Acessibilidade / Reportar erro

Dimorfismo sexual: natural? Uma reinterpretação crítica das diferenças biológicas

Resumo

O presente trabalho expõe a interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas na espécie humana resultante da leitura androcêntrica dos corpos que caracterizou a ciência moderna. Em contraste com esta leitura, mostra-se como práticas sociais associadas aos papéis de gênero podem se traduzir em diferenças biológicas que se encaixam na leitura dimórfica. Com base nisso, propõe-se que, se existem certos correlatos entre genitalidade e diferenças biológicas, estes não são causados necessariamente por processos de diferenciação sexual, mas por vínculos estatísticos dados por estereótipos normativos de gênero. Os comportamentos envolvidos em tais estereótipos são biologicamente expressos, e os papéis de gênero criam muitas das diferenças biológicas hoje assumidas como naturalmente dimórficas.

Sexo; Identidade de gênero; Caracteres sexuais

Resumen

El presente trabajo expone una interpretación sexual dimórfica de las diferencias biológicas en la especie humana, que resulta de la lectura androcéntrica de los cuerpos que caracterizó la ciencia moderna. En contraste con esta lectura, se muestra cómo las prácticas sociales asociadas con los roles de género pueden traducirse en diferencias biológicas que “se ajustan” a una lectura dimórfica. Sobre la base de estos hechos, se propone que, si existen ciertos correlatos entre genitalidad y diferencias biológicas, los mismos no necesariamente son causados por los procesos de diferenciación sexual, sino por vínculos estadísticos dados por los estereotipos normativos de género. Las conductas implicadas en tales estereotipos se expresan biológicamente, y los roles de género crean muchas de las diferencias biológicas que hoy se asumen como naturalmente dimórficas.

Sexo; Identidad de género; Caracteres sexuales

Abstract

This text argues that the dimorphic interpretation of biological differences in the human species results from an androcentric reading of bodies that have characterized modern science. In contrast to this perspective, the article shows how social practices associated with gender roles can produce biological differences that “adjust” themselves to a dimorphic reading. Based on these facts, we propose that if correlations between genitality and biological differences exists, they are not caused by the processes of sexual differentiation, but by statistical links given by normative gender stereotypes. The behaviors implied in such stereotypes are expressed biologically, and gender roles create many of the biological differences currently assumed as innate and sexually dimorphic.

Sex; Gender identity; Sex characteristics

A leitura androcêntrica das diferenças biológicas

O método científico moderno abandonou a teoria e o mundo das formas abstratas platônicas para considerar a experimentação e o mundo concreto como ideal de conhecimento11. Fox Keller E. Reflexiones sobre género y ciencia. Valencia: Alfons el Magnánim; 1991.. A partir da epistemologia feminista, identificou-se que essa virada substantiva na forma de descrever os fenômenos foi funcional aos interesses do sujeito androcêntrico (o homem cis – isto é, que não é trans –, heterossexual, branco, proprietário e ocidental) de sociedades pré-industriais. Entre os interesses, destacam-se a secularização da natureza, para intervir nela e dominá-la por meio da produção técnica e tecnológica, e a necessidade de polarizar os papéis sociais, o que circunscreve as mulheres às tarefas de reprodução e cuidado11. Fox Keller E. Reflexiones sobre género y ciencia. Valencia: Alfons el Magnánim; 1991..

Tal cenário criou um contexto propício para abrigar as ideias de Newton: sua tese mecanicista serviu para reinterpretar a natureza viva, que, destituída de toda origem divina, tornou-se passível de manipulação. O organismo humano também começou a ser objeto de exploração e experimentação, servindo como fonte de argumentos biológicos para justificar o confinamento das mulheres à esfera privada. Com efeito, desenvolveu-se um sistema de valores dicotômico, essencialmente hierárquico, cuja legitimidade se centrou numa interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas22. Ciccia L. La ficción de los sexos: hacia un pensamiento neuroqueer desde la epistemología feminista [tese] [Internet]. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires; 2017 [acesso 21 maio 2020]. Disponível: https://bit.ly/2OsBXN9
https://bit.ly/2OsBXN9...
. Os pares razão- -emoção, objetividade-subjetividade, universal- -particular, abstrato-concreto, ativo-passivo, público-privado corresponderam ao par masculino-feminino, respectivamente33. Maffía D. Contra las dicotomías: feminismo y epistemología crítica [Internet]. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires; [s.d.] [acesso 21 maio 2020]. Disponível: https://bit.ly/3d110ks
https://bit.ly/3d110ks...
.

Como descreve Thomas Laqueur, um novo paradigma epistemológico substituiu o modelo até então dominante da anatomia das semelhanças por outro que pressupôs uma anatomia e fisiologia do incomensurável 44. Laqueur T. La construcción del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud. Madrid: Cátedra; 1994. p. 24.. No final do século XVIII, a ideia de anatomias opostas e complementárias caracterizou a interpretação das diferenças entre homens e mulheres55. Schiebinger L. ¿Tiene sexo la mente? Las mujeres en los orígenes de la ciencia moderna. Madrid: Cátedra; 2004..

Em suma, a projeção da ordem social dicotômica e hierárquica que começou a se delinear na modernidade foi justificada por uma interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas. Interpretação que era produto de vieses androcêntricos do discurso científico sobre a diferença sexual. Desta maneira, as categorias macho-fêmea tornaram-se equivalentes às categorias homem-mulher: dois organismos qualitativamente diferentes de acordo com os papéis associados à reprodução.

Considerando que esses papéis são o fundamento que legitima estereótipos normativos de gênero e podem explicar o que hoje são consideradas diferenças sexualmente dimórficas, este artigo será estruturado da seguinte forma. A primeira parte mostra que, no âmbito biomédico, persistem os mesmos vieses androcêntricos que caracterizaram o discurso científico sobre a diferença sexual na modernidade, mas atualizados com base numa leitura molecular possibilitada pelo refinamento técnico e tecnológico. Serão descritas as consequências e os efeitos negativos desses vieses na interpretação da prevalência e desenvolvimento de doenças em homens e mulheres.

A segunda parte apresenta críticas de epistemólogas feministas e cientistas empiristas, além de expor certas propostas conceituais para apoiar uma reinterpretação das diferenças biológicas que não caia em leituras deterministas e essencialistas. E a última parte refere a importância de reconceituar nossa biologia e reverter vieses androcêntricos que ainda prevalecem no campo biomédico.

A interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas nos postulados atuais

Durante o século XX, a interpretação dimórfica das diferenças biológicas atravessou um processo de molecularização devido a dois fatos fundamentais: a descoberta do gene SRY pelo endocrinologista francês Alfred Jost, em 1940, e a consolidação da neuroendocrinologia como disciplina científica em 195966. Wallen K. Organizational hypothesis: reflections on the 50th anniversary of the publication of Phoenix, Goy, Gerall, and Young (1959). Horm Behav [Internet]. 2009 [acesso 20 jun 2020];55(5):561-5. DOI: 10.1016/ j.yhbeh.2009.03.009
https://doi.org/10.1016/ j.yhbeh.2009.03...
, 77. Arnold AP, Xu J, Grisham W, Chen X, Kim YH, Itoh Y. Minireview: sex chromosomes and brain sexual differentiation. Endocrinol [Internet]. 2004 [acesso 21 maio 2020];145(3):1057-62. p. 1057. Tradução livre. DOI: 10.1210/en.2003-1491
https://doi.org/10.1210/en.2003-1491...
. A partir de tais eventos, surgiram os chamados “dogma central” e a “teoria organizacional/ativacional” (O/A).

O dogma clássico descreve, em linhas gerais, a diferenciação sexual em mamíferos, incluindo humanos, em termos cromossômicos:

O gene SRY, contido no cromossomo Y, se expressa nas células das genitálias primitivas, ou seja, ainda não diferenciadas sexualmente, e compromete esse tecido com um “destino testicular”. Em seguida, os testículos secretam o hormônio antimülleriano (cuja função é prevenir o desenvolvimento dos ductos que formariam o sistema reprodutivo da fêmea) e a testosterona, que promove o desenvolvimento de “estruturas masculinas” em outras partes do corpo77. Arnold AP, Xu J, Grisham W, Chen X, Kim YH, Itoh Y. Minireview: sex chromosomes and brain sexual differentiation. Endocrinol [Internet]. 2004 [acesso 21 maio 2020];145(3):1057-62. p. 1057. Tradução livre. DOI: 10.1210/en.2003-1491
https://doi.org/10.1210/en.2003-1491...
.

A teoria O/A estendeu aos cérebros a interpretação dimórfica da diferenciação sexual e afirmou que, a partir de um cérebro monomórfico (inicialmente “fêmea”), ocorre uma diferenciação (“masculinização”) causada pela testosterona. Essa diferenciação organizaria permanentemente o cérebro de uma forma específica, ativada na vida pós-natal, e explicaria as diferenças essenciais entre machos e fêmeas. Tanto o dogma central quanto a teoria mencionada sugerem que os processos de diferenciação ativos seriam apenas característicos do macho77. Arnold AP, Xu J, Grisham W, Chen X, Kim YH, Itoh Y. Minireview: sex chromosomes and brain sexual differentiation. Endocrinol [Internet]. 2004 [acesso 21 maio 2020];145(3):1057-62. p. 1057. Tradução livre. DOI: 10.1210/en.2003-1491
https://doi.org/10.1210/en.2003-1491...
.

Esta teoria, aplicada à espécie humana, assume a “masculinização” como causa das diferenças cerebrais devidas ao “sexo”: a química hormonal, a mecânica fisiológica da reprodução – ciclo de ovulação, ejaculação e ereção – e os chamados comportamentos de gênero. A partir do discurso científico predominante, costuma-se supor que tais comportamentos não são aqueles diretamente relacionados à reprodução, mas ligados a capacidades cognitivo-comportamentais88. Shattuck-Heidorn H, Richardson SS. Sex/gender and the biosocial turn. Neurogenderings [Internet]. 2019 [acesso 21 maio 2020];15(2). Disponível: https://bit.ly/2Z3MTmx
https://bit.ly/2Z3MTmx...
. Ou seja, o dimorfismo cerebral pré-natal envolveria certas habilidades cognitivo-comportamentais.

De acordo com o sistema de valores androcêntrico descrito nos parágrafos anteriores, o cérebro masculino seria otimizado para habilidades e comportamentos “mais valorizados”: para habilidades visuoespaciais, por exemplo, que envolvem a leitura de mapas e navegação (tarefas ligadas à capacidade de abstração), enquanto o cérebro feminino seria otimizado para uma habilidade chamada “fluência verbal” (ou seja, para falar)99. Ciccia L. La dicotomía de los sexos puesta en jaque desde una perspectiva cerebral. Descentrada [Internet]. 2018 [acesso 21 maio 2020];2(2):e052. Disponível: https://bit.ly/3ddeCJR
https://bit.ly/3ddeCJR...
. Esta caracterização dos cérebros evidencia e legitima a visão de que a palavra “dimorfismo” equivale a uma distribuição dicotômica, portanto hierárquica, dos papéis sociais.

A interpretação de um caminho monomórfico em que “depois” ocorre a masculinização e a desfeminização do macho-homem está intimamente ligada ao par dicotômico ativo-passivo (macho-fêmea, respectivamente). Essa ligação foi explicitamente apoiada pelas várias disciplinas científicas que emergiram durante o século XIX, como embriologia e craniologia. Tais disciplinas afirmaram, sem evidência empírica, que tornar-se macho exigia uma complexificação/especialização1010. Ciccia L. Premio Anual de Bioética 2017: 1ª mención: el sexo y el género como variables en la investigación biomédica y la práctica clínica [Internet]. Buenos Aires: Fundación Dr. Jaime Roca; 2017 [acesso 10 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/2Z5YjpG
https://bit.ly/2Z5YjpG...
. Em suma, os postulados levantados pelo dogma central e pela teoria O/A refletem o anacronismo dos vieses androcêntricos que interpretaram as diferenças biológicas no âmbito de uma leitura dicotômica e hierárquica dos corpos.

As consequências de uma interpretação dimórfica das diferenças biológicas no domínio biomédico

A leitura hierárquica subjacente à interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas é projetada na omissão de fêmeas e mulheres nos protocolos de pesquisa básicos, pré-clínicos e clínicos1111. Klein SL, Schiebinger L, Stefanick ML, Cahill L, Danska J, Vries GJ et al. Opinion: sex inclusion in basic research drives discovery. Proc Natl Acad Sci USA [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];112(17):5257-8. DOI: 10.1073/pnas.1502843112
https://doi.org/10.1073/pnas.1502843112...
. Por isso, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), a Comissão Europeia e o Instituto de Pesquisa em Saúde do Canadá começaram a exigir que pesquisas financiadas por eles incluíssem machos e fêmeas em projetos experimentais (em estudos sobre animais, tecidos e/ou células), e que o sexo fosse considerado uma variável biológica nas análises, salvo raras exceções1212. Kleinherenbrink AV. The politics of plasticity: sex and gender in the 21st century brain [tese] [Internet]. Amsterdam: University of Amsterdam; 2016 [acesso 21 maio 2020]. Disponível: https://bit.ly/3jCLv3A
https://bit.ly/3jCLv3A...
.

