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A menina mãe: incesto e maternidade

The girl mother: incest and maternity

Resumos

Trata-se de um estudo de caso de uma adolescente de quinze anos, vítima de incesto perpetrado pelo padrasto, que teve como consequência sua gravidez e o nascimento de uma criança. O principal objetivo é discutir a reorganização familiar da adolescente, seu silêncio e o de sua família em relação ao abuso sexual. O contexto de pesquisa foi o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) de uma cidade de periferia. O método utilizado foi a observação participante. A organização das informações possibilitou construir Zonas de Sentido que se constituem em indicadores de vulnerabilidade: sua relação com a violência sofrida; sua relação com a família; sua relação com a filha e sua relação com a escola. Nesse caso, o silêncio, o isolamento e a migração para outra cidade foram opções de proteção. O estudo da gravidez nesta circunstância requer uma compreensão particularizada em relação ao estudo de adolescentes grávidas em geral.

incesto; abuso sexual; gravidez na adolescência; violência sexual


This article presents a case study of a fifteen-year-old teenager girl, a victim of incest perpetrated by her stepfather, who became pregnant and gave birth to a child. Our main purpose is to discuss the teenager´s familiar reorganization, the girl's and her family´s silence in relation to the sexual abuse. The Center of Social Assistance (CRAS) in a low-income suburb was the environment of research. The method was the participant observation. From the data obtained we identified four indicators of the adolescent´s vulnerability: her relation to the violence suffered, her relationship with her family, her relationship with her daughter, and her relationship with school. In this case, silence, isolation and the migration to another city were options for the family's self protection. The study of pregnancy in this circunstance requires a particular understanding on pregnant adolescents in general.

incest; sexual abuse; pregnancy in adolescence; sexual violence


TEMÁTICAS DIVERSAS

A menina mãe: incesto e maternidade* * Este texto apresenta uma parte do material de pesquisa da Tese de Doutoramento – A relação de proteção entre mãe e filha no contexto do abuso sexual infanto-juvenil - da primeira autora sob orientação da terceira autora. A segunda autora trabalhou como auxiliar de pesquisa.

The girl mother: incest and maternity

Claudia Aparecida CantelmoI; Thainá Passos CavalcanteII; Liana Fortunato CostaIII

IPsicóloga, Psicodramatista, Mestre em Educação pela Universidade de Brasília; Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura, UnB. SQN 206 Bloco K Apartamento 405, Asa Norte, Brasília/DF. CEP 70844-110.9158 E-mail: cccantel@cnpq.br

IIEstudante do Curso de Psicologia; Universidade Católica de Brasília E-mail: thainacavalcante@yahoo.com.br IIIPsicóloga, Terapeuta Conjugal e Familiar, Psicodramatista; Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo; Docente Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura, UnB E-mail: lianaf@terra.com.br

RESUMO

Trata-se de um estudo de caso de uma adolescente de quinze anos, vítima de incesto perpetrado pelo padrasto, que teve como consequência sua gravidez e o nascimento de uma criança. O principal objetivo é discutir a reorganização familiar da adolescente, seu silêncio e o de sua família em relação ao abuso sexual. O contexto de pesquisa foi o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) de uma cidade de periferia. O método utilizado foi a observação participante. A organização das informações possibilitou construir Zonas de Sentido que se constituem em indicadores de vulnerabilidade: sua relação com a violência sofrida; sua relação com a família; sua relação com a filha e sua relação com a escola. Nesse caso, o silêncio, o isolamento e a migração para outra cidade foram opções de proteção. O estudo da gravidez nesta circunstância requer uma compreensão particularizada em relação ao estudo de adolescentes grávidas em geral.

Palavras-chave: incesto; abuso sexual; gravidez na adolescência; violência sexual.

ABSTRACT

This article presents a case study of a fifteen-year-old teenager girl, a victim of incest perpetrated by her stepfather, who became pregnant and gave birth to a child. Our main purpose is to discuss the teenager´s familiar reorganization, the girl's and her family´s silence in relation to the sexual abuse. The Center of Social Assistance (CRAS) in a low-income suburb was the environment of research. The method was the participant observation. From the data obtained we identified four indicators of the adolescent´s vulnerability: her relation to the violence suffered, her relationship with her family, her relationship with her daughter, and her relationship with school. In this case, silence, isolation and the migration to another city were options for the family's self protection. The study of pregnancy in this circunstance requires a particular understanding on pregnant adolescents in general.

Keywords: incest; sexual abuse; pregnancy in adolescence; sexual violence.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, apresentamos os resultados do estudo de caso de uma adolescente de quinze anos, vítima de incesto perpetrado pelo padrasto, que teve como consequência sua gravidez e o nascimento de uma criança, que estava com quatro meses de idade ao tempo da pesquisa. O acesso a esta adolescente se deu no contexto do oferecimento de Grupo Multifamiliar (GM) em uma instituição de serviço social, e faz parte de uma pesquisa-ação à qual as autoras estão vinculadas. Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa nos moldes da pesquisa-ação referenciada por Barbier (2002). A pesquisa-ação é um método que reúne duas dimensões simultaneamente: o pesquisador é ao mesmo tempo o investigador que se debruça sobre um problema de pesquisa e também o agente de uma ação que busca conhecer as condições da realidade característica do surgimento do problema, para melhor compreender suas facetas e contradições, visando a modificação de aspectos dessa realidade. Em contextos de complexidade, como é o caso da violência intrafamiliar e conjugal, faz-se mister que os métodos mais apropriados sejam os que promovem a fala espontânea dos sujeitos, bem como os que possam apreender os modos de relacionamento frente a situações que favoreçam as interações dos sujeitos envolvidos nos conflitos. O objetivo deste artigo é discutir a reorganização familiar da adolescente, bem como seu silêncio e o de sua família, perante a violência sofrida, compreendendo tal dificuldade como um reflexo da dinâmica familiar e da identificação da adolescente com o papel de mãe.

