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A individuação dos seres incorpóreos no Liber de Causis

The individuation of incorporeal beings in the Liber de Causis

RESUMO

Este artigo trata da individuação dos seres incorpóreos no Kalām fī maḥḍ al-ayr ou Liber de Causis (LdC). Tendo isso em vista, apresentarei a hierarquia dos seres, em especial, a distinção entre o intelecto e a alma. Após uma breve comparação entre os princípios no LdC (causa primeira, intelecto e alma) e nos Elementos de Teologia de Proclo (Uno, limite-ilimitado, henádes, intelecto e alma), discutirei a ausência das henádes divinas no LdC e as dificuldades encontradas pelo autor anônimo frente às mudanças realizadas na estrutura metafísica procliana. Riggs (2017) entende que o autor do LdC desenvolveu uma nova teoria para explicar a individuação, sem a mediação das henádes, baseada na distinção entre dois tipos de atividade: a criação realizada pela causa primeira e a doação de forma realizada pelo primeiro intelecto criado. Contudo, como discutirei, essas duas atividades não são capazes de justificar alguns aspectos do processo de individuação já que cada uma delas é um ato único realizado por um tipo de princípio externo, não por um princípio imanente ao próprio ser individuado. Uma interpretação alternativa para a teoria da individuação presente no LdC será proposta a partir de dois critérios: o princípio da semelhança (LdC X) e o princípio da proporcionalidade (LdC IX, XI).

Palavras-chave
Filosofia medieval; neoplatonismo; filosofia árabe; recepção

ABSTRACT

This article is about the individuation of incorporeal beings in the Kalām fī maḥḍ al-ayr or Liber de Causis (LdC). Bearing that in mind, I will introduce the hierarchy of beings, especially the distinction between the intellect and the soul. After a brief parallel between the types of principles in the LdC (first cause, intellect and soul) and in Proclus’ Elements of Theology (One, limit-unlimited, henádes, intellect and soul), I will discuss the absence of the divine henádes in the LdC and some difficulties faced by the anonymous author due to his changes in the Proclian metaphysical model. Riggs (2017) understands that the anonymous author of the LdC developed a new theory to explain the individuation of beings based on two kinds of activities: the act of creating performed by the first cause and the act of informing performed by the first created intellect. However, these two activities are not able to justify some aspects of individuation since each one of them is a unique act performed by an external principle, i.e., the first cause and the first intellect, not by an immanent one. An alternative interpretation of the theory of individuation found in the LdC will be proposed based on two criteria: the principle of similarity (LdC X) and the principle of proportionality (LdC IX, XI).

Keywords
Medieval philosophy; neoplatonism; arabic philosophy; reception

Introdução

O Discurso sobre o bem puro (Kalām fī maḥḍ al-ayr) ou, segundo a versão latina1 1 A versão latina, traduzida por Geraldo de Cremona no século XII) é uma tradução do texto árabe; ver Caiazzo, 2019, p. 46. Para o texto árabe, na maior parte das vezes, será utilizada a edição de Badawi (1955). As referências seguirão o formato LdC capítulo, página e linhas da edição Badawi, traduções. , Livro sobre as causas (Liber de Causis) é um texto apócrifo, cuja autoria e data de elaboração ainda são objeto de investigação. Sobre a autoria da obra, desde a sua chegada em ambiente latino (século XII) até os dias atuais, algumas hipóteses foram levantadas. Seguindo o incipit do manuscrito de Leiden2 2 [Incipit Leiden] “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Senão por Deus sucede meu êxito. Livro sobre a exposição (’īḍāḥ) de Aristóteles acerca do bem puro [...]” (Taylor, 1981, p. 136.1-3). A lista completa com os títulos e datas dos manuscritos é fornecida por Taylor (1982, p. 44-45). , alguns atribuíram-na a Aristóteles. Outros autores, seguindo o incipit dos manuscritos de Istambul e Ancara3 3 [Incipit Istambul e Ancara] “Em nome de Deus, Clemente, Misericordioso. Que Deus abençoe Muḥammad e sua família. Discurso sobre o puro bem (maḥḍ al-ẖayr). Diz-se que Proclo o extraiu/resumiu (laẖẖaṣa) do discurso de Platão, sendo dito que é de Platão. Eis o que disse [...]” (LdC Incipit, ed. Taylor, 1981, p. 136.1-5) , reconheceram tratar-se de uma versão dos Elementos de Teologia de Proclo. Nas palavras de Alonso,

[...] Quem é o autor do Liber de Causis? Não é Aristóteles, embora tenha sido citado muitas vezes pelos escolásticos com seu nome e ainda que afirmem muitos códices conservados. Aristóteles não pôde copiar de Proclo. Tampouco é seu autor este mesmo Proclo, pois embora o Liber de Causis tome de Proclo suas ideias, contudo, não é uma tradução da Elementatio Theologica e, em várias passagens, as ideias de Proclo receberam uma nova orientação, conservando a letra antiga. Tampouco é al-Farabi seu autor [...] ( Alonso, 1944 ALONSO, M. A. 1944. “El ‘Liber de Causis’”. Al-Andalus. 9:43-69. , p. 67 [25])