Certos trabalhos comprovam os vieses que resultam da omissão da fêmea e da interpretação dos processos de diferenciação genital e cerebral, tomando o macho como único eixo de referência e material acabado, que “contém” a fêmea. Neste sentido, embora se tenha constatado que o gene SRY inicia a diferenciação testicular em machos, nas fêmeas também existem genes encarregados de iniciar a diferenciação ovariana. Ou seja, existe uma diferenciação genital ativa na fêmea, fato observado não apenas em mamíferos, mas também em pássaros e até mesmo em tartarugas, nas quais a determinação do sexo depende da temperatura1313. Piprek RP. Molecular mechanisms underlying female sex determination: antagonism between female and male pathway. Folia Biol (Kraków) [Internet]. 2009 [acesso 21 maio 2020];57(3-4):105-13. DOI: 10.3409/fb57_3-4.105-113
https://doi.org/10.3409/fb57_3-4.105-113...
.

Em relação aos cérebros, embora tenha sido confirmado que há um processo de masculinização e desfeminização em camundongos machos1414. McCarthy MM, Nugent BM. At the frontier of epigenetics of brain sex differences. Front Behav Neurosci [Internet]. 2015 [acesso 22 abr 2019];9:221. DOI: 10.3389/fnbeh.2015.00221
https://doi.org/10.3389/fnbeh.2015.00221...
, isso não é equivalente a legitimar a ideia de um cérebro monomórfico a partir do qual ocorre a masculinização. Em contraste, estudo realizado em camundongos fêmeas encontrou um processo de feminização e desmasculinização1515. McCarthy MM, Pickett LA, VanRyzin JW, Kight KE. Surprising origins of sex differences in the brain. Horm Behav [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];76:3-10. DOI: 10.1016/j.yhbeh.2015.04.013
https://doi.org/10.1016/j.yhbeh.2015.04....
. Em outras palavras, os resultados obtidos sugerem a existência de um cérebro “dual”, com a presença simultânea de circuitos de machos e fêmeas em cada organismo, implicando também a presença de padrões de expressão sexual ativos, tanto em relação à montada do macho quanto à lordose (curvatura da coluna) da fêmea1515. McCarthy MM, Pickett LA, VanRyzin JW, Kight KE. Surprising origins of sex differences in the brain. Horm Behav [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];76:3-10. DOI: 10.1016/j.yhbeh.2015.04.013
https://doi.org/10.1016/j.yhbeh.2015.04....
.

Ao sugerir que existem processos paralelos de diferenciação genital e cerebral entre machos e fêmeas, e não uma “complexificação” até se tornar macho, esses dois trabalhos1414. McCarthy MM, Nugent BM. At the frontier of epigenetics of brain sex differences. Front Behav Neurosci [Internet]. 2015 [acesso 22 abr 2019];9:221. DOI: 10.3389/fnbeh.2015.00221
https://doi.org/10.3389/fnbeh.2015.00221...
, 1515. McCarthy MM, Pickett LA, VanRyzin JW, Kight KE. Surprising origins of sex differences in the brain. Horm Behav [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];76:3-10. DOI: 10.1016/j.yhbeh.2015.04.013
https://doi.org/10.1016/j.yhbeh.2015.04....
revelam os vieses androcêntricos do século XIX presentes na interpretação dos processos de diferenciação genital e cerebral. Assim, abre-se uma fresta para começar a reinterpretar tais processos no âmbito biomédico.

Cabe ressaltar que a interpretação dimórfica das diferenças biológicas é em si mesma fruto da ordem social dicotômica na modernidade. Ou seja, os vieses androcêntricos não são diluídos apenas pela validação de processos paralelos nos mecanismos de diferenciação. Desestabilizar de maneira estrutural esses vieses implica questionar a suposta natureza rígida e dimórfica dos processos de diferenciação.

Para reverter vieses androcêntricos que caracterizam a produção de conhecimento biomédico, é necessário incluir fêmeas e mulheres nos protocolos de pesquisa. Só isso, no entanto, não é suficiente. Deve-se considerar também como esta inclusão é interpretada e os resultados obtidos a partir de estudos que incorporam “ambos os sexos”. Em relação à forma de inclusão, deve-se analisar como a categoria masculina é caracterizada no modelo experimental.

A este respeito, é curioso que a justificativa para selecionar apenas machos em estudos experimentais seja evitar as flutuações hormonais das fêmeas. Em outras palavras, relatar o status hormonal das fêmeas torna-se um obstáculo que apenas complexifica a análise dos dados (e, portanto, a obtenção de resultados publicáveis a curto prazo) caso tal relato não seja objetivo específico da pesquisa em questão1010. Ciccia L. Premio Anual de Bioética 2017: 1ª mención: el sexo y el género como variables en la investigación biomédica y la práctica clínica [Internet]. Buenos Aires: Fundación Dr. Jaime Roca; 2017 [acesso 10 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/2Z5YjpG
https://bit.ly/2Z5YjpG...
. Paradoxalmente, muitos estudos não são reprodutíveis devido a um relato pobre do status hormonal dos machos: a testosterona também flutua, apresentando, por exemplo, ritmos sazonais e circadianos1616. Becker J, Arnold AP, Berkley KJ, Blaustein JD, Eckel LA, Hampson E et al. Strategies and methods for research on sex difference in brain and behavior. Endocrinol [Internet]. 2005 [acesso 21 maio 2020];146(4):1650-73. DOI: 10.1210/en.2004-1142
https://doi.org/10.1210/en.2004-1142...
.

No entanto, extrapolando a fisiologia animal não humana para abordar a espécie humana, a história da endocrinologia instalou a ideia de uma ligação causal entre a flutuação hormonal das fêmeas-mulheres e sua suposta instabilidade emocional1717. Hayward JA. Historia de la medicina. Buenos Aires: Biblioteca Actual; 1989.. Nem mesmo as questões de pesquisa que visam vincular a noção de “flutuação” ao hormônio testosterona mostram o forte enraizamento de uma leitura androcêntrica – e portanto biologicista – das diferenças: a suposta “estabilidade emocional do homem” é justificada pela “estabilidade hormonal” do macho, que por sua vez está associada à predisposição inata para a “objetividade” e a “neutralidade”. Este é outro exemplo de como a descrição dimórfica das diferenças biológicas se encaixa em uma organização social dicotômica e hierárquica dos corpos.

Quanto aos resultados, é necessário questionar o que as categorias macho e fêmea nos “informam” em determinado estudo. Como a interpretação dimórfica supõe duas categorias qualitativamente diferentes umas das outras, ao mesmo tempo homogêneas “para dentro” de cada uma, considera-se que incorporar machos e fêmeas equivale a introduzir uma variável biológica. Isto é, em primeiro lugar, eles são comparados; em segundo lugar, presume-se que as possíveis diferenças encontradas refletem diferenças biológicas inatas, fixas e imutáveis. Esse fato também é extrapolado para a espécie humana, conforme demonstra Janine Clayton:

Para apreciar a consideração do sexo como uma variável biológica, é necessário definir e distinguir o sexo do gênero. “Sexo” origina-se do complemento cromossômico sexual de um organismo: cromossomos XX ou XY em humanos, e é refletido nos órgãos reprodutivos. Cada célula tem um sexo. O sexo afeta todos os aspectos do funcionamento fisiológico de uma pessoa, não apenas as secreções hormonais. Embora o sexo também possa afetar o comportamento, outros fatores, sociais e culturais, também podem influenciar o comportamento. Assim, o termo “gênero” refere-se a traços sociais, culturais e psicológicos ligados a homens e mulheres humanos através do contexto social1818. Clayton J. Applying the new SABV (sex as a biological variable) policy to research and clinical care. Physiol Behav [Internet]. 2018 [acesso 21 maio 2020];187:2-5. p. 2. Tradução livre. DOI: 10.1016/ j.physbeh.2017.08.012
https://doi.org/10.1016/ j.physbeh.2017....
.