O INCESTO

"O incesto é o abuso sexual intrafamiliar, com ou sem violência explícita, caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte de um dos membros do grupo e que possui um vínculo parental pelo qual lhe é proibido o matrimônio" (COHEN, 1993, p. 132). Esta definição é interessante, pois vincula uma proibição de natureza sociocultural com a ação violenta. Este ponto nos interessa em particular, pois nossa hipótese é que a observação sobre o silêncio adotado pela adolescente, e os demais membros familiares, revela o impacto da violência sofrida e os recursos que tanto ela como sua família possuem para o enfrentamento da situação.

Gil e Lucas (1998) apontam que os estudos e as intervenções sobre o abuso sexual na adolescência devem receber um enfoque muito particular, pois se revestem do risco de gravidez, o que torna a violência inesquecível, além do que todos podem reconhecer existir de traumático. Não é só o trauma psicológico a ser superado, mas uma criança viva a ser cuidada. Na realidade socioeconômica de pobreza e exclusão de muitas dessas adolescentes vitimizadas e suas famílias, isto represen-ta um acréscimo de despesas que proporciona uma significativa desestabilização material, além da emocional. Estas autoras dizem que o incesto é mais do que o abuso do corpo e, nesse sentido, coincidem com a afirmação de Madanes, Keim e Smelser (1997), para quem o abuso sexual é a violência que atinge a alma.

O texto de Gil e Lucas (1998) é construído a partir de experiência de atendimento em hospital público, o que nos aproxima em nossa experiência com relação ao contexto de pesquisa. Nessas famílias empobrecidas, do ponto de vista socioeconômico, e que dependem unicamente da rede pública de atendimento médico e/ou psicológico, alguns aspectos da sociabilidade e da organização interna da família se destacam. Essas famílias apresentam grandes dificuldades de formalizar denúncia porque esse ato está necessariamente associado a uma mudança nos recursos financeiros em função do possível afastamento do agressor. Também procuram se afastar do local de moradia anterior, empreendendo, muitas vezes, uma migração para outras cidades ou bairros, por sentirem vergonha do ocorrido, ou por não se sentirem suficientemente protegidas de outras agressões. E ainda, não apresentam queixa criminal para o questionamento da violência sofrida, já que não dão um significado à violência ou uma importância. Estes comentários encontram eco em outros autores que vêm se dedicando ao estudo da violência sexual contra crianças e adolescentes em nossa realidade específica: Almeida Prado e Pereira (2008); Costa e Santos (2004); Costa et al. (2008); Habigzang, Koller, Azevedo e Machado (2005); Santos e Dell'Aglio (2008), dentre outros.

Minuchin, Lee e Simon (2008) apontam que a observância da regra de não se ter relações sexuais com crianças e jovens dentro da família surge como uma perspectiva estruturante das relações e consequente visualização clara de limites nas relações intrafamiliares, no exercício de papéis, na regulação dos afetos e expressão da sexualidade. Também Cohen e Gobbetti (2000) indicam a proibição do incesto como um fator de organização familiar. Estes autores defendem a ideia de que existem papéis que são complementares com assimetria de funções, a transgressão com relações sexuais rompendo essa estrutura se caracteriza como perversão.

Afora os sinais de violência física e crueldade, a gravidade das consequências do incesto só pode ser avaliada pelas vivências emocionais, sendo que a duração do tempo da ocorrência do incesto e a qualidade do vínculo entre abusador e criança/adolescente abusado são aspectos importantes para se avaliar o comprometimento emocional com a experiência da violência. Amazarray e Koller (1998) acrescentam que, mesmo que uma criança ou adolescente, vítima de abuso sexual, não apresente sintomas externos ou se esses são de pouca relevância, isto não quer dizer que ela não sofra ou não venha a sofrer com os efeitos dessa experiência.

Outro aspecto importante a ser mencionado sobre o incesto é a dinâmica de manutenção da situação abusiva que se estabelece no contexto familiar, identificada como síndrome do segredo. A síndrome do segredo é um fenômeno que se dá pela composição de diversos fatores, relativos tanto à vítima, à dinâmica familiar, à interação entre vítima e o agressor, e ao ato em si mesmo, configurando-se em uma situação mantenedora de um pacto invisível associado ao silêncio e ao medo da revelação (FURNISS, 1993; MILLER, 1994). Exemplos desses fatores seriam: o medo que a criança ou adolescente sente de ser castigada, desacreditada e não protegida, medo sob ameaça de violência ou castigo para proteger a si mesmo ou alguém (mãe, outro irmão/ã ou o próprio abusador), ou ainda, a ansiedade em relação às consequências da revelação, entre outros. O abuso da criança ou adolescente geralmente permanece um segredo familiar, mesmo depois da revelação, como estratégia para manutenção dos relacionamentos familiares. Essa prática de não falar no assunto impede os membros familiares de refletir e sair da própria realidade concreta e simbólica em que vivem (SCODELARIO, 2002).