Da dificuldade em estabelecer a autoria da obra, decorrem os desacordos quanto à sua data de elaboração. Contudo, alguns estudos indicam tratar-se de um texto escrito entre o século IX d.C e XII d.C (ou II A.H. e V A.H.) durante a primeira fase do movimento de tradução dos tratados gregos para a língua árabe. Como sugere Zonta (1998ZONTA, M. 1998. “L’autore del De causis Pseudoaristotelico: una nuova ipotesi,” in FINAZZI, R. B., VALVO, A. (eds), La difusione dell’eredità classica nell’età tardoantica emedievale. Il Romanzo di Alessandro e altri scritti. Alessandria: Edizioni dell’Orso, p. 323-330., p. 324)4 4 Zonta (1998, p. 328-29) sugere que o autor de LdC seria de uma família de tradutores que pertencia ao círculo de Al-Kindi. , assumindo a hipótese de Endress (1971ENDRESS, G. 1997. “The Circle of al-Kindi. Early Arabic Translations from the Greek and the Rise of Islamic Philosophy” in ENDRESS, G., KRUK, R. (eds.) The ancient tradition in Christian and Islamic Hellenism. Studies on the transmission of Greek philosophy and sciences dedicated to H.J. Drossaart Lulofs on his ninetieth birthday, p. 43-76.) e Zimmerman (1994ZIMMERMANN, F. W. 1994. “Proclus Arabus Rides Again”, Arabic Sciences and Philosophy 4:9-51.) sobre a data de elaboração da versão árabe dos Elementos de Teologia5 5 Segundo D’Ancona (1998, p. 426), ainda que não conheçamos nenhuma tradução completa em árabe dos Elementos de Teologia de Proclo, ela teria existido. A estudiosa, em sua afirmação, leva em consideração as semelhanças entre algumas das proposições encontradas no LdC e partes do conjunto de textos em árabe intitulado Proclus Arabus. , a dizer, contemporaneamente à elaboração da Teologia de Aristóteles e à tradução da Metafísica de Aristóteles, o LdC seria posterior à 8506 6 “Em 1973, quando Endress publica seu Proclus Arabus, isto é, a edição crítica das proposições de Proclo traduzidas para o árabe [...] um passo decisivo foi dado para todo o âmbito de estudos [...] A análise lexical, estilística e doutrinal da tradução árabe de Proclo conduzida com extrema maestria e em comparação sistemática com os textos plotinianos árabes de um lado, e o Liber de causis de outro, tornou claro a todos, arabistas e não arabistas, que esses três textos, o corpus plotiniano árabe, a tradução dos Elementos de Teologia e o Liber de Causis, com efeito, provinham todos de um mesmo ambiente e pertenciam a uma mesma época, a dizer, aquela da estreia do movimento de tradução das obras gregas em árabe: o século IX”. (D’Ancona, 1997-1998, p. 425). . Taylor (2020TAYLOR, R. C. 2020 “Contextualizing the Kalām fī maḥḍ al-khair / Liber de causis”. In CALMA, D. (ed.).Reading Proclus and the Book of Causes, 2. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 211-232., p. 222-28) estabelece a relação entre o autor do LdC e o círculo de al-Kindi7 7 Sobre o círculo de al-Kindi, ver Endress (1997). a partir da comparação da obra com outros textos produzidos nesse mesmo contexto.

Deixando essas questões de lado na medida em que extrapolam os objetivos deste artigo, um ponto importante para a análise que se segue é a relação entre o LdC e os Elementos de Teologia de Proclo8 8 Segundo Tomás de Aquino (1986, p. 168-69): “Há alguns escritos sobre os primeiros princípios, divididos em proposições, quase como se considerassem as verdades uma por uma. Em tal formato existe, em grego, o livro do platônico Proclo, o qual contém 211 proposições e se intitula Elementos de Teologia. Já em árabe, existe este livro que vamos comentar, o qual foi nomeado Sobre as causas pelos latinos. Sobre ele, sabe-se que foi traduzido do árabe e que não existe em grego. Por isso, pode-se concluir que seja um estrato do livro citado de Proclo elaborado por um filósofo árabe, sobretudo se se tem em vista que tudo isso que esse livro contém encontra-se, de modo muito mais completo, no livro de Proclo”. . Embora o inicipit dos manuscritos de Istambul e Ancara atribuam a autoria do LdC a Proclo, as diferenças teóricas existentes entre os textos impedem esse tipo de afirmação9 9 Contudo, o fato de Proclo não ser o autor do LdC não significa que não haja nenhum tipo de relação entre os Elementos e o LdC. Pelo contrário, o modelo teórico encontrado no LdC, embora não seja o mesmo dos Elementos, pressupõe alguns aspectos apresentados por Proclo ao longo das suas proposições. . Segundo Taylor (1986TAYLOR, R. C. 2020 “Contextualizing the Kalām fī maḥḍ al-khair / Liber de causis”. In CALMA, D. (ed.).Reading Proclus and the Book of Causes, 2. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 211-232., p. 38; 2020, p. 212)10 10 Alguns estudos recentes como, por exemplo, D’Ancona (2014), Riggs (2017), Taylor (2020) e Vlad (2022) nos levam a refletir sobre a tentativa de reduzir o LdC ao conteúdo dos Elementos de Teologia, tal como propôs Tomás de Aquino (Comentário ao Liber de Causis, Proêmio; trad. D’Ancona, 1986, p. 168-69): “[...] pode-se concluir que seja um estrato do livro citado de Proclo elaborado por um filósofo árabe, sobretudo se se tem em vista que tudo isso que esse livro contém encontra-se, de modo muito mais completo, no livro de Proclo”. , o LdC não se reduz a uma mera junção de excertos dos Elementos de Teologia de Proclo, mas há uma originalidade na seleção e arranjo dos capítulos a partir de uma “abordagem criacionista monoteísta” (Taylor, 1986TAYLOR, R. C. 2020 “Contextualizing the Kalām fī maḥḍ al-khair / Liber de causis”. In CALMA, D. (ed.).Reading Proclus and the Book of Causes, 2. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 211-232., p. 38). Além das referências diretas11 11 Um quadro comparativo é fornecido por Anawati (1956, p. 85-93 [13-21]) e por Taylor (1981, p. 61-62). e indiretas12 12 Segundo D’Ancona (1989, p. 9, n. 26), o autor do LdC teria utilizado de modo não literal as seguintes proposições dos Elementos de Teologia: 3, 4, 59, 60, 72, 107, 116, 121, 125, 129, 143, 161, 180, 191 e 196. aos Elementos de Teologia de Proclo13 13 Assim, ainda hoje (ver Calma, 2016, p. 13; D’Ancona, 2019, p. 70), há consenso quanto ao reconhecimento da influência dos textos de Proclo na elaboração do LdC. , segundo D’Ancona (1989D’ANCONA, C. 1989. “Le fonti e la struttura del Liber de causis”. Medioevo 15:1-38., p. 9, notas 26-28), o texto também teria relação com as Enéadas14 14 A relação entre o LdC e as Enéadas é complicada na medida em que é preciso assumir que a Teologia de Aristóteles seria uma versão das Enéadas de Plotino. e com outros textos que constituem o Plotiniana Arabica15 15 Taylor (2020, p. 214-215) apresenta essa relação. .

