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Pesquisa com crianças: leitura de Emmanuel Lévinas e a alteridade

Resumo

É recente a preocupação em delimitar a pesquisa com crianças e, mais importante, o quanto é indispensável pensá-la sob uma perspectiva ética. Com vistas à ampliação dessa discussão, objetivou-se oferecer uma forma de abordagem ética que se acredita ser essencial para o desenvolvimento de pesquisas com crianças a partir do pensamento do filósofo Emmanuel Lévinas. Com base na alteridade de Lévinas, concluiu-se que para realização de pesquisa com crianças torna-se necessário se abrir para o mundo infantil, totalmente diverso e autônomo. Perceber essa necessidade é perceber a imprescindibilidade da alteridade como pressuposto ético das relações humanas, no caso, entre o pesquisador e a criança. Somente assim, a autonomia, o respeito e a participação ativa da criança estarão assegurados como um direito que possui não apenas por ser participante de pesquisa, mas também como ser humano, com as particularidades que devem ser consideradas efetivamente.

Pesquisa envolvendo seres humanos; Ética em pesquisa; Criança

Abstract

Concern over delimiting research involving children, and more importantly the necessity of considering such research from an ethical perspective, is a recent development. With the aim of broadening this discussion, a form of ethical approach believed to be essential for the development of research with children was sought, based on the thinking of the philosopher Emmanuel Lévinas. Based on the otherness of Lévinas, it was concluded that for research with children, it is necessary to open oneself up to their world, and treat it as entirely diverse and autonomous. Understanding this necessity is to perceive the indispensability of otherness as an ethical presupposition of human relationships, in this case, between the researcher and the child. Only in this way will the autonomy, respect and active participation of the child be assured as a right not only in the role of a research participant but also a human being with individual characteristics that must be effectively considered.

Human experimentation; Ethics, research; Child

Resumen

Es reciente la preocupación por delimitar la investigación con niños y, lo que es más importante, lo indispensable que resulta pensarla desde una perspectiva ética. Tendiendo a una ampliación de esta discusión, se tuvo como objetivo ofrecer una forma de abordaje ético que se considera es esencial para el desarrollo de investigaciones con niños a partir del pensamiento del filósofo Emmanuel Lévinas. En base a la alteridad de Lévinas, se concluyó que para la realización de la investigación con niños se hace necesario abrirse al mundo infantil, totalmente diverso y autónomo. Percibir esa necesidad es percibir la imprescindibilidad de la alteridad como un presupuesto ético de las relaciones humanas, en este caso, entre el investigador y el niño. Sólo así, la autonomía, el respeto y la participación activa del niño estarán asegurados como un derecho que posee no sólo por ser un participante de la investigación, sino también por ser un ser humano con las particularidades que deben ser consideradas efectivamente.

Experimentación humana; Ética en investigación; Niño

Pesquisa com crianças: um breve histórico

A pesquisa com crianças e adolescentes apresentou várias abordagens ao longo da história. Em um primeiro período, em especial no século XIX, não havia restrições ao uso de crianças em pesquisa e sua dignidade como seres humanos não era reconhecida. Um exemplo inicial disso foi o médico sueco Carl Janson que declarou que sua pesquisa de 1891 sobre a varíola foi realizada com 14 crianças órfãs. Em, 1896, Albert Neisser anunciou publicamente que havia imunizado três meninas e cinco prostitutas com plasma de pacientes com sífilis. Tais declarações causaram repercussões significativas e geraram indignação na população de vários países 11. Kipper DJ, Goldim JR. Research involving children and adolescents. J Pediatr. 1999;75(4):211-2..

Em decorrência desses abusos, as legislações relacionadas às pesquisas com participação de crianças foram desenvolvidas ao longo do século XX proibindo a participação destes nessas atividades 11. Kipper DJ, Goldim JR. Research involving children and adolescents. J Pediatr. 1999;75(4):211-2.. Em 1901, logo após a publicação do livro “Memórias de um Médico”, do russo Vikentii V. Veresaev, a Prússia aprovou a primeira legislação para ordenar as atividades de pesquisas com seres humanos. Essa legislação proibia explicitamente a pesquisa com crianças, uma vez que o livro de Veresaev descrevia pesquisas abusivas realizadas com crianças e outros grupos de pessoas vulneráveis, descritos por ele de “mártires da ciência” 11. Kipper DJ, Goldim JR. Research involving children and adolescents. J Pediatr. 1999;75(4):211-2..

Quarenta e seis anos após a legislação da Prússia, em 1947, o primeiro artigo do Código de Nuremberg estabeleceu o consentimento voluntário dos participantes em pesquisa como condição essencial para a realização de pesquisas em seres humanos. Isso significava que as pessoas submetidas ao experimento deveriam ser legalmente capazes de dar consentimento. Portanto, as crianças e os adolescentes continuavam excluídos da participação de pesquisas devido à sua incapacidade legal 11. Kipper DJ, Goldim JR. Research involving children and adolescents. J Pediatr. 1999;75(4):211-2..