ADOLESCÊNCIA E MATERNIDADE

Um texto importante para o propósito que nos interessa discutir é o de Melo (2001), que reconhece e aponta as contradições presentes na gravidez e maternidade de adolescentes. Esta autora inicia dizendo que as experiências sociais e familiares particulares das distintas classes sociais, influenciam diferentemente as várias gestações destas adolescentes, e que adolescentes provenientes de classes de baixa renda, de fato, apresentam maiores prejuízos.

Percebemos que vários autores que vêm estudando gravidez em adolescentes (por exemplo: FÁVERO; MELLO, 1997; GODINHO; SCHELP; PARADA; BERTONCELLO, 2000; LEVANDOWSKI; PICCININI; LOPES, 2008; PANTOJA, 2003; SILVA; TONETE, 2006) iniciam um movimento de ampliar o foco da discussão, apontando não mais como prioridade a questão da gravidez como um problema de saúde pública, mas como um evento que pode ter uma significação muito própria, particular e positiva para a vida da jovem e de sua família.

Além desse aspecto, também fica evidente a impossibilidade de se estudar gravidez neste período da vida sem sua implicação positiva ou negativa no desenvolvimento da escolaridade. Se, por um lado, tem de ser reconhecido o aumento da evasão escolar devido a esse fato (GODINHO et al., 2000), quando as adolescentes abandonam a escola em função das dificuldades surgidas pelo acúmulo de tarefas e responsabilidades que a gestação e o nascimento do bebê trazem, por outro lado, há que se reconhecer os ganhos sociais, familiares e comunitários que essas adolescentes apresentam quando são convidadas a falar sobre as mudanças decorrentes da gravidez, e, aí, a mudança de status social no contexto escolar é apontada (PANTOJA, 2003).

Com este texto, pretendemos contribuir com um conhecimento mais aprofundado da temática de gravidez na adolescência no contexto do incesto, e nas repercussões sociocomunitárias que este evento apresenta, acrescido de uma perspectiva de se compreender o papel da escolaridade neste problema tão complexo.

MÉTODO

Para André (2005), a adoção do estudo de caso ocorre em função de que o objeto de estudo requer que seja estudado de forma particular, como acreditamos seja a situação do abuso sexual de adolescente com a consequência de gravidez.

Contexto

O contexto de pesquisa foi o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) de uma cidade de periferia de grande capital que oferece Grupos Multifamiliares (GM) a crianças, adolescentes e familiares, vítimas de abuso sexual. Esta ação conta com a participação das autoras no atendimento e supervisão dos GMs, que se constitui numa parceria entre a universidade e uma instituição pública de assistência social que viabiliza experimentação de metodologias e oferece oportunidades para a execução de pesquisas. O contato com os participantes ocorre sempre a partir da participação deles em um GM.

Participantes

A adolescente vítima de abuso sexual é Laurinha1 1 Os nomes utilizados são fictícios. (15 anos), que tem um bebê de quatro meses (Amanda), filha de seu padrasto. Os outros membros da família são: a mãe, D. Esmeralda (45) e outras duas filhas, Mariana (17) e Sandra (14). A situação socioeconômica da família é bastante precária, marcada por dificuldades financeiras, migração e rompimentos familiares. A mãe, originária do norte do país, é empregada doméstica e ganha um salário mínimo, assim como a filha mais velha, Mariana, que é babá. A família paga aluguel e mora em um barraco de fundos de três cômodos (quarto, saleta e cozinha conjugada e banheiro). No mesmo lote moram outras três famílias. Há cerca de 11 anos, o pai biológico das adolescentes foi para a capital em busca de emprego. A família o seguiu um tempo depois, porém não mais o encontrou. Mais tarde, dona Esmeralda passou a viver maritalmente com o autor do incesto, durante 7 anos, até a descoberta da gravidez.

Laurinha é uma menina com aparência mignon,condizente com a sua idade de 15 anos, exceto pela imagem materna destoante, pois está sempre com o bebê no colo ou no peito amamentando. Cursou até a 8ª série e teve que abandonar a escola devido à gravidez. A todo tempo demonstra afeto, carinho e cuidado com seu bebê, que não sai do seu colo. Ambas são muito sorridentes e com boa aparência, demonstrando o cuidado e o zelo de mãe, embora com simplicidade. Laurinha nos deixa sempre a impressão de que é competente e adequada na execução de seu papel materno e que tem um forte vínculo com o bebê. Refere-se a ela como um presente na sua vida.

A história do abuso - O padrasto começou a morar com a família quando Laurinha tinha seis anos de idade. Segundo ela, o comportamento dele começou a se diferenciar quando ela tinha treze anos. Ele passou a fazer "brincadeiras sem graça" e ameaçava bater na sua mãe caso ela não cedesse à pressão imposta por ele. Relatou sentir muito medo dele e por isso nunca falou com a mãe que estava sendo sexualmente abusada. Fala com dificuldades da situação, demonstrando não ficar à vontade com o tema. A mãe soube do abuso de Laurinha quando descobriu a gravidez. Com isso, a mãe saiu com as filhas bruscamente de casa e da cidade onde moravam, largando o marido e levando apenas a roupa do corpo. Até o início do GM não tinha havido ainda qualquer denúncia formal por parte da fa-mília. O agressor envia uma quantia para dona Esmeralda a título de colaboração, sem nenhuma obrigação formal, e ele mesmo voltou a residir no nordeste, em seu estado de origem. Essa mudança ocorreu assim que a gravidez foi descoberta.