A primeira grande diferença entre o LdC e os Elementos de Teologia diz respeito à ordem e ao número de proposições. Nota-se, de imediato, que a divisão e o número das proposições não são os mesmos16 16 Segundo Tomás de Aquino (D’Ancona, 1986, p. 168-69): “Há alguns escritos sobre os primeiros princípios, divididos em proposições, quase como se considerassem as verdades uma por uma. Em tal formato existe, em grego, o livro do platônico Proclo, o qual contém 211 proposições e se intitula Elementos de Teologia. Já em árabe, existe este livro que vamos comentar, o qual foi nomeado Sobre as causas pelos latinos. Sobre ele, sabe-se que foi traduzido do árabe e que não existe em grego”. . O LdC, em sua versão árabe, contém trinta e um capítulos (bāb/capitulum), já os Elementos contêm duzentas e onze proposições: “toda a primeira parte [§1-89] não foi utilizada pelo autor do De causis” (Anawati, 1956ANAWATI, G. C. 1956. “Prolégomènes à une nouvelle édition du De causis arabe (Kitab al-hayr al-mahd)”. Mélanges Louis Massignon, Damas: Institut Français de Damas, p. 73-110., p. 89 [17])17 17 Os títulos das quatro primeiras partes que não se encontram no LdC são: a) Sobre o um e o múltiplo (§1-6); b) Sobre as causas (§7-13); c) Sobre os graus de realidade (§14-24); d) A emanação e o retorno (§25-89). Cf. Anawati, 1956, p. 89 [17]. . Como os Elementos abarcam uma gama de temas que não são tratados pelo autor anônimo, importantes diferenças teóricas têm sido apontadas pelos estudiosos18 18 A metodologia de análise é a comparação entre um capítulo do LdC e aquele (ou aqueles) que poderia ser o seu equivalente nos Elementos de Teologia. O próprio Tomás de Aquino utiliza tal metodologia no seu Comentário. Contudo, Tomás o faz, na maior parte das vezes, em vista de mostrar as semelhanças entre os textos. . As mais exploradas dizem respeito à ausência do vocabulário da participação no LdC e, em consequência, a substituição por uma teoria da emanação; às distinções quanto à hierarquia dos princípios, em especial, à identificação entre o uno e a causa primeira; ao abandono das henádes divinas19 19 Há uma longa literatura sobre as henádes e as mônadas em Proclo. Embora escape aos objetivos deste artigo apresentar uma análise da função metafísica das henádes divinas na teoria procliana, indicarei mais à frente, nas notas de rodapé, os pontos de maior desacordo entre os estudiosos. Segundo Greig (2020, p. 24), “Contudo, Proclo elucida um segundo grupo de causas intermediárias [além das henádes] que também são responsáveis pela produção de Ser: o Limite e o Ilimitado, princípios que Proclo toma emprestado do Filebo 16c-d de Platão, onde são considerados princípios constitutivos de todos os seres”. ; e à criação dos seres como ato exclusivo da causa primeira.

Tendo em vista essas diferenças teóricas, explorarei as modificações realizadas pelo autor anônimo na hierarquia dos princípios. Assim, partindo do pressuposto que o autor do LdC “interpreta e transforma” (Steel, 2022STEEL, C. 2022 “Substantia stans per essentiam suam: Proclus et l’ auteur du De causis sur les êtres qui se constituent eux-mêmes”. In CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes, 3. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 37-59., p. 37)20 20 Embora Steel (2022, p. 37) reconheça que o autor do LdC “interpreta e transforma” o conteúdo dos Elementos, no seu estudo de caso, ele aponta que o autor do LdC “não apenas retoma a doutrina de Proclo [...], mas também a amplia”. os Elementos de Teologia, abordarei, seguindo o caminho proposto por Riggs (2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. ), a teoria da individuação dos seres incorpóreos em vista da nova hierarquia apresentada no LdC. Para tal, a estrutura deste artigo foi organizada do seguinte modo: cap. I) unidade e multiplicidade no LdC e nos Elementos de Teologia; cap. II) sobre a ausência das henádes divinas no LdC e o problema da individuação dos seres incorpóreos; cap. III) o princípio da semelhança e o princípio da proporcionalidade no LdC; e considerações finais.