As mudanças relacionadas às pesquisas com grupos vulneráveis, incluindo crianças, idosos e minorias étnicas entre outros, são relativamente recentes e acompanham as mudanças na percepção mais ampla da sociedade em relação àqueles grupos 11. Kipper DJ, Goldim JR. Research involving children and adolescents. J Pediatr. 1999;75(4):211-2.. Assim, quanto às crianças, por exemplo, a própria noção de infância e adolescência é relativamente recente nas sociedades ocidentais.

Ao mesmo tempo, a fé e o otimismo depositados na própria ciência durante o século XIX são fenômenos importantes estimulados em nome do bem que a ciência poderia fazer à humanidade, quando o sacrifício de alguns em benefício da maioria seria “racional” e justificável. As guerras, genocídios e atrocidades cometidas em nome da ciência na primeira metade do século XX ajudaram a mudar essa perspectiva e fortaleceram as visões que apontam para a importância da ética nas pesquisas, para as quais o bem da maioria não pode ser buscado por meio de violações aos direitos individuais fundamentais. A partir disso surgem os princípios éticos básicos para a pesquisa, a exemplo do princípio da autonomia, no qual cada participante deve ter plena consciência do que fará para então decidir fazê-lo ou não, e da justiça e equidade, no qual todos devem ser beneficiados com a pesquisa, inclusive aqueles diretamente envolvidos nela.

Contudo, a extensão, o reconhecimento e a prática desses princípios de ética na pesquisa para grupos vulneráveis foram paulatinos. Somente em 1966 a Declaração de Helsinque abriu a possibilidade da participação de crianças em pesquisas, desde que houvesse o consentimento do seu responsável legal. Com a autorização de participação de crianças em pesquisa, a avaliação dos comitês de ética em pesquisa com seres humanos tornou-se bastante criteriosa na avaliação de propostas de pesquisas que envolvessem essa população, que é classificada como grupo vulnerável, uma vez que são incapazes de discernimento devido às suas óbvias limitações de compreensão 22. Committee on Bioethics. Informed consent, parental permission, and assent in pediatric practice. Pediatrics. 1995;2(95):314-7..

Este recorte histórico estabelece o quanto é recente a preocupação em delimitar a pesquisa com crianças, e que é indispensável considerar a questão sob uma perspectiva ética. Isso fica claro quando se consideram as históricas atrocidades sofridas por indiscriminada utilização de seres humanos em pesquisas. Com base no pensamento do filósofo Emmanuel Lévinas, este estudo tenciona descrever uma abordagem ética considerada essencial para o desenvolvimento de pesquisas nesse ramo, ampliando a discussão.

A Ética de Emmanuel Lévinas: a alteridade como fator fundamental às relações humanas

Ao tratar de reflexões acerca de pesquisas com seres humanos, é fundamental considerar o dilema que o cientista, enquanto sujeito desejoso de conhecimento, enfrenta em relação ao comportamento adequado referente ao “objeto”. Avaliar essa relação sob uma perspectiva ética significa compreender que pode-se somente falar em eticidade quando há mais de uma pessoa em questão. Ou seja, relações intersubjetivas, pela sua própria denominação, só têm sentido quando um sujeito entra em contato com outro. Isso nos leva a questionar como a relação entre sujeitos ou, no caso específico de pesquisadores e indivíduos participantes da pesquisa, a relação sujeito-objeto, é possível.

Com ênfase na a questão da alteridade, torna-se importante questionar: quem é o outro? Partindo de uma visão ontológica, o outro deve ser compreendido e respeitado. Porém, por toda a nobreza desse ato, há vários pontos em que é preciso ter em mente quando se analisa esse tema, fundamentalmente sobre a visão do eu sobre este outro.

A filosofia e a ciência modernas são marcadas pela sua ênfase no homem como centro das inquietações filosóficas. Nesse sentido, os vários campos de análise sofrem uma revolução conceitual que Kant descreveu como uma segunda revolução copernicana. Assim, o homem deixa de orbitar ao redor de um centro e passa ele mesmo a ser esse núcleo gravitacional. Vázquez, por sua vez, descreve esse acontecimento quando afirma que a independência do homem em relação ao Deus medieval assegurou sua independência, tornando-o legislador e criador do próprio mundo, fundamento, portanto, da arte, da política, da ciência, da moral 33. Vazquez AS. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1975..

A superfície deste sujeito, liberto dos dogmas teológicos, ainda é marcadamente absoluta e imutável. A liberdade do mundo medieval não conseguiu desvencilhar a razão moderna de um modo de pensar totalizante, o que significa dizer que o mundo interior e exterior estão, na modernidade, atrelados a categorias objetivas, ausente da temporalidade e da espacialidade. Nesse sentido, o “eu” torna-se contraditoriamente cativo dessa objetivação definitiva. Da idade medieval à modernidade, o conteúdo mudou, mas o modo de pensar não. Outros dogmas, o mesmo pensamento duplo e objetificador. Não há mais homem-Deus, mas eu-outro.