Instrumentos – Utilizamos a observação participante como um instrumento para apreender as relações informais do pesquisador no campo e poder captar uma variedade de situações que não são obtidas por meio das entrevistas formais. As informações foram registradas no Diário de Campo (MINAYO, 1996). A observação participante foi utilizada como o modo prioritário de obter informações de Laurinha e sua experiência de vida, avaliar sua relação com o bebê e o relato de seu sofrimento. Também utilizamos a entrevista como um facilitador de abertura, de ampliação e de aprofundamento da comunicação, uma vez que, conforme Minayo (1996), aquela se insere como meio de coleta dos fatos relatados pelos participantes, enquanto sujeitos-objetos da pesquisa que vivenciam uma determinada realidade que está sendo focalizada. As entrevistas foram realizadas com Laurinha, sempre com seu bebê ao colo. O objetivo foi conhecer com maior profundidade a situação individual e familiar de Laurinha e seu afastamento da escola. A mãe de Laurinha recusou-se a ser contatada. As pesquisadoras conseguiram conhecer as duas outras irmãs. Todas as informações processadas para análise decorreram dessas anotações.

Procedimentos – O certificado final da aprovação da pesquisa foi emitido no dia 8 de dezembro de 2008 pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília. As observações do GM foram realizadas em cinco sessões ocorridas de maio a setembro de 2008. Após o término do GM, de posse de suas observações, percebemos que não tínhamos informações particularizadas sobre Laurinha que pudessem embasar uma discussão sobre sua situação de menina violentada sexualmente e mãe de um bebê. Dessa forma, decidimos ampliar seu atendimento incluindo novas entrevistas, tendo como principal foco o retorno ao ambiente escolar. As entrevistas foram realizadas em quatro encontros, com duração média de 45 minutos, e ocorreram de outubro a dezembro de 2008. As entrevistas se justificaram, então, com o intuito de aprofundar a compreensão do que nos pareceu ser o mais relevante: por que Laurinha e sua família estão evitando entrar em contato com a situação de violência, e como percebem a ausência da adolescente do ambiente escolar.

Análise das informações – Adotamos a perspectiva de análise de González Rey (2005), que é realizada a partir de indicadores que aparecem nos dados construídos a partir dos instrumentos, nas relações entre esses, bem como em quaisquer das situações e processos formais e/ou informais que constituem o campo da pesquisa e que representem alguma dimensão de sentido presente no estudo. Os indicadores podem ser definidos como elementos ou conjunto de elementos que adquirem significação por meio da interpretação do pesquisador e representam um momento hipotético no processo de produção da informação (GONZÁLEZ REY, 2005). Os indicadores são organizados para a definição de Zonas de Sentidos sobre o problema estudado. As Zonas de Sentido são construções do pesquisador no seu contato com o participante e com o material por ele produzido e sistematizado nos indicadores (GONZÁLEZ REY, 2005).

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Após a organização do material resultante das anotações do Diário de Campo, construímos quatro Zonas de Sentido que evidenciam as maiores preocupações da adolescente no momento, e que consideramos como indicadores de vulnerabilidade: 1) sua relação com a violência sofrida, 2) sua relação com a família, 3) sua relação com a filha e 4) sua relação com a escola.

Sua relação com a violência sofrida: Perdi tudo, mas tenho minha filha!

Em todas as vezes em que Laurinha foi solicitada a falar sobre a ocorrência do abuso e de sua vitimização, ela demonstrou claramente muita ansiedade, levantando-se da cadeira, andando pela sala, balançando mais intensamente a filha no colo ou mudando de assunto. Quando percebia que indiretamente o tema poderia conduzir a essa questão, utilizava-se também dessas estratégias. Por exemplo, ao ser solicitada a falar sobre seus sentimentos em relação ao abandono da escola e a mudança de cidade, Laurinha diz apenas ter perdido bastante "coisas" além do ano letivo, mas quando questionada sobre o que seriam essas perdas ela não soube responder, apenas diz "eu não queria...", "não foi eu que quis assim...", "perdi tanta coisa, que nem sei dizer..." Muda de assunto e se dirige à filha, falando do carinho que tem por ela, abraçando-a e acariciando-a. Essas reações são sinais expressivos de que a experiência de abuso sexual não está elaborada e integrada, ao contrário, é algo que lhe causa incômodo e lhe traz uma diversidade de sentimentos, negativos e ambivalentes, estes últimos relacionados principalmente ao afeto e a alegria de ter uma filha, conforme ela mesma define: Amanda é um "presente em minha vida".

Gil e Lucas (1998) mostram como a questão da gravidez consequente de incesto é um problema complexo com muitas interfaces e que se estendem por anos. Para começar, não há um projeto de maternidade. Os temas decorrentes são muito amplos: incesto, dissolução familiar, manutenção do segredo, sobrevivência material da adolescente com um bebê. Essas autoras relatam um exemplo de uma menina de 13 anos cuja história é semelhante à de Laurinha, recusando-se a falar sobre o caso, trazendo assim uma dimensão em comum com esta nossa experiência de tentar melhor compreender para traçar uma estratégia de ajuda. Gil e Lucas (1998) apontam a quebra do silêncio como a maior dificuldade nestes casos. Williams (2008) testemunhou, em uma conferência, o quanto é difícil levar a criança ou a adolescente a enfrentar o aprofundamento da experiência por meio da fala sobre seu sofrimento. A luta entre a manutenção do segredo e a sua exposição é muito intensa. A literatura também corrobora este ponto, seja em textos da área da psicologia (FURNISS, 1993; MILLER, 1994) ou da área do direito (DIAS, 2007). O papel da família no acolhimento para a revelação do segredo é fundamental.

