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O reconhecimento na teoria da eticidade formal de Honneth e a crítica de Michael Thompson: o problema do poder constitutivo

Recognition in Honneth’s theory of formal ethical life and the Thompson’s critique: the problem of constitutive power

RESUMO

Este artigo pretende revisitar o tema do reconhecimento em Honneth a partir de duas perspectivas: num primeiro momento aborda as esferas do reconhecimento mediante a proposta de eticidade formal que contém os aspectos normativo-universais e os aspectos contextuais inerentes aos processos de autorrealização. Num segundo momento apresenta a crítica de Thompson a Honneth segundo a qual a teoria do reconhecimento é falha por dois motivos fundamentais: (i) ela é incapaz de lidar com as dinâmicas e efeitos do poder social, isto é, ela prescinde de uma análise ontológica do “poder constitutivo” e da “dominação constitutiva”; (ii) ela se centra nas práticas intersubjetivas de reconhecimento e esquece de enfocar as estruturas e sistemas normativos de integração funcional.

Palavras-chave:
Reconhecimento; eticidade; Honneth; Thompson; Poder constitutivo

ABSTRACT

This article aims to approach the Honneth’s theory of recognition from two perspectives: at first approaches the spheres of recognition from a formal ethical life purpose that maintain both universal and contextual aspects inherent to self-realization processes. Secondly, presents Thompson’s critique of Honneth according to which recognition’s theory fails for two main reasons: (i) it is unable to deal with the dynamics and effects of social power, that is, it dispenses with an ontological analysis of “constitutive power” and “constitutive domination”; (ii) it focuses on the intersubjective practices of recognition and forgets to focus on the normative structures and systems of functional integration.

Keywords:
Recognition; ethical life; Honneth; Thompson; Constitutive Power

Introdução - uma concepção formal de eticidade

Muito se fala de uma “teoria do reconhecimento” em Honneth, entretanto se esquece de conectá-la a algo mais amplo em sua proposta que é a teoria da eticidade. Sem sombra de dúvidas, a marca teórica distintiva de Honneth na filosofia social e na teoria crítica é a sua proposta de teoria do reconhecimento, mas não se pode perder de vista que tal proposta é pensada a partir de uma ideia maior que é o modo como o autor pensa as relações da vida ética (ethical life) seguindo inicialmente o conceito hegeliano de eticidade (Sittlichkeit), “inicialmente” porque Honneth paulatinamente reformula tal conceito sob a argumentação que a eticidade hegeliana teria se tornado excessivamente metafísica e limitada ao Estado, de modo que nela não se encontraria o mínimo vestígio de uma esfera pública política voltada para a formação da vontade democrática dos cidadãos e cidadãs (cf. Honneth, 2007HONNETH, A. 2007. Sofrimento de indeterminação: uma reatualização da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rúrion Soares Melo. São Paulo: Editora Singular, Esfera Pública., p. 144).

Acerca da objeção à metafísica como componente do reconhecimento e da eticidade, Ricoeur (2006RICOEUR, P. 2006. Percurso do reconhecimento. Trad. Nicolás Campanário. São Paulo: Loyola., p. 201) afirma que

a reatualização empreendida por Honneth extrai sua força da convicção no equilíbrio que ela preserva entre a fidelidade à temática hegeliana e a rejeição da metafísica do absoluto que mantém o Hegel de Jena próximo de Schelling e depois novamente de Fichte.

Honneth diz que Hegel teve o objetivo fundamental de ir além do formalismo moral de Kant e da ética do dever-ser a partir de uma proposta de eticidade que visse nas relações intersubjetivas e nas instituições uma ancoragem para a vida ética. Para tal, desde os seus escritos juvenis que precederam à Fenomenologia do Espírito (1806), ele esboçou as ideias seminais de sua teoria do reconhecimento e da eticidade.

Hegel defende naquela época a convicção de que resulta de uma luta dos sujeitos pelo reconhecimento recíproco de sua identidade uma pressão intrassocial para o estabelecimento prático e político de instituições garantidoras da liberdade; trata-se da pretensão dos indivíduos ao reconhecimento intersubjetivo de sua identidade ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 29).

Hegel o fez ressignificando moralmente a luta por autoconservação em Hobbes e Maquiavel mediante uma gramática social para ler os conflitos. A luta já não consiste mais apenas no autointeresse, mas no reconhecimento entre os indivíduos. Desse modo, passa-se de uma dimensão meramente pragmática da manutenção da vida biológica à dimensão moral do sentido da vida social. Abre-se assim um caminho para a eticidade.

Honneth constrói sua teoria do reconhecimento à luz dessa ideia de eticidade mediante três esferas intersubjetivas com vistas à autorrealização prática dos indivíduos: o amor, o direito e a solidariedade. “O conceito de ‘eticidade’ refere-se ao todo das condições intersubjetivas das quais se pode demonstrar que servem à autorrealização individual na qualidade de pressupostos normativos” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 271-272).

Essa proposta foi formulada de um modo sistemático em Kampf um Anerkennung (Luta por Reconhecimento) em 1992, livro fruto da tese de livre-docência de Honneth elaborada no tempo em que ele foi assistente de Habermas no Instituto de Filosofia da Goethe Universität em Frankfurt, entre 1984 e 1990.

O ponto nuclear da eticidade de Honneth que irá preparar as bases de sua proposta de uma teoria do reconhecimento é que ela se estabelece num medium entre o formal e o contextual, no sentido que, apesar da forte influência de Hegel, não prescinde da universalização e do normativismo kantiano, sobretudo quando se aborda a segunda esfera de reconhecimento que é a dos direitos universais presumidos como direitos que devem ser garantidos a todos os indivíduos.

A abordagem da teoria do reconhecimento [...] encontra-se no ponto mediano entre uma teoria moral que remonta a Kant e as éticas comunitaristas: ela partilha com aquela o interesse por normas as mais universais possíveis [...] mas partilha com estas a orientação pelo fim da autorrealização humana” ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 271).

É nesse sentido que Honneth fala em uma “concepção formal de eticidade”.

[...] as determinações buscadas devem ser tão formais ou abstratas que não despertam justamente a suspeita de expor meras sedimentações de interpretações concretas da vida boa; por outro lado, porém, precisam ser também, no plano material ou do conteúdo, tão repletas que, com base nelas, é possível vir a saber mais acerca das condições da autorrealização do que nos é dado com a referência kantiana à autonomia individual. A chave para uma clarificação mais ampla é oferecida aqui pela relembrança dos resultados que obtivemos na reconstrução das diversas formas de reconhecimento ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 272).

Do ponto de vista da teoria do reconhecimento honnethiano, a autorrealização humana só é possível à medida que se realiza adequadamente nas relações intersubjetivas vivenciadas nas esferas do amor, do direito e da solidariedade. Cada forma de reconhecimento implica uma autorrealização prática. As relações primárias do amor e da amizade implicam a autoconfiança; as relações jurídicas implicam o autorrespeito; a solidariedade implica a autoestima social.

