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A Análise de Discurso em uma pesquisa sobre conjugalidades homossexuais* * Agência de financiamento: CAPES.

The Discourse Analysis in a research on homosexual conjugalities

Resumo

O texto apresenta e discute a utilização da metodologia da Análise do Discurso, em sua vertente francesa, em uma pesquisa sobre a conjugalidade homossexual. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro casais, dois gays e dois lésbicos, e o material coletado foi analisado através da Análise do Discurso. Como resultado, foi possível observar que as conjugalidades analisadas se constituem por meio de uma temporalidade social, e de ações, atos e discursos performativos que, a princípio descontínuos, sedimentam a transição entre a vida do “eu” e a vida do “nós”. Os discursos dos sujeitos no tocante às suas relações afetivo-sexuais, mesmo que previamente atravessados pelas regulações de gênero, sexo e desejo, expressam as muitas e múltiplas possibilidades e especificidades de cada história particular. Constroem-se, desse modo, possibilidades conjugais e de si.

Palavras-chave:
Análise do Discurso; conjugalidades; homossexualidades

Abstract

The text presents and discusses the use of the Discourse Analysis methodology, in its French bias, in a research on homosexual conjugality. Semi-structured interviews were conducted with four couples, two gays and two lesbians, and the collected material was analyzed through Discourse Analysis. As a result, it was possible to observe that the conjugalities analyzed are constituted by a social temporality, and by actions, acts and performative discourses that, at first discontinuous, sediment the transition between the life of the “I” and the life of “we”. The subjects’ discourses regarding their affective-sexual relations, even though previously crossed by the regulations of gender, sex and desire, express the many and multiple possibilities and specificities of each particular history. In this way, conjugal and self-possibilities are built up.

Keywords:
Discourse Analysis; conjugalities; homosexualities

Introdução

O presente texto tem como objetivo apresentar e discutir a utilização da metodologia da Análise do Discurso (doravante AD), em sua vertente francesa, em uma pesquisa sobre conjugalidades homossexuais. Trata-se de apresentação parcial do material coletado na pesquisa de campo durante o mestrado do primeiro autor, que adotou a AD como referencial de análise.

Como justificativa para a publicação do texto, apontamos a necessidade de incentivar o diálogo entre leituras pós-estruturalistas de gênero e sexualidade com a Análise de Discurso.

Para tanto, realizamos uma breve exposição e articulação teórica e em seguida desenvolvemos a análise do corpus coletado. Apresentamos, a partir dos achados na pesquisa de campo, um sujeito generificado em constante transformação, como efeito e agente do discurso, indicando um complexo jogo de verdade de si no exercício da vida a dois.

Gênero, sexo e práticas sexuais: pontos de partida para uma pesquisa sobre conjugalidades

As últimas décadas foram marcadas por transformações sociais, culturais, econômicas, políticas e religiosas, que em maior ou menor grau repercutiram na formação de novas configurações familiares. A conjugalidade e a parentalidade gay e lésbica são exemplos de novas possibilidades de formação familiar, sendo alvo de muitos debates e estudos. Presenciamos um momento em que, no campo político, a admissibilidade desse vínculo no interior da grande categoria família ora é afirmada, ora é negada, e no campo acadêmico produz intenso debate.

No tocante à conjugalidade, um neologismo do francês conjugalité - conceito usado no presente texto para designar as relações afetivas e sexuais estáveis -, a possibilidade dos sujeitos assumirem escolhas sexuais não-hegemônicas tem sido acompanhada pela construção de novas possibilidades de relacionamento. Dentro desse contexto, a conjugalidade - antes restrita ao par homem-mulher - tem progressivamente abarcado as muitas possibilidades de relacionamento afetivo-sexual. A definição de Heilborn (2004HEILBORN, M. L. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004., p. 11) para conjugalidade indica essa mudança progressiva: “[...] uma relação social que condensa um ‘estilo de vida’, fundado em uma dependência mútua e em uma dada modalidade de arranjo cotidiano, mais do que propriamente doméstico”. A autora afirma que essa relação assume a opção por uma determinada gestão da sexualidade. Acrescentamos, como o faz Lopes (2010LOPES, M. “Homens como outros quaisquer”: subjetividade e homoconjugalidade masculina no Brasil e na Argentina. 2010. Tese (Doutorado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2010.), que a conjugalidade contemporânea inclui também uma gestão da afetividade, ou antes, uma exclusividade do afeto, como as conjugalidades investigadas em nossa pesquisa de campo mostraram.

A homoconjugalidade - termo que vem sendo usado para referir-se às relações afetivo-sexuais estáveis entre pessoas do mesmo sexo - é um tema de estudo recente no campo de gênero e sexualidade (MEINERZ, 2011MEINERZ, N. E. Entre mulheres: etnografia sobre relações homoeróticas femininas em segmentos médios urbanos na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.; DEFENDI, 2010DEFENDI, E. L. Homoconjugalidade masculina, revelação e redes sociais: um estudo de caso. 2010. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.; LOPES, 2010LOPES, M. “Homens como outros quaisquer”: subjetividade e homoconjugalidade masculina no Brasil e na Argentina. 2010. Tese (Doutorado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2010.; SILVA, 2008SILVA, A. V. Viver a dois é uma arte? Um estudo antropológico da homoconjugalidade masculina na Região Metropolitana do Recife. 2008. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.; GROSSI; UZIEL; MELLO, 2007GROSSI, M.; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (Org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.; CASTRO, 2007CASTRO, R. B. Amor e ódio em relações ‘conjugays’. In: GROSSI, M.; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (Org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 89-107.; PAIVA, 2007PAIVA, A. C. S. Reserva e invisibilidade: a construção da homoconjugalidade numa perspectiva micropolítica. In: GROSSI, M.; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (Org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 23-46.; MELLO, 2005MELLO, L. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; HEILBORN, 2004HEILBORN, M. L. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.). As variadas homoconjugalidades se inserem em contextos diferenciados e se configuram de acordo com as histórias individuais de seus componentes, dotadas de suas particularidades e singularidades. As homoconjugalidades apresentadas na pesquisa de campo, desse modo, remetem apenas a algumas possibilidades homoconjugais.

Partindo dessas considerações iniciais, nossa pesquisa teve como objetivo investigar os modos como se organizam as conjugalidades homossexuais, tendo como pano de fundo as regulações heterossexuais de gênero e sexualidade. Propusemo-nos a discutir como se dava a gramática conjugal entre pessoas do mesmo sexo em um contexto marcado por forças que, apesar das transformações acima apontadas, ainda demandam uma heterossexualização de suas relações afetivas e sexuais, conforme o histórico das homossexualidades nos autoriza afirmar (LUZ, 2014LUZ, R. R. Conjugalidades possíveis: um estudo sobre relacionamentos homossexuais e suas vicissitudes. 2014. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.; LUZ; GONÇALVES, 2013LUZ, R. R.; GONÇALVES, H. S. Heterossexualização das relações homoafetivas: uma realidade para se alcançar a aceitação? In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO: DESAFIOS ATUAIS DOS FEMINISMOS, 10., 2013, Florianópolis. Anais eletrônicos... Florianópolis: UFSC, 2013. p. 1-12.).

O conceito heteronormatividade, elaborado inicialmente por Warner (1991WARNER, M. Introduction: fear of a Queer Planet. Social Text, North Carolina, n. 29, p. 3-17, 1991. Available in: Available in: https://sgrattan361.qwriting.qc.cuny.edu/files/2010/09/warnerfearofaqueer.pdf . Accessed on: 20 set. 2015.
https://sgrattan361.qwriting.qc.cuny.edu...
), diz respeito a um conjunto de expectativas, valores, prescrições e obrigações resultantes do pressuposto da heterossexualidade como natural. É a norma que constrange os sujeitos a se constituírem e a se definirem como heterossexuais. Miskolci (2009MISKOLCI, R. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, v. 11, n. 21, p. 150-182, 2009. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222009000100008
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) argumenta que heteronormatividade é o nome dado pela teoria queer ao dispositivo de sexualidade, proposto por Foucault (1994aFOUCAULT, M. História da Sexualidade: a vontade de saber. Lisboa: Relógio d’Água, 1994a. v. 1.). Segundo o autor, “o dispositivo de sexualidade tão bem descrito por Foucault em sua gênese ganha, nas análises queer, um nome que esclarece tanto a que ele direciona à ordem social como seus procedimentos neste sentido” (MISKOLCI, 2009MISKOLCI, R. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, v. 11, n. 21, p. 150-182, 2009. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222009000100008
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, p. 156).