Podemos compreender a questão da dificuldade de Laurinha em falar sobre a violência sofrida também à luz das considerações apresentadas por Joffily e Costa (2006) em uma pesquisa com adolescentes grávidas institucionalizadas. As autoras mostram como a gravidez para estas adolescentes pode ter outros significados, não necessariamente negativos. Nessa pesquisa as adolescentes haviam sofrido estupros ou violações sexuais provenientes de uma vida na rua. Mesmo assim, consideravam a gravidez como um ganho, pois houve mudanças em sua inserção social, em sua valorização frente a outras pessoas, especialmente em relação ao sistema judiciário, que passa a se interessar de modo mais formal por sua segurança e a de seu bebê, ou seja, há elevação em seu status social. Essa constatação torna a situação bastante delicada, pois indica uma contraposição a todas as avaliações da gravidez na adolescência como algo que representa enormes perdas na vida (LEVANDOWSKI; PICCININI; LOPES, 2008). No caso de Laurinha isso também ocorre, pois sua filha lhe trouxe uma visibilidade e cuidados que não tinha no seu contexto familiar e social: é por causa da gravidez que sua mãe a retira da situação abusiva. Apesar da raiva do padrasto ela diz com orgulho "todos gostam dela... todos ajudam a cuidar dela". Assim, Laurinha, por meio de sua filha, satisfaz sua necessidade de cuidado, afeto e proteção. O significado positivo que Laurinha dá à maternidade e ao vínculo estabelecido com sua filha tem a capacidade de transformar os sentimentos negativos advindos da experiência abusiva, dando-lhe esperanças para um presente e futuro melhor para si com sua família.

Laurinha nega ter sofrido discriminação ou preconceito com a gravidez precoce, mesmo na escola, ou de que alguma coisa nesse sentido tenha ocorrido, afirmando que na escola havia várias outras meninas que passavam pela mesma situação. Nesse sentido, Laurinha aproxima sua experiência com a de outras adolescentes, não vendo diferença em seu processo com o de outras meninas grávidas, desconsiderando a forma abusiva em que se deu sua gestação. Esse aspecto coincide com as observações feitas por Pantoja (2003) em seu estudo etnográfico sobre adolescentes grávidas numa escola pública em Belém. A autora, ao pontuar as regras de aceitação da gravidez no contexto da escola, diz que:

[...] ir à escola sem ter vergonha da barriga, trocar experiências com colegas e professores, ser admirada, receber elogios e, sobretudo, ser homenageada com o chá de bebê compõem os aspectos que marcam o cotidiano dessas meninas na escola, indicativos do valor social que o evento assume nesse universo (PANTOJA, 2003, p. 342).

Essa observação de Pantoja (2003) coincide com as de Joffily e Costa (2006), pois ressalta a identificação positiva da adolescente com a maternidade e a elevação de sua auto-estima. Isso ocorre independentemente da maneira pela qual a gravidez foi concebida, e a despeito da não integração ou elaboração dos aspectos negativos relacionados à essa experiência. Então, é possível vivenciar a gravidez e a maternidade de uma maneira que faça a adolescente tornar-se e sentir-se aceita e respeitável.

Sobre o processo de paternalização, Laurinha fala-nos que esse foi realizado antes mesmo de ela sair do hospital, e contra a sua vontade, além disso, não toma conhecimento do andamento do processo criminal contra o agressor, instalado após o GM. Podemos inferir que, para dona Esmeralda, o ato de requerer legalmente o reconhecimento da paternidade tenha um significado de reparação, ao mesmo tempo em que se utiliza disso como uma forma de ameaça e chantagem junto ao agressor, para que ele mande dinheiro para a família. Faz-se necessário aqui apontar que, tanto Laurinha, quanto seu bebê estão amparados legalmente em seus direitos, que estão assegurados no Capítulo II – Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária do Título II – Dos Direitos Fundamentais, bem como do Capítulo II – Das Medidas Específicas de proteção do Título II – Das Medidas de Proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990). No entanto, para Laurinha, a paternidade legal e o processo contra o agressor não têm o mesmo sentido. Tudo isso a incomoda muito, porém, ela se mantém em silêncio. Todas as tentativas de conversação sobre o processo legal de paternidade terminaram em silêncio. Continua sem falar sobre o que pensa e sente, quer com a mãe , quer a equipe da instituição. As negociações sobre o envio de dinheiro feito pelo padrasto e também sobre o pedido de reconhecimento de paternidade estão sendo conduzidas pela mãe, e Laurinha faz questão de dizer que não sabe informar, nem quer contato com esse assunto. Essa situação denota que Laurinha se mantém na mesma posição de vitimização: silenciada e em sofrimento, presa a uma situação que a ameaça. Essa condição de silenciamento evidencia uma posição muito comentada por autores (ALMEIDA PRADO; PEREIRA, 2008; FURNISS, 1993; SANTOS; DELL'AGLIO, 2008; SILVA; TONETE, 2006) que é a dificuldade dessas adolescentes se expressarem e se sentirem seguras para enfrentarem as acusações, os preconceitos e os desafios de ordem emocional e psíquica, e retomarem seu lugar no espaço social, bem como poderem elevar sua autoestima. Muitas vezes o intenso sofrimento emocional só vai apresentar suas consequências posteriormente, frente à resolução de uma crise evolutiva ou situacional ou frente ao estresse. Dessa forma, as autoras ressaltam que uma criança ou adolescente que sofreu abuso sexual deve ser considerada uma criança em situação de risco. Por essas razões o encaminhamento para um espaço terapêutico no qual ela possa confiar, conversar e requalificar suas opiniões torna-se tão importante.