Esse panorama, no qual o sujeito é visto como senhor do mundo, chega a nossos dias quase intacto e seu valor é evidente. Dessa forma, Emmanuel Lévinas observou que a relação do sujeito consigo mesmo e com o exterior torna-se uma relação de apoderamento e de absorção. Em outras palavras, Lévinas afirma que a primazia do sujeito é a primazia da ontologia como filosofia primeira 44. Lévinas E. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes; 2004.. A primazia do sujeito é a centralidade do “eu” em relação ao outro. A ontologia, como investigação do Ser em si, recai sobre uma objetivação: a permanência da identidade de “eu” no tempo. O outro só faz sentido na medida em que compartilha o Ser do “eu” que constitui o relacionamento. A primazia do sujeito ou da ontologia é a primazia do Mesmo e, portanto, a negação do outro em si. Se o “eu” é o cogito cartesiano, o indivíduo racional moderno, então somente o “outro” cujo Ser também é racional pode ter um lugar neste mundo.

Nesse âmbito, o conhecimento do ser é a objetivação de toda a particularidade existente. Ao colocar o objeto de reflexão em termos objetivos, os horizontes são delimitados, são traçadas as características comuns, delineando o que é comum aos vários “corpos de prova”. Em suma, universalizam-se conceitos e detectam-se as regularidades existentes aos seres. A diferença é suprimida por conta desse processo de totalização do pensamento. Em sua obra “Totalidade e Infinito, Lévinas se refere à questão da alteridade e à forma como este conceito é negligenciado nas avaliações ontológicas 55. Lévinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 1980..

O filósofo sugere dois conceitos contraditórios para a compreensão do ser humano. Aqui, o conceito de totalidade consiste na anulação do outro como um ser diferente e a assimilação do mesmo como parte do sujeito. O conceito de infinito é definido como a aceitação deste diferente como diferente e, por isso mesmo, impossibilitado de ser abarcado em sua essência pelo sujeito. Para Lévinas, a possibilidade de possuir, isto é, de suspender a alteridade daquilo que só é outro a primeira vista e outro em relação a mim, é a maneira do Mesmo.

A oposição entre totalidade e infinito pode ser representada pelo binômio eu-outro. Para Lévinas, não se pode tratar esta dualidade apenas como uma oposição conceitual. Para o autor há um abismo intransponível entre o eu e o outro. Esta é a encarnação da diferença, do misterioso exterior, do fora que não se revela completamente para o eu. Ele afirma que ser eu é, para além de toda a individualização que se pode ter de um sistema de referências, possuir a identidade como conteúdo 55. Lévinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 1980..

O eu que identifica tudo com o seu pensamento é o mesmo que assassina a alteridade, o direito do outro ser absolutamente outro. O eu é a suspensão do outro, ou melhor, a transformação do que é fora em interior. A crítica de Lévinas a esse processo ontológico se baseia no afã da assimilação do outro pelo eu e sua anulação completa. A alteridade, mesmo que aceita em um grau mínimo é apenas de ordem formal, nunca efetiva e, no caso da interiorização realizada pelo eu, transformação desse outro diferente no mesmo. Assim, Lévinas se opõe à ontologia tradicional que tenta a todo custo compreender tanto o ser como o outro numa objetividade passível de controle e identificação. Na realidade, o outro é a própria impossibilidade de compreensão da exterioridade. Enquanto ser, só é possível aceitar o outro como diferença do eu, e não como extensão da própria identidade.

Dessa forma, não se pode falar de ontologia enquanto se trata de relações humanas. É importante ressaltar que para Lévinas a Filosofia Primeira não pode ser a ontologia, mas sim a Ética. Trata de uma contraposição em relação à filosofia elaborada por René Descartes que via o pensamento como fundamento do conhecimento verdadeiro do mundo, pelo fato de que é impossível conhecer o ser do outro, sua essência. Só é possível entendê-lo como exterioridade, velada à intelecção do eu.

A primazia da ética traz à tona a necessidade de uma nova relação, um novo sentido entre o eu e o outro. Relação que não pode mais ser de posse, porque nela há o desaparecimento do sujeito para que se busca conhecer em sua plenitude. Quando o exterior deixa de existir enquanto sujeito diferente, ele se torna objeto, passível de manipulação, de ordenação à revelia de sua própria vontade, e se torna o Mesmo.