No tocante ao conceito gênero, Butler (2012BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 39) postula que o mesmo deve ser pensado dentro do que ela nomeia como “matriz de inteligibilidade”, constituída pelos termos gênero, sexo e desejo sexual/práticas sexuais, cuja organização pode resultar em identidades aceitáveis culturalmente - por exemplo, um homem heterossexual com gênero masculino - e outras não aceitáveis - por exemplo, um homem homossexual que adota o gênero feminino. Não sendo inteligíveis, pois geram descontinuidade ou incoerência, determinados arranjos evidenciam o limite de práticas reguladoras que estabelecem regras coerentes de gênero. Essas regras são caracteristicamente heterossexualizantes à medida que exigem e instauram a oposição masculino x feminino. Nesse sentido, podemos considerar que a lógica binária masculino x feminino, que estabelece a dicotomia homem x mulher, é por definição heteronormativa; portanto, enquadrar o gênero dentro desse binarismo é ignorar a heterossexualidade compulsória subjacente a ele.

Partindo da assertiva de que a matriz de gênero instaura e regula uma coerência entre gênero, sexo e desejo/práticas sexuais com vistas à inteligibilidade de alguns sujeitos e não de outros, acrescentamos que tal matriz também pode ser convocada para pensar a inteligibilidade de algumas relações afetivo-sexuais. Em outros termos, perguntamo-nos como relacionamentos marcados pela diferença podem operar de modo a se enquadrar em padrões de relacionamento inteligíveis. As conjugalidades homossexuais, por exemplo, podem se configurar tendo como referência aquilo que é social e culturalmente inteligível no âmbito da matriz de gênero, sexo e desejo, de modo a se tornarem possíveis, factíveis ou aceitáveis assim como determinadas relações heterossexuais o são.

Concebendo o gênero como uma “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância” (BUTLER, 2012BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 59), a autora questiona quais seriam as possibilidades de repetição que desestabilizam a referida aparência, ou que deslocam os construtos nos quais os gêneros masculino e feminino são mobilizados. Desse modo, os mecanismos de regulação e limitação do gênero, segundo Butler, nunca se esgotariam, ficando sempre em aberto a possibilidade de ruptura com as formas hegemônicas de gênero.

Inspirada nas contribuições de Austin (1975AUSTIN, J. L. How to do things with words. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1975.) a respeito dos atos de fala, entre outros autores, Butler (2012BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., 2009, 2002) apresenta o conceito performatividade, que diz respeito à execução de atos cuja repetição resulta numa ilusória coerência, estabilidade e naturalidade da identidade de gênero.

[…] é claro que essa coerência é desejada, anelada, idealizada, e que essa idealização é um efeito da significação corporal. Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos (BUTLER, 2012BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 194, grifos do autor).

Conforme indica Salih (2012SALIH, S. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.), performatividade fala de um processo, uma repetição de expressões de gênero, sexo e desejo, que com o tempo dão a impressão de substancialidade, como se estas não fossem resultado de regulações normativas que sustentam a matriz de gênero. Performatizar um gênero é comportar-se, agir, pensar e sentir tendo como referência uma determinada possibilidade de gênero; é um meio e um processo de imitação ou atuação com vistas à reafirmação e sedimentação de um gênero que em si é ilusório, não tem substância e que é apenas efeito de regulações normalizadoras. Performatizar, portanto, é imitar uma imitação.

Todavia, o conceito abre a possibilidade de performatividades outras, a saber, aquelas que de algum modo deslocam a imitação, produzindo efeitos subversivos no âmbito da matriz de gênero. É justamente em seu caráter performativo que reside a possibilidade de questionar-se o estatuto coisificado do gênero (BUTLER, 1998BUTLER, J. Actos performativos y constitución del género: un ensayo sobre fenomenología y teoría feminista. Debate Feminista, México, v. 18, p. 296-314, 1998. Disponível em: Disponível em: http://www.debatefeminista.cieg.unam.mx/wp-content/uploads/2016/03/articulos/018_14.pdf . Acesso em: 20 set. 2015.
http://www.debatefeminista.cieg.unam.mx/...
).

Butler (2009BUTLER, J. Performatividad, precariedad y politicas sexuales. Revista de Antropología Iberoamericana, Madri, v. 4, n. 3, 2009, p. 321-336. Disponível em: Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/623/62312914003.pdf . Acesso em: 15 set. 2015.
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) acrescenta que as performatividades podem traduzir ou se reapropriar da linguagem do poder, gerando deslocamentos nas relações de poder. Longe de ser uma ratificação do poder, tal estratégia apontaria para a possibilidade de ação política.

La teoría de la performatividad de género presupone que las normas están actuando sobre nosotros antes de que tengamos la ocasión de actuar, y que cuando actuamos, remarcamos las normas que actúan sobre nosotros, tal vez de una manera nueva o de maneras no esperadas, pero de cualquier forma en relación con las normas que nos preceden y que nos exceden (BUTLER, 2009BUTLER, J. Performatividad, precariedad y politicas sexuales. Revista de Antropología Iberoamericana, Madri, v. 4, n. 3, 2009, p. 321-336. Disponível em: Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/623/62312914003.pdf . Acesso em: 15 set. 2015.
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, p. 333).

Ao pontuar que a performatividade de gênero é exercida com fins de promoção de inteligibilidade - entendendo corpo inteligível como aquele que apresenta inteligibilidade no espaço social e no tempo, obtendo reconhecimento -, Butler (2009BUTLER, J. Performatividad, precariedad y politicas sexuales. Revista de Antropología Iberoamericana, Madri, v. 4, n. 3, 2009, p. 321-336. Disponível em: Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/623/62312914003.pdf . Acesso em: 15 set. 2015.
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) apresenta o conceito de precariedade, que se caracteriza por uma condição de exposição e vulnerabilidade de determinadas populações e de certas formas de subjetivação. Tal conceito pode ser usado para se referir à precária condição de inteligibilidade de sujeitos e corpos que não se adequam à matriz de gênero heterossexual e cuja sobrevivência simbólica não é por isso garantida. Estando à margem das possibilidades de reprodução da condição de sujeito inteligível, estas vidas seriam consideradas, em outros termos, dispensáveis uma vez que se trataria de vidas menos humanas.

¿Cómo llamamos a aquellos que ni aparecen como sujetos ni pueden aparecer como tales en el discurso hegemónico? Me da la impresión de que hay normas sexuales y de género que de una o otra forma condicionan qué y quién será ‘reconocible’ y qué y quién no; y debemos ser capaces de tener en cuenta esta diferente localización de la ‘reconocibilidad’.

Parece que debemos hacer esto para comprender aquellas formas vivientes de género, por ejemplo, que están poco reconocidas o que permanecen no reconocidas precisamente porque existen en los límites de la comprensión del corpo e incluso de persona. ¿Hay formas de sexualidad para las cuales no hay vocabulario adecuado, precisamente porque las lógicas de poder que determinan cómo pensamos sobre el deseo, la orientación, los actos sexuales y los placeres no admiten ciertas formas de sexualidad? (BUTLER, 2009BUTLER, J. Performatividad, precariedad y politicas sexuales. Revista de Antropología Iberoamericana, Madri, v. 4, n. 3, 2009, p. 321-336. Disponível em: Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/623/62312914003.pdf . Acesso em: 15 set. 2015.
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, p. 324).

A autora aponta que a performatividade subversiva é aquela exercida contra a precariedade. Em outros termos, ao usarem a mesma linguagem do poder que as oprime, deslocando-a e criando novas linguagens, certas expressões de sexo, sexualidade e gênero podem se aproximar dos modos de reprodução da condição de sujeito inteligível, ao mesmo tempo em que desestabilizam tais modos. Nas palavras da autora, isto significa “traducir al lenguaje dominante, pero no para ratificar su poder, sino para ponerlo en evidencia y resistir a su violencia diaria y para encontrar el lenguaje a través del cual reivindicar los derechos a los que uno no tiene todavía derecho” (BUTLER, 2009BUTLER, J. Performatividad, precariedad y politicas sexuales. Revista de Antropología Iberoamericana, Madri, v. 4, n. 3, 2009, p. 321-336. Disponível em: Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/623/62312914003.pdf . Acesso em: 15 set. 2015.
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, p. 332).

A conjugalidade gay e lésbica deve ser analisada sob o entendimento de que ela se apresenta - ou é apresentada - como diferença no contexto heteronormativo, que estabelece/supõe as relações como heterossexuais. Esta percepção da diferença pelos próprios parceiros nos leva a pensar não somente nos atravessamentos da heteronormatividade em suas relações, mas também em como se dá sua manutenção, levando-se em conta, evidentemente, especificidades de gênero, classe e raça/etnia. Em relação ao gênero, e partindo da contribuição de Butler sobre a formulação da matriz de inteligibilidade, perguntamo-nos, no referido contexto, como se constituem as conjugalidades gay e lésbica, em que medida estas operam com vistas a algum grau de coerência entre gênero, sexo e práticas sexuais, e em que medida se afastam dessa matriz, produzindo subversões. Trata-se, desse modo, de investigar a gramática das relações afetivo-sexuais a partir de seus atravessamentos de gênero, sexo e desejo. Indo um pouco além, perguntamo-nos se é possível investigar não apenas como esses sujeitos veem seu relacionamento, mas como se veem nele. A permanência de um arranjo inteligível, de um sistema de coerência entre gênero, sexo e desejo, assim como a heterossexualidade compulsória implícita nesse sistema, pode produzir efeitos de subjetivação que engendram modos particulares de relação afetivo-sexual, como também de cuidados de si. Nesse sentido, o conceito de cuidado de si (FOUCAULT, 1994bFOUCAULT, M. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Lisboa: Relógio d’Água, 1994b. v. 2., 2004FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade (1984). In: MOTTA, M. B. (Org.). Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. Coleção Ditos & Escritos, v. 5, p. 264-287.) também se mostra útil como analisador, pois permite pensar os efeitos de subjetivação do referido arranjo a partir do próprio sujeito, além de deixar em aberto a possibilidade de reafirmação e/ou subversão das normas.