Para Clayton1919. Clayton J. Op. cit., diretora do Escritório de Pesquisa Sobre Saúde da Mulher (pertencente ao NIH), a caracterização sexual dimórfica é um fato pelo qual o sexo é entendido como uma variável biológica fundamental. Nessa perspectiva, qualquer desenho experimental para fins biomédicos deveria partir do critério de agrupamento homem-mulher, reflexo das categorias macho-fêmea, para buscar diferenças biológicas essenciais.

Como afirma a autora1919. Clayton J. Op. cit., muitas vezes se supõe que existem diferenças sexualmente dimórficas nas secreções hormonais dos justamente rotulados “hormônios sexuais”: estradiol, progesterona e testosterona. Isso porque, embora todas as pessoas tenham esses “hormônios sexuais”, houve uma tendência de estudar apenas estradiol e progesterona em mulheres, e testosterona em homens2020. Van Anders SM. Beyond masculinity: testosterone, gender/sex, and human social behavior in a comparative context. Front Neuroendocrinol [Internet]. 2013 [acesso 21 maio 2020];34(3):198-210. DOI: 10.1016/ j.yfrne.2013.07.001
https://doi.org/10.1016/ j.yfrne.2013.07...
.

Só nos últimos anos surgiram estudos sobre “hormônios sexuais” em mulheres e homens. Os resultados sugerem que os níveis médios de estradiol e progesterona não diferem entre homens e mulheres, o que dilui a ideia de dimorfismo sexual para esses hormônios. Embora ainda se encontre, em média, um nível maior de testosterona nos homens em comparação com as mulheres, essa diferença é muito menor do que se supõe, e há, além disso, grandes sobreposições2121. Liening SH, Stanton SJ, Saini EK, Schultheiss OC. Salivary testosterone, cortisol, and progesterone: two-week stability, interhormone correlations, and effects of time of day, menstrual cycle and oral contraceptive use on steroid hormone levels. Physiol Behav [Internet]. 2010 [acesso 21 maio 2020];99(1):8-16. DOI: 10.1016/j.physbeh.2009.10.001
https://doi.org/10.1016/j.physbeh.2009.1...
. Ou seja, as concentrações de testosterona são variáveis (podem ou não existir diferenças), a depender das pessoas que compõem a amostra do estudo.

Em suma, uma interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas leva a vieses tanto na caracterização de modelos experimentais (o macho como “biologia ideal”) quanto nos desenhos experimentais (omissão ou inclusão das fêmeas, estabelecendo uma variável biológica). Isso tem impacto direto em como se interpreta o adoecimento, fundamentalmente associado ao sexo, enquanto o gênero, ou seja, as práticas sociais de acordo com uma genitalidade, é considerado periférico.

Categorias conceituais para flexibilizar nossa biologia

A necessidade de distinguir os conceitos de “ sexo “e” gênero”, que na literatura biomédica costumam ser usados de maneira intercambiável, levou o NIH a ministrar um curso on-line sobre o tema. O uso de “sexo” e “gênero” como sinônimos não ocorre só porque no inglês vernáculo os termos são literalmente sinônimos, mas também porque o gênero resulta do sexo no discurso científico predominante. Ou seja, entende-se que há uma ligação causal entre biologia (sexo) e comportamento (gênero), de modo que os termos são traduzidos como sinônimos na linguagem biológica.

No entanto, a ideia de gênero promovida pelo NIH sugere que nosso corpo é um sistema acabado que é afetado – em termos aditivos – por práticas sociais de gênero. Como Shattuck- -Heidorn e Richardson apontam, o exemplo usado pela instituição para mostrar como o gênero pode impactar nossa biologia é o cenário simples e estereotipado do uso de saltos altos sobre as articulações do joelho 2222. Shattuck-Heidorn H, Richardson SS. Op. cit. Tradução livre..

A partir dessa perspectiva, os estereótipos de gênero parecem não encarnar, mas sim representar disfarces superficiais, “mensuráveis” e “observáveis”, de maneira linear. Em contrapartida, o sexo representaria as diferenças “profundas” entre homens e mulheres, interpretadas como variável biológica dimórfica precisa e constante. A ideia de profundidade é aplicada aqui para mostrar que essa leitura se sustenta na suposição de que atrás do homem há um macho, e atrás da mulher, uma fêmea.

Em contraposição a essa conceituação rígida e dimórfica para caracterizar as diferenças biológicas, as autoras que compõem a NeuroGenderings Network, uma rede interdisciplinar de prestigiosas pesquisadoras críticas ao discurso neurocientífico predominante, complexificam a forma de interpretar o sexo. Muitas delas explicitam que, embora se recomende que fêmeas e mulheres passem a ser incorporadas em estudos hoje feitos apenas com machos e homens, essa incorporação não implica necessariamente introduzir o sexo como variável biológica. Em vez disso, trata-se de ter representatividade maior da espécie do que se teria se apenas machos ou fêmeas fossem estudados2323. Rippon G, Jordan-Young R, Kaiser A, Joel D, Fine C. Journal of Neuroscience Research policy on addressing sex as a biological variable: comments, clarifications, and elaborations. J Neurosci Res [Internet]. 2017 [acesso 21 maio 2020];95(7):1357-9. DOI: 10.1002/jnr.24045
https://doi.org/10.1002/jnr.24045...
.

Além disso, as pesquisadoras apontam que é necessário considerar outros fatores que variam com o sexo. Nesse sentido, em contraste com a ideia de gênero sugerida pelo NIH, elas enfatizam que a alta plasticidade que caracteriza nossa espécie torna o gênero mais do que um fator superficial. Surge então a ideia de uma biologia flexível, que dialoga e se alimenta com/a partir de nossas práticas de gênero. Para tornar este diálogo visível, há duas autoras, entre outras, que introduziram conceitos fundamentais2424. Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health [Internet]. 2001 [acesso 21 maio 2020];55(10):693-700. DOI: 10.1136/jech.55.10.693
https://doi.org/10.1136/jech.55.10.693...
, 2525. Keiser A. Re-conceptualizing “sex” and “gender” in the human brain. Z Psychol [Internet]. 2012 [acesso 21 maio 2020];220(2):130-6. DOI: 10.1027/2151-2604/a000104
https://doi.org/10.1027/2151-2604/a00010...
.