O infinito se coloca neste ponto como a possibilidade de uma existência autêntica do outro. Seu universo é inacessível para qualquer um que tente enquadrá-lo, pois o conhecimento ontológico do outro escapa às tentativas de delimitação. Contudo, mesmo que este outro me escape ao entendimento, ele existe como ser que desafia a objetivação de sua existência e de sua aparência. Ele está à frente, ao lado, fala, toca outro corpo, não é possível escapar à sua presença. A alteridade se coloca como um fato com o qual se precisa lidar. Além disso, como é possível essa relação? Certamente não é por meio do binômio sujeito-objeto.

Para Lévinas, o objeto do conhecimento, no caso do outro, dentro da ontologia tradicional, é tratado de forma instrumental, serve apenas ao sujeito que busca o conhecimento enquanto algo que é possível, que necessita ser conhecido. A neutralização do outro, que se torna tema ou objeto, que aparece, que se coloca na claridade, é precisamente sua redução ao Mesmo. Saber ontologicamente é tornar-se um exemplar. Um caso que não merece particularidades já que o importante é a sua universalidade, de modo que o objeto possa ser generalizado para se encaixar num conceito teórico elaborado em outro lugar. Sua alteridade é tornada inútil de modo a esclarecer a sua semelhança. O outro não pode ser, no próprio significado da palavra, um “outro”, mas apenas o Mesmo, apenas o que pode ser reconhecido como significativo do ponto de vista do “eu” que elabora o conceito 55. Lévinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 1980..

Se o outro é neutralizado nessa relação pelo bem da generalização, então não é possível falar de alteridade. O outro deve ser colocado frente ao eu, ao sujeito na qualidade de sujeito também. Isso implica entender que não é possível apreender esse outro, mas compreender que ele é diferente e interiormente possui um universo indecifrável, é o infinito que se coloca diante das pessoas e que exige o consentimento de diverso do Mesmo 55. Lévinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 1980..

Se é impossível ao eu conhecer completamente o outro, isso não significa que não há conversação entre os dois. Essa relação não pode ser realizada no âmbito da totalidade. A relação entre o eu e o outro tem necessariamente que partir da ideia de infinito. Ao invés de impor sua visão, o eu necessita ter uma atitude de abertura frente ao outro, impossível quando o mesmo coloca o diferente no mesmo patamar que ele. Essa abertura se dá por meio do discurso. Abordar outrem no discurso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em cada instante a ideia que dele tiraria um pensamento. É receber de outrem para além da capacidade do eu. O rompimento da totalidade se dá pelo momento que o eu fala ao outro e o outro também se dirige ao eu55. Lévinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 1980..

A linguagem em sua dualidade interpretativa é a ponte de ligação ou comunicação com o outro. Em um sentido amplo, ela funciona através do comum, de signos propostos objetivamente para a compreensão da fala do outro e, nesse sentido, o discurso é o que Lévinas considera como o dito66. Ayala PC. Ética de la diferencia: ensayo sobre Emmanuel Lévinas. México: Fontamara; 2009.. Mas o discurso contém mais do que convenções, oferecendo o desigual no papel do dizer, que é o que no outro não pode ser colocado dentro de uma totalidade. A saída do eu de seu universo em direção ao outro é um movimento de aprendizado, pois o discurso do eu nunca é idêntico ao do outro. Assim, pode-se inferir que só há discurso quando há incompreensão, no sentido de ser uma diferença pronunciada pela exterioridade, que em outras palavras exclui o confronto e a valorização da diversidade, entendida como abertura para o outro.

O transbordamento do significado do discurso do outro é sinônimo de igualdade e de justiça. Esta afinidade afirma que só se pode atuar com justiça e igualdade quando há abertura para a alteridade 66. Ayala PC. Ética de la diferencia: ensayo sobre Emmanuel Lévinas. México: Fontamara; 2009.. Ao se colocar frente ao outro como um interlocutor, despoja-se do poder absoluto frente a ele, permite-se a proximidade com o outro como condição de pensar a própria existência.

A diferença, mesmo que não compreendida totalmente, permite que o eu, colocado num horizonte hermenêutico, busque não mais a objetivação como necessária para a relação eu-outro, mas a consideração do exterior como absolutamente diferente de mim e, portanto, diferente de meu universo interpretativo.

Considerações sobre pesquisas com crianças sob a perspectiva da alteridade

Ao considerar a contextualização teórica anterior, pode-se pensar no universo da pesquisa com crianças, assim como considerar a questão da alteridade frente à instrumentalização e a objetivação da relação entre pesquisador e criança? A criança enquanto sujeito é colocada como um objeto, fato que gera consequências e implicações. Em uma conjectura vivencial e dialógica com Lévinas, pode-se dizer que a criança tratada apenas como objeto é a própria destruição por parte do pesquisador de um ser distintamente diferente dele e que se perde na generalização indiscriminada.

Portanto, quando se impõe esse tipo de vivência em qualquer esfera social, é possível que ocorra o aprisionamento daquilo que não pode ser apreendido em conceitos ou categorias particulares. Ao olhar a criança como ser humano já compreendido pelo intelecto do pesquisador, observa-se que ela deixa de existir como criança e passa a assumir uma configuração generalizada pela imagem que dela é feita, por estar englobada pela totalidade do sujeito.