Análise do Discurso e gênero: aproximações e diálogos

Nosso interesse na pesquisa não consistiu em analisar propriamente os processos normalizadores, mas sim o discurso; ou antes, investigar, por meio da análise de seus discursos, como operam os sujeitos generificados nos referidos processos; se haveria, no interior da prática da intimidade e da conjugalidade, mediante performatividades e artes do cuidado de si, permanências e/ou rupturas. Em outros termos, tratou-se de investigar, na manutenção da conjugalidade homossexual no âmbito da matriz de gênero, os limites e as possibilidades de criatividade do sujeito. A metodologia de pesquisa de campo, desse modo, foi pensada com o intuito de apreender as micropolíticas homoconjugais para, a partir delas, propor o esboço de uma análise macropolítica.

Mediante essas considerações, a pesquisa de campo consistiu em um estudo de caráter exploratório, com realização de entrevistas semiestruturadas. O conjunto pesquisado foi composto de sujeitos que estavam em algum relacionamento homossexual, independentemente de haver coabitação. Em relação ao tamanho do conjunto, ficou estabelecido o contato com quatro casais, dois gays e dois lésbicos, a partir dos dezoito anos. Para elaboração das entrevistas, foram elencados eixos temáticos de acordo com as discussões desenvolvidas na exposição teórica e na pesquisa bibliográfica. As perguntas foram elaboradas a partir desses eixos e aperfeiçoadas ao longo das entrevistas. A análise do material adotou como referência a metodologia da AD.

Conforme estabelecem Mazzola (2009MAZZOLA, R. B. Análise do Discurso: um campo de reformulações. In: MILANEZ, N.; SANTOS, J. J. (Org.) Análise do Discurso: sujeito, lugares e olhares. São Carlos, SP: Claraluz, 2009. p. 7-16.) e Fernandes (2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.), a AD, em sua vertente francesa, emergiu no final da década de 1960 em uma conjuntura de crises. Entre essas, destacamos a revisão da Linguística em sua vertente estruturalista. Diversos estudiosos, entre eles Michel Pêcheux, começaram a apontar que a língua não era um sistema fechado e coletivo que bastava a si só, como pressupunha o estruturalismo francês. Para melhor compreendê-la, era necessário considerar a inscrição do sujeito, do social e do histórico nas estruturas linguísticas.

Sob influência das teorias foucaultiana e marxista, entre outras, Pêcheux (2012PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012., 2009) argumenta que as palavras podem assumir sentidos variados, dependendo da época, do lugar e de quem as profere. Desse modo, a interpretação de um texto não se bastava em sua sucinta descrição, como pressupunha a Linguística estruturalista; era importante considerar seus aspectos sociais, históricos e ideológicos. Em sua crítica, o autor afirma:

[...] toda descrição [...] está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro [...]. Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série [...] de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de discurso (PÊCHEUX, 2012PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012., p. 53).

Desse modo, inaugura-se uma Teoria do Discurso (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2009.), disciplina separada da Linguística1 1 Pêcheux frisa que essa separação não é consensual. Para fim de argumentação, o autor aponta o desenvolvimento da referida teoria já no interior da Linguística a partir de suas contradições. e que estabelece uma diferença fundamental entre linguagem e discurso. Enquanto a primeira remete ao arcabouço ou estrutura do enunciado, o segundo remete aos efeitos de sentido que ele pode assumir.

Em sua apresentação da AD, Fernandes (2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008., p. 13-15) esclarece:

[...] dizemos que o discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente linguística. Referimo-nos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas. [...] o discurso não é a lingua(gem) em si, mas precisa dela para ter existência material e/ou real.

O estudo do discurso toma a língua materializada em forma de texto, forma linguístico-histórica, tendo o discurso como objeto. A análise destina-se a evidenciar os sentidos do discurso tendo em vista suas condições sócio-históricas e ideológicas de produção.

Se a AD objetiva entender os sentidos de um discurso, logo, trata também de investigar porque um discurso é um e não outro, quais as condições de produção ou emergência de um e não de outro. Nas palavras de Pêcheux (2012PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012., p. 44), trata-se de entender “a presença de não-ditos no interior do que é dito”. Ademais, a AD permite apontar as aparentes contradições no interior do que é dito; se o dito expressa aquilo que remete à esfera do sócio-histórico, expressa também as contradições desta.

Portanto, segundo a AD, falar de práticas linguageiras é também falar de práticas sociais. Tal relação, aparentemente intrínseca, é reafirmada por Fernandes (2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008., p. 47):

Ao efetuarmos referência às práticas discursivas, referimos, também, a práticas sociais, visto que o discurso envolve condições histórico-sociais de produção. Essa observação torna oportuno refletir sobre as condições de produção dos discursos que incluem o contexto sócio-histórico e ideológico, incluindo, igualmente, as condições de produção de bens materiais e a (re)produção das próprias condições de produção.

Pelo exposto, depreende-se que discurso é entendido não como língua, texto ou fala, mas como um conteúdo exterior à estrutura linguística - mas que necessita dela para ter existência material - e que remete a questões não de ordem estritamente linguística, mas de ordem sócio-histórica. O discurso é o objeto de estudo da AD2 2 Ao discutir sujeito e ideologia, Pêcheux argumenta que o sistema linguístico não é neutro ou indiferente em relação ao discurso, sendo mais do que uma estrutura de base imutável. Esta assertiva remete às transformações próprias da AD. Em sua primeira época, prevaleceu a noção de maquinaria discursivo-estrutural, na qual o discurso era concebido como homogêneo e fechado em si e a língua como base invariável sobre a qual se desdobrariam os processos discursivos. O sujeito, neste período da AD, é entendido como assujeitado à maquinaria discursiva. Em um segundo período, a inclusão de conceitos como formação discursiva, de Foucault, e efeito de sentido, de Pêcheux, apontam para a necessidade de revisão e reformulação do arcabouço teórico da AD, o que culminou em um terceiro período, caracterizado pela desconstrução da noção de maquinaria discursiva fechada, de neutralidade e indiferença da linguagem e de assujeitamento do sujeito (MAZZOLA, 2009; FERNANDES, 2008). A discussão sobre a concepção de sujeito na AD é aprofundada adiante. (FERNANDES, 2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.).

O sujeito e seu discurso, sob a perspectiva da AD, não são apenas singulares como também apontam para a ordem do coletivo, do político. À vista disso, a leitura do texto/discurso deve dar-se em paralelo com a leitura do (con)texto no qual o primeiro se insere, o que significa, entre outras coisas, considerar todo o processo de desenvolvimento da pesquisa de campo, antes e depois dos contatos com os sujeitos, voltar-se à literatura especializada e rever as interpretações ou hipóteses levantadas.

O sentido ou efeito de sentido diz respeito à variedade de significados que um termo ou vários termos podem assumir, dependendo de quem, onde e quando os profere. Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2009., p. 146) afirma:

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe ‘em si mesmo’ [...], mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas) (grifo do autor).

Os termos conjugalidade e casamento, por exemplo, assumem sentidos variados entre os sujeitos entrevistados em nossa pesquisa, conforme mostrado adiante. Estas variações apontam para inserções socioculturais diferentes e, por extensão, experiências afetivas e sexuais, de relacionamento e de gênero também diferentes.

Os conceitos a seguir, também utilizados em AD, serão apresentados por sua utilidade enquanto ferramenta de análise na pesquisa e de leitura do sujeito falante.

O conceito de formação discursiva, apresentado por Foucault (1987FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.) em seu livro A arqueologia do saber, remete a um conjunto de regras anônimas e de práticas sociais que, no tempo e no espaço, definem as funções e condições de exercício da função enunciativa. Em outros termos, a formação discursiva envolve um complexo sistema de enunciados submetidos a estratégias variadas de enunciação; permite, desse modo, investigar a possibilidade de um discurso, ou como e porque um enunciado obtém espaço em um lugar e uma época específica, ou como e porque, por exemplo, determinados enunciados alcançam o status de ciência e outros não (CASTRO, 2009CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.; FERNANDES, 2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.; ARAÚJO, 2007ARAÚJO, I. L. Formação discursiva como conceito chave para a arqueogenealogia de Foucault. Revista Aulas [Dossiê: Foucault], Campinas, n. 3, p. 1-24, 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/aulas/article/view/1924/1385 . Acesso em: 22 set. 2015.
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).