1. Unidade e multiplicidade no LdC e nos Elementos de Teologia

A origem da multiplicidade dos seres é explicada no LdC II (5.5-8; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 286; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 2) a partir de três causas principais: a causa primeira ou o ser (al-ʾanniyya)21 21 O autor do LdC também utiliza a expressão “ser verdadeiro (ʾanniyya bi-ḥaqq)”, a qual se encontra em algumas proposições dos Elementos de Teologia (86, 88; Proclus, 1963, p. 79, 81) “ser verdadeiro/de fato (τὸ ὄντως ὂν)” (Proclus, 1963, p. 79). , o intelecto (al-ʿaql) e a alma (al-nafs). A hierarquização desses princípios se dá na relação de cada um deles com a eternidade (al-dahr) e o tempo (al- zamān)22 22 Essa distinção reaparece no LdC XX (30.5-7; Taylor, 1982, p. 332; Anawati, 1950, p. 14): “Fica, assim, claro e evidente que dentre as substâncias, algumas são perpétuas e estão acima/além do tempo, outras são perpétuas no tempo sem que o tempo se separe delas e, outras estão no tempo, mas são descontínuas com eles [...] Essas são as substâncias sujeitas à geração e corrupção.” . A causa primeira é causa da eternidade e existe acima e antes da eternidade; o intelecto existe com a eternidade; a alma é causa do tempo, existe depois da eternidade e acima do tempo. Assim, a ausência de corrupção dos seres eternos é garantida: a) pela proximidade da causa primeira, o princípio que garante a manutenção da eternidade; b) pela autossuficiência e, em consequência, c) pela realização de uma atividade que se identifica com o próprio ser23 23 Segundo Taylor, “o autor indica que a inteligência, a qual é imutável e indivisível, ao se voltar para sua essência, é capaz de conhecer, por meio de sua essência, as coisas corpóreas que são extensas. Já que o conhecimento consiste em um tipo de identidade entre o que conhece e o que é conhecido [...] a inteligência se torna intelectualmente um objeto extenso, permanecendo separada, subsistente e estável. Isso permite que se diga que, ao conhecer objetos corpóreos, a inteligência é intelectualmente estendida, permanecendo, ela própria, uma substância não extensa e imaterial essencialmente.” (Taylor, 1981, p. 376). . Em vista desses critérios, os intelectos são caracterizados como “uma unidade multiplicada (wāḥidun ḏātun karatun) e uma multiplicidade unificada (karatun wāḥdāniyyatun)” (LdC IV 7.6-7; Taylor, 1982TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 290; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 3).

Diferentemente do primeiro ser, a dizer, a causa primeira, o ser criado também carrega em si a multiplicidade24 24 Tomás de Aquino (D’Ancona 1986, p. 211) explica que essa dualidade das inteligências se deve ao fato de, embora única e limitada, cada inteligência pode participar de vários outros seres e, assim, multiplicar-se através deles. . Assim, os intelectos são divididos em dois grupos: os intelectos primários e os intelectos secundários. A emanação (al-fayḍ)25 25 “Os intelectos primários emanam (tufīḍu) sobre os intelectos secundários as virtudes (al-faḍāʾil) obtidas da causa primeira [...]” (LdC IV 7.8; Taylor, 1981, p. 290; Anawati, 1950, p. 4) realizada pelos intelectos primários se volta para infundir, nos intelectos secundários, as virtudes (al-faḍāʾil) obtidas da causa primeira, produzindo as “formas estáveis subsistentes (al-uwar al-ṯābita al-qāʾima)” (LdC IV 7.10; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 290; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 4)26 26 Embora toda inteligência contenha formas, essa característica varia conforme os diferentes tipos de inteligência. Assim, algumas contêm formas mais universais, outras formas menos universais. Contudo, não há referência a quais formas seriam mais ou menos universais. Assim, o que é dito no LdC IX parece indicar que se trata das mesmas formas, contudo, com graus de universalidade distintos: “as formas que estão nas inteligências inferiores estão de um modo particular enquanto estão nas inteligências superiores de um modo universal”. (LdC IX 12.20-13.1; Taylor, 1981, p. 301; Anawati, 1950, p. 7) . No caso dos intelectos secundários, a emanação atua sobre os seres que, de algum modo, relacionam-se com o movimento, como no caso da alma. Por meio desta emanação, tais intelectos produzem o segundo tipo de forma, a dizer, as “formas inclinadas transitórias (al-uwar al-māʾila al-zāʾila)” (LdC IV 7.11; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 290; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 4).

A mesma subdivisão aplicada aos intelectos também se aplica às almas. Distinguem-se, portanto, as almas que estão mais próximas dos intelectos, ditas “mais completas, perfeitas [e pouco propensas ao declínio e ao desaparecimento]” (LdC IV 7.13-8.1; Taylor, 1982TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 290-291; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 4) das almas mais distantes dos intelectos. O critério utilizado para a distinção entre os tipos de alma é a posição em relação àquilo que é superior, o intelecto, e em relação ao inferior, os corpos. Neste sentido, a hierarquia ontológica27 27 Pode-se chamar de hierarquia ontológica, pois, diferentemente de Proclo para o autor do LdC, a causa primeira também é chamada de ser primeiro. apresentada (causa primeira, intelecto e alma) justifica a distinção entre o intelecto e a alma dada a relação entre esta e o movimento dos corpos. O tipo de atividade característico dos intelectos e a proximidade da causa primeira garantem maior unidade a eles se comparados às almas. Embora carregue, de certo modo, a multiplicidade, o primeiro intelecto se assemelha ao uno na medida em que é o primeiro ser criado pela causa primeira, o uno absoluto. A unidade dos outros intelectos é uma característica derivada da unidade absoluta do primeiro intelecto criado, a “mais excelsa de todas as coisas criadas e de unidade mais intensa” (LdC IV 6.10; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 289; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 3).