A experiência dessas duas figuras torna-se uma via de mão única na qual a particularidade de um (a criança) é colocada de lado a favor da generalização do outro (o pesquisador). Neste espaço onde os dois estabelecem não uma convivência, mas uma assimilação, a criança enquanto sujeito é totalmente descartada e não participa eticamente dessa relação. A denúncia feita por Lévinas sobre a modernidade e a exacerbação do sujeito é importante aqui. O cogito cartesiano é a ideia de que tudo está dentro de si, toda a verdade se encontra intrínseca. Vê-se novamente a ideia de assimilação, pois o “eu penso” parte do pressuposto que o exterior se encontra também dentro do sujeito pensante.

O desafio de experimentar uma vivência não apenas ontológica, mas também de cunho ético é, em certo sentido, justamente consentir que o outro não pode se resumir mais ao “eu penso”. A criança não está dentro do universo conceitual do cientista porque ela se faz presente na exterioridade e em nenhum outro lugar. A criança é sujeito e, enquanto nessa condição possui peculiaridades inalcançáveis, por isso, impossíveis de serem generalizadas. As particularidades da criança em relação ao adolescente, adulto ou idoso consideram a pluralidade de modos de expressão discursivos (verbais, não-verbais ou verbais de maneiras não convencionais, dependendo do seu momento de aprendizagem). Tanto quanto o fundamento da ética é a alteridade, a especificidade das crianças, em comparação com adolescentes, adultos e crianças, vem da sua pluralidade discursiva, que tende a ser reduzida, desde que cresçam para se adequarem ao esquema racional da vida adulta.

Nesse sentido, a pesquisa com criança implica uma superação da dicotomia Eu - outro na direção de uma relação plural Eu - outros. Uma alteridade plural além da dualidade eu-outro porque a pluralidade de outros é uma pluralidade de “eus”, uma diversidade de perspectivas.

A voz dessa criança não é aquela que pode ser emprestada a ela enquanto abstração. Seu corpo é feito da sua própria carne e não das estruturas conceituais que a moldam. Seu pensamento é próprio, não pode ser derivado do um cogito que julga universalmente. A voz da criança é diferente da voz do adulto, a criança fala de maneira estranha para o pesquisador. Contudo, não se pode ignorar o fato que ela é um sujeito e que seu universo é uma gama de desigualdades em relação ao seu interior e à sua tentativa de generalização. A criança confronta a objetivação pretendida pelo eu do pesquisador. Essa relação conflituosa não permite reducionismos. A ponte entre ambos deve ser o discurso, a oferta do cientista ao diálogo com a criança, mesmo que esse discurso não seja homônimo em todos os termos. Na linguagem predomina a heteronomia do dizer e não a absolutização do dito. Dessa forma, a fala da criança deve ser considerada como um discurso exterior à totalização de Lévinas, pois somente dessa forma a relação sujeito-objeto toma um novo rumo e torna-se uma ser relação de ser-ser.

A dificuldade de se pensar na criança como o outro perpassa o desafio de sair da totalidade dos conceitos rumo à natureza diversa deste sujeito. A imprescindibilidade de uma relação ética entre um cientista e uma criança se faz anterior ao procedimento ontológico e epistemológico de analisá-la como objeto apenas. Ver a criança como diferente é abrir-se para a possibilidade de considerá-la como um interlocutor no próprio processo de pesquisa. Dar a ela a possibilidade de ser autêntica em sua diferença para afirmar sua alteridade sem fazer desaparecer sua existência.

Pensada num universo hermenêutico, o transbordamento do ser, que o leva ao outro, propicia a mudança interpretativa frente à criança. Novas perspectivas se configuram a partir do momento em que emerge das brumas do sujeito cartesiano do outro como aquele que precisa ser considerado para além do caráter instrumental de experimento.

Considerações quanto às Diretrizes Éticas Nacionais

Pode-se perceber a criação de uma abertura à alteridade da criança pelos avanços obtidos na legislação brasileira. A Resolução CNS 466/12 do Conselho Nacional de Saúde regulamentou a pesquisa com seres humanos até 2012 e estabelecia que crianças e adolescentes tivessem o direito à informação sobre a pesquisa em que participassem. No entanto, porque estes sujeitos são incapazes de avaliar os riscos, desconfortos e benefícios potenciais, e seus direitos, o consentimento da participação da pesquisa deveria ser fornecido pelos pais ou responsáveis pela criança 77. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 12, p. 59, 13 jun 2013 [acesso 11 maio 2017]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/20ZpTyq
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No entanto, vários pesquisadores que atuavam com crianças apontavam que o consentimento informado pelos pais, ainda que indispensável, não pode ser considerado suficiente, visto que a prática de concentrar a decisão no âmbito adulto baseia-se numa premissa paternalista e romântica de que a criança é um ser incapaz e indefeso 88. Leone C. A criança, o adolescente e a autonomia. Bioética. 1998;6(1):51-4.. Este é um dos maiores obstáculos ao se fazer pesquisas com crianças, uma vez que ao infantilizá-las e tratá-las como completamente imaturas, acaba-se por produzir provas que apenas reforçam as ideias sobre sua incompetência 99. Alderson P. As crianças como pesquisadoras: os efeitos dos direitos de participação sobre a metodologia de pesquisa. Educ Soc. 2005;26(91):419-42..

