Resumo
Diante do cenário de crises e mudanças socioambientais, o objetivo é: (a) indicar a uma epistemologia ancorada na lente ecofeminista para entender as relações humanas e as relações com o ambiente em certo contexto social; (b) propor uma cosmovisão segundo a abordagem aqui denominada ecopsicossocial com base na compatibilidade e na complementaridade. A partir de uma pesquisa em andamento, cujo estudo de caso são as mulheres nas comunidades de pesca na região de Arraial do Cabo/RJ, o artigo apresenta uma revisão de documentos relativos à atividade, e análise qualitativa de depoimentos das mulheres da pesca no documentário Ardentia. Considerados os sentimentos e as ações das pescadoras - que, paulatinamente ultrapassam suas limitações na ação cotidiana e na reflexão constante sobre seu papel - conclui-se que o fazer feminino se articula na superação, na renovação e na reapropriação de um sentido que está sendo reinventado por elas: o lugar da mulher na pesca.
Palavras-chave:
ecopsicossocial; ecofeminismo; comunidade; pesca artesanal; Arraial do Cabo
Abstract
In view of the current scenery of crises and socioenvironmental changes, the goal is: (a) to indicate an epistemology anchored in the ecofeminist lens to understand human relationships and relationships with the environment in a certain social context; (b) to propose a worldview according to the approach here called na ecopsychosocial based on compatibility and complementarity. Based on an ongoing research, whose case studies are women in artisanal fishing communities in the region of “Arraial do Cabo/RJ”, the article presents a review of documents related to the activity, and qualitative analysis of the documentary “Ardentia”. Taken into account the feelings and actions of the fisherwomen - who gradually overcome their limitations through daily action and constant reflection about their role - the conclusion is that this feminine activity is overcoming, renewing, reappropriating and completely redefining women´s place in the fishing scenario .
Keywords:
Ecopsychosocial; ecofeminism; community; artisanal fishing; Arraial do Cabo
Introdução
Com a mudança climática e o esgotamento dos recursos naturais, parece que o planeta chegou a um impasse: é como se a conexão entre humanos e a Terra fosse interrompida. Como sintoma visível desta desconexão, ocorreu o esgotamento de formas tradicionais de viver e compartilhar um mundo comum com o aumento dos desastres ambientais e dos deslocamentos populacionais. Só que os danos não são iguais para todos: por exemplo, mulheres e crianças têm 14 vezes mais chances de morrer do que homens durante um desastre ambiental.1 1 Dados do relatório da United Nations International Strategy for Disaster Reduction de 2012 (UNISDR, 2013).
Tratando-se de movimentos sociais quanto a alternativas ecológicas, de políticas de conservação da biodiversidade, de processos de pesquisa e experiências em face das perspectivas da mudança climática, as questões ambientais estão na encruzilhada de múltiplas dimensões da vida social e subjetiva, o que torna urgente repensá-las oferecendo propostas amplas e inventivas da incorporação humana em um mundo material que possibilite a existência de uma multiplicidade de formas de vida.
As abordagens acadêmicas trazem três conjuntos de decisões: a ontologia, que é a questão do que existe, o que deve ser estudado, e qual é a natureza básica do que é estudado; a epistemologia, ou seja, a questão do que podemos saber e como alcançar esse conhecimento; e a metodologia, que são as etapas concretas e técnicas que permitem a realização de uma análise. As ontologias, as epistemologias e as metodologias têm implicações fundamentais para a forma como as agendas de investigação são reunidas, o que é considerado importante pesquisar, e como os estudos são conduzidos.
O objetivo deste artigo é pensar a adoção de uma possível epistemologia ancorada pela lente ecofeminista para entender as relações humanas e as relações com o ambiente em certo contexto social. Isto, numa abordagem que poderia ser denominada ecopsicossocial inspirada pelas diversas abordagens ecofeministas que buscam cultivar uma consciência genealógica do entrelaçamento entre os processos de feminização, racionalização e privatização da natureza, como também prever arranjos que interrompam a distinção ocidental moderna entre atores humanos e um mundo natural passivo e manipulável privado de relevância política. Diante da incontestável crise ambiental, esta perspectiva pode contribuir para apontar alternativas de mudanças voltadas ao que as ecofeministas chamavam de Reclaim, que se pode traduzir como reivindicar, reapropriar. Este é um termo importante, proposto como recusa ao dualismo da natureza/cultura, e como anti-nostalgia de um retorno ao tempo passado (STENGERS, 2008STENGERS, Isabelle. Experimenting with refrains: subjectivity and the challenge of escaping modern dualism. Subjectivity, v. 22, n. 1, p. 38-59, May 2008. https://doi.org/10.1057/sub.2008.6
https://doi.org/doi.org/10.1057/sub.2008...
