que apresentam, mas também em relação ao contexto em que são produzidos. Como Frank e Caldwell, Bagby Jr. pensa e escreve em um Estados Unidos já fortemente marcado pelas ideias do New Criticism; porém, diferentemente de seus dois antecessores, que se afastam categoricamente da biografia do escritor, Bagby Jr. mantém, na década de 1970, uma forma de entender a obra literária que seus conterrâneos já há muito haviam abandonado.

O anacronismo de Bagby Jr. ilustra, mais uma vez, como diferentes movimentos da crítica literária conferem diferentes sentidos ao conjunto da obra machadiana. Nos prefácios analisados, verificamos o impacto dos estudos psicológicos nos estudos literários, a partir dos excessos interpretativos de Lúcia Miguel Pereira, que criam relações de causalidade entre autor e obra de forma muitas vezes inconsequente, mas que cruzam as fronteiras brasileiras para serem abraçados por Grossman. A reação a esse método crítico vem com o New Criticism, cuja influência leva a interpretações que serão, por sua vez, muito influentes no país de origem de Machado, alterando definitivamente a fortuna crítica de um dos seus principais romances. Finalmente, Bagby Jr., ao contrário do que seria razoável esperar, esboça um retorno à lógica biografista. O conjunto de prefácios escritos para o público estadunidense é, portanto, rico de interpretações contrastantes, que contribuem para formar imagens distintas do escritor brasileiro no primeiro momento da circulação de sua obra no universo literário anglófono.

Referências

  • BAGBY JR., Albert I. Introduction. In: ASSIS, Machado de. The Hand and the Glove. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1970. p. VII-XX.
  • ______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Tradução de Albert I. Bagby Jr. Lexington: The University Press of Kentucky, 1977. p. VII-XX.
  • BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
  • CALDWELL, Helen. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Esau and Jacob. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1965. p. V-XV.
  • ______. Translator's Introduction to Dom Casmurro. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1966. p. V-XII.
  • ______. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Counselor Ayres' Memorial. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1972. p. V-IX.
  • ______. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Helena. Tradução de Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1984. p. V-IX.
  • ______. Otelo brasileiro de Machado de Assis. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
  • COHEN, Keith. O New Criticism nos Estados Unidos. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2.
  • FRANK, Waldo. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Tradução de Helen Caldwell. Nova York: Noonday Press, 1953. p. 5-13.
  • GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.
  • GROSSMAN, William L. Translator's Introduction. In: ASSIS, Machado de. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William Grossman. Nova York: Noonday Press, 1952. p. 11-14.
  • ______. Introduction. In: ASSIS, Machado de. The Psychiatrist and other stories. Tradução de William Grossman e Helen Caldwell. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1963. p. VII-X.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
  • ______. Helen Caldwell, Cecil Hemley e os julgamentos de Dom Casmurro. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, São Paulo, v. 12, n. 27, p. 113-141, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mael/a/jzNW4GZxTWq3vsFbpjGLZSQ/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 2 jun. 2023.
    » https://www.scielo.br/j/mael/a/jzNW4GZxTWq3vsFbpjGLZSQ/?lang=pt&format=pdf
  • PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Brasília: Senado Federal, 2017.
  • 1
    Este artigo resulta de pesquisa realizada em iniciação científica durante a graduação em Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, intitulada "A obra de Machado de Assis nos Estados Unidos: Estudo dos paratextos das primeiras traduções (1952-1984)", desenvolvida entre 2021 e 2022, com apoio de bolsa concedida pela Fapesp.
  • 2
    Somente o livrete What Went on at the Baroness', publicado pela The Magpie Press, em 1963, contendo apenas a tradução de Caldwell do conto "O apólogo", não apresenta prefácios, contando, aliás, com parcos elementos paratextuais, em função de seu tamanho reduzido.
  • 3
    Os outros três prefácios não abordados aqui foram escritos por: Clotilde Wilson, para a sua tradução de Quincas Borba intitulada Philosopher or Dog?, publicada em 1954 pela Noonday Press; pela dupla de tradutores composta por Jack Schmitt e Lorie Ishimatsu, que compilou diversos contos de Machado na coletânea The Devil's Church and Other Stories (University of Texas Press, 1977); e por Helen Caldwell, para The Hand and the Glove, tradução de Albert I. Bagby Jr.
  • 4
    Assim, não recorremos às republicações dos três principais romances do escritor, pela Avon Books, em 1978 (Epitaph of a Small Winner), 1980 (Dom Casmurro) e 1982 (Philosopher or Dog?), em suas traduções realizadas por Grossman, Caldwell e Wilson, respectivamente, pois, nessas edições, são repetidos os prefácios dos tradutores, publicados anteriormente.
  • 5
    Caldwell não cita a fonte dessa informação, mas, de acordo com a argumentação presente em O Otelo brasileiro de Machado de Assis, ela sustenta esse entendimento com referência direta à correspondência do escritor (Ver Caldwell, 2008______. Otelo brasileiro de Machado de Assis. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., p. 58-59).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2023
  • Aceito
    15 Out 2023
Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: machadodeassis.emlinha@usp.br