Porém, Honneth não apenas formula essas implicações como também descreve o que pode causar fortes prejuízos a cada uma dessas dimensões do reconhecimento a partir do que ele chama de “formas de desrespeito” - ou também pode-se chamar de “formas de não-reconhecimento”, a saber: (i) os maus-tratos e violações à dimensão afetiva comumente vivenciados mediante abusos e agressões à integridade física, moral e psicológica; (ii) a privação de direitos e exclusões que causam a desintegração social quando ocorre o desrespeito à esfera do direito; (iii) a degradação e a ofensa que ferem a honra e dignidade social quando há desrespeito à estima social e à solidariedade (cf. Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 211).

1. A dimensão afetiva do reconhecimento - o amor como reconhecimento (Liebe als Anerkennung)

Essa dimensão é primeva. Ela está na base do reconhecimento desde a tenra idade. Uma relação afetiva desastrosa na infância, por exemplo, pode causar consequências devastadoras à vida adulta. Nesse sentido, a teoria do reconhecimento é muito concreta, ela é visível e detectável nos comportamentos dos sujeitos em suas relações ou em seu isolamento.

A esfera dos afetos tem um sentido abrangente de pathos. Ela não é apenas eros enquanto relação íntima sexual do casal, mas inclui também as relações de amizade (philia). Segundo o próprio Honneth, “por relação amorosas devem ser entendidas aqui todas as relações primárias, na medida em que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois parceiros, de amizade e de relações pais/filhos” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 159). Ela coincide com o amor ético em Hegel como a primeira dimensão do reconhecimento.

No caso das relações familiares - tomando como parâmetro a relação pais e filhos, adulto e criança - ela está na base da formação da personalidade. Uma dimensão afetiva mal vivenciada poderá causar danos à personalidade e danificar a autoconfiança, a segurança e a autonomia do indivíduo. “Aquela camada fundamental da segurança emotiva [...] propiciada pela experiência intersubjetiva do amor, constitui o pressuposto psíquico do desenvolvimento de todas as outras atitudes de autorrespeito” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 177).

A autoconfiança construída na esfera do amor é, desse modo, a chave basilar para as dimensões do autorrespeito (direito) e da autoestima social (solidariedade). “Sem a segurança emotiva de que a pessoa amada preserva sua afeição mesmo depois da autonomização renovada, não seria possível de modo algum, para o sujeito que ama, o reconhecimento de sua independência” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 178).

A autonomia e a segurança emotiva não são geradas no isolamento de um indivíduo, mas nas relações. Honneth entende isso como sendo a base constitutiva da eticidade hegeliana no que concerne ao reconhecimento.

[...] embora seja inerente ao amor um elemento necessário de particularismo moral, Hegel fez bem em supor nele o cerne estrutural de toda eticidade: só aquela ligação simbioticamente alimentada [...] cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação autônoma na vida pública” ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 178).

Aqui há um ponto interessante. Do ponto de vista da teoria da eticidade de Honneth, o reconhecimento na dimensão dos afetos é de fundamental importância não apenas para a autorrealização prática dos indivíduos como também para a sua autocompreensão como integrantes da vida pública. Não há uma discrepância entre afetos e política, mas uma interrelação. Afetos mal administrados causam desestruturações na vida pública, de modo que podem criar indivíduos descompromissados e preconceituosos, dentre outras patologias que podem causar a desintegração social.

Honneth estrutura a dimensão dos afetos como matriz inicial do reconhecimento apoiando-se na psicanálise de Winnicott questionando o que ele chama de “concepção ortodoxa” do modelo freudiano de desenvolvimento infantil pautada no complexo de Édipo.

Para Freud e seus sucessores, os parceiros de interação da criança só tiveram importância de início na medida em que se apresentavam como objetos de investimentos libidinosos que resultavam de conflito intrapsíquico de demandas pulsionais inconscientes e de controle do ego gradualmente emergente ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 161).

A visão freudiana teria, assim, como consequência uma concepção monológico-instrumental dos parceiros de interação. Honneth faz um levantamento de estudos que em sua leitura superam essa concepção tida por ele como egocêntrica, citando como livros principais: Daniel Stern. Mutter und Kind. Die erste Beziehung (Mãe e filho: a primeira relação); Eagle. Neuere Entwicklung in der Psychoanalyse (Novos desenvolvimentos em psicoanálise); Donald Winnicott. Die Theorie von der Beziehung zwischen Mutter und Kind (A teoria da relação entre mãe e filho); Jessica Benjamin. Die Fesseln der Liebe (As amarras do amor). Dessas literaturas ele concentra suas análises em Winnicott e no uso que Jessica Benjamin faz da proposta de Winnicott relendo a relação amorosa como um processo de reconhecimento recíproco.

Honneth destaca nesses estudos os novos desenvolvimentos na psicanálise estadunidense e britânica que orientam o desenvolvimento infantil para além do complexo de Édipo, tencionando reorientar as relações primevas para um enquadramento intersubjetivo em que os pais e os filhos não criam relações meramente egocêntricas e de autossatisfação.

[...] não podia mais ser mantida de pé a concepção ortodoxa segundo a qual o desenvolvimento psíquico se efetua como sequência de formas de organização de relação ‘monológica’ entre pulsões libidinosas e capacidade do ego; pelo contrário, o quadro conceitual da psicanálise carecia de uma ampliação fundamental abrangendo a dimensão independente de interações sociais no interior da qual a criança aprende a ser conceber como um sujeito autônomo por meio da relação emotiva com outras pessoas ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 163).

Em O circuito dos afetos, mais especificamente no capítulo “Abaixo de zero: psicanálise, política e o déficit de negatividade em Axel Honneth”, Safatle tece considerações críticas a Honneth afirmando que ele não teria compreendido adequadamente a psicanálise de Winnicott incorrendo na sua idealização ou - para usar suas palavras - numa “construção idílica” dessa proposta a fim de fundamentar a sua ideia simétrica de intersubjetividade e de reconhecimento mútuo na relação entre mãe e filho.

Nesse sentido, um tema importante consiste em avaliar até que ponto tal visão da relação entre mãe e bebê é uma construção idílica para legitimar a hipótese filosófica de uma intersubjetividade fundadora da condição humana. Pois, por exemplo, seguindo uma perspectiva que toma Lacan como ponto de partida, podemos defender que as primeiras relações intersubjetivas dificilmente podem ser descritas como relações simétricas. Na verdade, elas seriam assimétricas, já que a primeira posição subjetiva da criança é ser objeto das fantasias da mãe ( Safatle, 2016 SAFATLE, V. 2016. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2ª ed. Belo Horizonte, MG: São Paulo: Autêntica. , p. 206).