).
A multiplicação de trabalhos recentes relacionados aos movimentos e teorias ecofeministas destaca o surgimento de uma epistemologia alternativa baseada no questionamento dos postulados da racionalidade ocidental que está na origem do processo de opressão das mulheres e da destruição da natureza. Ao propor outros princípios relacionados a uma cosmovisão diferente daquela adotada pela ordem mundial atual, estas abordagens teóricas são úteis para definir e questionar as causas estruturais das alterações climáticas e das desigualdades sociais, e aspirar a uma sociedade igualitária e ecológica. Neste processo, desconstruir o sistema dualista de pensamento é essencial para as ecofeministas, a fim de introduzir outras modalidades de conhecimento, com base na compatibilidade, e mesmo na complementaridade, em vez da oposição.
Este artigo é parte de uma pesquisa em andamento, cujo campo ainda não aconteceu - em que o tema mais amplo é a transição socioambiental contemporânea e novos regimes de viver associados à produção de subjetividades que podem deles emergir e têm como estudo de caso as mulheres nas comunidades de pesca artesanal no litoral do Estado do Rio de Janeiro.
A primeira parte do artigo descreve resumidamente algumas das principais abordagens do ecofeminismo, discutindo sua história e sua diversidade de tendências. Posteriormente, a partir de uma pesquisa de documentos relativos à atividade das mulheres na pesca no mundo e no Brasil e de uma investigação preliminar mais localizada dos depoimentos das mulheres na pesca artesanal, a partir do documentário Ardentia (2018),2 2 Documentário Ardentia. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ; Petrobrás, 2018. Disponível em: https://youtu.be/VQDzf7wyBEc como proposta ainda em desenvolvimento, busca-se dar conta do ordinário, daquilo que é produzido nas falhas, no cotidiano das populações, em suas táticas e recursos a partir de uma metodologia que tem como ênfase a forma como os sujeitos documentam suas experiências em seus próprios termos. Nas considerações finais, argumenta-se que tal encaminhamento, que denominamos de abordagem ecopsicossocial, pode contribuir para apontar alternativas voltadas para um mundo sustentável, que passariam pelo reconhecimento e pela redistribuição de modos de vida diversos, numa proposta em que o ambiente, o psicológico e o social estão inextrincavelmente conectados.
O ecofeminismo: uma trajetória de ideias e ações
O que caracteriza o ecofeminismo é sua diversidade de ideias, de textos e de ações. As ecofeministas escreveram ensaios, canções, orações, poemas, e encenaram ações, marchas, danças, rituais… Antes de chegar à academia e ser teorizado, o ecofeminismo foi um conjunto de mobilizações e movimentos de protesto que ocorreram nos anos 1970-1990 em um contexto de guerra fria, de corrida armamentista nuclear e de percepção de uma crise ecológica.
Considera-se o Women’s Pentagon Action3 3 Em 1980, nos Estados Unidos, após o acidente de Three Mile Island, ocorrido em 1979 e os programas militares de Ronald Reagan, mulheres se mobilizam e organizam a marcha Women’s Pentagon Action, denunciando uma dupla destruição: das mulheres e da natureza. (Virginia-EUA, 1980) uma ação espetacular conduzida pelas mulheres americanas contra o poder militar, o ato inaugural do movimento ecofeminista. Os anos 1980 eram assombrados pelo armamento nuclear, pela publicação do Relatório Clube de Roma ou Relatório Meadows (1972) em que se afirmava que o planeta Terra não suportaria o crescimento populacional, o aumento da poluição, o avanço tecnológico e a crise ecológica.