Não se trata de considerá-las como se possuíssem as mesmas condições que adultos, mas sim de valorizar a competência e capacidade que lhes são inerentes, de acordo com sua idade, ao invés de descartar por completo qualquer possibilidade de expressão autônoma sua, transfere a responsabilidade por decisões que ela poderia tomar para os adultos somente. A quinta diretriz do Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS) afirma que o pesquisador deve garantir que o consentimento de cada criança seja obtido ao máximo de sua capacidade e a recusa da criança em participar da pesquisa deve sempre ser respeitado, a menos que não haja alternativa médica aceitável ao tratamento que a criança receberá, de acordo com o protocolo de pesquisa 1010. Council for International Organizations of Medical Sciences, Organização Mundial da Saúde. Diretrizes éticas internacionais para a pesquisa envolvendo seres humanos [Internet]. Genebra: OMS; 1993. [acesso 2 dez 2015]. Disponível: http://bit.ly/2gxbhdI
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Um dos principais problemas apontado trata do envolvimento autônomo de crianças que implica esforço adicional aos pesquisadores, que precisam adaptar-se a tais situações ao invés de somente lidar com adultos. O desafio de obter o assentimento de crianças é um esforço para estender os princípios da ética em pesquisa também para esse grupo, ao invés de limitá-los aos adultos.

Além disso, a dependência da criança perante o adulto é um fato social e não natural, já que essa dependência varia de acordo com a classe social. Até mesmo a definição de infância e adolescência varia entre sociedades e culturas diferentes. Assim, as relações entre crianças e adultos são heterogêneas e são diversos os valores e os tratamentos dados às crianças. Tratar das populações infantis em abstrato, sem levar em conta as condições de vida, é dissimular a significação social da infância e negligenciar a desigualdade social real existente entre populações, inclusive as infantis.

Assim, é necessário reconhecer as crianças como sujeitos ao invés de objetos de pesquisa, que implica aceitar que elas podem “falar” em seu próprio direito e relatar experiências válidas 88. Leone C. A criança, o adolescente e a autonomia. Bioética. 1998;6(1):51-4.. No Brasil, nos últimos 20 anos foi feito um esforço para consolidar a visão da criança como cidadã, sujeito criativo, indivíduo social, produtora de cultura e de história 11. A exemplo desse movimento, a Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que regulamenta os direitos das crianças e dos adolescentes inspirado pelas diretrizes fornecidas pela Constituição Federal de 1988, com o estabelecimento de uma série de normativas internacionais no país 1212. Brasil. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília; 13 de Jul 1990 [acesso 2 dez 2015]. Disponível: http://bit.ly/1MzlCIG
http://bit.ly/1MzlCIG...
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O ECA considera como criança a pessoa de até doze anos de idade incompletos e como adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade 1111. Kramer S. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa. 2002;116:41-59.. Dentre as várias considerações sobre os direitos da criança, o estatuto prevê que ela tenha direito à opinião e à expressão, bem como direito à inviolabilidade da sua autonomia 1212. Brasil. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília; 13 de Jul 1990 [acesso 2 dez 2015]. Disponível: http://bit.ly/1MzlCIG
http://bit.ly/1MzlCIG...
. Parte-se da premissa de que a criança é um sujeito de direitos que a leva a ter direito à voz e tornando fundamental que o pesquisador garanta condições para sua participação na decisão de colaborar ou não com a pesquisa 1313. Sigaud CHS, Rezende MA, Verissimo MDLR, Ribeiro MO, Montes DC, Piccolo J et al . Ethical issues and strategies for the voluntary participation of children in research. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2):1342-6..

O dever da informação exige que o participante de uma pesquisa saiba o que está em jogo de modo a poder tomar uma decisão esclarecida. Tal informação deve ser dada em uma linguagem acessível ao paciente ou ao participante da pesquisa 1414. Durand G. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; 1999.. Ao tratar de pesquisas com crianças, o pesquisador deve entender que a participação de menores de idade em pesquisas precisa ser tratada como algo de complexidade diferente, ao invés de limitadas ou inferiores se comparadas ao adulto 1515. Veríssimo MLOR, Sigaud CHS, Rezende MA, Ribeiro MO. O cuidado e a ética na relação com a criança em instituições de saúde. In: Barchifontaine CP, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética, vulnerabilidade e saúde. São Paulo: Ideias e Letras; 2007. p. 339-46..