A primeira é Nancy Krieger2424. Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health [Internet]. 2001 [acesso 21 maio 2020];55(10):693-700. DOI: 10.1136/jech.55.10.693
https://doi.org/10.1136/jech.55.10.693...
, que desenvolve a ideia de expressão biológica no âmbito da epidemiologia social e alude a como as práticas sociais de gênero, relacionadas à desigualdade econômica, podem afetar nossa saúde. Em outras palavras, caracterizando a desigualdade socioeconômica como fator fundamental para a expressão diferenciada de uma doença, Krieger fala da expressão biológica de gênero. Na próxima seção, o escopo desse conceito será aprofundado.

A segunda autora é Anelis Kaiser2525. Keiser A. Re-conceptualizing “sex” and “gender” in the human brain. Z Psychol [Internet]. 2012 [acesso 21 maio 2020];220(2):130-6. DOI: 10.1027/2151-2604/a000104
https://doi.org/10.1027/2151-2604/a00010...
, integrante fundadora da NeuroGenderings Network, que propôs incorporar a noção de sexo/gênero no campo das neurociências para evidenciar que não é possível “desagregar” no cérebro os fatores puramente biológicos dos fatores associados à nossa experiência social de gênero. A autora recomenda que estudos cerebrais voltados à busca de diferenças entre homens e mulheres não se refiram a “diferenças de sexo”, mas a “diferenças de sexo/gênero”2525. Keiser A. Re-conceptualizing “sex” and “gender” in the human brain. Z Psychol [Internet]. 2012 [acesso 21 maio 2020];220(2):130-6. DOI: 10.1027/2151-2604/a000104
https://doi.org/10.1027/2151-2604/a00010...
. Claro, essa ideia é extensível a todo o nosso organismo.

Expressão biológica de gênero: o cérebro como ponto de partida

A pesquisadora israelense Daphna Joel e colaboradores2626. Joel D, Berman Z, Tavorc I, Wexlerd N, Gaber O, Stein Y et al. Sex beyond the genitalia: the human brain mosaic. Proc Natl Acad Sci USA [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];112(50):15468-73. DOI: 10.1073/pnas.1509654112
https://doi.org/10.1073/pnas.1509654112...
mostraram a incapacidade de caracterizar o cérebro de acordo com as categorias homem-mulher, porque a alta variabilidade entre cérebros de mulheres e homens seria igual à alta variabilidade entre cérebros de diferentes mulheres, entre si, e diferentes homens, entre si. Joel e colaboradores2626. Joel D, Berman Z, Tavorc I, Wexlerd N, Gaber O, Stein Y et al. Sex beyond the genitalia: the human brain mosaic. Proc Natl Acad Sci USA [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];112(50):15468-73. DOI: 10.1073/pnas.1509654112
https://doi.org/10.1073/pnas.1509654112...
propõem então a hipótese do “cérebro mosaico”, que equivale a conceituar cada cérebro como uma combinação única de fatores. Esse tipo de hipótese levanta a questão de saber se o agrupamento de acordo com categorias homem-mulher para buscar “diferenças” não resulta em falsos positivos:

Embora deva haver participantes tanto mulheres quanto homens em cada estudo da estrutura e função do cérebro humano, a fim de representar melhor a variabilidade total de nossa espécie, o uso da categoria de sexo como variável para analisar os resultados de tais estudos não deve ser o padrão (…) [pois] levaria à detecção de diferenças aleatórias entre os grupos de homens e mulheres2727. Joel D, Persico A, Salhov M, Berman Z, Oligschläger S, Meilijson I, Averbuch A. Analysis of human brain structure reveals that the brain “types” typical of males are also typical of females, and vice-versa. Front Hum Neurosci [Internet]. 2018 [acesso 21 maio 2020];12:399. p. 16. Tradução livre. DOI: 10.3389/fnhum.2018.00399
https://doi.org/10.3389/fnhum.2018.00399...
.

Além disso, caso se encontrem – e sejam válidas – diferenças entre homens e mulheres para um determinado parâmetro cerebral (em termos de estrutura e/ou função), estas não devem ser interpretadas com o peso da causalidade. Em vez disso, seria preciso avaliar a contribuição de nossas práticas sociais para tais diferenças. Devido à alta plasticidade, o cérebro é o órgão paradigmático para entender como práticas sociais podem modificar nosso organismo:

Agora está claro que a organização funcional e até estrutural do sistema nervoso humano é um processo contínuo e dinâmico que persiste ao longo da vida. A plasticidade dependente da experiência tem sido repetidamente comprovada na aquisição de habilidades tão diversas como interpretação musical, basquete, dança, condução de táxi e malabarismo2828. Fine C, Jordan-Young R, Kaiser A, Rippon G. Plasticity, plasticity, plasticity… and the rigid problem of sex. Trends Cogn Sci [Internet]. 2013 [acesso 21 maio 2020];17(11):550-1. p. 550. Tradução livre. DOI: 10.1016/ j.tics.2013.08.010
https://doi.org/10.1016/ j.tics.2013.08....
.

Em suma, o trabalho das pesquisadoras da NeuroGenderings Network mostra que a caracterização dimórfica dos cérebros é inválida, e que é preciso desenvolver novos critérios de agrupamento.

Do exposto, fica caracterizado que as práticas de gênero são treinadas como exercícios que incorporamos por meio de hábitos que aprendemos, memorizamos, produzimos e reproduzimos diariamente. Por isso, propõe-se definir a conexão entre genitalidade e gênero como estatística, pois a conexão estatística é explicada mais pelos estereótipos normativos de gênero do que por uma determinação biológica.

A esse respeito, aplica-se a ideia de expressão biológica de gênero, que pode ser usada para descrever uma ligação estatística entre genitalidade e certas diferenças biológicas hoje observadas entre homens e mulheres. Trata-se de uma ligação estatística entre nossa genitalidade e nossa expressão biológica de gênero, não mais apenas em sentido sociológico, como o proposto por Krieger2424. Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health [Internet]. 2001 [acesso 21 maio 2020];55(10):693-700. DOI: 10.1136/jech.55.10.693
https://doi.org/10.1136/jech.55.10.693...
, mas também ontológico. Ou seja, a correlação normativa entre genitalidade e gênero, que nos é atribuída ao nascer, implica a corporização de práticas de gênero, as quais acabam por se expressar biologicamente.