Diferentemente dos Elementos de Teologia, no LdC, a causa do ser, da unidade e do bem dos intelectos é atribuída à causa primeira. Na medida em que é causa de ser, ela garante que todas as criaturas sejam o que elas são; o que trará, como veremos, algumas dificuldades para o autor anônimo. Segundo os Elementos de Teologia 138 (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 123): “o ser está acima tanto da inteligência quanto da vida [...] antes dele não há outro princípio exceto o uno”28 28 “Assim, nos primeiros princípios deve haver a seguinte ordem: imediatamente antes do ser deve encontrar-se um não-ser que é unidade e superior ao ser”. (Proclus, 1963, p. 123) . Segundo Vlad (2022VLAD, M. 2022. “L’Être Premier - Entre Proclus et Denys L’Aréopagite” in: CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes. Vol. 3. Leiden, The Netherlands: Brill., p. 91), “o ser primeiro é simples e sem partes; não é composto (σύνθετον) de outros elementos e não possui grandeza, mas ele é descrito como sendo o mais unitário (ἑνοειδέστατον)29 29 Segundo Vlad (2022, p. 93), “Enquanto mônada, o ser é apenas um (ἕν ἐστι µόνον)”. Contudo, essa unidade não é a mesma do Uno por já envolver a multiplicidade. ”. O modo pelo qual Proclo resolve o problema da cisão completa entre o Uno e o ser30 30 Embora o ser participe do bem, disso não se pode concluir que ele participe do Uno. Embora Vlad (2022, p. 91) afirme que “este ser, que é autossuficiente, não é, portanto, o próprio Uno-Bem, mas participa dele (τῷ µετέχειν τοῦ ἀγαθοῦ)”, a autora (Vlad, 2022, p. 96) discute os problemas envolvidos em torno dessa participação: “por que o Ser primeiro, unitário, simples e sem partes precisa participar do Uno uma vez que ele não se constitui de uma pluralidade de partes que, desprovidas de unidade, correriam o rico de cair em um regresso ao infinito e uma vez que é impossível concebê-lo como não-uno que necessitaria receber a unidade?”. depende do estabelecimento das hénades (ἑνάδες)31 31 Henádes (ἑνάδες) é o nominativo plural de henás (ἑνάς). Segundo Butler (2014 , p. 17), “Heniaios é o termo técnico utilizado por Proclo para se referir ao tipo de unidade possuída pelos supra-essenciais (huperousios), contrastando com o termo hênômenos, ou ‘unificado’, o qual se aplica estritamente aos seres. Anteriormente a Proclo, o termo heniaios caracterizava simplesmente um agente unificado [...]”. e do limite-ilimitado (πέρατος καὶ απειρίας)32 32 Cf. Proclus, 1963, p. 139. como princípios intermediários entre a unidade absoluta do Uno em si, o qual nem sequer pode ser chamado de ser (o que já dividiria a sua natureza) e a multiplicidade de seres. Como Uno é “imparticipável (µὴ µετεχόµενον)” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 102-103)33 33 A proposição 6 (Proclus, 1963, p. 7) sugere o contrário, ou seja, que as henádes participam do Uno: “[...] se há o Uno em si mesmo, ele deve possuir um primeiro participante, a dizer, o primeiro grupo unificado”. Sobre a relação entre o Uno e as henádes, “As henades não podem proceder do Uno nem por hupobasis nem por proodos, pois ambos implicariam algum tipo de declínio e não há nenhum declínio do Uno às henades.” (Butler, 2014, p. 52). A comparação entre algumas proposições dos Elementos de Teologia, em especial, as proposições 6 e 9, mostra não ser clara a questão da participação no Uno. , a transmissão do bem e da unidade é feita pelas hénades divinas, as quais “não possuem nenhum atributo por participação (κατὰ µέθεξιν), mas conforme sua “subsistência (καθ᾽ὕπαρξις) e causalidade (καθ᾽αἰτίαν)” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 105; Butler, 2014BUTLER, E. P. 2014. Essays on the Metaphysics of Polytheism in Proclus. New York City: Phaidra Editions. , p. 12).