Os enunciados, termo também apropriado pela AD a partir de contribuições foucaultianas, remetem aos elementos integrantes das unidades discursivas e cuja regularidade aponta para a existência de uma ou várias formações discursivas (FERNANDES, 2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.).

O termo interdiscurso ou interdiscursividade se refere ao entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de diferentes tempos e espaços, no interior de uma formação discursiva (FERNANDES, 2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.). Conforme sugere Foucault (1987FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.), um discurso é constituído de enunciados que o antecedem e o sucedem, de modo que uma formação discursiva abriga elementos não necessariamente concordantes, assim como uma formação pode ser atravessada ou constituída por elementos de outras. Por conseguinte, os efeitos de sentido dos enunciados podem ser variados, dependendo de sua organização e apropriação, o que sugere, segundo Pêcheux (2012PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012.), a dessubjetivação da linguagem uma vez que o sentido de um texto não pode ser declarado a priori pelo seu autor.

Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2009.) argumenta que é próprio da formação discursiva dissimular, no efeito de sentido dos enunciados, a possibilidade de contradição interdiscursiva e a historicidade dos enunciados, gerando a ilusão de que o interdiscurso seria o discurso do sujeito. Em algumas discussões sobre a noção de casamento na pesquisa de campo, apareceram enunciados contraditórios sobre o ato de casar, que, não obstante, ainda atendiam a uma ideia geral - e tradicional - de casamento. Um exemplo, discutido adiante, é a fala de Fernanda, que num primeiro momento afirmou já se considerar casada, mas num segundo momento conclui que a oficialização da união é necessária para reafirmar, objetiva e subjetivamente, seu status de casada. Diferentes enunciados, mesmo que aparentemente destoantes, operam sob a égide da interdiscursividade de modo a referendar uma mesma categoria, no caso, a categoria casamento, que não é originária de Fernanda, mas é (re)produzida como sua.

Outro importante conceito de Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2009.) é o intradiscurso ou discurso-transverso, entendido como o funcionamento do discurso com relação a si mesmo. Nas palavras do autor: “[...] o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de ‘co-referência’ que garantem aquilo que se pode chamar o ‘fio do discurso’, enquanto discurso de um sujeito” (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2009., p. 153, grifos do autor).

Em outros termos, o intradiscurso remete à aparente condução ou coerência de um discurso. Esta coerência, segundo o autor, seria garantida e caracterizada pelo estabelecimento de elementos interdiscursivos como pré-existentes ou pré-construídos. A articulação desses conceitos no interior de uma análise do discurso leva Pêcheux a elaborar uma importante reflexão sobre a constituição do sujeito. O intradiscurso - o fio do discurso - opera de modo a dissimular o interdiscurso, que passa a ser apropriado pelo sujeito - um efeito do intradiscurso - como seu. Este, por sua vez, para garantir sua condição de sujeito falante, tende a dissimular o interdiscurso no interior do intradiscurso. Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2009., p. 154-155, grifos do autor) afirma:

[...] o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita. Nesse sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto ‘fio do discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do exterior’. E o caráter da forma-sujeito [...] consistirá precisamente em reverter a determinação: diremos que a forma-sujeito (pela qual o ‘sujeito do discurso’ se identifica com a formação discursiva que o constitui) tende a absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro ‘já-dito’ do intra-discurso, no qual ele se articula por ‘co-referência’. Parece-nos, nessas condições, que se pode caracterizar a forma-sujeito como realizando a incorporação-dissimulação dos elementos do interdiscurso: a unidade (imaginária) do sujeito, sua identidade presente-passada-futura encontra aqui um de seus fundamentos.

Em outro trecho de sua obra, Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2009., p. 150, grifos do autor) afirma:

[...] a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso [...] que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso como do próprio sujeito.

Por esse motivo, o autor afirma que, para pensar uma teoria do discurso, não se deve considerar o sujeito como possuidor de uma natureza prévia, mas como um sujeito-efeito. Todo e qualquer ato originário do sujeito seria, na verdade, efeito da determinação do interdiscurso como intradiscurso. A identificação do sujeito com o outro do discurso - termo usado por Pêcheux para referir-se à esfera histórico-social - é também uma identificação com ele mesmo.

Não obstante, se o discurso abriga contradições, o sujeito também as expressa e (re)produz. Fernandes (2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.) argumenta que é através dos discursos materializados na e pela língua que é possível vislumbrar os deslocamentos, movências e a pluralidade constitutiva do sujeito. Analisar um discurso requer desvelar as contradições que asseguram a aparente coerência dos discursos e práticas dos sujeitos.

Em toda e qualquer formação discursiva, as contradições representam uma coerência visto que desvelam elementos exteriores à materialidade linguística, mas inerentes à constitutividade dos discursos e dos sujeitos. Os sujeitos são marcados por inscrições ideológicas e são atravessados por discursos de outros sujeitos, com os quais se unem, e dos quais se diferenciam (FERNANDES, 2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008., p. 56).

Ademais, como a estrutura do discurso é aberta e instável, passível de reestruturações, devido às muitas e múltiplas possibilidades de (re)organização dos enunciados e seus efeitos de sentido, o sujeito também o é. As identificações com o discurso sugerem possibilidades variadas. Pêcheux (2012PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012., p. 56-57, grifo do autor) argumenta:

Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho [...] de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma ‘infelicidade’ no sentido performativo do termo - isto é, no caso, por um ‘erro de pessoa’, isto é, sobre o outro, objeto da identificação.

Podemos destacar algumas afinidades das proposições de Pêcheux com as de Foucault e Butler, em especial no aspecto performativo do discurso e do sujeito. Este, enquanto efeito de processos discursivos, opera de modo a (re)produzir o discurso, podendo também deslocá-lo. Do mesmo modo, o discurso abriga possibilidades de (re)apropriação à medida que os enunciados podem tornar-se sempre outros, assumir efeitos de sentido variados, mesmo que sob um regime de materialidade repetível.

Podemos depreender, pela leitura desses diferentes autores, que o sujeito e o discurso são performativos uma vez que a (re)produção é constitutiva e também iterável. As práticas e discursos dos sujeitos no tocante às suas relações afetivo-sexuais, portanto, mesmo que previamente determinadas ou atravessadas pelas linhas e regulações de gênero, sexo e desejo, estão abertas às muitas e múltiplas possibilidades e especificidades de cada história particular. Uma análise de suas falas sobre as histórias a dois, nesse sentido, requer uma postura que não considere tais histórias como reproduções acríticas ou subversões a priori das regulações de gênero, sexo e desejo; antes, envolve a compreensão de que as histórias conjugais apontam para o jogo de verdade do sujeito enquanto complexa relação - eventualmente, permeada de contradições - com as referidas regulações. Constroem-se, desse modo, possibilidades de si e conjugais.

Outros conceitos em AD ressaltam o aspecto plural do sujeito e seu discurso. Entre eles estão os conceitos de dialogismo e polifonia, originários de Mikhail Bakhtin. Enquanto o primeiro se refere a uma condição constitutiva da linguagem - o estabelecimento de relações entre o eu e o outro nos processos discursivos, podendo gerar efeitos no eu e no outro -, o segundo remete à presença de diferentes discursos/vozes apropriados pelo sujeito. O dialogismo, em outros termos, é um dispositivo discursivo a ser operado pelo sujeito polifônico. O conceito de heterogeneidade, originário de Jacqueline Authier-Revuz e que condensa os dois conceitos anteriores, sugere a constituição plural e diversificada do sujeito em sua relação com o discurso. A heterogeneidade se divide em constitutiva, na qual a presença do outro é velada, e mostrada, na qual a presença do outro é explicitada pelo sujeito, seja por citações diretas ou indiretas (FERNANDES, 2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.).

A leitura do corpus obtido em nossa pesquisa de campo recorreu aos pressupostos básicos da AD, aqui apresentados, de modo a utilizá-los como ferramentas metodológicas de análise. Primeiramente, foi realizada a transcrição das entrevistas, seguida de leituras flutuantes do corpus e, ao final, de leituras profundas, caracterizadas pela separação do material em recortes ou fragmentos que tivessem relação com o todo que constitui o material e com os objetivos da pesquisa. Por último, os recortes foram analisados em diálogo com as reflexões teóricas desenvolvidas.

As conjugalidades falam: o sujeito e o discurso em transformação

Rebeca3 3 Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a confidencialidade. possui 20 anos, estuda Administração e mora com a mãe na Tijuca, e Joana, 23, veio de uma cidade do interior e hoje divide o apartamento em Botafogo com seus dois irmãos, que vieram, assim como ela, para cursar uma faculdade.

No discurso do casal, em especial no de Joana, percebe-se uma aparente indefinição da orientação afetivo-sexual, se hetero ou bissexual.

