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CARRARA, Sergio & CARVALHO, Marcos (orgs.). 2016. Meu encontro com os outros. Memórias de José de Albuquerque, pioneiro da sexologia no Brasil. Coleção História e Saúde; Clássicos e Fontes. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz. 234 pp

CARRARA, Sergio; CARVALHO, Marcos. (orgs.). 2016. Meu encontro com os outros. Memórias de José de Albuquerque, pioneiro da sexologia no Brasil Coleção História e Saúde; Clássicos e Fontes. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz. 234

O tema da sexualidade no Brasil ganha uma contribuição importante com esta publicação que traz novos elementos históricos para debatermos as relações entre sexualidade e medicina na sociedade urbana carioca, e mesmo na brasileira. O livro tem, ao mesmo tempo, uma ótima análise sobre a obra do médico José de Albuquerque (1904-1984) - pioneiro da sexologia no Brasil, como bem lembra o título - e fontes primárias de seu arquivo pessoal, muitas inéditas: a transcrição de suas memórias e fac-símile do livro Quatro Letras... Cinco Lustros, em que avalia as atividades do Círculo Brasileiro de Educação Sexual entre 1933 e 1958, por ele criado. Além disso, traz a reprodução de fotografias e de documentos originais, como o folheto que divulga o Hino da Educação Sexual, de autoria de Albuquerque, e as primeiras páginas, manuscritas, de sua partitura.

O prefácio do livro pelo filho de Albuquerque, o também médico Pedro de Albuquerque, é um anúncio sobre o que vamos encontrar nas páginas seguintes: ali ele nos apresenta não só os caminhos percorridos até a publicação das memórias e dos textos de seu pai, como os indivíduos que ajudaram a compor o quadro de difusão desta obra: ele próprio como familiar, um dos organizadores deste volume com sua expertise sobre a obra de Albuquerque e o tema da sexualidade, e também um sujeito anônimo, senhor idoso que nos dá testemunho da importância do trabalho de José de Albuquerque ao discutir e divulgar questões tabus em sua época. Estas questões, entretanto, afligiam a vida de homens e mulheres comuns.

Na sequência encontramos uma excelente apresentação, advinda de longo trabalho de pesquisa dos organizadores deste volume. Sergio Carrara e Marcos Carvalho reúnem e analisam para o leitor os principais aspectos da trajetória de José de Albuquerque. Longe de reconstruírem a vida e a obra do médico como um conjunto de eventos bem-sucedidos - que podem nos levar ao risco da “ilusão bibliográfica” (Bourdieu, 1986BOURDIEU, Pierre. 1996. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora.) - eles nos introduzem nos impasses e nas dificuldades vividas por Albuquerque, bem como os debates e as disputas em que se envolveu, que são observáveis no texto de suas memórias contidas neste volume.

José de Albuquerque nasceu no início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro. Filho mais velho da prole de quatro crianças, teve educação rígida de seu pai que, formado em direito e depois delegado de polícia na cidade do Rio de Janeiro e em Cuiabá, entrou depois para o magistério em Minas Gerais e, por fim, desiludido com a política, exerceu o cargo de fiscal de loterias por cerca de trinta anos. O “encontro” de Albuquerque com a medicina foi um acaso, após indecisões sobre qual curso superior seguir. A contragosto de seu pai, prestou exames para farmácia aos 14 anos, já com o intuito de posteriormente se transferir para o curso de medicina. Como bem ressaltam Carrara e Carvalho na apresentação deste volume, as memórias de José de Albuquerque são testemunho importante sobre como se organizava a Faculdade de Medicina no início da década de 1920: os professores que ali atuavam, os tipos de exames que realizavam, o desprestígio das teses de conclusão de curso como objeto de produção de conhecimento, as ações relativas a uma medicina voltada para a criança, os hospitais que serviam às diferentes clínicas médicas ministradas na Faculdade de Medicina, os medicamentos correntemente utilizados, dentre outros.