Safatle discorda da posição simétrica de relação intersubjetiva primeva que funda a relação afetiva entre mãe e filho a qual Honneth toma como pressuposto para sua teoria do reconhecimento como se fosse um dado ontológico ou antropológico naturalizado. Na vida real a relação pode ser tensa, conflituosa, extenuante, depressão pós-parto, o que desmitifica o primado da intersubjetividade simétrica do reconhecimento mútuo e de sua idealização.

De fato, Winnicott em The Child, the Family, and the Outside World (1964) apresenta uma relação assimétrica entre mãe e filho em que o bebê se sente especial e realizado à medida que a mãe é capaz de ser empática, isto é, de se colocar no lugar do bebê a fim de compreender qual a sua vontade. Há, assim, como que um trabalho e um esforço de compreensão e decodificação dos anseios da criança. “Nenhuma regra de livro pode substituir esse sentimento que a mãe tem pelas necessidades de seu filho, o que às vezes lhe permite fazer uma adaptação quase exata daquelas necessidades” (Winnicott, 1987WINNICOTT, D. 1987. The Child, the Family, and the Outside World. Cambridge, MA: Perseus., p. 45). Contextualmente como o livro é originalmente da década de 60, percebe-se ainda toda uma narrativa da centralidade do papel da mãe no cuidado dos filhos. Claro que hoje felizmente vem avançando a mentalidade que o pai tem igual incumbência fundamental no cuidado dos filhos.

Winnicott (1987WINNICOTT, D. 1987. The Child, the Family, and the Outside World. Cambridge, MA: Perseus., p. 58) propõe quatro tipos de choro em que a criança expressa sua subjetividade como tipos de reivindicação objetivando que os pais lhe atendam em suas demandas: satisfação, dor, raiva, tristeza. São expressões que demandam a acomodação, todo um esforço a fim de que seu desejo seja realizado. Essa assimetria de um indivíduo totalmente dependente coloca a situação dos pais numa posição de vigilância constante em que devem estar atentos a dar suporte e acompanhamento ao filho num processo gradativo de autonomização.

Por um lado, na esfera dos afetos proposta por Honneth há um aspecto idealizado do reconhecimento em que são apresentadas num plano do dever-ser as condições possíveis da autorrealização do indivíduo, entretanto, por outro lado, isso não impede uma abordagem social mais concreta em especial no capítulo sexto de Luta por Reconhecimento em que Honneth evidencia os óbices a tais condições. Tais obstáculos advêm, sobretudo, de formas de desrespeito implicadas nos maus-tratos e nas violações afetivas mediante ameaças aos componentes da personalidade do indivíduo que sofre os abusos sejam eles físicos, verbais, psicológicos.

Os maus-tratos físicos de um sujeito representam um tipo de desrespeito que fere duradouramente a confiança, aprendida através do amor, na capacidade de coordenação autônoma do próprio corpo; daí a consequência ser também, com efeito, uma perda de confiança em si e no mundo, que se estende até as camadas corporais do relacionamento prático com outros sujeitos, emparelhada com uma vergonha social ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 211).

Os desrespeitos podem causar a “morte psíquica”, abrir verdadeiras feridas que estigmatizam a personalidade e podem comprometer o comportamento do indivíduo tornando-o violento, isolado, inseguro, de modo que com isso é comprometido o seu processo de autorrealização e autonomia e, assim, abrem-se caminhos para patologias sociais que são as desvinculações sociais e a incapacidade de interpretar e de seguir normas de cooperação social.

A questão para Honneth (2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 214) é como esse não-reconhecimento e essa experiência de desrespeito podem ser convertidos num impulso para a resistência social e para a luta por reconhecimento, algo que segundo ele nem Hegel na sua eticidade nem Mead na sua psicologia social tornaram um problema.

As injustiças são pensadas por Honneth como distorções em processos de reconhecimento, nesse sentido a sua saída para responder à questão supramencionada consiste em entender que a resistência aos desrespeitos constitui o motor da luta por reconhecimento. “Nessas reações emocionais de vergonha, a experiência de desrespeito pode tornar-se o impulso motivacional de uma luta por reconhecimento” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 224).

Nesse sentido, um sofrimento individual e psíquico converte-se em expressão de uma luta social e solidária em que grupos prestam seu apoio ao indivíduo que sofreu o desrespeito e, desse modo, abre-se o portal para o padrão intersubjetivo da solidariedade. Isso mostra que os padrões de reconhecimento estão apenas metodologicamente diferenciados, porém na prática eles podem ser interdependentes, sobretudo sob o pressuposto de Honneth que a luta por reconhecimento não é conduzida monologicamente, mas em nível social na esfera da solidariedade. Mas abordarei isso mais adiante. Agora concentrar-me-ei na análise da segunda esfera de reconhecimento: a esfera dos direitos.

2. A dimensão jurídica do reconhecimento - direito como reconhecimento (Recht als Anerkennung)

A primeira esfera do reconhecimento conduz à segurança emotiva quando a esfera dos afetos e do amor é devidamente respeitada; quando desrespeitada conduz ao sofrimento psíquico, à insegurança, à vergonha e a outras mazelas que criam obstáculos ao processo de autonomia. A segunda dimensão do reconhecimento, a esfera dos direitos, lida com o reconhecimento não mediante a perspectiva individual dos afetos, mas mediante a universalização dos direitos.

O direito dentro da concepção formal de eticidade em Honneth tem tanto a sua dimensão universal e formal, quanto a sua dimensão material, concreta. Ele não é direito meramente a priori retirado de uma razão pura prática ou um direito estritamente historicizado e empírico retirado dos contextos. Conforme destaca Jörn Reinhardt (2008REINHARDT, J. 2008. Formale Sittlichkeit“: Kritik zwischen Stellungnahme und Abstraktion. In: Axel Honneth: Gerechtigkeit und Gesellschaft. Hrsg. vonChristoph Menke und Juliane Rebentisch. Berlin: Berliner Wissenschafts-Verlag, s. 33-46., p. 35), num plano de eticidade formal, a ampliação do direito formal em torno de uma dimensão da vida ética não depende apenas de valores substanciais da liberdade e da solidariedade, mas depende de uma interpretação da autonomia jurídica e da liberdade na esteira de uma forma de vida. Nesse sentido, o direito se alimenta tanto do formal quanto do contextual, isto é, da imanência da tessitura dos processos sociais de reconhecimento.

No direito o reconhecimento efetiva-se à medida que o outro é respeitado como igual detentor de direitos do ponto de vista normativo de um “outro generalizado”, um prisma que, segundo Honneth, está contido nas propostas de Hegel e Mead.

apenas na perspectiva normativa de um ‘outro generalizado’, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 179).