É necessário avançar na compreensão do que se passa com a família e com a própria Laurinha, porém esbarramos numa parede de silêncio, que nos faz evocar uma possibilidade de culpa por parte da mãe, que não percebeu durante tantos anos o que ocorria, e pelo fato de que ela evitou, e continua evitando, qualquer contato com os membros da equipe da instituição, que também a orientam sobre o processo criminal. Dona Esmeralda disse ter descoberto a investida do marido a partir da gravidez de Laurinha, e até então ,desconhecia completamente o que se passava. Podemos inferir o sofrimento desta mulher porque ela não parece ser uma mãe ausente nem Laurinha ou suas irmãs deram indicação alguma de serem abandonadas ou maltratadas.

Sua relação com a família: Preciso muito da minha família!

Durante todo o processo do GM Laurinha participou apenas com a filha. Justificava a ausência de sua mãe pela necessidade do trabalho. No entanto, suas irmãs também não participaram, mesmo tendo sido convidadas. Esse fato e as observações de sua participação nas entrevistas, vindo à instituição sempre sozinha, nos fizeram considerar a hipótese de que Laurinha deve estar muito só dentro de casa, pois a mãe e a irmã mais velha saem para trabalhar e ela é quem está assumindo todo o trabalho doméstico, abrindo mão de seu papel de filha. Ao longo dos contatos, esta hipótese foi se confirmando aos poucos.

A gravidez certamente a fez amadurecer e exigiu dela comportamentos e iniciativas característicos de uma pessoa mais velha. Laurinha parece uma adulta em miniatura, sempre andando com a filha no colo, uma bolsa com os pertences da menina e um guarda-chuva para proteger o bebê do sol, caracterizando-se mais como uma adulta do que como uma adolescente. No entanto, a família não está preocupada com esta questão, pois se organizou de modo a que Laurinha ficasse em casa e não se disponibilizou para que ela voltasse à escola. Sem dúvida, ela tem as maiores obrigações e responsabilidades com a organização da casa. Mesmo no horário em que sua irmã mais nova não está na escola, no qual as tarefas domésticas poderiam ser mais compartilhadas, Laurinha continua sendo a maior responsável pelos afazeres domésticos. Nos momentos em que visitamos a família as irmãs estavam na rua ou chegando dela . Laurinha muitas vezes também substitui sua irmã mais velha, que trabalha como babá, em seu emprego. Desta feita, justifica essa substituição dizendo que sua irmã "não se dá bem com a mãe dos meninos". Sobre a irmã mais nova, diz que ela tem vários amigos, muita facilidade de socialização, tem sempre pessoas visitando-a em sua casa e ressalta "acho muito legal o jeito como ela faz isso, eu nem sei fazer amigos...".

Embora Laurinha afirme ter com a mãe e as irmãs um relacionamento próximo, ela apenas traz exemplos de cobranças e conflitos com a mãe. Ressalta essa cobrança quando fala "minha mãe sempre diz que sou muito desleixada, que num cuido do bebê direito, num presto atenção no que ela faz, mas quando tô lavando louça num posso olhar pra ela o tempo todo, então deixo ela no chão e vô lavá, depois volto, mas ela sempre mexe nas coisas, olha que nem começou a andar ainda!". Diz não se incomodar com as cobranças da mãe, afirma que tudo isso é feito para o seu bem, tendo em vista que sua mãe é mais experiente que ela, e a está ensinando como cuidar da filha. Fala bastante do relacionamento que sua mãe tem com a neta, diz que "é uma avó muito coruja", "sempre quer cuidar, quer ficar com ela no colo... pede pra eu sair pra que ela cuide". Esses conflitos são indicativos análogos aos apresentados por alguns estudos que sugerem que mães nessas situações vivenciam confusão e ambiguidades diante da situação a qual suas filhas foram submetidas. Os sentimentos em relação à filha podem ser ambivalentes, ao mesmo tempo sentem raiva e ciúmes, assim como culpa por não tê-las protegido (ARAÚJO, 2002). As interações afetivas entre elas podem se dar de forma distante e ambivalente, como ressaltam Padilha e Gomide (2004). Ou podem, conforme Silva e Tonete (2006), se expressar por sentimentos de intensa alegria e prazer no acolhimento à chegada de um bebê na casa, mesmo que seja fruto de uma gravidez indesejada.

O silêncio imperativo na relação entre mãe e filha é outro fator preocupante, evidenciado não apenas pela não denúncia por parte de Laurinha dos abusos recorrentes cometidos pelo padrasto, mas também pelo não compartilhamento de seu incômodo em relação ao processo de reconhecimento de paternidade. Supomos que o sofrimento envolvido em ambas as partes seja imenso, tanto da vítima primária do incesto, Laurinha, como de dona Esmeralda, vítima secundária, como mãe da adolescente abusada pelo padrasto incestuoso e ex-mulher traída. Contudo, mãe e filha não superam o sofrimento vivido na ausência de um relacionamento de maior comunicação e compartilhamento. A família mantém-se presa à síndrome do silêncio, anteriormente mantida pelas ameaças do padrasto, agora por um padrão familiar hierárquico, de pouca comunicação e troca. Se anteriormente essa dinâmica influenciou a manutenção da situação abusiva da qual Laurinha foi vitimizada, no momento ainda abre possibilidades para novas situações de risco que ameaçam o desenvolvimento da família e dos seus membros. Furniss (1993) ressalta que o tabu familiar quanto a falar sobre o abuso sexual, mesmo após a revelação, evita que as vítimas encontrem ajuda dentro ou fora da família.