Joana: Eu acho que sim. É uma coisa que é difícil pra mim definir isso. Foi difícil por eu só ter ficado com a Rebeca efetivamente. Eu tive três namorados antes de conhecer ela. E sempre tive bem com homens, assim, não foi uma coisa de ‘Ai, faltava alguma coisa’. Só que eu acho que com todo esse processo de eu vir pro Rio e conhecer coisas novas e começar a abrir a minha cabeça, eu comecei a ter curiosidade. E, enfim, conheci a Rebeca e me apaixonei e tudo, então, ser hetero já era uma coisa que tava excluída. Não era. Só que eu hoje, tando com ela, eu sinto atração por outros homens e por outras mulheres numa medida que é mais ou menos equilibrada, assim... Sabe? Então, não sei... Eu me considero bi hoje.

Consideramos importante retomar a discussão de Butler (2012BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) a respeito da matriz de gênero e da performatividade e de Foucault (2011FOUCAULT, M. História da sexualidade: o cuidado de si. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011. v. 3.) a respeito do cuidado de si. A mudança para o Rio de Janeiro permitiu a Joana vivenciar experiências que antes não eram visadas. A variada rede de sociabilidade que ela desenvolveu e que incluía o contato com o diferente e o novo, além da relativa liberdade sexual, permitiu a Joana repensar seu lugar na trama dos desejos. Ela não apenas ressignificou seu passado, no que diz respeito à sua sexualidade, como também se permitiu acionar performatividades outras - como frequentar “lugares alternativos” e “escolher ficar com uma menina”, como dissera em entrevista. Tais performatividades apontam para um trabalho de si, um experimentar que, não sem tensões, deixa ao largo a necessidade de definições e categorizações.

O não enquadramento em uma categoria aponta para certa liberdade no exercício da sexualidade e do afeto, em cujo horizonte se visualiza, todavia, um aparente mal estar. No caso de Joana, não é o ato de promover um deslocamento na matriz de gênero que lhe causa desconforto; ela não se incomoda em ser ou estar bissexual. É a não categorização, a não definição que, embora represente liberdade, parece inquietá-la. A partir de Butler (2012BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.), consideramos que, se a inserção na matriz de gênero resulta em inteligibilidade de si e da relação com outro, é de esperar que o sujeito que desloca tal matriz esteja, de alguma forma, às voltas com isso. Esse é o caso de Joana, que a todo o momento, durante a situação de entrevista, coloca a questão de se definir sexualmente ao mesmo tempo em que deixa, à primeira vista, o ato de se definir em suspenso.

Podemos depreender que o discurso de Joana é dotado de uma interdiscursividade sobre a “metafísica ser/não ser” - termo cunhado por Paiva (2007PAIVA, A. C. S. Reserva e invisibilidade: a construção da homoconjugalidade numa perspectiva micropolítica. In: GROSSI, M.; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (Org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 23-46., p. 28) -, que ela mesma tenta desvelar. E um dos efeitos de sentido possíveis desse (re)arranjo discursivo em torno da referida metafísica - o efeito de sentido diante de quem entrevista, observa e analisa - é a percepção de uma relativa busca por inteligibilidade, sendo esta resultante da (re)organização dos elementos da matriz de gênero. Nesse sentido, quando ela afirma que “contar um pouco de como foi pra mim é ampliar as formas de ser”, é possível que esteja usando o discurso como meio de ampliar as formas de ser não somente dos outros, mas das suas próprias.

O caso de Joana evidencia que um discurso pode ser dotado de heterogeneidades, nas quais diferentes enunciados, de formações discursivas variadas, encontram-se tentando formar um todo coerente. Com isso, deslocamentos inesperados acontecem durante a interação. Na pergunta sobre a atualidade da relação, por exemplo, o assunto que vem à tona é sobre como a indefinição ou transitoriedade da orientação afetivo-sexual se torna motivo de surpresas e inseguranças no exercício da intimidade e de um projeto conjugal. Em outros termos, essa indefinição é acionada como o elemento chave para discutir o futuro do casal.

Joana: Eu acho que eu passei um pouco por isso e acho que agora tá ficando mais tranquilo. Desde o início essa questão de ‘eu sou bi’, ‘eu não sou bi’. ‘Será que é isso mesmo que eu quero?’ Acho que mais pra ela [Rebeca] entender isso em mim, acho que foi difícil pra [...] entender, assim. Por muito tempo. Volta e meia surgia esse assunto de ‘Será que você quer mesmo estar comigo? Será que na real você...’ Eu acho que no início foi, inclusive, uma das relutâncias dela querer estar comigo. ‘Será que é isso? Será que você não vai encher o saco e querer voltar a estar com um homem?’ Mas... E acho que por muito tempo isso permeia um pouco.

Rebeca, por sua vez, também não tem uma palavra final a respeito de sua orientação, embora isso não pareça inquietá-la na mesma intensidade que Joana. Quando perguntada se se considerava lésbica, respondeu: “Não. Eu me considero vivendo.” Joana riu e disse que nunca ouvira tal definição e que, quando se conheceram, Rebeca teria se identificado como “bi quase lésbica”.

O casal conta que, quando se conheceram, Rebeca teria iniciado um relacionamento “fechado” com uma jovem de outro Estado, mas que depois passou para “aberto”. A partir daí, a relação entre as duas se resumiu a idas e vindas, indecisões e receios. Somente após o término de Rebeca, elas passaram a se considerar em relação de “namoro”. Elas pontuaram que, de início, acordaram em viver um relacionamento “aberto”, que logo assumiu a configuração “fechado” por conta dos ciúmes tanto em relação a homens quanto a mulheres. Como vemos na história da relação, a flexibilidade da orientação sexual se torna o elemento chave para decisões sobre a manutenção do relacionamento e a promoção de sua inteligibilidade.

Fernanda possui 24 anos e Bruna, 29. Elas cursam uma faculdade e coabitam em um apartamento da zona norte do Rio de Janeiro há aproximadamente um ano.

Para esse casal, uma das questões centrais é o dilema em se considerarem ou não família. A máxima proferida por Fernanda “às vezes eu considero [casada], às vezes não considero” resume um longo discurso que abriga aspectos próprios de uma noção tradicional - e, portanto, heteronormativa - de família, que parecem determinar sua autorização em se definir “casada”. Todavia, o jogo de Fernanda quanto à verdade de sua relação conjugal, sua nomeação, não se resume a determinações. Percebe-se um movimento de ir e vir, um (des)encontro de diferentes discursos que ora autorizam seu status de casada e a condição de família, ora desautorizam. Esse (des)encontro permeia enunciados sobre independência financeira e filiação, que estariam entre os motivos que legitimariam ou definiriam uma relação como casamento e família. Esses enunciados, por sua vez, remetem à imagem da família tradicional, da qual a família de origem de Fernanda se aproxima.

Fernanda: Eu tenho umas viagens assim, que eu pego um pouco dos meus pais ou avós o que seria um casamento, não por ser homoafetivo ou não, mas por conta dos meus pais terem se mudado juntos, e na verdade meus pais só se casaram depois, quando eu tinha uns cinco anos, mas eles se mudaram juntos depois quando os dois já estavam meio que encaminhados na vida, com trabalho e tal. E a gente começou a morar junto quando estávamos entrando na faculdade. Não sei. Eu ainda dependo financeiramente dos meus pais. Ela depende financeiramente do avô e tal... Então, pra mim isso não deveria pesar, mas isso pesa, em considerar casado ou não.

Acrescenta-se a esse dilema a questão da inteligibilidade da relação pelo entorno, especialmente familiares. O casal comenta que, eventualmente, é referido como “duas amigas que moram juntas”.

Bruna: Especificamente no caso de mulheres tem uma invisibilidade, né. Você vê dois homens tocando um no ombro do outro e a vizinhança toda já fala: ‘ah é um casal’. A gente, sei lá, sai na rua e se abraça, e tem gente aqui no prédio que jura que a gente é irmã ou amiga, qualquer coisa. Tem gente que já entrou aqui, porteiro, síndico, viu a cama de casal e sei lá...

Fernanda: Jura que a gente é amiga.

Entrevistador: Não querem ver que vocês são um casal.

Fernanda: É.

Bruna: É.

Fernanda: E não é porque a gente esconde nada não.

Por conseguinte, o casal considera que a oficialização da união assumiria um lugar estratégico. Enquanto no casal heterossexual a família chancela a relação, no casal homossexual é o próprio que precisa impor sua realidade, sua facticidade, “dizer na cara de pau” para as famílias, como diz Bruna.

Fernanda: Eu acho que essa é uma razão principal para eu não me considerar casada. Porque casada, pra mim, seria o dia em que eu pudesse oficializar isso, sem que... podendo dizer isso na cara de pau para minha família sem que isso tivesse nenhum [pausa] constrangimento para mim. Obviamente teria constrangimentos afetivos de qualquer forma. Mas a minha família de origem na verdade é muito tranquila. Só que, eu acho que é muito diferente que você está namorando uma pessoa do mesmo sexo, você dizer que está morando junto com uma pessoa do mesmo sexo, e você dizer que você está casando com uma pessoa do mesmo sexo para sua família. Eu acho que é diferente.

[...]