Essa perspectiva generalizada mediante a qual os sujeitos autocompreendem em suas idiossincrasias e compreendem uns aos outros como sujeitos de direitos, está pautada no conceito de pessoa de direito (Rechtsperson). Hegel em sua Filosofia do Direito (§ 36) expressa o seguinte imperativo jurídico: “sê uma pessoa e respeita os outros enquanto pessoas”. Kant (2017)KANT, I. 2017. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Hrsg. von Theodor Valentiner. Ditzingen: Reclam. em sua Fundamentação crava o seguinte imperativo moral que fornece base normativa ao direito: “não trates o outro simplesmente como meio, mas como fim em si mesmo”.

Para Honneth, foi o jurista alemão Rudolph von Ihering quem, em Der Zweck im Recht, efetuou no início do século XX uma distinção entre reconhecimento jurídico e estima social (solidariedade) no tocante ao conceito de pessoa:

no reconhecimento jurídico [...] se expressa que todo o ser humano deve ser considerado, sem distinção, um ‘fim em si’, ao passo que o ‘respeito social’ salienta o ‘valor’ de um indivíduo, na medida em que este se mede intersubjetivamente pelos critérios da relevância social (cf. Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 184).

Ihering (1911IHERING, R. 1911. El fin en el derecho. Trad. Leonardo Rodríguez. Madrid: Editor Rodríguez Serra. , p. 274) entende que o direito “representa a forma de garantia das condições da vida da sociedade, assegurada pelo poder coativo do Estado”. Isso é garantido sob a premissa do respeito ao indivíduo como fim em si mesmo. Na esfera do reconhecimento jurídico essa premissa é vital para a teoria honnethiana do reconhecimento. Desse modo, apesar de toda uma filiação a Hegel, na esfera do reconhecimento mediada pelo Direito é visível a dependência de Honneth em relação a Kant.

O humano enquanto fim terminal (Endzweck) é moralmente protegido pela dignidade humana, e tal proteção é juridificada em termos universais de tutela jurídica concretizada na inalienabilidade do direito da pessoa. Isso constitui a segurança moral e jurídica mediante a qual os indivíduos e grupos devem lutar contra os desrespeitos que lhes inflige o não-reconhecimento.

De acordo com Honneth (2009)HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., o direito moderno gradativamente suplantou o personalismo das sociedades tradicionais no sentido que houve em plano normativo o aumento da universalização de direitos perante a ideia tradicional de status privativo de poder e de carisma. Ou seja, do ponto de vista normativo (do dever-ser), foram juridificadas aquelas normas que pudessem universalizar direitos em vez de reforçar privilégios a dados indivíduos. Isso resultou na própria ampliação do conceito de cidadania em direitos civis, políticos e sociais.

O direito tem relevância fundamental para o reconhecimento porque ele tutela de um ponto de vista universal e normativo os indivíduos perante desrespeitos: “viver sem direitos individuais significa para o membro individual da sociedade não possuir chance alguma de constituir um autorrespeito” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 196).

A violação da esfera jurídica do reconhecimento ocorre quando o indivíduo é privado de ser um membro de igual valor numa dada coletividade e lhe são negados direitos universais, o que compromete o pressuposto simétrico da isonomia gerando insegurança nas relações sociais: “vai de par com a experiência da privação de direitos uma perda de autorrespeito, ou seja, uma capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na interação com todos os próximos” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 217).

É importante assinalar que esse desrespeito não se restringe apenas a uma violação formal da universalidade jurídica, posto que ele afeta concretamente o indivíduo em sua autorrealização à medida que ele sofre privação de direitos, sejam eles direitos civis, políticos e/ou sociais: “a experiência da privação de direitos se mede não somente pelo grau de universalização, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 217).

Não se trata apenas da negação do pressuposto formal da universalidade jurídica, mas também do não-reconhecimento de direitos concretos dos indivíduos. A reversão disso só é possível com a resistência organizada em grupos sociais que formam redes solidárias de luta por reconhecimento. Nesse sentido, a tese de Honneth é que

o motor e o meio dos processos históricos de realização dos princípios da liberdade institucionalizada não é o direito, ao menos não em primeiro lugar, mas as lutas sociais pela adequada compreensão desses princípios e as mudanças de comportamento daí resultantes ( Honneth, 2015 HONNETH, A. 2015. O direito da liberdade. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes. , p. 630).

A filosofia social de Honneth presume que as lutas sociais são o ponto de partida e o meio da realização dos princípios institucionalizados da liberdade. Isso significa que os direitos não são dados passivamente, mas conquistados mediante luta por reconhecimento. Há, desse modo, uma precedência da luta pelos direitos em relação à sua juridificação. Essas lutas são travadas através de grupos sociais que encontram na dimensão solidária o apoio para a realização de suas aspirações no que concerne ao reconhecimento. A isso Honneth chama de “estima social” e de um modo mais ampliado de “solidariedade”.

3. A dimensão social do reconhecimento - solidariedade como reconhecimento (Solidarität als Anerkennung)

Foi demonstrado que o amor é a dimensão individualizada dos afetos, observando a sua importância para a autoconfiança e para a formação de indivíduos autônomos e seguros. O direito por sua vez é a dimensão universalizada do reconhecimento que pressupõe o indivíduo como pessoa de direito (Rechtsperson) e detentor da dignidade humana. A dimensão da solidariedade toma o reconhecimento em nível de estima social a partir da particularização da honra e do prestígio do indivíduo num grupo. O direito é a universalização da honra pela via das leis; a solidariedade é a privatização social da honra através da pertença a um grupo e do modo como um indivíduo se sente socialmente estimado. Assim, o amor individualiza, o direito universaliza, a solidariedade particulariza.

As pessoas são reconhecidas positivamente por meio do apoio emocional de amor e reconhecidas positivamente por meio do respeito cognitivo expresso por meio de direitos legais. Mas elas também são reconhecidas positivamente por meio da estima social expressa nas relações solidárias com os outros. Para Honneth, esta terceira forma importante de reconhecimento intersubjetivo é o que permite que os indivíduos percebam uma terceira forma de relação prática consigo mesmo: autoestima ( Zurn, 2015 ZURN, C. 2015. Axel Honneth. Malden, MA: Polity Press. , p. 39).

Na esfera da solidariedade o reconhecimento ocorre quando o indivíduo se sente estimado em um grupo e a luta individual é redimensionada coletivamente. Ou seja, do ponto de vista da teoria do reconhecimento de Honneth a solidariedade se aplica apenas às relações de grupos sociais que lutam contra injustiças que lhes são comuns. Há, desse modo, um compartilhamento de horizontes de resistência.

Nesse sentido, há solidariedade, dentre outros, quando homossexuais lutam contra a homofobia, negros lutam contra o racismo, mulheres resistem ao androcentrismo. Inclusive essas reivindicações por reconhecimento podem se intercruzar ampliando a rede de solidariedade para além de um grupo de luta em específico, de modo a superar o monologismo de um dado grupo social e oportunizando o diálogo entre movimentos sociais diferentes e capazes de unir suas lutas.

