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A crítica da religião no encontro de Michel Henry com a filosofia marxiana

The critique against religion in Michel Henry’s encounter with Marxian philosophy

RESUMO

A crítica que o jovem Marx dirige contra a religião, em geral, e contra o argumento ontológico, em particular, constitui um ponto de intersecção entre a filosofia marxiana e a fenomenologia radical de Michel Henry. Ao rejeitar a noção de um Deus transcendente, bem como as provas racionais da sua existência, o Marx de Henry refuta, por um lado, todas as críticas da religião que se situam na esfera da pura racionalidade como permite, por outro, conceber uma religiosidade assente na noção de um Deus radicalmente imanente.

Palavras-chave:
Karl Marx; Michel Henry; fenomenologia da vida; argumento ontológico

ABSTRACT

The critique that the young Marx addresses against religion, in general, and against the ontological argument, in particular, constitutes a point of intersection between the Marxian philosophy and Michel Henry’s radical phenomenology. On the one hand, by rejecting the notion of a transcendent God as well as the rational proofs of his existence, Henry’s interpretation of Marx refutes all critiques of religion that lie in the sphere of pure rationality. On the other hand, from this hermeneutic of Marx arises a conception of a religiosity based on the notion of a pure immanent God.

Keywords:
Karl Marx; Michel Henry; phenomenology of life; ontological argument

Introdução

A referência a Marx persiste ao longo de todo o itinerário percorrido por Michel Henry. Tal significa que o nome do filósofo alemão surge tanto na sua tese doutoral de 1963, L’essence de la manifestation (Henry, 2014HENRY, M. 2014. L’essence de la Manifestation, Deuxième édition en un volume. Paris, Épiméthée/PUF ., p. 184) como nos textos que constituem o que os comentadores consideram ser a Trilogie christique (Henry, 2002HENRY, M. 2002. Paroles du Christ. Paris, Les Éditions du Seuil ., p. 8), concluída em 2002.1 1 Ao analisar a literatura secundária referente à obra de Michel Henry, reparamos como é habitual distinguir, na fenomenologia henryana da vida, dois períodos fundamentais: (1) inaugurado em 1963 com a publicação de L’essence de la manifestation, o primeiro período consiste no argumentário da fenomenologia de uma vida que é puramente imanente e acósmica. A esta vida transcendental corresponde o fenómeno da auto-afeição, fenômeno que tem caído no esquecimento ao longo da história da filosofia ocidental; (2) o segundo período diz, sobretudo, respeito às últimas três obras publicadas por Michel Henry que correspondem ao que os comentadores designam por Trilogia crística, devido à centralidade que a teologia cristã e Jesus-Cristo enquanto pessoa assumem nesses textos. Trata-se de uma convergência, por Henry explicitamente assumida a partir do final da década de oitenta do século passado, entre a fenomenologia da vida e o cristianismo (Brohm, 2006, p. 333). O próprio Michel Henry assume, aliás, a continuidade entre os dois períodos, referindo que a sua obra consiste numa aplicação das suas intuições fenomenológicas a diversos âmbitos, tais como a arte, a economia, a cultura, até à religião cristã (Henry, 2005, p. 17). As últimas três obras de Henry são respectivamente: C’est moi la vérité, Incarnation. Une philosophie de la chair e Paroles du Christ. Henry refere-se a Marx nesta Trilogia crística (Henry, 1996, p. 304-310; Henry, 2000, p. 67, p. 269; Henry, 2002, p. 37-39). Para além de Marx ser explicitamente citado nas suas obras magnas, é significativo o fato do fenomenólogo francês ter dedicado cerca de dez anos ao estudo da obra marxiana, não marxista (Leclercq, 2010LECLERCQ, J. 2010. Biographie de Michel Henry et situation de l’entretien. In : M. HENRY, Pour une Phénoménologie de la Vie : entretien avec Olivier Salazar-Ferrer. Mayenne, Éditions de Corlevour , p. 9-27., p. 16).2 2 Tendo em conta as reinterpretações de Marx que têm surgido no seio da filosofia contemporânea, bem distintas do marxismo tradicional (Corcuff, 2012, p. 8-11), seguimos a distinção, hoje em voga entre os comentadores, entre os adjetivos marxista e marxiano: o primeiro refere-se à interpretação do comunismo coletivista tradicional, enquanto o segundo se refere diretamente aos textos de Marx ou às novas interpretações contemporâneas.

No contexto de uma polêmica contra o marxismo-leninismo, oficial à época, e contra o estruturalismo de Althusser, Henry afirma ser importante que seja “a palavra do próprio Marx” a falar (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 33). Assim, uma nova interpretação acaba por emergir, corroborando os princípios da fenomenologia henryana da vida.

Henry lê a obra de Marx como uma ontologia da subjetividade segundo a qual a primeira realidade consiste na vida imanente de cada indivíduo concreto.3 3 Collin corrobora, num estudo recente, esta interpretação henryana (Collin, 2018, p. 57). Nesta ótica, contrariamente ao pensamento marxista tradicional, são os “indivíduos vivos” que fundam, a partir da sua vida imanente, as superestruturas histórico-sociais (jamais o contrário). Com o intuito de justificar tal afirmação, Henry focaliza-se na noção de “indivíduo vivo” e no princípio marxiano segundo o qual “não é a consciência que determina a vida, [mas] é a vida que determina a consciência” (Henry, 2008HENRY, M. 2008. Le Socialisme selon Marx. Cabris, Éditions Sulliver., p. 20).