Contra isso, seria preciso retomar a relação com a Terra. Explorando diferentes questões relacionadas a gênero, a religião e ao desenvolvimento, há em algumas abordagens ecofeministas o reconhecimento de uma ligação fundamental entre o domínio das mulheres e o da natureza (MERCHANT, 2005MERCHANT, Carolyn. Ecofeminism. In: MERCHANT, Carolyn. Radical ecology: the search for a livable world. 2nd ed. New York: Routledge , 2005. p. 194-222.; SHIVA, 1989SHIVA, Vandana. Staying alive: women, ecology and development. Londres: Zed Books, 1989.), um ponto de vista epistemológico que vem de críticas feministas da ciência (HARDING, 2004HARDING, Sandra (Ed.). Introduction: standpoint theory as a site of political, philosophic, and scientific debate. In: HARDING, Sandra. The feminist standpoint theory reader: intellectual and political controversies. New York: Routledge , 2004. p. 1-18.). Para elas, as mulheres e a natureza compartilham uma história comum de opressão por parte das instituições patriarcais e da cultura ocidental dominantes. No argumento, a ligação entre o domínio das mulheres e o da natureza está enraizada num sistema de ideias, representações, valores e crenças que subordinam tanto as mulheres quanto o mundo biológico.
Juntamente às ações coletivas, o “eco” em ecofeminismo se refere à influência da ecologia quando adere ao princípio básico de que todas as coisas vivas devem ser compreendidas no contexto do ambiente em que existem. Visa-se superar os dualismos natureza/cultura e animal/humano que está subjacente no antigo humanismo. Uma suposição preliminar é a de que as mulheres, cultural e historicamente, estiveram mais perto da natureza por causa de seus papéis na sociedade e que estão mais conectadas e próximas a ela. Os saberes ancestrais são valorizados em virtude da relação com a natureza e dos cotidianos vividos em pequenas comunidades como um caráter transformador das relações sociais.
À crítica da estrutura patriarcal da modernidade ocidental e a maneira como a dominação das mulheres coincide com a da natureza acrescenta-se um outro ecofeminismo mais social, estabelecido no Terceiro Mundo ou no Sul. Além destas duas dominações, das mulheres e da natureza pelo patriarcado, configura-se uma terceira, a colonial ou pós-colonial (SHIVA; MIES, 1997SHIVA, Vandana; MIES, Maria. Ecofeminismo. Lisboa: Piaget, 1997.).
Para Vandana Shiva e Maria Mies (1997SHIVA, Vandana; MIES, Maria. Ecofeminismo. Lisboa: Piaget, 1997.), as mulheres dos países do “Terceiro mundo”, que lutam pela subsistência, não sentem um divórcio entre o que é espiritual e material. Elas respeitam e celebram o caráter sagrado da Terra e se opõem à sua transformação em matéria-prima morta pela industrialização e produção de mercadorias. Deste modo, também defendem a diversidade e os limites da natureza que não podem ser violados, para que elas possam sobreviver.
Ao tratar da atividade das mulheres na Índia rural, Shiva destaca sua participação nos ciclos produtivos, desconstruindo a ideia de que seriam simples “donas de casa”. São elas que detêm o conhecimento das diversas etapas da produção e das épocas mais adequadas para sua realização em consonância com os ciclos da natureza. A mudança proposta enfatiza as bases materiais de cuidados e sustentabilidade da vida, e denuncia a invisibilidade e a apropriação da sabedoria e do trabalho das mulheres, sem os quais a sobrevivência humana, a produção e a reprodução da cultura e da sociedade seriam impossíveis (SHIVA,1989SHIVA, Vandana. Staying alive: women, ecology and development. Londres: Zed Books, 1989.).
Desenvolvendo uma gama de perspectivas heterogêneas, as ecofeministas até então oferecem importantes observações sobre as conexões entre a expropriação capitalista e as formas de despossessão feminina, assim como a destruição de práticas das relações eco-sociais no contexto de arranjos historicamente específicos. Verifica-se que concebem uma ligação entre a mulher e a natureza, atravessada pela dominação patriarcal e capitalista. Contudo, modalidades de uma relação afirmativa entre as mulheres e a natureza também podem ser inspiradoras, como veremos a seguir.