Na relação interna de tais grupos, as formas de interação assumem nos casos normais o caráter de relações solidárias, porque todo membro se sabe estimado por todos os outros na mesma medida; pois por ‘solidariedade’ pode se entender, numa primeira aproximação, uma espécie de relação interativa em que os sujeitos tomam interesse reciprocamente por seus modos distintos de vida, já que eles se estimam entre si de maneira simétrica ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 209).

A solidariedade nasce da resistência comum de grupos sociais à repressão, à dominação e ao preconceito. A sua identidade e a sua reivindicação são coletivas, mesmo que venha a trazer benefícios para a autorrealização de indivíduos singulares. Ela é pavimentada no horizonte de movimentos sociais que se organizam sob um objetivo comum.

O ponto que parece um tanto idealizado é a suposição de Honneth de uma “estima simétrica” entre os indivíduos nessas redes solidárias quando ele afirma que “todo membro se sabe estimado por todos os outros na mesma medida” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 209). Noutro momento ele entende simetria como a chance de os sujeitos experienciar a si mesmos como valiosos para a sociedade (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 211).

Isso soa um tanto idealizado porque na prática dos movimentos sociais há possíveis divergências e conflitos que tornam as relações assimétricas. Nesse sentido, é possível que isso seja um traço da eticidade formal de Honneth em Luta por Reconhecimento que diz como “deve ser” a ação em vez de diagnosticar e reconstruir nos grupos sociais como de fato a dinâmica ocorre.

Excetuando essa questão da presunção de simetria nas relações solidárias, Honneth não perde de vista a reconstrução histórica dos processos sociais da solidariedade. Segundo ele na modernidade, especificamente com as lutas burguesas, a individualização da estima social foi posta como um contraponto ao modelo arcaico e medievo de honra, honra esta antes definida pela pertença natural a uma classe.

Em vez de justificativas aristocráticas de base hereditária, a estima social do indivíduo passou a ser gradativamente remetida ao modo como o sujeito é estimado em um grupo, de modo que a pertença social e a identificação política em relação a grupos passaram a constituir vetores fundamentais para o estabelecimento de redes comuns de reivindicação. Essa é a base moderna da solidariedade em termos de uma luta por reconhecimento.

Junto com o fundamento metafísico de sua validade, o cosmos social de valores perde tanto seu caráter de objetividade quanto a capacidade de determinar de uma vez por todas uma escala de prestígio social, normatizando o comportamento. Daí a luta que a burguesia começou a travar, no limiar da modernidade, contra as concepções feudais e aristocráticas de honra não ser somente a tentativa coletiva de estabelecer novos princípios axiológicos, mas também o início de um confronto em torno do status desses princípios em geral; pela primeira vez, dispõe-se agora de uma resposta à questão se a reputação social de uma pessoa deve se medir pelo valor previamente determinado de propriedades atribuídas a grupos inteiros, tipificando-os. Só agora o sujeito entra no disputado campo da estima social como uma grandeza biograficamente individuada ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 204).

Essa mudança estrutural fez com que a honra e a estima social fossem redimensionadas do macro para o micro colocando ênfase na esfera privada da autorrealização do indivíduo. Veja que a solidariedade não significa na visão de Honneth uma sobreposição anulativa do todo social perante as particularidades, mas uma integração em que as particularidades encontram o reforço de sua estima no grupo social e este, por sua vez, encontra sua razão de ser na realização coletiva das aspirações dos indivíduos. Ou seja, do ponto de vista da solidariedade, indivíduo e grupo entram numa relação de dependência mútua.

Na sua perspectiva de luta social, Honneth não sacrifica o indivíduo. Este não pode diluir e eliminar sua autorrealização, sua estima e seu sentimento do próprio valor em relação a quaisquer grupos. O sentido da solidariedade reside em garantir a autorrealização do indivíduo. A isso Honneth chama de “estado1 1 “Estado” aqui não é “Estado” no sentido jurídico-político de Ius publicum civitatum, mas “condição” (Zustand). Nesse sentido, a tradução correta deveria ser “condição pós-tradicional de solidariedade social” em vez de “estado pós-tradicional de solidariedade social”. pós-tradicional de solidariedade social”. Com essa individualização da estima social,

o indivíduo não precisa mais atribuir a um grupo inteiro o respeito que goza socialmente por suas realizações conforme os standards culturais, senão que pode referi-lo a si próprio. [...]. Na medida em que todo membro de uma sociedade se coloca em condições de estimar a si próprio dessa maneira, pode se falar então de um estado pós-tradicional de solidariedade social” ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 210).

Claro que aqui podem surgir questões a Honneth, dentre elas, se esse seu conceito de solidariedade pós-tradicional não é excessivamente apolítico e instrumentalizado tencionando apenas a autorrealização do indivíduo. Isso não seria apenas o reforço de uma matriz liberal-burguesa hobbesiana da autovantagem? Teria razão Fraser ao afirmar que o reconhecimento honnethiano padeceria de um déficit político por incorrer numa psicologização em virtude desse afã por autorrealização?

Para Fraser, tanto Honneth como Taylor - que na sua visão são os filósofos mais representativos do reconhecimento - incorrem num gap entre justiça e reconhecimento à medida que consideram o reconhecimento como uma matéria de autorrealização (self-realization) limitado às concepções de vida boa. Na sua visão deontológica, o reconhecimento é uma matéria da justiça e diz respeito ao status social.

Isso significa examinar padrões institucionalizados de valor cultural por seus efeitos sobre a posição relativa dos atores sociais. Se e quando esses padrões constituem atores como pares, capazes de participar em pé de igualdade uns com os outros na vida social, então podemos falar de reconhecimento recíproco e de igualdade de status. Quando, em contraste, padrões institucionalizados de valor cultural constituem alguns atores como um inferior, um excluído, um totalmente outro, ou simplesmente um invisível, portanto, sem considerá-los parceiros completos na interação social, então devemos falar de não-reconhecimento e de subordinação de status ( Fraser; Honneth, 2003 FRASER, N; HONNETH, A. 2003. Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange. Translated by Joel Golb, James Ingram, Christiane Wilke. New York: Verso. , p. 29).

Poder-se-ia formular outras questões, mas o ponto que doravante interessa a esta pesquisa consiste em apresentar a negação do reconhecimento na esfera da solidariedade. Para Honneth, a violação da solidariedade acontece quando a honra, a estima social e o status de um indivíduo são negados dentro de uma dada sociedade ou de um grupo ocorrendo-lhe uma experiência de desvalorização social.

Por isso, para o indivíduo, vai de par com a experiência de uma tal desvalorização social, de maneira típica, uma perda de autoestima pessoal, ou seja, uma perda de possibilidade de se entender a si próprio como um ser estimado por suas propriedades e capacidades características. Portanto, o que é subtraído da pessoa pelo desrespeito em termos de reconhecimento é o assentimento social a uma forma de autorrealização que ela encontrou arduamente com o encorajamento baseado em solidariedades de grupos” ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 218).