O principal interesse do jovem Albuquerque, formado em 1924, seria a cirurgia infantil; projeto que abandona em face das “dificuldades de um médico recém-formado e sem tradição familiar na carreira médica” (: 11). Sem oportunidades no Rio de Janeiro, e novamente a contragosto do pai e do avô, José de Albuquerque decide mudar-se para o interior paulista para trabalhar com clínico na farmácia do irmão de Antonieta Morábito, ex-colega de faculdade que viria depois a se tornar sua esposa.

Como demonstram suas memórias e a análise de Carrara e Carvalho (2016), esta fase da vida do jovem médico seria marcada por muitas dificuldades em constituir uma clínica médica no “sertão” paulista que conseguisse fazer frente às práticas de “curandeirismo”. Médico de seu tempo, José de Albuquerque aderia ao ponto de vista da medicina oficial que, sob esta denominação, rechaçava diferentes práticas de cura muito utilizadas pela população: pais de santos, benzedeiras, rezadeiras, ritos afro-brasileiros e outros relativos ao catolicismo popular. Suas memórias, além disto, dão testemunho também das relações complexas entre o exercício da medicina e o exercício da atividade farmacêutica naquelas paragens, onde a segunda se encontrava em posição hierarquicamente superior quanto à primeira. A medicina aparece assim como coadjuvante diante dos recursos terapêuticos e do capital social e cultural dos donos de farmácia.

Estas informações biográficas de José de Albuquerque servem aos organizadores deste volume para introduzir sua análise sobre a escolha e as atividades do referido médico na clínica dos “problemas sexuais”, tendo em vista que foi no interior paulista que passou a se dedicar ao tratamento das “doenças venéreas”. Decorre daí então uma apresentação consistente das diferentes frentes em que Albuquerque atuou, no que diz respeito às doenças do homem e à educação sexual em geral. Carrara e Carvalho analisam como o médico articulou sexualidade com medicina, não no sentido de enfatizarem a disciplinarização de corpos e mentes, mas de levarem à compreensão das ideias e dos efeitos produtivos de fala quanto ao fato de se colocar o sexo em discurso no Rio de Janeiro, e no Brasil, nas décadas de 1920 a 1940. O objetivo de Albuquerque era tirar o sexo do obscurantismo para tratá-lo como evento natural, da ordem da natureza dos homens, como muitas outras funções vitais. Certamente função natural sujeita a um sentido cultural que, para José de Albuquerque, necessitava ser modificado, iluminado pelo conhecimento produzido pela ciência médica, mas também pelo estudo das ideias de Freud. Neste sentido, cabe uma análise mais detida sobre as relações que seu pensamento médico e educativo estabelecia com as dimensões físicas e morais do humano para a compreensão das questões sexuais e a intervenção a ser feita nelas.

Albuquerque propunha a luta contra crendices e charlatanismo relativos ao sexo e às suas doenças, mas também contra valores católicos e outros, deletérios para o exercício da medicina, como a proibição paterna de que moças virgens fossem examinadas por médicos; debatia firmemente dentro do próprio campo médico e demonstrava tanto a controvérsia entre a urologia existente e a criação da cadeira de andrologia que ele defendia para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro quanto a polêmica em torno do tema da esterilização compulsória que se produziu em 1937; e mantinha-se vivamente atento às dinâmicas sociais que produziam o estigma em relação às doenças venéreas e aos assuntos sobre sexo.

Carrara e Carvalho (2016) apontam o que José de Albuquerque produziu como um programa de educação sexual para várias cidades brasileiras e por diferentes meios de comunicação, posicionando-se quanto a assuntos diversos, a favor ou contra: exame pré-nupcial, saneamento do casamento e da reprodução; o estigma, o contágio e o isolamento compulsório dos “venéreos”; o prazer sexual, o uso de camisinha, a masturbação, a ejaculação precoce e a impotência sexual. Era a favor dos benefícios do sexo visando “tanto ao equilíbrio orgânico quanto à reprodução da espécie” (: 15). Ao considerar o desejo sexual uma necessidade orgânica primária (: 17), prescrevia sexo com prazer, sem excessos, mas para todos, homens e mulheres.