Novos caminhos para o ecofeminismo
Para Donna Haraway, a principal contribuição das ecofeministas não foi a de se atrelarem aos dualismos, e sim trazerem a “perspectiva parcial” que rejeita qualquer busca por unidade ou origem. Não haveria espaço para uma imagem unificadora. Para ela, talvez o ecofeminismo seja aquele que mais insistiu em uma versão em que o mundo aparece como um sujeito ativo, não como um recurso que pede para ser mapeado e anexado pelos projetos burgueses ou marxistas ou masculinos (HARAWAY, 1989HARAWAY, Donna J. Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science. New York: Routledge, 1989., 1991HARAWAY, Donna J. Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. New York: Routledge , 1991., 2008HARAWAY, Donna J. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.). Por sua vez, segundo Hache, é multiplicando os pontos de vista, sem nunca preferir nenhum, que se escapará da objetividade simplista do dualismo moderno. Ou seja, não se busca encontrar o ponto de vista único e original. Nesta direção, as ecofeministas se reapropriariam tanto da ideia de natureza quanto da de feminino (HACHE, 2016HACHE, Émilie. Reclaim: recueil de textes écoféministes. Paris: Cambourakis, 2016.). Este ato pode ser traduzido em recuperações (Reclaim), conceito principal para revalorizar o que foi desvalorizado - os corpos e as habilidades intelectuais ou emocionais das mulheres - no intuito de promover a autoestima e a autoconfiança (HACHE, 2016HACHE, Émilie. Reclaim: recueil de textes écoféministes. Paris: Cambourakis, 2016.; LARRÈRE, 2012LARRÈRE, Catherine. L’écoféminisme: féminisme écologique ou écologie féministe. Tracés: Revue de sciences humaines, v. 22, p. 105-121, 2012. http://doi.org/10.4000/traces.5454
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).
Em sua luta contra uma lógica de dominação que se aplica às mulheres, bem como à natureza, algumas ecofeministas propõem a adoção de novas relações, não-hierárquicas e não-dominantes. É aqui que se referem à ética do cuidado (care). Passar para uma ética que tem um lugar central para os valores de cuidado, amor, amizade e reciprocidade adequadas - valores que pressupõem que nossas relações com os outros têm um papel central na compreensão de quem somos (BELLACASA, 2012BELLACASA, Maria Puig de la. ‘Nothing comes without its world’. Thinking with Care. The Sociological review, v. 60, n. 2, p. 198-212, 2012. http://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2012...
). Uma máxima relacional marcaria esta ética do cuidado.
A ética do cuidado é um universalismo que, no entanto, não segue regras gerais, e sim ocorre em situações concretas, referindo-se à interdependência de todos os seres. Ela faz com que seja possível pensar melhor sobre uma articulação entre o cuidado e o meio ambiente, que seria pragmática, quer dizer, um pensamento teórico e prático que se produz na interseção do reconhecimento ordinário de nossas dependências, de nossas relações e de nossas responsabilidades. Sob esta perspectiva das relações, podemos dizer que, apesar de suas diferenças, há algo que aproxima as abordagens do ecofeminismo até aqui descritas: a busca por uma composição que reúne os seres humanos e o mundo.
É nesta direção que será pesquisada a atuação das mulheres na pesca artesanal em comunidades litorâneas do Estado do Rio de Janeiro. A pesca não será entendida aqui como um objeto em torno do qual os sujeitos humanos limitados se juntam, e sim enquanto parte de um coletivo de cuidados capaz de possibilitar o pensamento político e a ação. Pelas lentes do ecofeminismo, propõe-se o mundo das pescadoras como um modo de viver junto nas rachaduras do capitalismo, o qual requer a interação de múltiplos tipos de seres, muitos dos quais são outros-que-humanos, como o mar, os peixes, os corais, o céu, a rede, o barco etc.
A mulher pescadora
Mulheres adultas que praticam a pesca artesanal em Arraial do Cabo e Cabo Frio, no Rio de Janeiro, Brasil, atuam na retirada de mariscos, na pesca de mergulho, na pesca com rede, de linha, no costão, na pesca de lula. Além da pescaria em si, também fazem a limpeza do peixe, o beneficiamento e a comercialização do produto. Das espinhas, escamas, objetos e apetrechos/petrechos da pesca produzem artesanato. No entanto, seu reconhecimento como profissional da pesca ainda não foi conquistado.