Com tal experiência de desrespeito, o indivíduo se sente humilhado e tal vexação pode o conduzir à sensação de exclusão, além da degradação e violação da sua honra. Com isso são prejudicadas a estima social e o próprio processo de autorrealização. As consequências depreendidas disso podem variar desde o fechamento, à insegurança nas relações, às patologias sociais que implicam a gradativa ou abrupta ruptura com a sociedade.

A questão é que Honneth não diz como é possível superar esses problemas, deixando apenas em relevo a tese que os desrespeitos são o motor da luta por reconhecimento e, nesse sentido, está tácita a ideia que a tais indivíduos não lhes resta outra saída senão a permanente luta por reconhecimento. Assim, Honneth fala de uma “base motivacional afetiva” ou “psíquica” da luta por reconhecimento nos seguintes termos: “as reações negativas que acompanham no plano psíquico a experiência de desrespeito podem representar de maneira exata a base motivacional afetiva na qual está ancorada a luta por reconhecimento” (Honneth, 2009HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34., p. 220).

Num plano geral pode-se dizer que enquanto há injustiças há luta por reconhecimento. Subjacente a isso está presumida a hipótese que as contradições e tensões sociais são constantes e os reflexos psíquicos disso nos indivíduos lhes põem em constante luta.

Simplesmente porque os sujeitos humanos não podem reagir de modo emocionalmente neutro às ofensas sociais, representadas pelos maus-tratos físicos, pela privação de direitos e pela degradação, os padrões normativos do reconhecimento recíproco têm uma certa possibilidade de realização interior do mundo da vida social em geral ( Honneth, 2009 HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34. , p. 224).

Essa é a gramática moral de compreensão dos conflitos sociais que está no cerne da filosofia social de Honneth, a saber, a reorientação dos conflitos em termos de luta por reconhecimento. A concepção formal de vida ética em Honneth é, portanto, baseada na fenomenologia dos conflitos por reconhecimento contra o desrespeito e a humilhação sob o pressuposto que essa experiência negativa do desrespeito e da humilhação constitui a motivação para a luta por reconhecimento (cf. Jütten, 2019JÜTTEN, T. 2019. The Theory of Recognition in the Frankfurt School. In: The Routledge Companion to Frankfurt School. Edited by Peter Gordon, Espen Hammer, Axel Honneth. New York: Routledge, p. 82-94. , p. 83).

4. A crítica de Michael Thompson à teoria do reconhecimento de Honneth

O professor Michael Thompson, docente da William Paterson University, em New Jersey, tem se preocupado com a atualização da teoria crítica, sobretudo, no que diz respeito à centralidade da ontologia social e à sua relação com o capitalismo e com o tema do poder.

Em The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory, ele tem como foco de análise uma das propostas mais emblemáticas emergidas a partir da década de noventa do século passado na teoria crítica: a teoria do reconhecimento de Honneth, uma proposta que ele considera “um modelo idealizado de associação, desprovido dos problemas de dominação e reificação” (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 255).

Essa idealização é uma falha própria do pragmatismo que oblitera o que é metafísico e se apega ao pós-metafísico, como se o mundo fosse construído tão-somente por uma razão secular sem uma referência que aludisse a algo externo a ele.

A tese pragmatista é, portanto, insuficiente para lidar com o fenômeno da alienação e da reificação. Por divorciarem radicalmente a associação intersubjetiva dos poderes causais das estruturas sociais e de seus poderes constitutivos sobre o autodesenvolvimento cognitivo, os pragmatistas continuam a operar numa estrutura neoidealista, iludindo-se de que são de alguma forma ‘pós-metafísicos’ ( Thompson, 2018 THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272. , p. 256).

O paradigma do reconhecimento, restrito a esse pragmatismo deficitário, falha (i) à medida que ignora e subestima teoricamente a natureza constitutiva do poder e da dominação, não analisando como isso atua e forma (plasma) as estruturas da consciência; (ii) e à medida que ao fazer isso, abre um canal permissivo para as patologias sociais (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 255).

Thompson considera que Honneth ao utilizar-se de um modelo pós-metafísico e pragmatista para pensar os processos de reconhecimento, acaba por afastar-se de uma “metafísica da imanência”, isto é, do tecido social plural composto por cosmovisões religiosas, crenças, valores e sistemas, resultando na obliteração das implicações do capitalismo e de suas subsequentes estruturas realistas de poder, dominação e opressão, afastamento este que conduz a teoria do reconhecimento ao fracasso enquanto teoria crítica da sociedade. A sua tese central pode ser lida nos seguintes termos:

O reconhecimento é um processo que acontece dentro do contexto de outras relações de poder, não externas a elas e, portanto, não pode escapar do problema do poder constitutivo e da dominação constitutiva. A tese de que o reconhecimento e o autodesenvolvimento crítico-moral são unificados está, portanto, profundamente equivocada ( Thompson, 2018 THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272. , p. 252).

A condução do reconhecimento em termos de autorrealização, reconhecimento e desenvolvimento moral deixando de lado uma análise acerca das implicações e das consequências do capitalismo, das formas modernas de poder e da dominação, afasta a teoria do reconhecimento do núcleo crítico da emancipação social. Tal teoria não foi capaz de observar os efeitos do poder social nas dinâmicas de reconhecimento. Ela ficou num plano meramente intersubjetivo, sem descer ao porão e à imanência das relações de poder, poder este amiúde legitimado mediante justificativas mercadológicas e/ou religiosas, a depender do contexto do qual se fala.

A teoria do reconhecimento se centrou no plano da primeira e da segunda pessoa e, consequentemente, reduziu a complexidade do mundo social, de seus múltiplos sistemas e funções a práticas intersubjetivas orientadas por uma concepção de eticidade que presume como que um tipo de progresso moral e uma antropologia em que o indivíduo do processo de reconhecimento é secular e racional, isto é, estritamente pós-metafísico.

Ao que indica, com isso, a teoria do reconhecimento tornou-se mais uma filosofia moral mediada pelos conceitos de “respeito” (respect / Achtung) e “desrespeito” (disrespect / Mißachtung) que uma filosofia social que pudesse considerar a multiplicidade real do mundo para as relações de reconhecimento e para os problemas oriundos das relações de poder e dominação. Para usar os termos de Thompson (2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 247), é como se a proposta de Honneth tivesse se fechado em um processo endógeno com seus pressupostos morais idealizados ignorando agentes sociais exógenos das determinações da vida real que pudessem determinar condutas concretas dos sujeitos.

Em relação a esses agentes sociais exógenos, apesar de não os aprofundar, o autor cita enfaticamente as “desigualdades mutiladoras” advindas da ordem capitalista e as “desigualdades de poder e de controle social” (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 248). Apesar de Honneth (2015HONNETH, A. 2015. O direito da liberdade. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes.) reivindicar uma teoria social conjecturada a partir de um modelo filosófico afastado do transcendental e do a priori e, nesse sentido, optar pela reconstrução normativa hegeliana como alternativa ao construtivismo kantiano, ele - assim como Habermas em sua teoria discursiva - não conseguiu diagnosticar com clareza as implicações do poder para o reconhecimento: “em ambos os casos, a tese intramundana esbarra no problema do poder e, mais especificamente, no problema da dominação” (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 248).