Após 12 anos regulamentando a pesquisa com seres humanos no Brasil, a resolução MS/CNS no 196/1996 foi revogada pela Resolução MS/CNS no 466, de dezembro de 2012, a qual entrou em vigor com sua publicação em junho de 2013. Essa nova resolução acrescenta, entre outros aspectos, as informações relacionadas ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sobre como deve ser obtido e questões concernentes ao consentimento de crianças, adolescentes ou legalmente incapazes 77. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 12, p. 59, 13 jun 2013 [acesso 11 maio 2017]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/20ZpTyq
http://bit.ly/20ZpTyq...
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O Termo de Assentimento não elimina a necessidade do TCLE que deve ser assinado pelo responsável ou representante legal do menor 77. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília, nº 12, p. 59, 13 jun 2013 [acesso 11 maio 2017]. Seção 1. Disponível: http://bit.ly/20ZpTyq
http://bit.ly/20ZpTyq...
. No entanto, o Termo de Assentimento faz com que o pesquisador explique, em linguagem amigável e compreensível, que a participação da criança na pesquisa é voluntária e que ela pode decidir participar ou não do estudo. A obtenção do consentimento das crianças e adolescentes para participação em pesquisa deve demonstrar, em primeiro lugar, o respeito do pesquisador para com as crianças.

Portanto, é possível afirmar que a Resolução 466/12, do CNS, representa um grande avanço para o desenvolvimento de pesquisas no Brasil e reforça o respeito, a dignidade e a proteção aos sujeitos de pesquisa. Essa Resolução representa um passo à frente em relação ao respeito à autonomia dos menores de idade, permitindo que exerçam seu papel de cidadãos e preservando o princípio da autonomia preservado. O Termo de Assentimento, muito mais do que apenas fornecer à criança a chance de se expressar, também retoma a questão da alteridade e considera a autonomia e o respeito, valores éticos fundamentais na construção de uma relação mais democrática entre o pesquisador e a criança.

Embora a necessidade legal do TCLE seja indispensável, é importante notar o progresso que o Termo de Assentimento significa para a visão da criança como um ser com autoconsciência, além de respeitar a sua existência como diferente e imersa em suas próprias peculiaridades. A necessidade de escrever o TA em linguagem acessível para criança reflete a visão de Lévinas de que é somente na comunicação aberta entre si e o outro que somos capazes de mergulhar no domínio da alteridade. Permitir à criança decidir sobre a sua participação ou não em uma pesquisa é uma abertura imperativa para deixar de lado o legado do primado de si mesmo como o avaliador absoluto do mundo exterior.

Desta forma, as crianças devem ser consideradas como sujeitos e não apenas objetos da pesquisa. Esse olhar para o outro de forma aberta é resgatado, portanto, quando a criança se torna participante pela sua escolha e determina voluntariamente sua participação ou não na pesquisa. Essa abertura também permite uma visão mais ampla do universo infantil ao tratá-lo não como um dado acabado, mas como uma estrutura sempre passível de novas descobertas.

Através dessa nova Resolução, os pesquisadores que pretendem envolver crianças como participantes de sua pesquisa deverão investir intensivamente na obtenção voluntária de seu assentimento de modo a preservar sua dignidade. Para que isso ocorra, as estratégias de abordagem para a participação em pesquisas deverão considerar as peculiaridades das crianças e as necessidades relacionadas ao seu desenvolvimento, bem como suas características individuais. Isso implicará ao pesquisador conhecer o modo de pensar, sentir e agir nas diferentes idades para que consiga criar estratégias efetivas 1313. Sigaud CHS, Rezende MA, Verissimo MDLR, Ribeiro MO, Montes DC, Piccolo J et al . Ethical issues and strategies for the voluntary participation of children in research. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2):1342-6..

Os pesquisadores também necessitarão delinear uma metodologia que os ajude a evitar projetar o seu olhar sobre as crianças apenas com o objetivo de colher delas aquilo que é reflexo dos seus próprios preconceitos e representações. Assim, será exigido que descentralizem seu olhar adulto para poderem entender o mundo das crianças pelo seu discurso. Ao fazer isso, terão acesso a essas crianças e deverão fazer-se entender por elas, tratá-las em sua alteridade e não como adultos em miniatura.