A máxima expressão da originalidade da interpretação henryana reside na afirmação segundo a qual Marx terá sido “um dos primeiros pensadores cristãos do ocidente” (Henry, 1976bHENRY, M. 1976b. Marx II. Une philosophie de l’économie. Paris, Éditions Gallimard ., p. 445). A crítica marxiana contra a religião, em particular, e contra a ideologia, em geral, permite compreender esta polêmica afirmação. Tendo por objetivo a destruição da metafísica do universal em benefício de uma ontologia positiva do indivíduo ou da subjetividade, a crítica de Marx contra a religião não vale em si mesma. Ao transferir o debate em torno das provas racionais da existência de Deus (particularmente do argumento ontológico) para um nível distinto da pura racionalidade, a crítica marxiana da religião constitui um ponto de intersecção entre Marx e Henry.

Parece-nos, ademais, que Marx acaba por se aproximar mais dos autores pós-modernos, para quem tudo é contingente, que Henry. De fato, enquanto o autor de Trier concebe o indivíduo humano situado na contingência das estruturas intramundanas e históricas, o fenomenólogo francês regressa ao absoluto de uma Vida, explicitamente em maiúscula, que se confunde com Deus. Julgamos que a leitura henryana da obra de Marx se revela importante no contexto hodierno, na medida em que legitima o regresso a uma religiosidade que não seja exterior nem contra o desenvolvimento da vida individual de cada pessoa humana.

1. A crítica contra a religião segundo o Marx de Michel Henry

1.1. A religião enquanto alienação ou ideologia

Como é possível considerar, séria e honestamente, que Marx seja um “pensador cristão”, quando se trata de um ateu assumido desde tenra idade? Contrariamente ao seu amigo e colaborador próximo de nome Engels, Marx nunca professou um credo religioso, nem nunca manifestou ter tido quaisquer experiências religiosas. Enquanto Engels passou por fortes crises de fé, antes de rejeitar o cristianismo que o formou, Marx parece ter sido sempre um ateu assumido. Talvez por isso, o filósofo de Trier atribua um interesse muito residual tanto à religião, em geral, como à sua crítica, em particular (Ngoc Vu, 1975NGOC VU, N. 1975. Idéologie et Religion d’après Marx et Engels. Paris, Aubier Montaigne, p. 17, p. 115). É, no entanto, indiscutível que a crítica da religião constitui um dos vetores que o pensamento marxiano atravessa. Henry situa a “crítica da religião” como um dos elementos que caracterizam o “humanismo do jovem Marx” (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 84), focalizando-se sobretudo num texto de 1843: “o fundamento da crítica irreligiosa é o seguinte: é o ser humano que faz a religião, não é a religião que faz o ser humano” (Marx, 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p. 285).

A crítica marxiana contra a religião tem por destinatário toda e qualquer expressão do idealismo alemão. Trata-se, no fundo, do Deus de Hegel, isto é, um Deus concebido no seio do idealismo que Marx procura superar. Esta noção de Deus, contra a qual o jovem Marx se dirige, consiste numa entidade universal exterior, independente e fundante da existência concreta do ser humano (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 100-102).

Ao dirigir-se contra a noção de um Deus exterior, Marx não critica apenas os filósofos cristãos: ele rejeita também as filosofias ateias e materialistas, cujas abordagens se situam no horizonte teórico do idealismo alemão. Percebemos, assim, por que razão, a par da crítica da religião, se elabora uma crítica da crítica, pois o idealismo alemão produz, ele próprio, uma crítica contra a religião que não é suficiente (Marx, 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p 285).4 4 Henry interpreta estas palavras afirmando que “a crítica da religião de Marx não é de Marx e não pertence ao seu próprio pensamento”, mas à “Alemanha” (Henry, 1976a, p. 86).

Segundo a interpretação henryana, a crítica destina-se apenas à noção de Deus enquanto entidade exterior à vida concreta dos indivíduos humanos, contra qualquer forma de religião que promova e preserve a alienação do ser humano concreto condenado à miséria relativa à vida que lhe é proporcionada no aquém deste mundo, desta sociedade, deste período histórico: “A miséria religiosa é simultaneamente a expressão da miséria efetiva e o protesto contra a miséria efetiva. A religião... é o ópio do povo. Abolir a religião como ilusória felicidade do povo significa exigir a sua felicidade efetiva” (Marx, 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p. 286).

Não se trata de criticar a religião em si mesma, mas de a enquadrar na problemática antropocêntrica da alienação. A crítica da religião é prévia à crítica social e política que constitui, para Marx, o fim último de toda a sua crítica (Ngoc Vu, 1975NGOC VU, N. 1975. Idéologie et Religion d’après Marx et Engels. Paris, Aubier Montaigne, p. 132). É por isso que a crítica da religião se integra na “crítica de um mundo que precisa da ilusão religiosa” (Collin, 2018COLLIN, D. 2018. Introduction à la Pensée de Marx. Paris, Les Éditions du Seuil., p. 35).

1.2. A crítica da religião e a emancipação concreta dos indivíduos humanos

Estando assim subordinada a um processo de libertação ou emancipação, que podemos denominar de desalienação5 5 Désaliénation é um termo usado por Ngoc Vu com o intuito de exprimir a ideia de “emancipação” em Marx (Ngoc Vu, 1975, p. 129-130). , a crítica marxiana acaba por reconhecer, nomeadamente no excerto citado, algum valor positivo à religião. De fato, tal como Bertrand ratifica, grande parte dos comentários em torno da expressão marxiana “ópio do povo” manifestam “total incompreensão do pensamento de Marx” (Bertrand, 1979BERTRAND, M. 1979. Le Statut de la Religion chez Marx et Engels. Paris, Éditions Sociales., p. 48), dado que a expressão é, de certa forma, laudativa para com a religião.

Devemos ter em conta que o ópio, no século XIX, era essencialmente utilizado como analgésico, tendo o próprio Marx recorrido a esse produto medical. Nesse sentido, a religião manifesta a capacidade de tranquilizar e consolar o ser humano situado num contexto de miséria efetiva (Bertrand, 1979BERTRAND, M. 1979. Le Statut de la Religion chez Marx et Engels. Paris, Éditions Sociales., p. 47-49). A religião constitui uma expressão da revolta contra a situação de miséria e injustiça na qual o indivíduo se encontra.