Bruna: Tem uma ideia para as famílias de que, eu acho, o casamento seria uma coisa definitiva. Namoro: ‘ah não, é uma fase, vai passar’. Morar junto: ‘ah tá morando junto, é jovem’. Agora o casamento forçaria as pessoas a falarem, abordarem o assunto, e daria uma sensação pra elas de permanência, que seria um pouco chocante.

Nesse sentido, o enunciado “nós nos casamos”, por exemplo, poderia gerar efeitos de sentido que conferissem uma imagem de estabilidade ou permanência da relação, o que poderia repercutir em sua inteligibilidade ou, como frisou Fernanda, num choque por parte dos familiares. Tal choque remete a um efeito de sentido contrário, a saber, o entendimento, por parte dos familiares, de que a imagem de duas mulheres casadas “no papel” representa um ato de subversão da matriz de gênero. Tanto a inteligibilidade quanto a precariedade, desse modo, estariam entre as possibilidades do “casal casado”. Todavia, no decorrer da entrevista, está implícita a influência da mãe de Fernanda na dinâmica do casal por meio de conselhos, conversas entre ela e a nora e os presentes, como o “nosso primeiro colchão”. Desse modo, diante do fato de que a mãe se relaciona com o casal enquanto casal - e não como duas “amigas” -, vemos que os discursos que circulam entre elas, mesmo com suas ressalvas e dificuldades, apontam para efeitos de sentido rumo a uma inteligibilidade da relação de casamento.

Sob a perspectiva da AD, podemos considerar que o material interdiscursivo apresentado pelo casal, em especial por Fernanda, ora reafirma a imagem da família tradicional, ora negocia essa mesma imagem de acordo com as trajetórias individuais e conjugais. No entanto, esse (des)encontro de enunciados ganha coerência no discurso enquanto um todo. O intradiscurso, ou a aparente coerência do discurso, apenas oculta a heterogeneidade própria à constituição da subjetividade. Fernanda, de modo notável, apropria-se de determinadas referências conjugais e familiares porque estas dizem respeito à sua história individual, ao mesmo tempo em que as negocia, reformula e submete às reavaliações que faz em seu projeto de uma vida a dois. Pela via da conjugalidade, nota-se um sujeito não apenas como efeito de seus arranjos discursivos, mas também como um sujeito em transformação, que se reapropria da linguagem do poder não para ratificá-lo, mas para garantir uma vida a dois cuja inteligibilidade nem sempre é garantida.

Marcelo, 44 anos, é professor. Maurício, 31, é cabeleireiro e maquiador. Eles moram juntos há aproximadamente seis anos e oficializaram a união uma semana antes da entrevista.

Nesse casal, uma questão importante é a inserção da relação homossexual no seio familiar de Marcelo. Apesar da dificuldade de aceitação da relação levar a uma série de cuidados e reservas por parte dos familiares, em especial a mãe de Marcelo, a relação entre Maurício e os familiares e filhos do marido é pacífica e respeitosa.

Marcelo: Ao mesmo tempo que ela acolhe, ela abraça, a minha mãe tem aquela coisa. Quando eu falei com ela que eu dei entrada no casamento ela ficou assim, na dela. Ela falou assim: ‘meu filho, só não vou na festa, cerimônia, se tiver, porque você sabe o que a gente pensa né? Mas assim, vocês são bem vindos todos os dias aqui. A hora que vocês quiserem vir. E podem continuar a vir todo domingo aqui, lanchar com a gente e tal. É uma alegria pra gente.’

[...]

Maurício: Porque a gente nunca sabe o que pode acontecer no dia seguinte. Os filhos dele são pessoas maravilhosas hoje, mas amanhã não sei o que pode acontecer, sei lá. E com o papel em mãos e a lei do meu lado, eu me sinto mais seguro.

O aparente conflito da mãe de Marcelo no tocante à relação homossexual do filho - ou, como Marcelo chama, essa “divisão incrível” - sugere um (des)encontro de diferentes discursos e representações de homossexualidade e relação homossexual, ou como certa expressão homoerótica se torna razoavelmente factível, compreensível ou aceitável quando revestida pelo manto da família e da conjugalidade supostamente monogâmica e estável. A matriz de inteligibilidade se evidencia na problemática da conjugalidade homossexual na medida em que esta é reconfigurada pelo casal e seu entorno de modo a incluir a relação na rede familiar. O casamento civil é apresentado como uma das táticas acionadas pelo casal para operar coerentemente na matriz. Quando perguntados sobre qual nome davam à relação, responderam prontamente “casamento”, termo que constroem a seu modo, sempre sob uma estética da coerência.

Não obstante, é na discussão dos acordos sexuais que o casal evidencia um estilo de vida a dois que procura, a um só tempo, reafirmar e subverter normas sexuais, operar a matriz de gênero de acordo com os interesses e desejos do casal e com as exigências do contexto. Práticas como o uso constante da camisinha entre o casal e a relativa liberdade para encontros extraconjugais tem sua visibilidade administrada a partir de uma separação arbitrária entre o público e o privado, o “lá fora” e o “aqui dentro”, nas palavras de Marcelo.

Marcelo: A gente transa com camisinha. Você pode falar assim, ‘mas vocês tem AIDS?’ Não. Nós dois já fizemos exames, até recentemente, os dois são soronegativos. Mas sabe o que eu penso em relação a isso? Primeiro, eu não sou santo. O Maurício também não é santo. Eu prefiro um marido que se transar lá fora, não vai me deixar doente aqui dentro. A fazer de conta que meu marido nunca poderá transar lá fora e eu estou totalmente protegido aqui dentro. A mesma coisa o contrário. Eu prefiro que a gente use camisinha, e eu também, não é uma preferência minha, porque vamos supor que eu fiquei doido por um cara ali: ‘caraca, tô apaixonado por esse cara agora, vou pegar esse cara agora.’ Entre aspas tá, não é amor não. Tesão. Em dez minutos damos um trepada que ferra a vida dos dois? Não.

O gerenciamento da visibilidade de tais práticas, ou a fluidez da divisão entre público e privado, ocorre de acordo com a natureza do público. Nesse sentido, é estratégico que, para as famílias de origem e para a militância, a díade conjugal seja referida possuindo configuração “fechada”, contendo exclusividade tanto afetiva quanto sexual. No entanto, a depender do entorno, “não tem esse negócio de que tem que ser um casamentozinho”, como afirma Marcelo em certo momento da entrevista.

Entrevistador: Vocês se consideram dentro de um relacionamento fechado?

Marcelo: Olha, eu diria pra você assim... publicamente falando, eu não diria o que eu vou dizer pra você agora [...]. Nós somos uma relação fechada no seguinte sentido, a gente não transaria com amigos nossos, jamais. Agora se você me perguntar assim, vocês já foram pra uma sauna? Sim. Transaram só vocês dois? Não. Já transamos com outros caras também. Sabe o que acontece quando a gente volta? A gente volta pensando assim: ‘cara, que bom que a gente tem um ao outro, que nada daquilo que a gente fez hoje significa tudo que a gente significa um para o outro.’ É impressionante, reforça o nosso amor. Agora, se você perguntar assim, qual é a frequência? Vou dizer pra você que tem meses, talvez... acho que foi no início do ano a última vez que a gente foi na sauna, não foi?

Maurício: Não, vamos lá, a gente já foi talvez umas quatro vezes. [...] Poderia ter ido mais. Mas talvez por falta de interesse mesmo.

Ao longo da entrevista, o casal apresenta enunciados com sentidos variados sobre conjugalidade e casamento de acordo com o entorno: ora advogam o modelo tradicional, monogâmico, no qual as trocas sexuais são exclusivas, ora aproximam sua relação de modelos conjugais ditos modernos, marcados pela separação entre sexo e afeto ou fidelidade e lealdade (SILVA, 2008SILVA, A. V. Viver a dois é uma arte? Um estudo antropológico da homoconjugalidade masculina na Região Metropolitana do Recife. 2008. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.; PAIVA, 2007PAIVA, A. C. S. Reserva e invisibilidade: a construção da homoconjugalidade numa perspectiva micropolítica. In: GROSSI, M.; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (Org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 23-46.; HEILBORN, 2004HEILBORN, M. L. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.). Há uma negociação de acordos internos, especialmente sexuais, seguida de um gerenciamento da visibilidade desses acordos. Certas condutas sexuais, ao se afastarem de modelos hegemônicos de conjugalidade, inclusive homossexuais, poderiam colocar em questão a legitimidade moral da relação. Deslegitimada moralmente, poderia não ser mais vista como uma relação conjugal.

Nesse sentido, o discurso do casal sobre suas práticas sexuais é performativo no sentido de que há uma (re)produção - constitutiva e ao mesmo tempo mutável - de modelos de conjugalidade de acordo com as demandas e expectativas do entorno. Formações discursivas variadas são acionadas e interseccionadas, gerando efeitos de sentido variados de acordo com o tempo e o lugar.