Sua relação com a filha: Meu bebê é tudo!

Mesmo sendo muito jovem, Laurinha é uma mãe muito dedicada. Ela e a filha têm uma ótima relação de apego e demonstram uma forte ligação afetivoemocional, expressa na maneira com que se tocam e se olham. No GM, mesmo sendo dada a ela a opção de estar nos subgrupos com os outros adolescentes participantes, Laurinha sempre optava em participar do grupo de mães. Na primeira vez isto nos pareceu pertinente, no entanto optamos por insistir em sua participação no grupo com outros adolescentes, por acharmos que isso a beneficiaria, pois a ajudaria a se perceber também como uma adolescente. Esta oportunidade foi bem acolhida por ela, permitindo-lhe expressar em alguns momentos suas necessidades e desejos relativos à sua idade, como ter amigos e retornar à escola, por exemplo.

Por outro lado, é preocupante o temor de Laurinha em falar de sua experiência de abuso sexual, seja pelos fatores afetos à dinâmica familiar, seja pelo receio de que falar sobre isso, e tudo o mais que possa estar associado a essa experiência, como os sentimentos de raiva, vergonha, abandono etc. possa abalar a relação e o amor por sua filha. Estudos atuais têm apresentado uma associação entre a não elaboração e integração da experiência de abuso sexual da mãe com dificuldades na maternagem e na relação de proteção dos filhos (LEIFER; KILBANE; KALICK, 2004). Embora percebamos uma forte atitude protetora de Laurinha para com a filha, a persistência em manter o silêncio sobre o abuso sexual talvez possa se tornar, no futuro, um elemento dificultador na relação de proteção de sua filha, inclusive frente aos riscos de violência sexual. Além disso, Laurinha vive em um contexto de pobreza e com uma rede protetora deficitária (ausência da mãe de casa durante o dia, não presença de figuras masculinas não abusivas, evasão escolar) que a coloca diante de diversos riscos. Os riscos podem estar na própria vizinhança, que observa e sabe de sua condição de mãe adolescente, e estar vulnerável ao assédio de um adulto do mesmo lote onde mora, da ausência de uma figura de proteção masculina que mantenha contato com a família (afinal a família mudou-se de cidade para se afastar dos comentários anteriores), da dependência econômica que se estabeleceu com a mãe, da possibilidade de que as irmãs, por escolarização ou por trabalho, venham auferir benefícios financeiros que Laurinha não poderá alcançar proximamente por ter-se afastado da escola. Giffin (2002) acrescenta que as vulnerabilidades de gênero não podem ser abstraídas das vulnerabilidades decorrentes da pobreza. Percebemos que Laurinha está no meio de um intrincado de fatores que são interdependentes e assim não podemos pensar em sua situação de mãe adolescente isoladamente de sua condição familiar e escolar. Na verdade essa é uma perspectiva que defendemos.

Sua relação com a escola: Ir para a escola é dar um futuro melhor para minha filha!

Laurinha demonstra grande entusiasmo com a possibilidade de voltar a estudar, depositando nos estudos a oportunidade de ter um futuro diferente que o de sua família, tanto a nuclear quanto a família extensa, pois grande parte desta não foi escolarizada e não possui uma profissão formal. Esse entusiasmo nos faz considerar que Laurinha tem um projeto de escolarização e ambição profissional, embora indefinido (tem dúvidas entre ser veterinária ou professora de matemática), mas são elementos importantes para que ela faça planos para o futuro e para que sua evasão escolar não seja definitiva. De acordo com Heilborn et al. (2002), Fávero e Mello (1997) e Godinho et al. (2000), a maternidade na adolescência é, entre outros motivos, um fator importante na evasão temporária e permanente de meninas pobres da escola.

Laurinha tem boas lembranças dos momentos escolares, principalmente os vividos na escola no lugar onde nasceu. O mesmo ocorre com suas participações em peças teatrais, musicais e boas amizades com colegas de classe, relembrando, inclusive, o nome de alguns dos seus professores preferidos, além de devotar a esses seu gosto pela matemática. Não apresenta aspectos ruins relacionados à escola, tampouco experiências desagradáveis, apenas uma ou duas professoras mal-humoradas em todo o seu percurso escolar.

Embora a gravidez e o nascimento de sua filha tenham sido motivos para que Laurinha tenha-se evadido da escola, ela não vê esses aspectos como empecilho futuro para o seu retorno. Acredita que quando isso acontecer, sua família a ajudará cuidando de sua filha para que frequente as aulas. Quando questionada sobre aspectos práticos que poderiam ser impeditivos para a realização desse plano de voltar a estudar, como a rotina da casa e seus afazeres, que hoje são de sua responsabilidade, ela acredita que poderia compartilhar mais com a irmã, no turno contrário ao que esta frequenta a escola. Mas pensa melhor e chega à conclusão de que, apesar da pouca idade, acredita que seria melhor estudar à noite, pois é certo que sua mãe estará em casa e poderá ficar com a criança enquanto estuda, além disso, "a menina já fica amamentada e dormindo, porque se ela tá boazinha até fica, mas se num tá, ela chora muito...". Com esse comentário Laurinha demonstra o quanto se preocupa com sua família, antevendo o que se poderia fazer para facilitar o trabalho que a filha dará. Sabemos que as dificuldades de conciliar as responsabilidades domésticas e maternas com a rotina escolar serão de fato um complicador que pode ameaçar seu retorno e permanência na carreira escolar se, de fato, Laurinha não contar com o apoio familiar.