A religião torna-se objeto de crítica (apenas) quando funciona como um mecanismo que imobiliza os indivíduos na sua situação de penúria, impedindo dessa forma o movimento da práxis que visa a transformação da realidade concebida enquanto vida real dos seres humanos. Henry mostra como a crítica marxiana contra a religião deve ser interpretada a partir do enunciado expresso na famosa XI. a Tese sobre Feuerbach: “os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa, é transformá-lo” (Marx, 1982aMARX, K. 1982a. De l’abolition de l’état à la constitution de la société humaine (Notes et Thèses, 1845). In : K. MARX, Œuvres complètes - Tome III, col. « La pléiade ».Paris, Éditions Gallimard , P. 1019-1036., p. 1033).

Para Henry, as Teses procuram responder à questão de saber “o que é a realidade?” Como resposta a esta questão surge a práxis, em clara oposição à teoria (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 314).6 6 Para o Marx de Henry, a práxis identifica-se com a realidade primordial, com o Ser mesmo. Henry interpreta a XI. a Tese como a refutação do “materialismo intuitivo”, para o qual a realidade é “objetiva” e o acesso ao real se dá através da representação, isto é, da pura racionalidade (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 316). A alienação religiosa enquadra-se, portanto, no âmbito de uma alienação mais abrangente que afeta o indivíduo humano em todas as suas dimensões existenciais.

Para Bertrand, “há uma relação direta entre as produções religiosas do espírito humano, por um lado, e as condições reais da sua existência, por outro, isto é, uma relação da religião com as formas e os modos de produção” (Bertrand, 1979BERTRAND, M. 1979. Le Statut de la Religion chez Marx et Engels. Paris, Éditions Sociales., p. 44). Tanto a alienação religiosa como a alienação econômica do capitalismo funcionam como um processo de exteriorização no sentido de determinar a realidade a partir de um elemento objetivo e racional que não pertence à esfera da vida do homem concreto: “Quanto mais o operário se exterioriza no seu trabalho, mais o mundo estranho e objetivo que ele cria em face de si se torna potente... O mesmo se passa com a religião. Quanto mais o homem atribui a Deus, menos guarda para si mesmo” (Marx, 1968MARX, K. 1968. Manuscrits de 1844. Paris, Éditions Sociales ., p. 57-58).

Ao se focalizar no ser humano como realidade originária a partir da qual e em função da qual o mundo deve ser transformado, a filosofia marxiana procura libertar a consciência iludida (isto é, auto-alienada) na crença de um ente e de uma vida existentes num além absolutamente transcendente em relação a este mundo contingente e finito: “A religião é uma alienação, um tornar-se outro, a objetivação da essência do homem em Deus. A crítica da religião... é a supressão desta alienação, o regresso a si da essência humana” (Henry, 2004aHENRY, M. 2004a. L’évolution du concept de la lutte des classes dans la pensée de Marx. In: M. HENRY, Phénoménologie de la vie - Tome III. Paris, Épiméthée/PUF, p. 105-122., p. 106).

No âmbito de uma crítica mais abrangente, a crítica da religião tem em vista a desalienação contra o primado do universal sobre o particular, primado este que predomina, segundo Marx, em todas as filosofias do seu tempo. A crítica da religião situa-se, por isso, no mesmo plano da crítica contra os materialismos de Feuerbach ou de Proudhon. Visa-se sempre a mesma emancipação ou desalienação, tanto quando Marx rejeita a religião, que concebe um Deus exterior à essência humana e que a determina desde fora, como quando critica o materialismo de Feuerbach, segundo o qual o conceito universal e abstrato de gênero humano define a vida concreta dos indivíduos.

2. Michel Henry, leitor do comentário de Karl Marx sobre o argumento ontológico

2.1. A práxis como realidade primeira em relação à teoria

Assim elevada ao estatuto de filosofia primeira, a antropologia surge, no pensamento marxiano, essencialmente como práxis. Trata-se de uma atividade viva - do povo revolucionário - que nunca se reduz ao domínio do pensamento puro. Marx coloca-nos diante da possibilidade de uma ação viva que rompe radicalmente com a especulação teórico-interpretativa que tem prevalecido na tradição filosófica do ocidente cristão. A religião do idealismo é um exemplo de uma especulação teórico-interpretativa, a partir da qual a consciência imobiliza a práxis dos indivíduos humanos, deixando-os paralisados na sua situação, radicalmente injusta, de miséria efetiva. Trata-se do estado em que a consciência humana engendra representações ideais e ideológicas, em função das quais acaba por assentir à esperança presente na vida futura de um além (irreal). O indivíduo humano concreto acaba por se acomodar, dessa forma, à situação da sua vida presente, aderindo à ilusão de considerar ser impossível ou irrelevante transformar o mundo do aquém onde ele se insere.

O conceito marxiano de práxis corresponde ao que, nos termos da fenomenologia material7 7 Henry, em vista a diferenciar a sua abordagem da de Husserl, designa a sua fenomenologia como “fenomenologia material”, “fenomenologia radical” ou “fenomenologia da vida” (Jeanet al., 2010, p. 61-89). , se designa por vida imanente e acósmica: “Esta dimensão original do ser como exclusiva de toda a distanciação e de toda a diferença, isto é, como vida, Marx designa “práxis”” (Henry, 2008HENRY, M. 2008. Le Socialisme selon Marx. Cabris, Éditions Sulliver., p. 51).

