Assim que retorna de suas viagens, o jovem Quéreas narra à população reunida no teatro as aventuras vividas longe da pátria ao lado de Calírroe, sua esposa, relato que retoma o argumento daquele que é hoje tido como o primeiro romance ocidental, Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodísias (I d.C.). Na trama, o teatro também abriga assembleias cívicas, como a que decide o casamento entre os dois jovens no primeiro capítulo, e o julgamento do pirata que saqueara o túmulo da jovem. Embora a ação se passe em Siracusa e no período clássico, parece-me claro que o autor, que orgulhosamente proclama sua identidade logo na frase de abertura do romance (“Eu, Cáriton de Afrodísias, secretário do orador Atenágoras, vou narrar uma história de amor que aconteceu em Siracusa”, Quéreas e Calírroe I.1), tem em vista como cenário o grandioso teatro de sua Afrodísias natal, agora minuciosamente desvendado por Nathalie de Chaisemartin e Dinu Theodorescu, com a colaboração de A. Lemaire e Y. Goudin, naquele que consiste no oitavo volume da série de títulos que trazem os resultados das escavações conduzidas pela New York University no sítio arqueológico da Turquia.
O livro finalizado por N. de Chaisemartin, em virtude da morte de seu coautor, se insere dentro de um gênero muito específico, o dos relatórios arqueológicos, uma literatura por vezes bastante árida. Como nota, P. Gros, em seu prefácio, realizar o estudo e a publicação das estruturas cênicas do teatro de Afrodísias, implicando o desafio “de reconstruí-lo graficamente sem deixar de lado nenhuma peça desse imenso quebra-cabeças” (e quebra-cabeças aqui não é apenas força de expressão), pressupõe conhecimento técnico, arquitetônico e iconográfico raros. A tarefa se torna mais complexa na medida em que o edifício, que desempenhou inúmeras funções além da primária (sediar espetáculos), sofreu alterações e acréscimos ao longo do tempo, tornando-se um caso de interesse também historiográfico e tipológico. Naturalmente, um estudo desse vulto, não pode ser conduzido sem a cooperação de equipes multidisciplinares e internacionais, com destaque para pesquisadores turcos, austríacos, além de americanos, ingleses e franceses, coordenados a princípio por Kenan Erim (1929-1990), que desde a década de 1960 se dedicou ao sítio de Afrodísias - entre os anexos, o volume traz dois capítulos-síntese em inglês e em turco para os que não leem francês.
Na década de oitenta, N. de Chaisemartin foi convidada por Erim para empreender o estudo dos frisos decorados do teatro, a cujos esforços somou-se logo D. Teodorescu, um arqueólogo com especialização em arquitetura, ampliando o escopo da pesquisa. O propósito era determinar e datar as fases de construção do teatro e das modificações mais significativas que sofreu desde a sua fundação, no final do século I a.C. até o seu colapso, em decorrência de um terremoto, em VII d. C. O presente livro reúne os dados concernentes à arquitetura do edifício de cena, da fachada ocidental, bem como da orquestra, já que a cavea, os assentos destinados ao público, segue sendo explorada. O resultado impressiona pela minúcia da reconstituição, ricamente ilustrada por inúmeras plantas e ilustrações, além de um inestimável dossiê fotográfico com mais de oitenta páginas. Pode-se dizer que o teatro ressurge dos escombros a que fora condenado e, com ele, parte significativa da história daquela que é uma das mais interessantes cidades da Ásia Menor.
Como não sou arqueóloga, mas uma helenista cujo interesse por Afrodísias se deve aos estudos sobre o romance antigo e, particularmente, Cáriton, cujo livro traduzi, é dessa perspectiva que vou tratar essa publicação. Afrodísias é descrita com frequência como uma cidade helenística grega da Caria, localizada hoje na Turquia, na vizinhança de Geyre - em verdade essa cidade ficava sobre o sitio e foi removida para permitir as escavações. De fato, a cidade é refundada e recebe esse sugestivo nome, a partir do culto sincrético que a deusa local estabelece com Afrodite, em III a.C., mas a ocupação é muito anterior (c. 1200 a.C.). Apesar da colonização grega, ganha importância pela relação privilegiada que estabelece com Roma, de quem se torna aliada estratégica desde as Guerras Mitridáticas (I a.C.). Seus habitantes souberam muito bem explorar a rivalidade entre as potências emergentes locais, como Mileto e Éfeso, e os interesses romanos para construir uma aliança que a favorecesse no cenário geopolítico, usando para tal o culto de Afrodite. Como se sabe, após a ascensão de César, cuja família se pretendia descendente de Vênus, a deusa ganha importância no panteão latino. É justamente a consolidação de Otávio no poder após a vitória em Áccio (31 a.C.) e sua consagração como o Augusto (27 a.C.) que marcam um reflorescimento de Afrodísias, cujo plano urbanístico passa por grandes reformas, das quais o teatro é uma das mais eloquentes. O conjunto de monumentos extremamente bem preservados, documentados com o apoio de amplo registro epigráfico, e escavado de forma exemplar, torna esse sítio um caso único para conhecer a vida em uma cidade grega do período romano.