Afirma Martínez (2018MARTÍNEZ, Silvia Alicia. Pesquisa aponta situação precária das mulheres que trabalham com pesca artesanal. Entrevista com a pesquisadora Sílvia Alicia Martínez, professora da Universidade Estadual Norte Fluminense. CBN Noite Total - Entrevista, 8 mar. 2018b. Disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/166135/pesquisa-aponta-situacao-precaria-das-mulheres-que.htm
. Acesso em: 3 jul. 2018.
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) que a definição de pescador artesanal, comumente entendida por aquele que captura o peixe, retira daqueles que colaboram em outras etapas da produção, os direitos trabalhistas da atividade. Este é o caso de inúmeras mulheres que atuam, mas não são registradas como profissionais da pesca, pois “não se reconhecem como pescadoras e muitas vezes não são reconhecidas pelos outros” (MARTÍNEZ, 2018MARTÍNEZ, Silvia Alicia. Pesquisa aponta situação precária das mulheres que trabalham com pesca artesanal. Entrevista com a pesquisadora Sílvia Alicia Martínez, professora da Universidade Estadual Norte Fluminense. CBN Noite Total - Entrevista, 8 mar. 2018b. Disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/166135/pesquisa-aponta-situacao-precaria-das-mulheres-que.htm
. Acesso em: 3 jul. 2018.
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, p. 1).
Compõem vozes com Martínez (2018MARTÍNEZ, Silvia Alicia. Pesquisa aponta situação precária das mulheres que trabalham com pesca artesanal. Entrevista com a pesquisadora Sílvia Alicia Martínez, professora da Universidade Estadual Norte Fluminense. CBN Noite Total - Entrevista, 8 mar. 2018b. Disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/166135/pesquisa-aponta-situacao-precaria-das-mulheres-que.htm
. Acesso em: 3 jul. 2018.
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), os dados obtidos dos formulários do DRP (Diagnóstico Rápido Participativo) do Projeto Ardentia4
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Durante dois anos, entre 2016 e 2018, trabalhei na direção do documentário Ardentia, fruto de um projeto homônimo da COPPE/UFRJ que, a convite da Petrobrás, desenvolveu uma metodologia de manejo de conflito com populações tradicionais em suas áreas de influência. Nesse processo tive a oportunidade de entrevistar e conviver com lideranças, instituições da pesca, associações, grupos independentes e com a comunidade pesqueira local.
(COPPE/UFRJ - 2014-2018), coletados em 2017, das cópias cadastrais5
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Os dados cadastrais são um conjunto de informações sobre os pescadores da região, tais como: tipo de pesca, endereço, renda, escolaridade etc.
das Colônias de Búzios, Cabo Frio e da Reserva Extrativista Marinha do Arraial do Cabo (ICMBIO), em que, dos 1.258 cadastros totais, apenas 110 são mulheres e 1.148, homens. Os dados cadastrais forneceram ao Projeto Ardentia um primeiro panorama da pesca artesanal e suas particularidades na região. O registro dos profissionais da pesca nas Colônias Registro Geral da Pesca (RGP)6
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Registro Geral da Pesca (RGP) - segundo a Portaria 1.275 do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, de 27 de julho de 2017, possibilita o recebimento de benefícios sociais: seguro defeso, microcrédito e assistência social.
garante o acesso aos programas sociais do Governo Federal. Pescadores das colônias de Arraial do Cabo e de Búzios afirmam que há um número muito maior de mulheres na atividade pesqueira. Embora haja o reconhecimento de que a mulher atua na produção pesqueira, ela aparece normalmente representada pelo marido ou pelos filhos. Apesar de não haver impedimento na lei para que as pescadoras se registrem, esse comportamento social ao que tudo indica, tem origem na formalização profissional da pesca artesanal. Segundo Fonseca et al. (2016FONSECA, Marília et al. O papel das mulheres na pesca artesanal marinha: estudo de uma comunidade pesqueira no município de Rio das Ostras, RJ, Brasil. Journal of integrated coastal zone zanagement/Revista de gestão costeira integrada, v. 16, n. 2, p. 231-241, 2016. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/rgci/v16n2/v16n2a10.pdf
. Acesso em: 15 maio 2018.