Desse modo, percebemos como a crítica que Marx dirige contra a religião não é elaborada na exclusiva esfera da consciência intelectiva. Pelo contrário, o Marx de Henry não critica a religião a partir da abstração de conceitos, nem do encadeamento lógico-argumentativo de premissas. A crítica das provas racionais da existência do ens divinum começa, então, por uma mudança de plano argumentativo. Ou seja, enquanto a maior parte dos filósofos (incluindo os autores materialistas e ateus contemporâneos de Marx) procurava refutar as provas da existência de Deus no mesmo plano argumentativo em que tais provas se engendravam, Marx procurou transferir o debate para fora da esfera da razão pura.

Nesse sentido, contrariamente à leitura amplamente difundida pelo marxismo tradicional, julgamos que Marx não se encontra em total continuidade com a Aufklärung alemã.8 8 Discordamos da posição de Ngoc Vu, para quem Marx, ao refutar as provas racionais da existência de Deus, se situaria na continuidade da herança da Aufklärung alemã (Ngoc Vu, 1975, p. 116). Como Henry, consideramos a crítica marxiana contra a religião como uma crítica contra o racionalismo iluminista da Aufklärung. A crítica que Marx dirige contra Kant, precisamente no contexto em que comenta o argumento ontológico, corrobora tal perspectiva. No que diz respeito à refutação das demonstrações racionais da existência de Deus, Marx oferece uma clara novidade ao debate que vigorava na época.

2.2. A crítica marxiana e henryana contra o argumento ontológico

Na sua dissertação doutoral de 1841, o jovem Marx conclui o seu texto com uma longa nota na qual comenta o célebre argumento ontológico. Utilizando a terminologia kantiana da prova de Anselmo, por Descartes reformulada, Marx considera que “a crítica de Kant não significa grande coisa” (Marx, 1982bMARX, K. 1982b. Différence de la philosophie naturelle chez Démocrite et chez Épicure. In : K. MARX, Œuvres complètes - Tome III, col. « La pléiade ».Paris, Éditions Gallimard , P. 3-100., p. 99). A rejeição da crítica kantiana comprova a originalidade de Marx no tratamento da questão.

As provas da existência de Deus apenas são provas da existência da consciência humana essencial de si... todas as provas da existência de Deus são provas da sua não-existência, são refutações de todas as representações de qualquer Deus. As verdadeiras provas deviam formular-se... assim: “porque a natureza é mal feita, Deus é”... Por outras palavras, a derazão é a existência de Deus (Marx, 1982bMARX, K. 1982b. Différence de la philosophie naturelle chez Démocrite et chez Épicure. In : K. MARX, Œuvres complètes - Tome III, col. « La pléiade ».Paris, Éditions Gallimard , P. 3-100., p. 100).

Este texto, raramente citado, não passa despercebido a Henry, que o interpreta à luz dos escritos do jovem Marx. Seguindo a lógica marxiana, o homem cria a religião de forma a poder integrar na sua vida o absurdo da sua própria existência, ou seja, a “derazão” do mundo que lhe é imposto: “A religião é a consciência de si e o sentimento de si do ser humano que ainda não se encontrou consigo mesmo... [a religião] é a realização fantástica da essência humana” (Marx, 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p. 285-286).

Trata-se de uma explicação elaborada ao nível da abstração pura, isto é, no plano da teoria que, em última análise, procura conduzir o ser humano a aceitar, ao nível da sua consciência, a sua existência penível, absurda, injusta e não necessária no mundo concreto da sua vida real.

Marx nunca concebe a religião como uma entidade separada das outras esferas do mundo humano. O âmbito religioso, incluindo até mesmo a especulação teórica dos teólogos, está profundamente ligado às estruturas de uma determinada sociedade, tal como o luteranismo do século XIX se liga ao capitalismo do mesmo período: “este Estado, esta sociedade produzem a religião” (Marx, 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p. 285). Ou, “a religião é o primado da economia” (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 69).

A crítica contra a religião não pode reduzir-se, por isso, a uma refutação que se desenvolve num âmbito exclusivamente teórico, onde as demonstrações se desmontam através do encadeamento lógico-conceptual de premissas. Esse é o erro dos materialistas contemporâneos de Marx. Segundo a XI. a Tese sobre Feuerbach, esse tipo de refutação seria apenas uma nova interpretação teórica. É por isso que Marx não atribui “grande valor” à objecção que Kant levanta contra o argumento ontológico. A refutação kantiana tem o mesmo valor que a prova de Descartes porque, ao nível da realidade humana, isto é, no plano da vida concreta dos indivíduos humanos, nada muda. A objeção de Kant apenas é uma nova teoria, uma interpretação diferente, incapaz de transformar substancialmente a realidade que a vida constitui. Compreendemos o menosprezo de Marx em relação a Kant a partir da lógica da crítica marxiana contra a religião: uma crítica que não visa apenas denunciar a felicidade ilusória que a religião oferece, mas alcançar uma felicidade efetiva.

É nesse mesmo sentido que o jovem Marx elabora uma crítica da crítica, refutando Bauer e até mesmo Feuerbach, cujas críticas meramente especulativas se revelam incapazes de transferir o debate da teoria à práxis. Para Marx, “repondo ao homem o que lhe pertence, a crítica da religião realiza-se pela substituição da antropologia à teologia” (Henry, 1976HENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard.a, p. 90).

Tal substituição é inteligível apenas sob a condição da realidade residir no homem e não fora dele. Seguindo, nesse aspecto, a intuição de Feuerbach, Marx considera que “as provas de Deus têm por objetivo exteriorizar o interior, de o separar do homem” (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 102). A explicação do fenômeno religioso a partir da noção de projeção entusiasma o jovem Marx que radicaliza esse princípio ao se focalizar na realidade do indivíduo humano. No entanto, Marx acaba por criticar Feuerbach, sobretudo nos textos redigidos a partir de 1845, por considerar que o pai do materialismo alemão se focaliza na noção universal de gênero humano. Feuerbach acaba por permanecer, assim, no horizonte teórico da representação abstrata, que não parte da, nem visa a verdadeira essência humana (Henry, 1976bHENRY, M. 1976b. Marx II. Une philosophie de l’économie. Paris, Éditions Gallimard ., p. 19).