A participação de crianças em uma pesquisa que considere suas necessidades pode ser uma experiência positiva, pois fornece a estas a oportunidade de serem ouvidas por adultos e com isso obterem confiança em expressar suas opiniões e aprenderem a pensar por si mesmas. Solicitar à criança que aceite participar da pesquisa por meio de seu aceite com sua assinatura ou de alguma outra forma de expressão compatível com sua idade contribui para que ela se sinta valorizada, com fortalecimento de sua autonomia 1616. Ribeiro MO, Sigaud CHS, Rezende MA, Veríssimo MLOR. Desenvolvimento infantil: a criança nas diferentes etapas de sua vida. In: Fujimori E, Ohara CVS, organizadores. Enfermagem e a saúde da criança na atenção básica. Barueri: Manole; 2009. p. 61-90.. Vale ressaltar que esforços por parte dos pesquisadores, para assegurar o consentimento das crianças são de grande valia, uma vez que qualquer tipo de medida coercitiva, além de constituir risco físico e psicológico desnecessário e injustificável, pode resultar em dados não confiáveis e comprometer a fidedignidade dos dados apresentados pela pesquisa 1313. Sigaud CHS, Rezende MA, Verissimo MDLR, Ribeiro MO, Montes DC, Piccolo J et al . Ethical issues and strategies for the voluntary participation of children in research. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2):1342-6..

Embora tenha se desenvolvido lentamente, o respeito pela dignidade e a valorização da autonomia das crianças como cidadãos pode ser percebido na história da ciência e da pesquisa envolvendo crianças. Tal pesquisa passou gradualmente das eras do total desrespeito para a proibição de sua participação na pesquisa e, em seguida, para protegê-las de possíveis abusos e exploração, e subsequentemente a concessão de permissão para sua participação em estudos, se autorizada por seus pais.

O estado atual é que os pesquisadores devem aceitar que a criança deve ter voz, uma vez que não é inferior ao adulto, apenas possui uma complexidade diferente. Contrariamente ao pensamento cartesiano, deve-se entender a criança não apenas como dado, objeto, mas como sujeito. A partir disso, emerge o novo desafio de tentar entender as crianças e aproximar-se de seu mundo, criando criadas estratégias para que possam estar cada vez mais cientes da importância de sua participação em pesquisas, bem como terem condições de decidir participar ou não das pesquisas.

Considerações finais

De uma maneira indiscriminada, desde sua “utilização” em pesquisas até a proibição completa de sua participação, a criança foi posteriormente readmitida, inicialmente como um sujeito dado, compreendido sob a perspectiva do adulto. Sem voz, sem vontade e sem participação ativa, a criança, aos poucos ganhou espaço como indivíduo constituído de um universo próprio e diverso do adulto, que precisa se expressar por si mesma. Esse passo é fundamental para que haja avanços num terreno como o das pesquisas com crianças, que ainda é novo.

Tomar a criança como dado pronto e acabado é uma visão dela como totalidade e a anula como sujeito composto de estrutura diversa do próprio universo da pessoa que a analisa. Portanto, a pesquisa com crianças pode ser fundamentada na concepção de Lévinas ao abrir-se para o infinito, para o outro, para o mundo infantil totalmente diverso e autônomo. Perceber essa necessidade é perceber também a imprescindibilidade da alteridade como pressuposto ético das relações humanas e, nesse caso específico, entre o pesquisador e a criança. Somente assim a autonomia, o respeito e a participação ativa dela estarão assegurados como um direito que possui por ser não apenas um objeto de pesquisa, mas também um ser humano com as particularidades que são próprias e que devem ser consideradas de maneira adequada.

Além dessas observações, é interessante notar como a abertura para o outro é importante para evitar as várias violações éticas que já ocorreram na pesquisa humana. A alteridade, como um imperativo ético fundamental, evoca a reflexão sobre o conhecimento e como pode ser considerado como um instrumento para ampliar os horizontes e não meramente instrumental. Compreender a necessidade de dialogar com o outro é entender com Lévinas que, além da visão de que o eu tem do outro, existe um mundo infinito de perspectivas que não correspondem à imposição do cogito cartesiano como um paradigma epistemológico.

A alteridade, portanto, é o direito do outro ser outro, e não uma interpretação sintetizada pelo eu. Neste ponto, a presença do diálogo como instrumento heurístico é digna de nota, pois é o que liga o binômio eu-outro. Não há necessidade de mencionar as transformações evidenciadas na sociedade contemporânea sobre a importância do pensamento ético ligado à pesquisa com os seres humanos. A regulação desses procedimentos dentro de uma axiologia que contempla a alteridade significa ver o conhecimento de uma perspectiva que considera a multiplicidade do universo da alteridade fundamental. A criança neste contexto tem sua existência reconhecida, não apenas como uma construção cognitiva, mas como um ser efetivo. Que o assentimento da criança seja reconhecido como central para a realização de pesquisas envolvendo sua participação é um passo importante, pois proporciona a oportunidade para a criança ter uma voz ativa e poder deliberar sobre essa participação. Ouvir é um requisito para a inserção do diálogo no universo epistemológico do pesquisador, com base na interação da criança, tomada como outra, com o próprio cientista, que emerge do seu centro gravitacional para se inserir na relação de alteridade buscada por Lévinas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2017
  • Revisado
    29 Jun 2017
  • Aceito
    5 Jul 2017
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