Vários foram os braços institucionais que criou no decorrer dessa sua empreitada. Em 1932, iniciou a publicação do Jornal de Andrologia. Em 1933, fez circular o Boletim de Educação Sexual e organizou uma instituição específica para agregar esforços e operacionalizar suas campanhas e ações em prol da educação sexual: o Círculo Brasileiro de Educação Sexual (CBES). As atividades do Círculo foram inúmeras, como bem descrevem Carrara e Carvalho e seu próprio mentor na edição fac-símile do livro de sua autoria que compõe este volume. Mas como lembram Carrara e Carvalho (: 27), mesmo com sua intensa atuação, Albuquerque foi, ao longo das décadas de 1940 e 1950, caindo no esquecimento.

Quando nos debruçamos nas memórias de José de Albuquerque, reconhecemos todos os pontos destacados pelos organizadores deste volume, como, por exemplo, a importância das fontes primárias aqui divulgadas para melhor entendimento tanto da história do ensino e da prática médica quanto da presença e do embate dos valores católicos em relação a diferentes temas relativos ao sexo. As memórias revelam também o modo como este protagonista construiu sua autoimagem, ainda que elas nunca tenham sido publicadas: um testemunho de si que foi escrito na década de 1950 e, cerca de 20 anos depois, modificado em algumas partes. A análise dos originais desta autobiografia revela, portanto, camadas de reconstrução de si relativas a seus dados pessoais e as trajetórias de personalidades que ele cita.

Outros pontos também emergem dessas memórias, as quais poderão servir como tema para futuras análises. O primeiro deles diz respeito à elucidação da rede de intelectuais e profissionais que José de Albuquerque reuniu em torno de sua bandeira de educação sexual: médicos, jornalistas, escritores e educadores da época. Trata-se de representantes de uma classe média urbana, não necessariamente pontuada apenas por figuras renomadas, mas que, de algum modo, considerava as ideias de Albuquerque possíveis de serem postas em prática na sociedade brasileira da década de 1930. Utopia?

O segundo ponto que gostaria de destacar é o de um olhar mais acurado para as estratégias de divulgação e propaganda utilizadas, com os recursos técnicos disponíveis à época, em prol da educação sexual, em que a imprensa leiga e os recursos cinematográficos foram atores importantes. Não é demais lembrar que a década de 1920 assistia à consolidação de uma “imprensa profissionalizada” que atuou fortemente na difusão de ideias de diferentes matizes, apesar de esta ter sido a época também da prática de compra de opinião dos jornais diários (Martins & Luca, 2008MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de. 2008. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto.).

Atualmente, nessas primeiras décadas do século XXI, em que acirrados debates sobre questões relativas à sexualidade vêm estampando também as páginas dos jornais diários e dos diversos tipos de mídia de que dispomos, cabe refletir mais detidamente sobre as alianças se forjam em torno de determinados temas sexuais e analisá-las. Como as mídias de amplo alcance têm servido à difusão de ideias variadas, mais ou menos progressistas, sobre o tema da sexualidade, ao mesmo tempo estruturando e sendo estruturadas por valores culturais afeitos à sociedade brasileira? Em que momentos e em relação a quais assuntos intelectuais, escritores, jornalistas, professores e diferentes profissionais da área da saúde têm participado desses debates? Com isto, me parece, poderemos produzir um foco mais preciso sobre as atuais relações entre sexualidade, sociedade e saúde, em que a medicina é um dos discursos mais valorizados sobre o assunto.

Referências bibliográficas

  • BOURDIEU, Pierre. 1996. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral 8ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora.
  • MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de. 2008. História da Imprensa no Brasil São Paulo: Ed. Contexto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016
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