É fato que muitas das regras estabelecidas pelo casal acabam por reduzir consideravelmente as possibilidades de trocas sexuais alheias. Desse modo, embora Marcelo e Maurício tenham afirmado que tais trocas não lhes faziam falta, supõe-se que esta conjugalidade - que estabelece uma divisão entre a vida privada e ordenada do lar e os encontros furtivos, rápidos e anônimos, possíveis apenas nos eventuais furos ou buracos de uma rotina conjugal - se configura sob uma relativa e contraditória estética da liberdade, que consiste em “ganhar de um lado e perder de outro”, como afirmou o casal seguinte, constituído por Pedro e Lucimar.

Pedro possui 43 anos e é analista de suporte. Lucimar, 38 anos, é professor. Eles coabitam há treze anos, morando atualmente em uma comunidade não pacificada do Rio de Janeiro. Oficializaram a união poucos meses antes da entrevista.

Ao longo da entrevista, Pedro e Lucimar listam alguns princípios que definem uma relação como conjugal, por exemplo, transparência e cumplicidade. Durante a narrativa da história da relação, o casal destaca que viver a dois envolveu um longo aprendizado que consistiu em uma passagem “do eu para o nós”. Essa passagem envolve, acima de tudo, a assunção do hábito de tomar decisões mediante consulta e consideração à opinião do outro. Para Pedro e Lucimar, estar casado é pensar sempre em nome do casal.

Pedro: ...o olhar de, de dividir é uma coisa [...]. Viver junto. É uma coisa que eu sempre digo, eu aprendi a dizer ‘nós’. Porque era minha casa sempre. ‘Ah Lucimar, quando eu tiver a minha casa...’ Ele falou: ‘não vai ser nossa, não?’ ‘Não, vai ser minha casa e sua.’ Entendeu? Então eu tive que aprender a dizer ‘nós’, a dividir, ‘não gostei disso, vamos levar?’ Quando eu pegava, ele falava. Eu tive que aprender a ver o olhar dele, depois eu tive que aprender a perguntar. Depois eu tive que aprender que nós dois temos o mesmo olhar da coisa, e falar: ‘O que você achou? Eu gostei. Não, eu não gostei disso, a gente pode fazer assim.’ Mas a minha grande mudança foi do ‘eu’ para o ‘nós’.

Todavia, a conjugalidade, ou a passagem “do eu para o nós”, não se constrói sem tensões. Fica claro, nesse ponto, o desencontro entre a conjugalidade e a individualidade, discutido na pesquisa de Heilborn (2004HEILBORN, M. L. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.) e no qual viver uma vida a dois envolve ganhos e também perdas.

Esse processo de “ganhar de um lado e perder de outro” está presente em todos os aspectos da relação de Pedro e Lucimar, desde as decisões na rotina diária, acirrando-se nos acordos e práticas sexuais. Nesse ponto, o intradiscurso do casal - tanto no diálogo entre os cônjuges durante a situação de entrevista quanto nas respostas dirigidas ao entrevistador - falha na sua função de fio do discurso, apresentando furos no tocante à cumplicidade e transparência, princípios que, como sugerido anteriormente, são caros à dupla conjugal.

De modo mais notável que no casal anterior, o jogo discursivo entre Pedro e Lucimar envolve “negociações de palavra e silêncio, abrir as cartas e fazer segredo” (PAIVA, 2007PAIVA, A. C. S. Reserva e invisibilidade: a construção da homoconjugalidade numa perspectiva micropolítica. In: GROSSI, M.; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (Org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 23-46., p. 37). As práticas sexuais, mesmo acordadas e abertas, estão permeadas de penumbras que, curiosamente, parecem sustentar a relação. Parece ser melhor que não se saiba de tudo, que não se fale de tudo, que as coisas permaneçam ditas pela metade, para que a relação conjugal se mantenha. Em outros termos, os aparentes furos do discurso, paradoxalmente, procuram manter a sobrevivência da relação conjugal. E a maneira evasiva, bem humorada e despretensiosa de contar algumas histórias durante a entrevista aparece como uma forma de reduzir a tensão que a narrativa pode trazer.

Pedro: Tinha [na festa] um rapaz que hoje ele é casado [...] beijei [o rapaz] muito, beijei, beijei, e todo mundo sabia que eu era casado. O [amigo na festa] me perguntou, ‘o que você vai fazer?’ ‘Quando eu chegar em casa eu vou falar com o Lucimar.’

Entrevistador: Como você recebeu isso, Lucimar?

Lucimar: Você não disse que tinha beijado muito não, que tinha beijado só uma vez [risos].

Pedro: Para, eu falei que tinha beijado o rapaz.

Lucimar: Eu fiquei puto, mas eu gosto dele. Eu perguntei se o rapaz não seria mais visto [risos].

Pedro: Porque eu conto, tudo que eu tivesse que fazer seria aberto. Rolou isso, como assim, a gente já teve uma situação de falar, ‘vamos fazer a três?’ E ele ‘não. Mas não.’ ‘Então tá.’ [...] Nós temos cumplicidade, então eu não vou fazer uma coisa e não falar com ele. Eu tinha o desejo de transar a três [...] Uma coisa que nós descobríssemos, se ele não quer, a vontade ainda está, mas tá guardada em algum lugar.

Entrevistador: E o que você [Lucimar] acha disso?

Lucimar: Ah, é aquele negócio, você... assim, a liberdade você vai ter pra fazer, agora é aquele negócio você também sabe que... pode não ser uma boa recepção. Quando eu souber. Você arrisca, mas...

Entrevistador: Deixa eu ver se entendi. Você sabe que você não vai receber bem uma notícia de, por exemplo, ele dizer que ficou com outra pessoa...

Lucimar: Não, eu não sei como eu vou receber.

Entrevistador: Mas você...

Lucimar: Não, eu não gosto.

Entrevistador: Eu entendi, mas... Eu estou colocando o que está me parecendo, você, é provável que você não receba bem a notícia, mas você respeita a liberdade dele, é isso?

Lucimar: [resposta assertiva não verbal]

Entrevistador: Certo. E você [Pedro]?

Pedro: Eu não posso esquecer as minhas fantasias [risos].

Todavia, o casal frisa que procura, na medida do possível, “satisfazer suas fantasias”. Entra em cena, novamente, o processo de “ganhar de um lado e perder de outro”, definidor da conjugalidade, segundo Pedro e Lucimar.

A comparação entre as entrevistas permite algumas reflexões, a começar pelas diferenças no conteúdo apresentado e desenvolvido pelos entrevistados. Por exemplo, os acordos e práticas sexuais dos casais de mulheres não se destacam como nos casais de homens, indicando certa reserva em falar do assunto.

Nesse ponto, cabe apresentar a contribuição de Meinerz (2011MEINERZ, N. E. Entre mulheres: etnografia sobre relações homoeróticas femininas em segmentos médios urbanos na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.) ao estudo da conjugalidade lésbica. Em sua pesquisa sobre casais de mulheres na cidade de Porto Alegre, Meinerz (2011MEINERZ, N. E. Entre mulheres: etnografia sobre relações homoeróticas femininas em segmentos médios urbanos na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011., p. 26) pondera os silêncios, ausências e discrições sobre a homossexualidade feminina na literatura especializada, podendo ser entendidos “como um indicador de que as ferramentas teóricas construídas nas últimas décadas foram menos operativas para compreender as relações sexuais e afetivas estabelecidas entre mulheres”. Desse modo, a autora se propõe a ampliar o escopo conceitual e metodológico de modo a incluir as relações que tentam escapar de categorizações já sedimentadas, como a de homossexualidade. Tal proposta acaba por colocar em discussão, de um lado, análises das relações entre mulheres que assumem polaridades próprias das relações entre homens, tomando-os como referência. Em outros termos, a autora questiona a dicotomia sexo x afeto, levantada por autores como Heilborn (2004HEILBORN, M. L. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.) para explicar as conjugalidades gays e lésbicas. Segundo esta última, o casal de mulheres, diferentemente do de homens, estaria mais próximo do eixo afeto em detrimento do sexo. Meinerz (2011MEINERZ, N. E. Entre mulheres: etnografia sobre relações homoeróticas femininas em segmentos médios urbanos na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011., p. 25) argumenta que

[…] a referência ao investimento afetivo não desvaloriza a dimensão erótica da relação. Pelo contrário, a valorização do estabelecimento de vínculos afetivos é significada pelas mulheres como condição privilegiada para o desenvolvimento qualitativo das relações sexuais. As parcerias homoeróticas femininas possibilitam, assim, um rompimento com a dicotomia sexo x afeto pressuposta em diversas análises sobre relações heterossexuais e homoeróticas masculinas.