A primeira referência às henádes ocorre nos Elementos 6 (trad. Dodds, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 6-7). O contexto dessa ocorrência é a distinção, nos Elementos 5, entre o uno e a multiplicidade. Uma vez estabelecido que a multiplicidade participa do uno e, por isso, é “una e não una simultaneamente (ἕν ἐστιν ἅµα καὶ οὐχ ἕν)” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 4-5) e que o Uno em si não comporta nenhum tipo de multiplicidade34 34 “[...] o que participa do Uno é uno e não-uno e se o Primeiro Princípio fosse uma multiplicidade ou pluralidade, não haveria nenhum uno. Contudo, é impossível haver uma multiplicidade que não participe de modo algum do Uno. Logo, a multiplicidade não é anterior ao Uno” (Proclus, 1963, p. 4-5). , distingue-se, nos Elementos 6 (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 6-7) 35 35 “Toda multiplicidade se compõe de grupos unificados ou de henádes, unidades. Como é evidentemente impossível que cada ser constitutivo de uma multiplicidade seja uma pura multiplicidade, e cada constitutivo desta nova multiplicidade seja, por sua vez, uma multiplicidade. Se a parte constitutiva não é uma mera multiplicidade, ou é um grupo unificado ou uma henade: um grupo unificado se possuir a unidade por participação e uma henade se for constituído do primeiro grupo unificado. Se há um Uno em si, ele tem que possuir um primeiro participante, que é o primeiro grupo unificado. E este primeiro grupo é composto de henades: pois, se fosse composto de grupos unificados, eles, por sua vez, seriam compostos e assim ao infinito. Por isso, o primeiro grupo unificado é composto de henades; assim fica demonstrada a verdade do nosso enunciado.” (Proclus, 1963, p. 6-7) , a noção de “unificado (ἡνωµένως)”36 36 Dodds (Proclus, 1963, p. 7) traduz como grupo unificado. da noção de “unidade (ἑνάς)”. A unificação de múltiplos grupos unificados é diferente da unidade composta de apenas um único grupo unificado (as henádes). Proclo, assim, estabelece a distinção entre o Uno (ἕν), a unidade (ἑνάς) e o unificado (ἡνωµένως). O grau de unidade aumenta na medida em que a multiplicidade se aproxima do Uno simples e diminui à medida em que se afasta dele.

A partir dos Elementos 113, tem-se a associação entre as henádes e o divino: “a totalidade do número de deuses é uma unidade (ἑνιαῖός)” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 100-101). Embora os deuses não tenham o mesmo tipo de unidade do Uno, na medida em que se trata de uma unidade absoluta, eles carregam um tipo de unidade que se distingue da unificação característica dos seres37 37 “Todas as henádes estão umas nas outras e são unidas umas às outras e sua unidade é muito maior que a comunidade e semelhança entre os seres” (Proclo, Comentário ao Parmênides de Platão in BUTLER, 2014, p. 8) . Como cada deus ou deusa é único, ou seja, não há nada que compartilhe a mesma natureza e as mesmas propriedades, eles representam outro tipo de unidade38 38 “A potência unitária dos deuses (assim, das henádes divinas) detém em si mesma as potências de todos os seres. Por esta potência unitária, os deuses causam todas as coisas a partir deles mesmos. As henádes atuam sobre todas as ordens subordinadas, ao multiplicar suas transmissões, embora mantenham seu caráter unitário [...]” (Vlad, 2022, p. 95). .

Embora haja inúmeros desacordos quanto à intermediação do par limite-ilimitado39 39 Cf. Proclus, 1963, p. 139-141. na relação entre o Uno e as henádes divinas40 40 Sobre tais divergências (interpretações de D’Ancona, Van Riel e Butler, ver Greig. 2020, p. 29-43): “[...] a principal aporia que se encontra é a tensão entre a consideração que as henades são causalmente derivadas dos princípios Limite/Ilimitado e, por outro lado, a consideração que a natureza das henades é uma unidade pura, o que implica que elas não podem ser ‘derivadas’ [...]”. A solução sugerida por por Greig (2020, p. 24, 43-45) para esse problema é assumir que o limite-ilimitado, princípios responsáveis pela presença da composição de propriedades nas henades, seriam as primeiras henades que adviriam a partir do Uno. Assim, o limite e o ilimitado também seriam henades: “[...] o Uno é responsável pela subsistência (ὕπαρξις) de todas as henades e o Limite e Ilimitado são responsáveis pelas propriedades individuais das henades que tornam os diferentes tipos ou ordens de henades responsáveis por seus efeitos específicos relativos ao Ser.” (Greig, 2020, p. 24-25) , é justamente a relação entre o limite-ilimitado e as henádes que justifica a presença de certo tipo de unidade e de multiplicidade nas divindades. Por isso, cada henás divina é causa do ser e da unidade dos diferentes seres que a ela se seguem. Nos Elementos 171 (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 151), a unidade e individualidade dos intelectos é apresentada em vista da relação com as henádes, as quais conferem certas propriedades aos intelectos que delas participam: “o participante (τὸ µετέχον) tem que ser semelhante ao participado (τῷ µετεχοµένῳ) em um aspecto, embora diferente e dessemelhante em outro (ἕτερον καὶ ανόµοιον)41 41 A distinção se fundamenta no princípio da proporcionalidade segundo o qual cada ser recebe do participado na medida da sua “posição e capacidade (τάξις καὶ δύναµις)” (Proclus, 1963, p. 124-125); o que justifica o fato de um único princípio, realizando uma única atividade, ser causa de diferentes seres. Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 120-121).

2. A ausência das henádes divinas no LdC e o problema da individuação dos seres incorpóreos

Ainda que haja muitos desacordos quanto à função das henádes na metafísica procliana42 42 Butler (2014, p. 39-48), de modo resumido, apresenta as diferentes tendências interpretativas. , há consenso quanto ao fato de a) as henádes estarem entre o Uno e os seres43 43 “Todo deus está acima do ser, acima da vida e acima da inteligência (Πᾶς θεὸς ὑπερούσιός ἐστι καὶ ὑπέρζωος καὶ ὑπερνους)” (Proclus, 1963, p. 100-101) , b) transmitirem um tipo de unidade aos seres e, consequentemente, uma individualidade e c) estarem ausentes no LdC. Segundo Riggs (2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 289), desta ausência, decorrem algumas consequências para a teoria da individuação dos seres incorpóreos.