Vislumbramos, pois, aquela que é, segundo a leitura henryana, a tese fundamental da dissertação doutoral de 1841: trata-se da posição de Epicuro, segundo a qual “a representação não define a realidade” (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 281).

Enquanto fenomenólogo, Henry preocupa-se primeiramente com o aparecer. Em vez de partir de princípios abstratos que determinam o real pela ordem ontológica estabelecida a priori, o método fenomenológico procura partir da realidade bruta, tal como ela se manifesta. Henry identifica Marx como um percursor desse método fenomenológico, que desce às coisas mesmas:

O homem é o seu próprio fundamento, a sua raiz. Aí se reconhece uma crítica radical... Marx diz: “Ser radical é tomar as coisas pela sua raiz. E, para o homem, a raiz é o próprio homem.” E ele acrescenta... “A crítica da religião resulta nesta doutrina segundo a qual o homem é, para o homem, o ser supremo” (Henry, 1976HENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard.a, p. 91).

Esta passagem expressa bem o cerne da crítica marxiana contra a religião. Situando-se na imanência da consciência de si, o erro da religião dá-se quando se atribui o fundamento a um Deus transcendente, concebido como uma entidade exterior que apenas existe para além do mundo humano e que, desde fora, o determina. Esta concepção marxiana da religião como alienação ou ideologia, ligada à noção de Deus como ente absolutamente transcendente, exerceu uma influência significativa em Henry.

Por um lado, no que à sua tese doutoral de 1963 diz respeito, tal crítica surge nos parágrafos §8 e §10 da primeira secção. O argumento ontológico exemplifica o que Henry denomina por “monismo ontológico”: a absolutização de um único modo de aceder à realidade e desta se manifestar, a saber, o modo da representação elaborada por uma consciência intencional (Henry, 2014HENRY, M. 2014. L’essence de la Manifestation, Deuxième édition en un volume. Paris, Épiméthée/PUF ., p. 62, 82). No fundo, o monismo consiste na filosofia que, em termos marxianos, se concentra exclusivamente na teoria. Ao propor apenas diferentes interpretações da realidade, nunca desce ao fundamento do real que a práxis constitui.

Por outro lado, no primeiro volume da obra consagrada a Marx, Henry refere explicitamente a crítica que o autor de Trier dirige ao argumento ontológico na dissertação de 1841 (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 89). A crítica marxiana exprime o irreal enquanto noções abstratas que procuram definir a realidade desde fora da essência humana. Eis o âmbito onde operam as abstrações teórico-especulativas dos argumentos filosóficos. Segundo Marx, o argumento ontológico afirma a existência de um Deus que é inconcebível: um Deus absolutamente transcendente ao mundo onde o ser humano se situa; um Deus que nunca se manifesta na vida concreta dos indivíduos. Trata-se, por isso, da afirmação de uma não-existência. A verdadeira existência reside, segundo Marx, no ser humano (em termos henryanos, na vida imanente). Em suma, o problema do argumento ontológico não consiste tanto na sua validade ou invalidade lógico-silogística, mas sobretudo no fato do argumento afirmar a não-existência de Deus no concreto da vida dos homens.

Ao afirmar a existência de um Deus puramente transcendente, cuja essência é incompreensível ou impensável, estabelece-se um conceito (teórico) desligado da vida imanente dos seres humanos. Eis o problema que Henry atribui ao monismo ontológico: conceber uma única maneira dos entes existirem que, no fundo, equivale a uma não-existência prática. Em termos henryanos, não-existência significa transcendência ou ausência de fenomenalidade; ou seja, impossibilidade do ente (cuja existência se afirma) se revelar na vida concreta dos indivíduos.9 9 Por outras palavras, no quadro do monismo, existir implica uma exteriorização da essência a dois níveis distintos: (1) por um lado, o ente que existe separa-se, ou seja, exterioriza-se em relação à sua essência para se situar no horizonte de visibilidade de uma consciência intencional; (2) por outro lado, existir significa manifestar-se para outro ente distinto de si, isto é, existir significa revelar-se a um sujeito. Por outras palavras, o existir de um objeto corresponde a estar diante de um sujeito que nunca acede à essência da realidade posicionada diante si.

Enquanto Marx identifica a afirmação da existência de tal Deus com a alienação da essência humana ou com uma forma de ideologia, Henry considera que o argumento ontológico contribuiu de forma decisiva, no decurso da História da Filosofia ocidental, para o esquecimento da vida imanente (Henry, 1996HENRY, M. 1996. C’est Moi la Vérité. Paris, Les Éditions du Seuil ., p. 138-139). Para ambos, as provas racionais da existência de Deus pressupõem que a realidade do ser humano não lhe pertence, ou seja, que a vida humana não só não é originária, como é determinada em função de princípios de um ente exterior, distante e estranho ao homem.

O paralelismo entre Marx e Henry é, portanto, evidente. Deus, enquanto ser sobrehumano, bem como a religião concebida como Céu, surgem, em Marx, como expressão da “criatura oprimida” (Marx, 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p. 285-286). Quanto a Henry, ele não só critica a mesma noção de um Deus puramente transcendente, como liga essa mesma noção um estado de “tristeza”. Por partilhar o conteúdo das ideias expressas e os termos utilizados na literatura marxiana, ecoa na sua fenomenologia o adágio de Marx, segundo o qual “abolir a religião como felicidade ilusória do povo é exigir a sua felicidade efetiva” (Marx 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p. 286).