Ao demonstrar o quanto seria importante para ela voltar à escola, e acreditando mesmo na possibilidade de tal fato se concretizar, em um encontro subsequente, diz ter pesquisado nas escolas próximas de sua casa as que têm aulas no turno noturno, e que oferecem supletivo, pois não quer repetir a sexta série. Recuperar o tempo perdido é o seu desejo. Ao ser questionada sobre o que gostaria de encontrar na futura escola, considerando amigos, relacionamentos afetivos e oportunidades profissionais, ela demonstra sempre muito entusiasmo com o convívio escolar. Contudo, bastante concentrada no que parece ser o seu foco, um "bom futuro profissional", não fala sobre vínculos sociais que poderiam surgir, acredita que estudando no turno noturno vai encontrar pessoas "mais velhas" do que ela, mas isso não parece ser um aspecto ruim. Ela não se preocupa com a perda da convivência em um grupo de pares.

No último encontro, quando lhe foi dada a confirmação sobre a possibilidade de obter seu histórico escolar, proveniente da última escola que frequentara, ela demonstrou estar, de fato, em processo de negociação com a irmã mais nova, em quem confiava para cuidar bem de sua filha enquanto estivesse na escola. Disse que já haviam conversado sobre os horários dos afazeres do lar e sobre os turnos escolares. Já havia planejado com a irmã mais velha a ida à antiga cidade para buscarem pessoalmente seu documento escolar, condição imposta pela instituição, e obedeceria ao prazo de matrícula estabelecido, tendo em vista que já havia pesquisado nas escolas de sua redondeza quais escolas estavam aceitando matrículas e em que turnos, portanto já sabia onde iria estudar no ano letivo de 2009. Laurinha demonstrava estar muito feliz com o "aparecimento" de sua documentação escolar e com a concretização do seu desejo, e com isso a possibilidade de compensar uma das importantes perdas que considera ter tido depois da ocorrência do abuso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, precisamos retomar nosso objetivo de aprofundar a compreensão das razões pelas quais tanto Laurinha quanto sua família estão evitando entrar em contato com a situação de violência, e como as decisões tomadas se revelam como estratégias de enfrentamento que garantam a sobrevivência de todos. Vergonha nos parece ser a razão mais plausível para entendermos a mudança do local de moradia, a saída da escola, a recusa em tomar conhecimento do processo criminal. Como pode uma menina de 13 ou 15 anos enfrentar toda esta realidade que exige dela a participação social em eventos que podem significar exposição pública de seu sofrimento?

O silêncio se configura como um aliado que a recoloca num lugar de proteção, como se nada tivesse acontecido, a não ser pela presença de Amanda. O silêncio também parece ter o mesmo significado para sua família. É preciso considerar, como coloca Miller (1994), que, mesmo que se rompa o silêncio sobre o incesto, dificilmente ele será tema de um centro de conversação, pois envolve muito preconceito que molda uma fala não espontânea e nem fluida. Um aspecto que nos escapa, e que é fruto deste silêncio, é sobre quem foi este padrasto ou o desconhecimento da dinâmica conjugal e/ou familiar na qual a violência foi perpetrada. Este homem fugiu covardemente e, assim, auxilia na manutenção do silêncio, acrescido das ajudas financeiras esporádicas que envia. Bacigualupe (2003) enfatiza a realidade socioeconômica de famílias latinoamericanas de crianças e adolescentes abusadas sexualmente e aponta como há uma extrema submissão das mulheres aos mandos masculinos, por questões culturais e financeiras.

Outro aspecto estudado pelos autores que enfocam a gravidez em adolescentes é quanto às expectativas de futuro destas adolescentes mães: a possibilidade de construir um sonho para realizar, seja como mulher, seja como profissional, e a gravidez como um passo para, tal. Pantoja (2003) e Joffily e Costa (2003) discutem como adolescentes podem ver na gravidez um ensejo de se tornar uma mulher respeitada, pois assim alçam a um papel extremamente valorizado e com status social muito elevado, que é o da maternidade. Por outro lado, os sonhos de construção de um papel profissional parecem ser mais fantasiosos, pois, para isto, necessitam da volta à escola e de grande investimento que não se limita somente a ela mesma. O que nos é permitido perceber é que, na gravidez de uma adolescente vítima de incesto, estes possíveis ganhos encontram-se muito mais distantes e dependentes de outras resoluções anteriores e que, muitas vezes, são de cunho legal. O silêncio, o isolamento, a migração para outras localidades parecem ser opções mais protetoras. Por estas razões pensamos que o estudo da gravidez nesta circunstância necessita de uma compreensão particularizada em relação ao estudo de adolescentes grávidas em geral. Nem mesmo a fantasia de compor uma família, ou de sonhar com um príncipe encantado restará devido à violência sofrida. Mas essa desilusão não é a última palavra, pois como Laurinha mesmo nos ensinou, a motivação para retorno à escola mostra competências para negociar com a família, ou com quem preciso for, os acertos para que o futuro seja visualizado.

NOTA

Recebido em: junho de 2009

Aceito em: março de 2011|

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  • 1
    Os nomes utilizados são fictícios.
  • *
    Este texto apresenta uma parte do material de pesquisa da Tese de Doutoramento – A relação de proteção entre mãe e filha no contexto do abuso sexual infanto-juvenil - da primeira autora sob orientação da terceira autora. A segunda autora trabalhou como auxiliar de pesquisa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2009
    • Aceito
      Mar 2011
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