A questão surge da recente reavaliação da doutrina de Proclo sobre as henádes, a qual mostra que os Deuses (henádes), na filosofia de Proclo, são indivíduos primários e, assim, a fonte da individualidade de todos os seres inferiores [...] se as henádes são os princípios últimos da individuação na metafísica de Proclo, sua ausência resultaria em uma perda dos meios conceituais de assegurar a individuação, pelo menos no caso dos seres incorpóreos, exceto se substituída por algum outro princípio ou princípios. É minha posição que o [LdC] não oferece um princípio de individuação viável para os seres incorpóreos. ( Riggs, 2017 RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 289-290)

Embora Riggs tenha em vista as almas e as implicações éticas44 44 “De uma perspectiva ética, esta ausência não é trivial: as henádes são princípios metafísicos que Proclo pode usar, e efetivamente usa, para justificar a atribuição de identidades essenciais únicas a almas individuais. Isso lhe permite evitar a perda indesejada de individualidade que, de outro modo, seguir-se-ia da separação das almas da matéria se a matéria fosse o único princípio de individuação disponível. Em tal caso, as almas, quando liberadas da matéria, simplesmente se fundiriam em uma única alma universal ou em uma série de almas universais idênticas (o que significaria a mesma coisa). (Riggs, 2017, p. 290) da ausência de um princípio que individue os seres humanos após a morte do corpo, sua análise se estende a todos os seres incorpóreos, inclusive aos intelectos. A falta de um princípio de individuação tanto para os intelectos quanto para as almas significaria uma incapacidade teórica de justificar o que torna os seres incorpóreos indivíduos únicos e unificados. A distinção entre os intelectos e as almas eternas seria aniquilada na medida em que não há um corpo que os distinga. O modo adotado pelo autor do LdC para evitar esse problema, a dizer, a redução de todos os seres incorpóreos a um mesmo tipo de ser, seria, então reformular a teoria da individuação dos Elementos.

Partindo fundamentalmente da análise do LdC IV, V, XIX, XXII e XXIII45 45 Riggs (2017), ao longo do artigo, menciona outros capítulos, mas a sua argumentação se fundamenta, de modo central, nestes capítulos indicados; os quais teriam relação direta com o tratamento das henádes nos Elementos de Teologia: “Liber 4 = ET 138 (mas também 177, 182 e 183); Liber 5 = ET 123; Liber 19 = ET 122; Liber 20 = ET 127; Liber 22 = ET 134; Liber 23 = ET 142; Liber 31 = ET 116 (mas também 107).” (Riggs, 2017, p. 298) , Riggs46 46 “O Adaptador também redistribuiu as funções atribuídas por Proclo às henádes a outros princípios, isto é, ao Primeiro Ser Criador (Deus) e ao Ser Primeiro Criado (Intelecto) [...] Mesmo que ele tenha obtido sucesso nisso, sua manobra teve um preço [...]” (Riggs, 2017, p. 292) entende que a teoria da individuação do LdC se fundamenta na distinção entre dois tipos de atividades, cada uma atribuída a um princípio diferente. Se, por um lado, a causa primeira cria47 47 “Causa pelo modo da criação (bi-nawʿ ʾibdāʿ; per modum creationis)”. (LdC XVII 19.10, 19.12, Taylor, 1981, p. 312.20; Anawati, 1950, p. 10; ed. latina Pattin XVII.148; Reegen, 2000, p. 136). e, por isso, é causa de ser, o primeiro intelecto informa48 48 “Causa pelo modo de forma (bi-nawʿ ṣūra; per modum formae)”. (LdC XVII 19.11; Taylor, 1981, p. 312. 20; Anawati, 1950, p. 10; ed. latina Pattin XVII.148; Reegen, 2000, p. 136) e, por isso, é causa de forma. O primeiro intelecto criado diversifica os outros intelectos na medida em que cada substrato inteligível, cujo ser foi causado pela causa primeira, recebe também uma forma49 49 “O resultado da adaptação do Adaptador e da modificação da distinção procliana original combinada com o conteúdo de Liber, 6.13-7.7 (4), é que, como poderia parecer, somos encorajados a conceber a existência dada pela Primeira causa na criação como uma espécie de substrato inteligível que é receptivo do conteúdo inteligível dado por meio da forma pela Causa Primeira pela mediação do primeiro intelecto”. (Riggs, 2017, p. 302-303) .

Assim, o autor do LdC, ao eliminar as henádes do seu modelo metafísico, teria abordado a individuação a partir de outro princípio que, segundo Riggs (idem), não seria “viável”. Isso porque explicar o que individua significa apontar aquilo que, nos seres, os torna únicos, diferentes uns dos outros. Embora a causa primeira seja o primeiro princípio causal dentre todos os princípios, atuando, assim, sobre tudo que está “abaixo dela” () de modo mais “abundante e fundamental” (), ela é causa apenas de ser. Através da criação, ela é causa do ser de todos os criados, inclusive do intelecto e da alma. Contudo, conhecer que ela cria o ser de tudo que existe, o substrato inteligível no caso dos intelectos50 50 “Seria essa concepção de um substrato inteligível um princípio adequado de individuação para as almas? Ela parece, pelo menos, dar conta da diferença entre os tipos de seres, por exemplo, a diferença entre os intelectos e as almas. Ainda assim, parece improvável que ela seja suficiente para diferenciar os outros membros do mesmo tipo, uma vez que as únicas diferenças que o Adaptador parece reconhecer entre os seres incorpóreos são as diferenças entre os tipos e a diferença entre os mais e menos universais no interior dos tipos.” (Riggs, 2017, p. 303-304) , não justifica o que individua cada um dos intelectos e cada uma das almas. Nesse sentido, embora a causa primeira garanta a existência dos substratos (sem forma), ela, ao efetuar uma única atividade, torna todos os seres idênticos e unos quanto ao fato de serem apenas seres; o que não justifica a multiplicidade de indivíduos.