Com isso, Honneth afasta-se dos teóricos críticos da primeira geração; eles pensavam o papel do poder como algo constitutivo para as relações de dominação, observando suas implicações cognitivas e afetivas. Honneth também se afasta de Marx à medida que não considera os fatores estruturais e macroestruturais da economia e do mercado para a dissolução e reificação das relações de reconhecimento.

De fato, o preço que Honneth paga por rejeitar essa perspectiva é alto - tão alto, acredito, que torna sua teoria do reconhecimento acrítica e, talvez involuntariamente, contém os próprios mecanismos de justificação e passividade antipolítica que a Escola de Frankfurt tinha visto como uma de suas preocupações centrais para explicar ( Thompson, 2018 THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272. , p. 249).

Em Lukács a tese da reificação é proposta como diagnóstico da realidade; isso serviu de base para teóricos críticos que levam a sério a ontologia social e a sua complexidade. Seja pela via da crítica da razão instrumental ou da unidimensionalidade do mercado como única razão de ser, o diagnóstico crítico foi realizado no sentido de observar as distorções operadas nas mentalidades dos indivíduos e como isso impactou na integração social. Esse tipo de diagnóstico enquanto análise do poder e da dominação sistêmicos faltou a Honneth e à sua proposta de teoria do reconhecimento. Ou seja, faltou a Honneth a análise do que Thompson chama de “poder constitutivo” e “dominação constitutiva”.

Eu tenho denominado esse tipo de poder de poder constitutivo e acredito que nós podemos defini-lo como a capacidade de grupos superordenados, por meio de seu controle sobre recursos materiais, de moldar normas institucionais, práticas e conjuntos de regras coletivo-intencionais da comunidade como um todo. Quanto mais esse grupo superordenado é capaz de fazer isso, mais dominação constitutiva ele tem sobre a comunidade ( Thompson, 2018 THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272. , p. 250).

Um parêntese: eu penso que Rainer Forst tem sido o teórico crítico atual que na Kritische Theorie (KT) tem se preocupado como o tema do poder mediante a sua proposta de justificação normativa:

a questão primeira da justiça é a questão do poder. Pois não se trata somente de saber a quem devem ser legitimamente distribuídos certos bens, em que proporção e por quais razões, mas também se trata de saber sobretudo como esses bens surgem no mundo, quem decide sobre sua distribuição e como ela será feita ( Forst, 2018 FORST, R. 2018. Justificação e crítica: perspectivas críticas de uma teoria crítica da política. Trad. Denilson Werle. São Paulo: Editora Unesp. , p. 52).

Retomando a Michael Thompson: o poder constitutivo de grupos poderosos se torna cada vez mais dominação constitutiva à medida que indivíduos, coletividades e instituições seguem sua lógica, de modo que os indivíduos a internalizam em suas rotinas e em suas ações. Quanto menos crítica acerca dessa dominação mais haverá o surgimento de patologias e reificações com reflexos diretos nas relações sociais de reconhecimento, tais como desrespeito, insensibilidade, invisibilidade.

Com isso, o poder social constitutivo domina consciências subjetivas e intersubjetivas, sendo assim necessário um diagnóstico do poder e de sua capacidade de reificação. Honneth não se dá conta disso e perde de vista que o poder é um fenômeno decisivo, um fenômeno funcional constitutivo tanto para o mundo subjetivo quanto para o social (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 251).

Nesse sentido, Thompson (2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 245) defende a tese que a teoria do reconhecimento de Honneth é falha por dois motivos fundamentais: (i) ela é incapaz de lidar com as dinâmicas e efeitos do poder social, isto é, prescinde de uma análise ontológica do “poder constitutivo” e da “dominação constitutiva”; (ii) ela se centra nas práticas intersubjetivas de reconhecimento e esquece de enfocar as estruturas e sistemas normativos de integração funcional.

Como dito, poder constitutivo concerne aos grupos de poder que impõem uma lógica de dominação. Faltou a Honneth ver como os grupos podem moldar as consciências e atitudes. Thompson entende que Honneth pagou um alto preço por se apegar ao modelo pragmatista e pós-metafísico. Esse modelo incorre numa separação entre associação intersubjetiva e causas estruturais do poder social, poder este plasmado dentro de contextos metafísicos e em valores não necessariamente seculares.

O antiessencialismo do modelo pós-metafísico implicou a falta de crítica e consideração abrangente acerca da ontologia do ser social em suas visões de mundo, inclusive metafísicas. Na contramão disso, Thompson defende uma perspectiva crítico-ontológica do reconhecimento que “não abraça a metafísica transcendental, mas, em vez disso, uma metafísica imanente sobre a qual nós mantemos nosso olhar sobre a metafísica do mundo social e acerca dos tipos de relações e propostas que ela contém” (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 266).

A perspectiva crítico-ontológica não nega o reconhecimento, mas o aborda a partir das camadas e teias de relações de poder e dominação que o plasmam e podem colapsar a própria intersubjetividade e subjetividade culminando em processos de reificação e alienação. “O paradigma ontológico é oposto aos paradigmas do reconhecimento e da comunicação porque ele busca privilegiar as estruturas objetivas e os processos que constituem a sociabilidade humana” (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 267).

O reconhecimento repensado a partir da metafísica da imanência de Thompson é concebido como um processo plasmado (shaped) por relações de poder; ele é vulnerável a distorções e patologias. Honneth não vê as implicações da relação de poder e de dominação nos processos de reconhecimento e, por isso, recai num “neoidealismo”, num déficit ontológico-social (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 252).

Trata-se de um modelo idealizado desprovido de análise sobre reificação e dominação. Honneth, por exemplo, ao analisar a família, não aborda a possiblidade de os processos de reificação e alienação efetuarem-se dentro do próprio contexto familiar (internalização de patologias sociais dentro de instituições). Ao contrário, “a família é muitas vezes uma incubadora de patologias sociais” (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 251). Ou seja, absorvido pela sua consideração idealizada pós-metafísica, Honneth tratou a relação mãe-filho num plano de idealização e romantização como se a relação fosse imune a impulsos patológicos do mundo social e independente do mundo externo.

Vale ressaltar que a crítica de Safatle a Honneth, como colocada na primeira parte desta pesquisa, também foi feita nesse mesmo sentido, a saber: Honneth não vislumbrou que as relações mãe-filho não são simétricas, mas perpassadas por angústia e tensões. O modelo de reconhecimento em Honneth pode, desse modo, recair numa “abstração teórica solipsista” e torna-se “acrítica” (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 267).