Além dos cérebros

A ideia de ligação estatística para interpretar correlações entre genitalidade e expressão biológica pode se estender a outros órgãos e processos fisiológicos. Por exemplo, no âmbito farmacológico, reduzir as exigências à mera inclusão do sexo como variável biológica em desenhos experimentais tem sido fonte de críticas, porque invisibiliza, ou trata como periféricos, fatores capazes de afetar a metabolização ou esclarecimento de fármacos. Tais fatores dizem respeito a hábitos altamente relacionados ao gênero: atividade física, alimentação e consumo de componentes bioativos como tabaco, café ou álcool, entre outros2929. Schiebinger L, Stefanick ML. Gender matters in biological research and medical practice. J Am Coll Cardiol [Internet]. 2016 [acesso 21 maio 2020];67(2):136-8. DOI: 10.1016/j.jacc.2015.11.029
https://doi.org/10.1016/j.jacc.2015.11.0...
. O peso corporal também afeta a taxa de eliminação de certos medicamentos, conforme comprovado no caso do hipnótico zolpidem3030. Richardson SS, Reiches M, Shattuck-Heidorn H, LaBonte ML, Consoli T. Opinion: focus on preclinical sex differences will not address women’s and men’s health disparities. Proc Natl Acad Sci USA [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];112(44):13419-20. DOI: 10.1073/pnas.1516958112
https://doi.org/10.1073/pnas.1516958112...
. Como têm efeitos centrais na farmacocinética, todos esses fatores se tornam variáveis fundamentais.

Nesse sentido, é necessário gerar ferramentas para indagar quais fatores genéticos e sociais (ou como os fatores sociais podem afetar os genéticos) contribuem para metabolizar um determinado fármaco. Assim, se um estudo buscasse diferenças entre mulheres e homens na taxa de metabolização de um fármaco, e se observasse, por exemplo, que nas mulheres a taxa é menor, esse fato não demonstra diferenças ligadas em última instância ao sexo. Em vez disso, o resultado pode ser explicado por certos hábitos de gênero que afetam a taxa de metabolização. Nesse caso, a correlação entre genitalidade e metabolização de fármacos deve ser entendida como ligação estatística, e não causal, devendo-se contextualizar outras características e hábitos culturais dos participantes do estudo.

Por outro lado, a ideia sugerida por Clayton1919. Clayton J. Op. cit., de que as concentrações hormonais são dimórficas, não é apenas questionada pelas sobreposições acima descritas, mas também por descobertas da neuroendocrinologia social que desafiam a crença (dominante na esfera biomédica) de que o sexo define as concentrações hormonais. Em vez de partir das concentrações hormonais para depois associá-las a certos comportamentos – metodologia clássica da neuroendocrinologia comportamental –, a vertente social dessa disciplina estuda os efeitos do ambiente/contexto social sobre a regulação hormonal. Assim, observou-se que a rejeição social aumenta os níveis de progesterona3131. Duffy KA, Harris LT, Chartrand TL, Stanton SJ. Women recovering from social rejection: the effect of the person and the situation on a hormonal mechanism of affiliation. Psychoneuroendocrinology [Internet]. 2017 [acesso 21 maio 2020];76:174-82. DOI: 10.1016/j.psyneuen.2016.11.017
https://doi.org/10.1016/j.psyneuen.2016....
, e que contextos de dominância aumentam tanto o estradiol quanto a progesterona3232. Stanton SJ, Schultheiss OC. Basal and dynamic relationships between implicit power motivation and estradiol in women. Horm Behav [Internet]. 2007 [acesso 21 maio 2020];52(5):571-80. DOI: 10.1016/ j.yhbeh.2007.07.002
https://doi.org/10.1016/ j.yhbeh.2007.07...
, isto é, concentrações hormonais variam como resultado de práticas sociais.

Na mesma linha, a pesquisadora Van Anders2020. Van Anders SM. Beyond masculinity: testosterone, gender/sex, and human social behavior in a comparative context. Front Neuroendocrinol [Internet]. 2013 [acesso 21 maio 2020];34(3):198-210. DOI: 10.1016/ j.yfrne.2013.07.001
https://doi.org/10.1016/ j.yfrne.2013.07...
mostrou que fatores não genéticos influenciam fortemente as concentrações de testosterona. Além dos ritmos sazonais e circadianos, certos papéis sociais relacionados ao gênero também podem afetar as concentrações. Por exemplo, independentemente de se tratar de homens ou mulheres, em contextos de competição os níveis de testosterona aumentam, enquanto nas atividades de cuidado observa-se uma redução desses níveis2020. Van Anders SM. Beyond masculinity: testosterone, gender/sex, and human social behavior in a comparative context. Front Neuroendocrinol [Internet]. 2013 [acesso 21 maio 2020];34(3):198-210. DOI: 10.1016/ j.yfrne.2013.07.001
https://doi.org/10.1016/ j.yfrne.2013.07...
. À luz desses achados, surge o seguinte questionamento: qual o motivo da pequena diferença que, em média, se observa entre homens e mulheres na concentração de testosterona?

Estudos descritos nesta seção mostram que a ideia de sexo como dimórfico é inválida em termos cerebrais e, no mínimo, em relação a processos farmacocinéticos e “hormônios sexuais”. Seria necessário analisar quais outros parâmetros biológicos, que continuam a ser considerados fortes legitimadores de uma interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas, não resultam na verdade de uma regulação biossocial regida por estereótipos de gênero.

Tal cenário sugere que, no âmbito biomédico, as categorias homem-mulher deveriam remeter a expressões biológicas que materializam uma ligação estatística normativa. Em outras palavras, os estereótipos de gênero podem explicar muitas das diferenças biológicas atualmente observadas entre homens e mulheres.

Embora ultrapasse os limites deste trabalho, pode-se argumentar que práticas sociais não são atravessadas apenas por gênero, mas também por outras categorias normativas, como as associadas a processos de racialização. Essas categorias se cruzam e coexistem no mesmo corpo. Por conseguinte, compreender a forma como a experiência social repercute no organismo requer uma perspectiva interseccional.

Nessa linha, um caso ilustrativo é o trabalho recente de Krieger, Jahn e Waterman3333. Krieger N, Jahn JL, Waterman PD. Jim Crow and estrogen-receptor-negative breast cancer: US-born black and white non-Hispanic women, 1992-2012. Cancer Causes Control [Internet]. 2017 [acesso 21 maio 2020];28:49-59. DOI: 10.1007/s10552-016-0834-2
https://doi.org/10.1007/s10552-016-0834-...
, que encontraram associação entre a incidência de um tipo de câncer de mama e as leis Jim Crow — a segregação racial legal praticada em 21 estados dos EUA até 1964. As autoras mostraram que houve maior incidência desse câncer em mulheres negras nascidas antes de 1964 em comparação com aquelas que nasceram depois, enquanto essa diferença não foi observada em mulheres brancas3333. Krieger N, Jahn JL, Waterman PD. Jim Crow and estrogen-receptor-negative breast cancer: US-born black and white non-Hispanic women, 1992-2012. Cancer Causes Control [Internet]. 2017 [acesso 21 maio 2020];28:49-59. DOI: 10.1007/s10552-016-0834-2
https://doi.org/10.1007/s10552-016-0834-...
.