Henry interpreta o ataque dirigido por Marx contra a religião, em geral, e contra o argumento ontológico, em particular, sempre em relação a este Deus exterior e distante da vida humana; um Deus que, ao nível da especulação puramente teórica, legitima o estado de miséria e de infelicidade no qual se encontra o indivíduo humano.

Neste contexto, é interessante notar como Henry cita a única passagem onde Marx se refere ao argumento ontológico com o intuito de mostrar a alienação que a religião (tal como concebida pelo argumentum) sustenta: “é a rejeição da alienação da consciência que pré-esboça e forma o tipo de libertação pretendido pelo ateísmo” marxiano (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 89).

De fato, a alienação que Marx condena consiste precisamente nesta “consciência infeliz” da “criatura oprimida”. A religião que ele procura destruir diz respeito à crença num “Deus distante”, capaz de fundar, desde fora da vida humana, o mundo injusto no qual o ser humano se encontra imobilizado na sua ação: desse modo, “uma vez extinto o além da verdade... a crítica do céu se torne assim numa crítica da terra” (Marx 2018MARX, K. 2018. Contribution à la Critique de la Philosophie du Droit de Hegel. Paris, Les Éditions Sociales Geme., p. 286).

2.3. O cristianismo de Henry e o ateísmo de Marx

Consideramos ser bastante significativo o fato de a crítica contra o argumento ontológico que Henry encontrou em Marx persistir mesmo quando o fenomenólogo francês se assume como um autor cristão. Por outras palavras, as provas racionais da existência de Deus não têm lugar no cristianismo de Henry que, nesse aspecto, se identifica com o ateísmo de Marx.

Com efeito, no primeiro volume da sua Trilogia, Henry dirige-se, não contra o argumento ontológico em geral (tal como faz nas obras anteriores), mas citando explicitamente Anselmo, autor “que operou pela primeira vez o que se deve denominar uma desnaturação da questão de Deus, a transformação de uma fusão afetiva a uma abordagem racional” (Henry, 1996HENRY, M. 1996. C’est Moi la Vérité. Paris, Les Éditions du Seuil ., p. 194). A referência explícita ao Proslogion de Anselmo justifica-se na medida em que nele reside a primeira formulação da prova, cuja denominação mais difusa consiste no sintagma argumento ontológico.

Mesmo depois de integrar o cristianismo no seu pensamento, Henry continua a refutar as provas racionais da existência do ens divinum referentes à noção de um Deus transcendente. Percebemos, assim, como o cristianismo do qual Henry se apropria difere do cristianismo do idealismo alemão, por Marx veemente rejeitado. Segundo Fichte, Boehm ou Hegel, o cristianismo concebe Deus como um Ser absolutamente transcendente, um Ser cujo Verbo consiste numa manifestação enquanto exteriorização de si num mundo (Henry 2014HENRY, M. 2014. L’essence de la Manifestation, Deuxième édition en un volume. Paris, Épiméthée/PUF ., p. 81-90). Trata-se precisamente da noção de Deus implicitamente implicada no argumento ontológico, noção que corrobora o princípio unívoco da manifestação da realidade segundo o monismo por Henry abandonado.

Contudo, o cristianismo com o qual Henry identifica a sua fenomenologia difere radicalmente desta perspectiva de um Deus exterior ao homem, de um Deus que sujeita o ser humano a uma heteronomia absoluta. Tal como o ateísmo de Marx, o cristianismo de Henry procura elaborar aquilo que ele denomina por “ontologia positiva da subjetividade” ou “metafísica do indivíduo” em clara oposição à “ontologia do universal” (Henry, 2014HENRY, M. 2014. L’essence de la Manifestation, Deuxième édition en un volume. Paris, Épiméthée/PUF ., p. 519, 906). Trata-se, por outras palavras, de definir o ser humano e a sua vida a partir das suas forças imanentes, em função da sua própria realidade, em vez de a submeter à manifestação de um Deus exterior com os seus princípios estranhos à essência humana.

A rejeição radical da noção do Deus transcendente liga, não só a fenomenologia de Henry ao pensamento de Marx, mas precisamente o cristianismo do primeiro com o ateísmo do segundo. Desse modo, Henry mostra-nos que, “no que à religião diz respeito, esta crítica [a de Marx] não é tão radical quanto nos possa parecer” (Henry 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 89). Compreendemos, assim, a afirmação, elaborada no estilo provocador que caracteriza a literatura henryana, segundo a qual Marx seria “um dos primeiros pensadores cristãos”. Tal afirmação torna-se inteligível quando se concebe o cristianismo como uma religião de um Deus puramente imanente, compatível com uma metafísica positiva da realidade que define o ser do indivíduo humano.

Afirmar Marx como cristão não é mais paradoxal que opor santo Anselmo ao cristianismo. E Henry tanto afirma uma coisa como outra (Henry, 1996HENRY, M. 1996. C’est Moi la Vérité. Paris, Les Éditions du Seuil ., p. 72). Então, se o Deus do cristianismo é radicalmente diferente do Deus de Anselmo, torna-se imperioso compreender qual é a diferença entre as duas noções de Deus. Ora, segundo Henry, o Deus cristão consiste na Vida imanente da qual o ser humano faz experiência (épreuve). Através do conceito de auto-afeição, Henry exprime o fenômeno original do indivíduo humano (do ego) que faz a experiência de sentir a sua própria vida. Por outras palavras, antes de sentir objetos distintos da vida que lhe é própria, antes de fazer a experiência de uma hetero-afeição, o ego sente-se a si mesmo, a sua própria realidade, a vida que lhe é imanente e sente-o de uma forma afetiva.