Na origem desse empreendimento está uma figura singular, Gaius Julius Zoilos, um cidadão de Afrodísias que os azares da vida fizeram escravo de Júlio César - quer por ter sido aprisionado em uma das inúmeras guerras travadas na região, quer por ter sido vítima do tráfico de pessoas comandado por piratas que infestavam os mares (para um breve perfil de Zoilos ver Beard, 2017BEARD, M. (2017). SPQR: Uma história da Roma Antiga. São Paulo, Crítica., p. 512-514). Após prestar bons serviços a seu senhor, de quem se tornou representante, coube a Otávio como parte do espólio de César, que o libertou e deu mostras de afeição por ele em suas cartas. Rico, voltou a Afrodisias e tornou-se um benfeitor da cidade, contribuindo com a construção e o embelezamento de diversos monumentos, entre eles, o teatro e templo de Afrodite. Uma série de registros epigráficos, recolhidos de placas comemorativas afixadas na parede norte do edifício, testemunham o reconhecimento da cidade a ele e a outros que, posteriormente, patrocinaram reformas e acréscimos. Ao mesmo tempo, esse verdadeiro arquivo guarda a história de Afrodísias e de sua relação com Roma e seus imperadores, que se quis tornar bem visível aos visitantes estrangeiros. Há um pequeno dossiê epigráfico no volume em questão relacionado à construção do teatro, mas outras evidências podem ser encontradas no site Inscriptions of Aphrodisias (http://insaph.kcl.ac.uk/iaph2007/index.html).
Assim, o teatro, que além de abrigar espetáculos, também sediava as assembleias da cidade e outras festividades, foi construído, juntamente com o templo de Afrodite e outros monumentos da cidade, como forma de celebrar a nova ordem romana e de marcar a inserção de Afrodísias nela. N. de Chaisemartin, ao analisar os motivos decorativos da fachada cênica do teatro, confere relevo ao motivo de Apolo citaredo coroado pelas Musas, que ocupa o nicho central. O conjunto escultórico evoca as glórias de Otávio, especialmente o triunfo em Áccio - Dioniso, o patrono dos espetáculos dramáticos é posto de lado em vista de sua associação com Marco Antônio. Segundo a autora, Otávio se vale do histórico de lealdade da cidade cária para com Roma e das suas relações pessoais com Zoilos para dar início a um programa ideológico centrado na propagação de sua imagem como Princeps que brevemente se espalharia por toda Ásia Menor, alcançando todo o Império. A particularidade do caso afrodisiense reside justamente em sua precocidade (é um dos primeiros monumentos com esse motivo e contemporâneo do templo de Apolo Palatino em Roma) e na riqueza de sua documentação, além de, pode-se acrescentar sem temor, na espetacular qualidade de seus monumentos, graças ao talento de exímios artesãos e ao mármore de qualidade superior de que dispunham.
Interessante também é verificar como este edifício é único na medida em que atesta a transição da arquitetura de tipo helenístico para o de tipo imperial na Ásia Menor, apresentando características que sugerem a influência de Vitrúvio, cujo tratado sobre arquitetura data de pouco antes da edificação do teatro. Isso de fato só é possível se pensarmos no papel desempenhado por Zoilos, um homem entre duas culturas, como atesta sua estela funerária em que é representado com a capa grega e com a toga romana, provando, como quer M. Beard (2017BEARD, M. (2017). SPQR: Uma história da Roma Antiga. São Paulo, Crítica., p. 514), que “na cultura do império romano, era possível ser ao mesmo tempo grego e romano”.
O teatro foi remodelado nas décadas e séculos posteriores para poder se adaptar às múltiplas funções que desempenhou. Outros benfeitores como Aristocles Molossos, na primeira metade do século I d.C., dão continuidade ao programa de Zoilos, dotando o prédio de novos assentos e das escadarias de acesso aos andares superiores da cena, cada vez mais adaptada aos oradores, e Hermas, que no final do mesmo século, reforma a orquestra. Por fim, em III d.C., novas mudanças são feitas, visando favorecer as lutas de gladiadores, espetáculos de caça e os balés aquáticos. O grupo escultórico também vai se enriquecendo, com o acréscimo de estátuas que celebram atletas que conquistaram renome para a cidade, além de outros cidadãos ilustres. Como nota Chaisemartain (2017, p. 181), o teatro de Afrodisias, apesar das adaptações sofridas para se adaptar à evolução dos espetáculos, manteve inalterada a fachada cênica, o que aponta para a sua relevância como depositária da memória coletiva dos cidadãos.
Afrodisias, que tem o título de World Heritage da UNESCO, continuará a nos surpreender, uma vez que as escavações prosseguem, assim como a publicação de estudos que remontam décadas de pesquisas. O presente volume cumpre bem esse papel de dar vida a um monumento que, por sua vez, é capaz de iluminar o passado de uma cidade e nosso conhecimento sobre um período fértil da antiguidade. Para os interessados na pesquisa envolvida em Aphrodisias, indico o site Aphrodisias excavations (http://aphrodisias.classics.ox.ac.uk/index.html).
O romance de Cáriton, termina com a evocação a uma só vez do teatro e do templo de Afrodite, ambos obra de Zoilos e motivo de orgulho dos afrodisienses (Quéreas e Calírroe, VII.8):
Enquanto a multidão estava no teatro, Calírroe, antes de ir para casa, foi ao templo de Afrodite. Tocando-lhe os pés e pousando sobre eles o rosto, com os cabelos soltos, beijou-os e disse:
- Sou grata, Afrodite.
Bibliografia
- BEARD, M. (2017). SPQR: Uma história da Roma Antiga São Paulo, Crítica.
- DUARTE, A. S. (trad.) (no prelo). Cáriton. Quéreas e Calírroe São Paulo, 34.
- REARDON, B. P. (ed.) (2004). De Callirhoe narrationes amatoriae Chariton Aphrodisiensis Monacchi, K. G. Saur.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Abr 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
18 Set 2018 -
Aceito
27 Set 2018