Considerações finais

Desde a modernidade, a ordem social hierárquica e dicotômica foi biologicamente justificada sobre uma interpretação sexual dimórfica. Embora o discurso científico predominante atual sustente tal interpretação, a biologia molecular, longe de reafirmá-la, mostra o anacronismo de tal interpretação. Assim, avaliações de diferenças entre homens e mulheres que tomam por certo o dimorfismo sexual podem levar a resultados tendenciosos, que dificultam a verdadeira compreensão de mecanismos que explicam a prevalência e desenvolvimento de doenças. A singular plasticidade que nos caracteriza como espécie, condicionada estruturalmente por papéis associados ao gênero, implica grande impacto das práticas sociais em nossa expressão biológica.

Do ponto de vista sexo-gênero, para avaliar tal impacto, é necessário deslocar a ideia de ligação causal entre sexo e gênero pela noção de ligação estatística. Se existem diferenças biológicas para determinado parâmetro entre homens e mulheres, essa noção permite que elas sejam conceituadas no âmbito de práticas sociais embutidas em estereótipos de gênero.

Como o trabalho de Van Anders2020. Van Anders SM. Beyond masculinity: testosterone, gender/sex, and human social behavior in a comparative context. Front Neuroendocrinol [Internet]. 2013 [acesso 21 maio 2020];34(3):198-210. DOI: 10.1016/ j.yfrne.2013.07.001
https://doi.org/10.1016/ j.yfrne.2013.07...
mostrou, hábitos de gênero podem aumentar ou diminuir os níveis de testosterona. Nesse sentido, é fundamental avaliar o alcance das práticas de gênero sobre nossa expressão biológica. Por exemplo, como tais práticas afetam a expressão do gene em relação aos cromossomos que, como os hormônios, também são rotulados como “sexuais”?

Como a interpretação sexual dimórfica das diferenças biológicas resulta de uma leitura androcêntrica moderna dos corpos, é necessário revisar e analisar os pressupostos e hipóteses que orientam os estudos biomédicos voltados à busca de diferenças sexuais. Cabe ressaltar que essa leitura alimenta a ideia de uma biologia rígida, determinada e binária, que não se ajusta às nossas realidades biológicas: da expressão cromossômica, passando pela expressão genital, até a expressão cerebral, nossa diversidade e dinamismo biológico transcendem a dicotomia reducionista.

Para não superestimar a contribuição de fatores genéticos em nossa expressão biológica, deve-se começar a criar métodos que tornem visíveis, em toda sua complexidade, as variáveis sociais, que por sua vez podem afetar fatores genéticos. Ademais, é preciso colocar nossa expressão biológica no âmbito dos atuais estereótipos de gênero, que não devem ser universalizados, mas complexificados a partir de uma perspectiva geopolítica. Ou seja, o estereótipo do gênero feminino não é igual na América Latina e no mundo anglo-saxão, de onde provém a maior parte dos estudos aqui citados. Nesse sentido, é necessário produzir conhecimento tendo em mente as condições estruturais locais.

Em última análise, quando diferenças biológicas entre homens e mulheres são observadas, não é o caso de analisar uma ligação causal, a-histórica e atemporal com a genitalidade, mas sim desenvolver novas estratégias epistêmicas e metodológicas para compreender como funciona nosso organismo e os processos de diferenciação associados a ele, possibilitando a criação de outras ferramentas para prevenir e tratar doenças.