Além disso, como o ego sente que é engendrado, isto é, que vem à vida não por ele mesmo, Henry considera que a sua auto-afeição deve ser compreendida num “sentido fraco”. Ou seja, enquanto se sente engendrado ao interior de uma Vida com maiúscula, torna-se legítimo ao ego conceber-se a si mesmo como estando ligado a um Deus que lhe é imanente e que se confunde com o que Henry denomina por “Vida absoluta” (Henry, 1996HENRY, M. 1996. C’est Moi la Vérité. Paris, Les Éditions du Seuil ., p. 120-141). Trata-se de um Deus que não impõe uma heteronomia desde fora, mas que funda o sentir e a ação do ego a partir da imanência da sua vida. Assim, esta concepção de Deus deixa de se opor à realização (ou emancipação) do indivíduo a partir da sua práxis.

Desta forma, contrariamente à religião refutada por Marx, isto é, contrariamente à religião que resulta da “derazão” (enquanto ausência de sentido para a vida concreta do indivíduo), Henry concebe um outro tipo de religião ou de religiosidade, onde Deus surge como a Vida sentida na imanência de cada ser humano.

Compreendemos, dessa forma, que enquanto Marx rejeita a noção de um Deus transcendente, Henry concebe um Deus puramente imanente. E é aí que o cristianismo henryano se une ao ateísmo de Marx, apesar de, no que diz respeito à noção de Deus e da religião, Henry ir mais longe que Marx, autor que reduz tais noções ao âmbito exclusivamente exterior da essência humana.

No fundo, Henry acaba por identificar o erro de Marx que consiste (apenas) na redução de Deus a uma entidade transcendente, abstrata e exterior à essência humana, bem como da religião ao cristianismo concebido pelo idealismo alemão do seu tempo. Afirmamos que o erro de Marx consiste apenas nessa redução, porque a crítica marxiana contra a religião e contra as provas racionais de Deus está, no essencial, correta: a noção de um Deus transcendente e da religiosidade que o concebe enquanto tal deve ser radicalmente rejeitada.

Em relação a essa noção de Deus, o Henry da Trilogia crística é, tal como Marx, ateu. Tanto assim é que Henry considera o pensamento de Marx “incompatível” com a crítica de um Deus imanente, que se confunde com a Vida à qual cada indivíduo humano participa. Tendo, então, em conta o fato de o Deus cristão corresponder a essa noção de Deus imanente, recuperada pela fenomenologia henryana da vida, torna-se assim inteligível que Marx seja um “pensador cristão.”

Conclusão

O Marx de Henry constitui indubitavelmente uma obra polêmica, não só por se opor explicitamente às interpretações marxistas e estruturalistas que vigoravam à época, mas sobretudo porque identifica Marx, um ateu professo, como um “pensador cristão”. E, além de afirmar a identidade cristã de Marx, Henry considera que o Marx fidedigno é o seu: o Marx de Henry enquanto a autêntica interpretação da obra marxiana.

Passados mais de quarenta anos da publicação dos dois volumes que Henry consagrou ao estudo da filosofia marxiana, é evidente que o seu Marx não coincide exatamente com o pensamento autêntico do filósofo de Trier. Trata-se, antes, de uma interpretação original que privilegia certos conceitos, no conjunto da obra marxiana, em detrimento de outros, em vista a integrar o pensamento marxiano na fenomenologia da vida.

Compreende-se, assim, por que razão a obra henryana exclui da análise conceitos centrais na obra do pensador de Trier, tais como circunstâncias, povo ou mundo, que determinam segundo Marx a essência do ser humano. Ao absolutizar dessa forma a noção marxiana de indivíduo vivo, Henry considera que, para Marx, a realidade originária reside numa vida imanente que é acósmica, isto é, anterior e independente da manifestação no horizonte histórico e intramundano. Trata-se da vida transcendental que se manifesta através do fenômeno da auto-afeição. Contudo, é difícil encontrar em Marx este horizonte fenomenológico próprio de uma vida acósmica.

Só podemos concordar, por isso, com a crítica que Ricœur dirigiu contra Henry, no sentido de mostrar como a sua análise da obra marxiana, por ser demasiado parcial e seletiva na escolha das passagens e dos conceitos, não pode arrogar-se de ter expresso o pensamento integral do autor alemão. O próprio Henry acabou, aliás, por reconhecer a pertinência de tal crítica, assumindo que o seu estudo da obra marxiana consiste numa reinterpretação à luz das intuições da sua fenomenologia da vida (Henry, 2005HENRY, M. 2005. Entretiens. Paris, Éditions Sulliver., p. 90; Henry, 2004bHENRY, M. 2004b. La rationalité selon Marx. In: M. HENRY, Phénoménologie de la vie - Tome III. Paris, Épiméthée/PUF , p. 77-104., p. 101-104).

Contudo, ao reinterpretar Marx dessa forma, Henry permite um aprofundamento da crítica marxiana contra a religião, em geral, e das provas da existência de Deus, em particular, que nos parece importante, no atual contexto pós-moderno.

Ao mostrar que, para Marx, a crítica contra a religião não tem valor em si mesma, Henry permite uma crítica marxiana de todas as críticas hodiernas que refutam a existência de Deus num âmbito puramente teórico, fechado em si mesmo, sem qualquer referência à transformação da situação concreta dos indivíduos que necessitam de acreditar num Deus transcendente e numa verdade para além das suas vidas.

O Marx de Henry conduz-nos, em suma, ao horizonte pós-moderno no qual já não é possível conceber a existência humana como sendo determinada desde uma metafísica do absoluto ou do universal que define a realidade desde fora. Aceitando a manifestação do ser humano, tal como ele se encontra na sua vida concreta e contingente, o Marx de Henry leva-nos a repensar, não apenas nem fundamentalmente a noção de Deus mas, sobretudo, todas as críticas que ainda se dirigem contra a religião num âmbito puramente teórico, âmbito este que esquece a realidade primordial que a vida imanente constitui para o ser humano.