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, p. 232), até a década de 1950 somente homens eram cadastrados como pescadores. Ainda que não haja dados recentes e precisos sobre o panorama da pesca artesanal segundo o critério de gênero, encontramos em Alencar (2011ALENCAR, Carlos Alexandre Gomes; MAIA, Luís Parente. Perfil Socioeconômico dos pescadores brasileiro. Arquivo de Ciências do Mar, v. 44, n. 3, p. 12-19, 2011., p. 16), em seu trabalho de consulta sistematizada do sistema RGP (MPA) em janeiro de 2009, os seguintes dados:
No caso da Região Sudeste, 19,90% representam 15.337 mulheres pescadoras em um universo de 77 mil homens pescadores. Esse é um dado representativo, mas é possível que o total seja ainda maior, a exemplo da amostragem das três cidades apresentadas acima.
Em busca de um delineamento consistente de como ocorrem a participação e a liderança feminina nas organizações, na articulação e no equilíbrio das relações de poder entre homens e mulheres, estudos atuais da Food and Agriculture Organization - (FAO)7 7 A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) é a agência especializada do Sistema ONU que trabalha no combate à fome e à pobreza por meio da melhoria da segurança alimentar e do desenvolvimento agrícola. indicam, por meio das conclusões preliminares da pesquisa de Alonso-Población y Siar (2018), que os principais obstáculos para a participação feminina perpassam a ideia de que as mulheres não pescam e, portanto, seu trabalho não é reconhecido. À falta de estatísticas sobre o trabalho feminino e o entendimento por parte das mulheres de que as organizações são do domínio masculino se acrescem a falta de tempo, a confiança e a educação formal.
O relatório sobre o Estado Mundial da Pesca e da Aquicultura da FAO (ALONSO-POBLACIÓN; SIAR 2018ALONSO-POBLACIÓN, Enrique; SIAR, Susana V. Women’s participation and leadership in fisherfolk organizations and collective action in fisheries: a review of evidence on enablers, drivers and barriers. Circular de pesca y acuicultura de la FAO, Roma, n. 1159, 2018.) oferece alguns dados sobre o emprego dividido por gênero. Na América Latina e Caribe, por exemplo, as mulheres, em 2016, representavam um total de 19% entre os trabalhadores da pesca artesanal (ALONSO-POBLACIÓN; SIAR, 2018, p. 36).
A conquista da igualdade de gênero e articulação das mulheres no setor pesqueiro artesanal coaduna com a realidade em que se percebe o crescente número de mulheres atuantes nas organizações e lideranças. Estudos de caso em Burkina Faso, Costa do Marfim, Gana e Túnis, mencionados no relatório FAO (ALONSO-POBLACIÓN; SIAR, 2018ALONSO-POBLACIÓN, Enrique; SIAR, Susana V. Women’s participation and leadership in fisherfolk organizations and collective action in fisheries: a review of evidence on enablers, drivers and barriers. Circular de pesca y acuicultura de la FAO, Roma, n. 1159, 2018.), mostram que a superação e articulação das mulheres são possíveis, por meio de intervenções em que o fortalecimento da capacidade técnica, organização e administração de pequenas empresas e/ou associações, diferenciação dos produtos, fomento à criação de redes e investimentos em infraestrutura, resultaram na melhoria da qualidade de vida e do emprego.
No Brasil, na região de Cabo Frio e Arraial do Cabo, foi possível depreender um panorama, ainda que parcial, das lideranças da pesca artesanal no material bruto das entrevistas para o documentário Ardentia (2018)ARDENTIA. Direção: Regina Carmela. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ; Petrobrás, 2018. Acesso em: 12 abr. 2018. 1 video (69 min). Disponível em: https://youtu.be/VQDzf7wyBEc
https://youtu.be/VQDzf7wyBEc...
. As mulheres focalizadas neste artigo têm papel representativo nas associações e/ou grupos de pesca, são reconhecidas como referências (presidentes de associações, líderes de grupos, ativistas) do setor e possuem RGP. Nos depoimentos, podemos identificar inicialmente alguns aspectos que as pescadoras consideram como importantes na sua atividade, por exemplo, a associação da pesca artesanal à tradição, como explicita a pescadora Edwiges (47 anos, pescadora, artesã): “Meu pai era pescador, minha mãe era pescadora, aprendi com meu irmão, com meu tio, observando meu avô, indo à pescaria com os amigos do meu pai...”.