Honneth toma o reconhecimento como algo filogenético como uma tendência espontânea dos indivíduos, sem analisar do ponto de vista ontológico sua ontogênese, isto é, a sua construção social sob os efeitos institucionais de grupos de poder (capitalismo, influência das elites...). Honneth não considerou que o indivíduo no afã de ser reconhecido pode, para ser aceito num determinado grupo, reproduzir as injustiças e padrões de opressão em vez de lutar por autorrealização e emancipação (Thompson, 2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 252).

Assim, Thompson (2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 263) entende que o eu honnethiano enfraquecido pelas patologias sociais busca amparo numa comunidade com a qual se identifica: fragilizado ele não busca resistência, mas aceitação. Isso colide com a tese de Honneth (2009) HONNETH, A. 2009. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34.que compreende o desrespeito como o motor de resistência política.

Thompson (2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 265) defende que a abordagem de Fromm acerca das patologias sociais é mais interessante do que a de Honneth porque Fromm não abandona a abordagem das patologias sociais a uma “fenomenologia do desrespeito”, posto que uma consciência alienada e reificada nem sempre tem automotivação, força e solidariedade da comunidade para expor sua experiência de sofrimento.

Um outro ponto que, segundo Thompson (2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 258), a abordagem das patologias de Fromm se sobressai perante a abordagem de Honneth é que este em Das Recht der Freiheit considera as patologias sociais mediante um enfoque subjetivo como sendo a incapacidade de interpretar e de seguir normas sociais, portanto, como uma desvinculação/ desintegração social.

Em Fromm, por outro lado, a abordagem das patologias tem uma análise de realidade social mais aproximada aos contextos dos agentes e ao modo como os sistemas e as conjunturas influenciam a consciência dos sujeitos. Há uma consideração atenta acerca dos processos de poder e, seguindo Marx, sobre como o capitalismo condiciona o indivíduo. Ou seja, diferentemente de Honneth, Fromm não se limita a pensar patologia como incapacidade subjetiva de seguir normas sem avaliar os contextos econômico e de poder que geram tal incapacidade.

Repensar o reconhecimento a partir de uma metafísica da imanência significa não perder de vista a premissa que o reconhecimento é um processo que ocorre dentro de contextos de relações de poder constitutivo e de dominação constitutiva. Para Thompson (2018THOMPSON, M. 2018. The failure of the Recognition paradigm in Critical Theory”. In: Axel Honneth and the Critical Theory of Recognition. Edited by Volker Schmitz. New York: Palgrave, p. 243-272., p. 264), isso exige um redimensionamento ontológico no sentido que pensar uma teoria demanda perguntar sobre a totalidade das relações, dos processos e das propostas da comunidade como um todo, com seus valores, suas crenças, cosmovisões e relações de poder. Portanto, a falha central da teoria do reconhecimento de Honneth consistiu em obliterar essa dimensão do poder.

Considerações finais

Como vimos, a crítica de Thompson parte da perspectiva crítico-ontológica e de uma metafísica da imanência mediante as quais se considera imprescindível reconsiderar a dimensão do poder e da dominação nas estruturas sociais de reconhecimento. Para o autor, a teoria do reconhecimento de Honneth ficou presa a uma abordagem pós-metafísica e, com isso, acabou colapsando a possibilidade de uma leitura metafísico-imanente do poder, imanente no sentido de um diagnóstico das instituições e das influências do poder nas relações; metafísico no sentido que se deveria levar em consideração todos os aspectos da vida, tais como cosmovisões não secularizadas, crenças e convicções religiosas.

O efeito teórico disso foi a possibilidade de Honneth ter padecido de um “déficit fenomenológico” de característica neoidealista pavimentado na pressuposição de uma autorrealização moral do indivíduo isenta de uma análise ontológica rigorosa sobre as implicações do poder e da dominação no interior vida prática imanente. Ele não teria levado em consideração a possibilidade de patologias sociais tais como apatia, insensibilidade, incapacidade de compreensão das normas sociais, terem incidência sobre os próprios contextos nos quais pudessem ocorrer - em tese - relações solidárias diante do compartilhamento de experiências de sofrimento. Portanto, na apreciação de Thompson, faltou a Honneth uma abordagem acerca das patologias inerentes às instituições, o que demandaria um enfoque para além da dimensão individual da autorrealização.

Em síntese, para Thompson é necessário repensar o reconhecimento a partir de uma metafísica da imanência, e isso significa não perder de vista a premissa que o reconhecimento é um processo que ocorre dentro de contextos de relações de poder constitutivo e de dominação constitutiva. Ignorar essa necessidade consistiu na falha principal da teoria do reconhecimento de Honneth.

Concordo com Thompson numa parte da sua crítica, a saber, quando ele afirma que faltou ao Honneth de a teoria da luta por reconhecimento uma análise das condições institucionais viáveis ao reconhecimento. Tanto é que isso é realizado dezenove anos depois em O direito da liberdade (2011). Em tal livro, Honneth manteve os olhos fixos nas condições institucionais do reconhecimento através dos conceitos de liberdade social e eticidade democrática.

Concordo também com Thompson que o ponto falho da proposta de reconhecimento em Honneth consiste em não ter tratado das implicações do poder e da dominação em suas esferas afetiva, jurídica e da solidariedade - e isso a meu ver se estende à proposta de eticidade democrática que não tratou como o poder, a dominação e, por exemplo, a força repressiva do mercado capitalista poderiam colapsar a liberdade social. Portanto, na minha compreensão, a crítica de Thompson a Honneth é procedente.

Entretanto, a minha discordância é acerca da consideração da autorrealização presa apenas ao enfoque individual. Na minha leitura, a finalidade pode ser de fato individual, porém o processo da luta por reconhecimento é social. Os desrespeitos nas esferas do amor e do direito são reorientados e ressignificados como o motor e o esteio motivacionais básicos da luta por reconhecimento na esfera da solidariedade, de modo que a luta não é apenas de um indivíduo, mas de uma coletividade e de um grupo que acolhem o indivíduo desrespeitado e lutam juntamente com ele a fim de que sua experiência de sofrimento seja convertida em experiência de resistência e de reconhecimento, ao menos num plano idealizado - e é possível que Thompson mais uma vez tenha razão nesta ressalva: num plano idealizado, porque em nível ontológico e real da vida concreta a própria esfera da solidariedade pode ser corrompida por imperativos de poder e de dominação.

Referências

  • FORST, R. 2018. Justificação e crítica: perspectivas críticas de uma teoria crítica da política. Trad. Denilson Werle. São Paulo: Editora Unesp.
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  • 1
    “Estado” aqui não é “Estado” no sentido jurídico-político de Ius publicum civitatum, mas “condição” (Zustand). Nesse sentido, a tradução correta deveria ser “condição pós-tradicional de solidariedade social” em vez de “estado pós-tradicional de solidariedade social”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2021
  • Aceito
    26 Abr 2022
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