Na medida em que o ateísmo visa desconstruir a (ilusória) noção de um Deus transcendente, absolutamente distinto da essência humana, podemos afirmar que, mesmo durante a sua fase cristã, Henry é ateu nesse sentido. Em suma, o Marx de Henry mostra-nos como a crítica marxiana é compatível com uma noção de um Deus que se identifica com a Vida imanente ao homem e que não impede, assim, a práxis transformadora do mundo. Torna-se, assim, possível conceber uma religiosidade legítima mesmo no quadro da crítica marxiana.

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  • NGOC VU, N. 1975. Idéologie et Religion d’après Marx et Engels Paris, Aubier Montaigne
  • 1
    Ao analisar a literatura secundária referente à obra de Michel Henry, reparamos como é habitual distinguir, na fenomenologia henryana da vida, dois períodos fundamentais: (1) inaugurado em 1963 com a publicação de L’essence de la manifestation, o primeiro período consiste no argumentário da fenomenologia de uma vida que é puramente imanente e acósmica. A esta vida transcendental corresponde o fenómeno da auto-afeição, fenômeno que tem caído no esquecimento ao longo da história da filosofia ocidental; (2) o segundo período diz, sobretudo, respeito às últimas três obras publicadas por Michel Henry que correspondem ao que os comentadores designam por Trilogia crística, devido à centralidade que a teologia cristã e Jesus-Cristo enquanto pessoa assumem nesses textos. Trata-se de uma convergência, por Henry explicitamente assumida a partir do final da década de oitenta do século passado, entre a fenomenologia da vida e o cristianismo (Brohm, 2006BROHM, J. M. 2006. Une lecture phénoménologique de Marx. In : J. LECLERCQ; J. M. BROHM (orgs.), Michel Henry. Lausanne, L’Âge de l’Homme, p. 333-340., p. 333). O próprio Michel Henry assume, aliás, a continuidade entre os dois períodos, referindo que a sua obra consiste numa aplicação das suas intuições fenomenológicas a diversos âmbitos, tais como a arte, a economia, a cultura, até à religião cristã (Henry, 2005HENRY, M. 2005. Entretiens. Paris, Éditions Sulliver., p. 17). As últimas três obras de Henry são respectivamente: C’est moi la vérité, Incarnation. Une philosophie de la chair e Paroles du Christ. Henry refere-se a Marx nesta Trilogia crística (Henry, 1996HENRY, M. 1996. C’est Moi la Vérité. Paris, Les Éditions du Seuil ., p. 304-310; Henry, 2000HENRY, M. 2000. Incarnation. Une philosophie de la chair. Paris, Les Éditions du Seuil . , p. 67, p. 269; Henry, 2002HENRY, M. 2002. Paroles du Christ. Paris, Les Éditions du Seuil ., p. 37-39).
  • 2
    Tendo em conta as reinterpretações de Marx que têm surgido no seio da filosofia contemporânea, bem distintas do marxismo tradicional (Corcuff, 2012CORCUFF, P. 2012. Marx, XXème Siècle: textes commentés. Paris, Éditions Textuel., p. 8-11), seguimos a distinção, hoje em voga entre os comentadores, entre os adjetivos marxista e marxiano: o primeiro refere-se à interpretação do comunismo coletivista tradicional, enquanto o segundo se refere diretamente aos textos de Marx ou às novas interpretações contemporâneas.
  • 3
    Collin corrobora, num estudo recente, esta interpretação henryana (Collin, 2018COLLIN, D. 2018. Introduction à la Pensée de Marx. Paris, Les Éditions du Seuil., p. 57).
  • 4
    Henry interpreta estas palavras afirmando que “a crítica da religião de Marx não é de Marx e não pertence ao seu próprio pensamento”, mas à “Alemanha” (Henry, 1976aHENRY, M. 1976a. Marx I. Une philosophie de la réalité. Paris, Éditions Gallimard., p. 86).
  • 5
    Désaliénation é um termo usado por Ngoc Vu com o intuito de exprimir a ideia de “emancipação” em Marx (Ngoc Vu, 1975NGOC VU, N. 1975. Idéologie et Religion d’après Marx et Engels. Paris, Aubier Montaigne, p. 129-130).
  • 6
    Para o Marx de Henry, a práxis identifica-se com a realidade primordial, com o Ser mesmo.
  • 7
    Henry, em vista a diferenciar a sua abordagem da de Husserl, designa a sua fenomenologia como “fenomenologia material”, “fenomenologia radical” ou “fenomenologia da vida” (Jeanet al., 2010JEAN, G; JEAN L. 2010. Perspectives sur la phénoménologie matérielle. In : M. HENRY, Pour une Phénoménologie de la Vie : entretien avec Olivier Salazar-Ferrer. Mayenne, Éditions de Corlevour, p. 61-89., p. 61-89).
  • 8
    Discordamos da posição de Ngoc Vu, para quem Marx, ao refutar as provas racionais da existência de Deus, se situaria na continuidade da herança da Aufklärung alemã (Ngoc Vu, 1975NGOC VU, N. 1975. Idéologie et Religion d’après Marx et Engels. Paris, Aubier Montaigne, p. 116). Como Henry, consideramos a crítica marxiana contra a religião como uma crítica contra o racionalismo iluminista da Aufklärung. A crítica que Marx dirige contra Kant, precisamente no contexto em que comenta o argumento ontológico, corrobora tal perspectiva.
  • 9
    Por outras palavras, no quadro do monismo, existir implica uma exteriorização da essência a dois níveis distintos: (1) por um lado, o ente que existe separa-se, ou seja, exterioriza-se em relação à sua essência para se situar no horizonte de visibilidade de uma consciência intencional; (2) por outro lado, existir significa manifestar-se para outro ente distinto de si, isto é, existir significa revelar-se a um sujeito. Por outras palavras, o existir de um objeto corresponde a estar diante de um sujeito que nunca acede à essência da realidade posicionada diante si.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2021
  • Aceito
    10 Jan 2022
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