Outro fator de destaque é a possibilidade de trazer o sustento para casa. Mesmo que não seja a principal fonte de renda familiar, as pescadoras sentem satisfação do dever cumprido. O sentimento de integração, pertencimento e respeito à natureza perpassa as falas e lembranças do manejo pesqueiro. Há uma relação íntima com a natureza: o mergulho, o cerco, a retirada de mariscos são momentos únicos. Diz Edwiges: “Mergulhar dentro de um cardume produz sensação incrível, é mágico, satisfatório, inexplicável, pois cada pescaria é uma renovação dos conhecimentos [...]”.
As mulheres trabalham também com conchas de cultivo,8 8 As conchas de cultivo, ou vieiras, são moluscos que apresentam maior valor comercial. Arraial do Cabo é o maior produtor desse molusco no Estado do Rio de Janeiro, em três fazendas marinhas pertencentes à Associação dos Pescadores Artesanais (APAC), Associação da Reserva Extrativista de Arraial do Cabo (AREMAC) e Associação dos Coletores e Criadores de Mariscos de Arraial do Cabo (ACRIMAC). para fazer saboneteiras; com as sobras das conchas ornam porta-retratos; chaveiros são confeccionados com escamas da perumbeba (peixes de oito quilos). Afora as escamas, utilizam espinhas, conchas e sobras das madeiras dos barcos que estão sendo construídos ou consertados. Deste modo, podemos observar que as dimensões da atividade pesqueira artesanal ultrapassam a caça do pescado em si. Há todo um universo cultural que vai do manejo das espécies às delimitações dos territórios, confecções dos apetrechos e conhecimento do meio ambiente marinho. Há uma percepção e relação subjetiva com o mar, descrita por Zenilda, 64 anos, pescadora, presidente da Cooperativa de Mulheres da pesca: “A atividade da pesca artesanal ensina o respeito ao mar, à natureza e a importância de cada pescador em ser um multiplicador do respeito à natureza e ao mar - de onde ele retira seu sustento - das pedras, da areia, dos ventos. O cuidado com o mar para que se mantenha para as próximas gerações”.
As pescadoras reforçam a necessidade de uma estatística pesqueira exclusiva da pesca artesanal, para dar visibilidade à atividade. Cleuzinha, 50 anos, pescadora e artesã, diz: “É necessário ouvir o pescador artesanal, pois a pesca industrial está descontrolada, atingindo o meio ambiente, as comunidades pesqueiras e ameaçando a sobrevivência das espécies e dos nossos grupos sociais”.
A consciência da invisibilidade, as reflexões sobre a transformação das relações sociais e dos papéis sexualmente designados são destacados por Margareth, 58 anos, pescadora artesanal: “Para mim, a liderança de mulheres da pesca foi um grande obstáculo a ser superado e um desafio que me enriqueceu na conquista do meu valor de mulher, na superação do preconceito movido por força do hábito através da habilidade”.
A expressão do vínculo com a tradição pesqueira, a abrangência do significado da pesca - mar, artesanato, abastecimento familiar - e a demanda política por reconhecimento oferecem um painel inicial da atuação e dos vínculos das mulheres na pesca artesanal da região focalizada.
Considerações finais
Embora, como apontamos acima, a ligação entre o domínio das mulheres e a natureza seja ideológica, uma vez que está enraizada num sistema de ideias, representações, valores e crenças que subordinam as mulheres e o mundo biológico aos interesses econômicos e/ou manutenção de padrões sociais, observamos nessas pescadoras pensamentos, sentimentos e ações que ultrapassam, paulatinamente, essas limitações na ação cotidiana e na reflexão constante sobre o seu papel. O fazer feminino da pesca articula-se na superação, na renovação e na reapropriação de um sentido que está sendo reinventado por elas: o lugar da mulher na pesca. Mulher que leva o sustento, que interage com a natureza, que sente, que percebe mudanças, que promove transformações e busca com suas ações garantir a manutenção da pesca artesanal e um futuro sustentável.
As mulheres, na articulação das subjetividades, imersas em suas atividades, buscam alternativas e transitam entre a manutenção da tradição e as nuances necessárias para sua sobrevivência, entre uma cultura instaurada e as brechas da realidade que clamam por posicionamentos e fazeres, entre o status quo e as mudanças sutis conquistadas no dia a dia. Há algumas questões que merecem ainda ser aprofundadas, por exemplo, o acesso das mulheres à formação, aos recursos, à participação na gestão.