Nesse aspecto, a invisibilidade e intraduzibilidade das experiências homoeróticas femininas estariam relacionadas a uma dificuldade de colocá-las no nível do discurso, do factível, do inteligível. A homossexualidade feminina seria incompreensível justamente porque dela não se fala. Por um lado, expressões e desejos homoeróticos femininos careceriam de referenciais simbólicos, o que refletiria um impedimento ao reconhecimento e legitimidade social e cultural; por outro, encontrariam relativa liberdade em meio a esta não nomeação, embora não escapem do dispositivo de sexualidade, estando, portanto, em constante luta com os processos de normalização. Meinerz (2011MEINERZ, N. E. Entre mulheres: etnografia sobre relações homoeróticas femininas em segmentos médios urbanos na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.), todavia, acrescenta que o silêncio em torno da homossexualidade feminina é relativo e possui certa engenhosidade. O gerenciamento da visibilidade do homoerotismo feminino, portanto, ocorreria de modos específicos, distanciados das formas de gerenciamento da visibilidade do homoerotismo masculino.

Desse modo, as diferenças no tocante à instrumentalização da visibilidade apontam que homens e mulheres atualizam através de seus discursos seus lugares sociais, expectativas e performatividades de gênero, sexo e desejo. Tal fato aponta para o desafio de criar ferramentas conceituais e metodológicas específicas para pesquisas com casais homossexuais masculinos e femininos.

Outra diferença que merece destaque é a centralidade da identidade para os casais analisados. Para os casais de homens, a definição e estabilização da orientação afetivo-sexual são anteriores e determinantes da conjugalidade. Marcelo, por exemplo, conta que, durante seu casamento heterossexual, faltava uma “afetividade homo”, a sua “afetividade genuína”. Assumir-se “100% gay”, como ele diz, foi condição para o estabelecimento de uma parceria estável com outro homem. Pedro, da mesma forma, narra que o desejo durante a juventude de frequentar grupos de discussão sobre homossexualidade, de “estar entre os iguais”, possibilitaria a liberdade de viver a sexualidade e, quem sabe, estabelecer parcerias conjugais.

Ademais, nos dois casais de homens, que também se diferenciam dos casais de mulheres no aspecto geracional, notamos que a identidade homossexual se estabelece dentro de um contexto marcado pela epidemia do HIV/AIDS, conforme explicitado em diferentes momentos da entrevista. Nesse sentido, o discurso em torno da centralidade da identidade para a manutenção da conjugalidade homossexual masculina se apoia em determinada produção sócio-histórica das práticas afetivas e sexuais entre homens pós-epidemia HIV/AIDS.

Para as mulheres, a orientação afetivo-sexual não é determinante, apresentando-se eventualmente no discurso como ponto de tensão ou incerteza no projeto conjugal. Esse ponto de tensão ou incerteza não remete à qualidade da relação conjugal e sim ao jogo de verdade da relação para o entorno, à produção de sua inteligibilidade.

Considerações finais

As histórias conjugais aqui apresentadas evidenciam a complexidade de sua manutenção sob as regulações da matriz de gênero. Em outros termos, sob a ótica da matriz heterossexual, os casais operam sua existência de modo aparentemente ambíguo, contraditório, fato que sugere a prática de negociações e renegociações de suas possibilidades existenciais através de um diálogo com o que é determinado em termos de gênero, sexo e desejo. Conforme argumenta Fernandes (2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.), os sujeitos são atravessados pelos discursos de outros sujeitos, com os quais se unem e dos quais se diferenciam. Há possibilidades, ainda que paradoxais, de reorganização dos enunciados e seus efeitos de sentido, disputas discursivas que representam a busca por uma nova ordem discursiva que torne inteligíveis certas relações conjugais. Nas palavras de um dos entrevistados: ganha-se de um lado, perde-se de outro.

Trata-se de um gerenciamento da relação pela via do discurso, gerando deslocamentos na matriz de gênero que, não obstante, visam incluir esses casais. Nesse gerenciamento, o casamento civil, mesmo que entendido como ação prática de garantia de direitos, mostra-se como tática necessária em prol da inteligibilidade e redução da precariedade. Concomitantemente, tudo que diga respeito à intimidade do casal, inclusive o desejo, é negociado quanto à sua visibilidade ou não, sua possibilidade ou não, suas implicações em termos de inteligibilidade e aceitação. Tal negociação, no entanto, não ocorre sem tensões.

Podemos considerar que, assim como o gênero, o sexo e o desejo, as conjugalidades analisadas se constituem por meio de uma temporalidade social, de uma frequência de ações, atos e discursos performativos que, se a princípio descontínuos, terminam por sedimentar a passagem de uma vida do “eu” para uma vida do “nós”, como explicitado por Pedro quando se referia ao longo processo de aprender a viver a dois. Mesmo preservando suas individualidades e liberdades, os casais parecem cientes de que precisam responder enquanto casal para o entorno. É o meio que garante e legitima a condição do “nós”, reafirmando possibilidades restritas de organização de gênero, sexo e desejo/práticas sexuais.

Não obstante, essas possibilidades no âmbito de uma estética da conjugalidade reforçam a tese de que a matriz de inteligibilidade é por definição instável. Embora a matriz remeta à inteligibilidade de algumas relações afetivo-sexuais e não de outras, ou como algumas relações, mesmo que marcadas pela diferença, operem de modo a referendá-la, é importante considerar que subversão e reiteração caminham de mãos dadas, numa complexa e contraditória relação. Conforme postulado na análise da bibliografia recente de estudos sobre as homossexualidades (LUZ, 2014LUZ, R. R. Conjugalidades possíveis: um estudo sobre relacionamentos homossexuais e suas vicissitudes. 2014. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.), a conjugalidade homossexual, mesmo que revestida pelo manto normativo do casamento, continuaria representando um lugar de desencontros, de deslocamentos no âmbito da matriz de característica heteronormativa. Tratar-se-ia, ainda assim, de um lugar de diferença.

A análise de discurso, desse modo, mostrou-se um referencial metodológico potente por explicitar a complexidade dos sujeitos em seus discursos, que revelam trajetórias singulares no âmbito das relações de poder que produzem e tensionam possibilidades de gênero e sexualidade.

As homoconjugalidades aqui apresentadas, entendidas como um espaço de construção de uma estética conjugal que elenca a liberdade como um de seus aspectos centrais, produzem discursos que abarcam possibilidades variadas e aparentemente excludentes ou contraditórias. As heterogeneidades dos discursos, ora constitutivas, ora mostradas, falam de um jogo de verdade da relação conjugal e de si mesmo, falam de dilemas, embates e desafios de promover inteligibilidade da relação conjugal. Há uma interseção entre formações discursivas variadas, que apresentam versões inclusive antagônicas de conjugalidade. Todavia, ao serem reapropriadas dessa forma, tais formações geram efeitos de sentido específicos ao contexto sociocultural dos entrevistados.

Ademais, percebe-se uma necessidade de falar sobre a relação, na qual o próprio falar potencializa os efeitos de sentido. Conceder entrevista para a pesquisa, enquanto forma de militância - conforme justificado pelos sujeitos -, é um ato performativo que reafirma a existência conjugal mediante a função dialógico-constitutiva do discurso. Em outros termos, a produção discursiva da conjugalidade é um meio de promoção de sua inteligibilidade.

Os casais apresentados vivem no horizonte das recentes transformações da conjugalidade, da intimidade, da família e dos rearranjos da matriz de gênero, sexo e desejo. É compreensível, portanto, que seus discursos sejam polifônicos, abriguem interdiscursividades variadas, produzam efeitos de sentido aparentemente contraditórios. Os discursos são complexos porque abrigam passado e presente, transformações macro e micropolíticas, movências no sujeito e em suas possibilidades de relacionamento afetivo e sexual. As estéticas conjugais e seus discursos estão sempre em transformação.

Referências

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  • *
    Agência de financiamento: CAPES.
  • 1
    Pêcheux frisa que essa separação não é consensual. Para fim de argumentação, o autor aponta o desenvolvimento da referida teoria já no interior da Linguística a partir de suas contradições.
  • 2
    Ao discutir sujeito e ideologia, Pêcheux argumenta que o sistema linguístico não é neutro ou indiferente em relação ao discurso, sendo mais do que uma estrutura de base imutável. Esta assertiva remete às transformações próprias da AD. Em sua primeira época, prevaleceu a noção de maquinaria discursivo-estrutural, na qual o discurso era concebido como homogêneo e fechado em si e a língua como base invariável sobre a qual se desdobrariam os processos discursivos. O sujeito, neste período da AD, é entendido como assujeitado à maquinaria discursiva. Em um segundo período, a inclusão de conceitos como formação discursiva, de Foucault, e efeito de sentido, de Pêcheux, apontam para a necessidade de revisão e reformulação do arcabouço teórico da AD, o que culminou em um terceiro período, caracterizado pela desconstrução da noção de maquinaria discursiva fechada, de neutralidade e indiferença da linguagem e de assujeitamento do sujeito (MAZZOLA, 2009MAZZOLA, R. B. Análise do Discurso: um campo de reformulações. In: MILANEZ, N.; SANTOS, J. J. (Org.) Análise do Discurso: sujeito, lugares e olhares. São Carlos, SP: Claraluz, 2009. p. 7-16.; FERNANDES, 2008FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.). A discussão sobre a concepção de sujeito na AD é aprofundada adiante.
  • 3
    Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a confidencialidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2015
  • Aceito
    01 Dez 2017
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