Referencias

  • 1
    Fox Keller E. Reflexiones sobre género y ciencia. Valencia: Alfons el Magnánim; 1991.
  • 2
    Ciccia L. La ficción de los sexos: hacia un pensamiento neuroqueer desde la epistemología feminista [tese] [Internet]. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires; 2017 [acesso 21 maio 2020]. Disponível: https://bit.ly/2OsBXN9
    » https://bit.ly/2OsBXN9
  • 3
    Maffía D. Contra las dicotomías: feminismo y epistemología crítica [Internet]. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires; [s.d.] [acesso 21 maio 2020]. Disponível: https://bit.ly/3d110ks
    » https://bit.ly/3d110ks
  • 4
    Laqueur T. La construcción del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud. Madrid: Cátedra; 1994. p. 24.
  • 5
    Schiebinger L. ¿Tiene sexo la mente? Las mujeres en los orígenes de la ciencia moderna. Madrid: Cátedra; 2004.
  • 6
    Wallen K. Organizational hypothesis: reflections on the 50th anniversary of the publication of Phoenix, Goy, Gerall, and Young (1959). Horm Behav [Internet]. 2009 [acesso 20 jun 2020];55(5):561-5. DOI: 10.1016/ j.yhbeh.2009.03.009
    » https://doi.org/10.1016/ j.yhbeh.2009.03.009
  • 7
    Arnold AP, Xu J, Grisham W, Chen X, Kim YH, Itoh Y. Minireview: sex chromosomes and brain sexual differentiation. Endocrinol [Internet]. 2004 [acesso 21 maio 2020];145(3):1057-62. p. 1057. Tradução livre. DOI: 10.1210/en.2003-1491
    » https://doi.org/10.1210/en.2003-1491
  • 8
    Shattuck-Heidorn H, Richardson SS. Sex/gender and the biosocial turn. Neurogenderings [Internet]. 2019 [acesso 21 maio 2020];15(2). Disponível: https://bit.ly/2Z3MTmx
    » https://bit.ly/2Z3MTmx
  • 9
    Ciccia L. La dicotomía de los sexos puesta en jaque desde una perspectiva cerebral. Descentrada [Internet]. 2018 [acesso 21 maio 2020];2(2):e052. Disponível: https://bit.ly/3ddeCJR
    » https://bit.ly/3ddeCJR
  • 10
    Ciccia L. Premio Anual de Bioética 2017: 1ª mención: el sexo y el género como variables en la investigación biomédica y la práctica clínica [Internet]. Buenos Aires: Fundación Dr. Jaime Roca; 2017 [acesso 10 fev 2021]. Disponível: https://bit.ly/2Z5YjpG
    » https://bit.ly/2Z5YjpG
  • 11
    Klein SL, Schiebinger L, Stefanick ML, Cahill L, Danska J, Vries GJ et al. Opinion: sex inclusion in basic research drives discovery. Proc Natl Acad Sci USA [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];112(17):5257-8. DOI: 10.1073/pnas.1502843112
    » https://doi.org/10.1073/pnas.1502843112
  • 12
    Kleinherenbrink AV. The politics of plasticity: sex and gender in the 21st century brain [tese] [Internet]. Amsterdam: University of Amsterdam; 2016 [acesso 21 maio 2020]. Disponível: https://bit.ly/3jCLv3A
    » https://bit.ly/3jCLv3A
  • 13
    Piprek RP. Molecular mechanisms underlying female sex determination: antagonism between female and male pathway. Folia Biol (Kraków) [Internet]. 2009 [acesso 21 maio 2020];57(3-4):105-13. DOI: 10.3409/fb57_3-4.105-113
    » https://doi.org/10.3409/fb57_3-4.105-113
  • 14
    McCarthy MM, Nugent BM. At the frontier of epigenetics of brain sex differences. Front Behav Neurosci [Internet]. 2015 [acesso 22 abr 2019];9:221. DOI: 10.3389/fnbeh.2015.00221
    » https://doi.org/10.3389/fnbeh.2015.00221
  • 15
    McCarthy MM, Pickett LA, VanRyzin JW, Kight KE. Surprising origins of sex differences in the brain. Horm Behav [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];76:3-10. DOI: 10.1016/j.yhbeh.2015.04.013
    » https://doi.org/10.1016/j.yhbeh.2015.04.013
  • 16
    Becker J, Arnold AP, Berkley KJ, Blaustein JD, Eckel LA, Hampson E et al. Strategies and methods for research on sex difference in brain and behavior. Endocrinol [Internet]. 2005 [acesso 21 maio 2020];146(4):1650-73. DOI: 10.1210/en.2004-1142
    » https://doi.org/10.1210/en.2004-1142
  • 17
    Hayward JA. Historia de la medicina. Buenos Aires: Biblioteca Actual; 1989.
  • 18
    Clayton J. Applying the new SABV (sex as a biological variable) policy to research and clinical care. Physiol Behav [Internet]. 2018 [acesso 21 maio 2020];187:2-5. p. 2. Tradução livre. DOI: 10.1016/ j.physbeh.2017.08.012
    » https://doi.org/10.1016/ j.physbeh.2017.08.012
  • 19
    Clayton J. Op. cit.
  • 20
    Van Anders SM. Beyond masculinity: testosterone, gender/sex, and human social behavior in a comparative context. Front Neuroendocrinol [Internet]. 2013 [acesso 21 maio 2020];34(3):198-210. DOI: 10.1016/ j.yfrne.2013.07.001
    » https://doi.org/10.1016/ j.yfrne.2013.07.001
  • 21
    Liening SH, Stanton SJ, Saini EK, Schultheiss OC. Salivary testosterone, cortisol, and progesterone: two-week stability, interhormone correlations, and effects of time of day, menstrual cycle and oral contraceptive use on steroid hormone levels. Physiol Behav [Internet]. 2010 [acesso 21 maio 2020];99(1):8-16. DOI: 10.1016/j.physbeh.2009.10.001
    » https://doi.org/10.1016/j.physbeh.2009.10.001
  • 22
    Shattuck-Heidorn H, Richardson SS. Op. cit. Tradução livre.
  • 23
    Rippon G, Jordan-Young R, Kaiser A, Joel D, Fine C. Journal of Neuroscience Research policy on addressing sex as a biological variable: comments, clarifications, and elaborations. J Neurosci Res [Internet]. 2017 [acesso 21 maio 2020];95(7):1357-9. DOI: 10.1002/jnr.24045
    » https://doi.org/10.1002/jnr.24045
  • 24
    Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health [Internet]. 2001 [acesso 21 maio 2020];55(10):693-700. DOI: 10.1136/jech.55.10.693
    » https://doi.org/10.1136/jech.55.10.693
  • 25
    Keiser A. Re-conceptualizing “sex” and “gender” in the human brain. Z Psychol [Internet]. 2012 [acesso 21 maio 2020];220(2):130-6. DOI: 10.1027/2151-2604/a000104
    » https://doi.org/10.1027/2151-2604/a000104
  • 26
    Joel D, Berman Z, Tavorc I, Wexlerd N, Gaber O, Stein Y et al. Sex beyond the genitalia: the human brain mosaic. Proc Natl Acad Sci USA [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];112(50):15468-73. DOI: 10.1073/pnas.1509654112
    » https://doi.org/10.1073/pnas.1509654112
  • 27
    Joel D, Persico A, Salhov M, Berman Z, Oligschläger S, Meilijson I, Averbuch A. Analysis of human brain structure reveals that the brain “types” typical of males are also typical of females, and vice-versa. Front Hum Neurosci [Internet]. 2018 [acesso 21 maio 2020];12:399. p. 16. Tradução livre. DOI: 10.3389/fnhum.2018.00399
    » https://doi.org/10.3389/fnhum.2018.00399
  • 28
    Fine C, Jordan-Young R, Kaiser A, Rippon G. Plasticity, plasticity, plasticity… and the rigid problem of sex. Trends Cogn Sci [Internet]. 2013 [acesso 21 maio 2020];17(11):550-1. p. 550. Tradução livre. DOI: 10.1016/ j.tics.2013.08.010
    » https://doi.org/10.1016/ j.tics.2013.08.010
  • 29
    Schiebinger L, Stefanick ML. Gender matters in biological research and medical practice. J Am Coll Cardiol [Internet]. 2016 [acesso 21 maio 2020];67(2):136-8. DOI: 10.1016/j.jacc.2015.11.029
    » https://doi.org/10.1016/j.jacc.2015.11.029
  • 30
    Richardson SS, Reiches M, Shattuck-Heidorn H, LaBonte ML, Consoli T. Opinion: focus on preclinical sex differences will not address women’s and men’s health disparities. Proc Natl Acad Sci USA [Internet]. 2015 [acesso 21 maio 2020];112(44):13419-20. DOI: 10.1073/pnas.1516958112
    » https://doi.org/10.1073/pnas.1516958112
  • 31
    Duffy KA, Harris LT, Chartrand TL, Stanton SJ. Women recovering from social rejection: the effect of the person and the situation on a hormonal mechanism of affiliation. Psychoneuroendocrinology [Internet]. 2017 [acesso 21 maio 2020];76:174-82. DOI: 10.1016/j.psyneuen.2016.11.017
    » https://doi.org/10.1016/j.psyneuen.2016.11.017
  • 32
    Stanton SJ, Schultheiss OC. Basal and dynamic relationships between implicit power motivation and estradiol in women. Horm Behav [Internet]. 2007 [acesso 21 maio 2020];52(5):571-80. DOI: 10.1016/ j.yhbeh.2007.07.002
    » https://doi.org/10.1016/ j.yhbeh.2007.07.002
  • 33
    Krieger N, Jahn JL, Waterman PD. Jim Crow and estrogen-receptor-negative breast cancer: US-born black and white non-Hispanic women, 1992-2012. Cancer Causes Control [Internet]. 2017 [acesso 21 maio 2020];28:49-59. DOI: 10.1007/s10552-016-0834-2
    » https://doi.org/10.1007/s10552-016-0834-2

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    8 Out 2019
  • Revisado
    5 Jan 2021
  • Aceito
    12 Jan 2021
Conselho Federal de Medicina SGAS 915, lote 72, CEP 70390-150, Tel.: (55 61) 3445-5932, Fax: (55 61) 3346-7384 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: bioetica@portalmedico.org.br