Ao delinearmos pelas lentes do ecofeminismo e da psicologia social esses caminhos que se fazem na complementaridade das perspectivas, no reconhecimento e na redistribuição de modos de vida diversos, como os reinventados pelas pescadoras, podemos esboçar uma ecopsicossociologia a partir do entrelaçamento destas disciplinas que nos colocam na trilha das alternativas e mudanças, nas transições e emersões das subjetividades, dos grupos sociais e do meio ambiente.
Referências
- ALENCAR, Carlos Alexandre Gomes; MAIA, Luís Parente. Perfil Socioeconômico dos pescadores brasileiro. Arquivo de Ciências do Mar, v. 44, n. 3, p. 12-19, 2011.
- ALONSO-POBLACIÓN, Enrique; SIAR, Susana V. Women’s participation and leadership in fisherfolk organizations and collective action in fisheries: a review of evidence on enablers, drivers and barriers. Circular de pesca y acuicultura de la FAO, Roma, n. 1159, 2018.
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» https://youtu.be/VQDzf7wyBEc - BELLACASA, Maria Puig de la. ‘Nothing comes without its world’. Thinking with Care. The Sociological review, v. 60, n. 2, p. 198-212, 2012. http://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
» https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x - FONSECA, Marília et al. O papel das mulheres na pesca artesanal marinha: estudo de uma comunidade pesqueira no município de Rio das Ostras, RJ, Brasil. Journal of integrated coastal zone zanagement/Revista de gestão costeira integrada, v. 16, n. 2, p. 231-241, 2016. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/rgci/v16n2/v16n2a10.pdf Acesso em: 15 maio 2018.
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» https://www.unisdr.org/we/inform/publications/33363
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1
Dados do relatório da United Nations International Strategy for Disaster Reduction de 2012 (UNISDR, 2013UNITED NATIONS OFFICE FOR DISASTER RISK REDUCTION. UNISDR annual report, 2012. 2013. Disponível em: https://www.unisdr.org/we/inform/publications/33363 . Acesso em: 4 mar. 2017.
https://www.unisdr.org/we/inform/publica... ). -
2
Documentário Ardentia. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ; Petrobrás, 2018. Disponível em: https://youtu.be/VQDzf7wyBEc
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3
Em 1980, nos Estados Unidos, após o acidente de Three Mile Island, ocorrido em 1979 e os programas militares de Ronald Reagan, mulheres se mobilizam e organizam a marcha Women’s Pentagon Action, denunciando uma dupla destruição: das mulheres e da natureza.
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4
Durante dois anos, entre 2016 e 2018, trabalhei na direção do documentário Ardentia, fruto de um projeto homônimo da COPPE/UFRJ que, a convite da Petrobrás, desenvolveu uma metodologia de manejo de conflito com populações tradicionais em suas áreas de influência. Nesse processo tive a oportunidade de entrevistar e conviver com lideranças, instituições da pesca, associações, grupos independentes e com a comunidade pesqueira local.
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5
Os dados cadastrais são um conjunto de informações sobre os pescadores da região, tais como: tipo de pesca, endereço, renda, escolaridade etc.
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6
Registro Geral da Pesca (RGP) - segundo a Portaria 1.275 do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, de 27 de julho de 2017, possibilita o recebimento de benefícios sociais: seguro defeso, microcrédito e assistência social.
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7
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) é a agência especializada do Sistema ONU que trabalha no combate à fome e à pobreza por meio da melhoria da segurança alimentar e do desenvolvimento agrícola.
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8
As conchas de cultivo, ou vieiras, são moluscos que apresentam maior valor comercial. Arraial do Cabo é o maior produtor desse molusco no Estado do Rio de Janeiro, em três fazendas marinhas pertencentes à Associação dos Pescadores Artesanais (APAC), Associação da Reserva Extrativista de Arraial do Cabo (AREMAC) e Associação dos Coletores e Criadores de Mariscos de Arraial do Cabo (ACRIMAC).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Dez 2019 -
Data do Fascículo
Dez 2019
Histórico
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Recebido
28 Set 2018 -
Revisado
12 Mar 2019 -
Revisado
18 Maio 2019 -
Aceito
03 Jun 2019