O segundo lado do dilema implica em transferir todas as determinações para um intelecto ou para mais de um. Isso seria problemático porque os intelectos apenas participam da criação como mediadores, cada mediação multiplicando e diversificando os dons advindos do Primeiro: eles não acrescentam nenhum atributo ou propriedade deles próprios para as Formas que eles mediam, de modo que, quando chegamos ao âmbito das almas racionais, torna-se difícil ver qual atributo ou propriedade elas receberiam que as diferenciaria umas das outras. ( Riggs, 2017 RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 300-301)

Do ponto de vista da segunda opção indicada na passagem, a dizer, explicar a individuação apenas através da atividade do primeiro intelecto criado, o problema da individuação também não se resolveria em vista da atividade do intelecto de dar forma ou informar. Se reconhecermos que a forma é aquilo que individua, teríamos a dificuldade de explicar como dois seres, definidos do mesmo modo, são indivíduos distintos. A forma é um princípio universal e, enquanto tal, não responde pelas particularidades dos seres.

No entanto, diferentemente do que sugere Riggs, a teoria da individuação no LdC aborda a individualidade dos intelectos e das almas não a partir de um princípio externo, ou seja, da causa primeira que é causa do ser ou do primeiro intelecto que é causa da forma, mas a partir de um princípio interno, da natureza própria do causado. Como Riggs (2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 301-302) entende que a teoria da individuação no LdC é pensada a partir da atividade criativa da causa primeira e da atividade informativa do primeiro intelecto, são explorados apenas os capítulos do LdC (IV, V, XIX, XX, XXI, XXII, XXIII e XXXI)51 51 “Essas seções do Liber têm em vista: 1) um esboço preliminar da hierarquia inteligível (IV e V); 2) a Causa Primeira nomeada Primeiro Ser como ela é conhecida através da sua atividade criadora (XIX, XX, XXII e XXIII); e 3) o retorno à Causa Primeira como a unidade anterior a todas as unidades derivadas (segunda parte de XXXI)” (Riggs, 2017, p. 298) que, segundo o estudioso, teriam relação com as proposições dos Elementos nas quais Proclo aborda as henádes. Contudo, como buscarei mostrar, os capítulos centrais para entender como o autor do LdC buscou solucionar o problema da individuação decorrente da eliminação das henádes divinas são o LdC IX, X e XI, nos quais encontram-se formulados os princípios da semelhança e da proporcionalidade52 52 Esses dois princípios já são enunciados por Proclo, de modo geral, nos Elementos de Teologia 135. Nos Elementos de Teologia 142, Proclo apresenta apenas o princípio da proporcionalidade. .

3. Os princípios da semelhança e da proporcionalidade no LdC

Partindo do princípio da semelhança53 53 Anteriormente a Proclo, o princípio da semelhança já era utilizado pelos filósofos da antiguidade clássica no contexto de análise da percepção sensível e inteligível. Aristóteles, no De anima I.2, ao apresentar a teoria dos autores predecessores sobre a natureza e atividade da alma formula o princípio da semelhança do seguinte modo: “[...] de fato, afirmaram que semelhante conhece semelhante (γινώσκεσθαι τὸ ὅµοιον τῷ ὁµοίῳ) e porque a alma conhece todas as coisas a compuseram de todos os princípios”. (Aristóteles, 2008, p. 74-75. , o autor do LdC deduz a eternidade do ato dos intelectos em vista da eternidade das formas inteligidas por eles.

Todo intelecto intelige coisas eternas (dāʾimatan), imperecíveis (lā tadṯuru) e não sujeitas ao tempo (lā ... al-zamān). Por ser um intelecto eterno (dāʾiman) e imóvel (lā yataḥarrikun), ele é causa das coisas eternas (dāʾima), imutáveis (lā tastaḥīlu), ingênitas e incorruptíveis (lā ... al-kawn wa-l-fasād). O intelecto é assim por inteligir apenas através do seu ser, o qual é eterno (dāʾima), imutável (lā tastaḥīlu) e inalterável (lā tataǧayyaru). Por ser assim, dizemos que a causa das coisas mutáveis (mustaḥīla), sujeitas à geração e à corrupção (al-kawn wa-l-fasād), é corpórea e temporal (ǧirmiyya zamāniyya), não intelectual e eterna (ʿaqliyya dahriyya). (LdC X 13.15-14.2; Taylor, 1982, p. 303; Anawati, 1950, p. 7)

Nesta passagem, é estabelecida a semelhança entre dois tipos diferentes de causas, a causa inteligível eterna (ʿaqliyya dahriyya) e a causa corpórea temporal (ǧirmiyya zamāniyya), e os seus causados. Partindo das propriedades do causado, são apresentadas as propriedades da causa. No caso do intelecto, a dedução das suas propriedades se dá partindo de dois tipos de atividade, a dizer, a intelecção das formas inteligíveis54 54 “Assim, quando o intelecto foi diferenciado, as formas intelectivas nela passaram a ser diferenciadas. E assim como da forma una se originaram indivíduos infinitos quanto à multiplicidade quando a forma foi diferenciada no mundo inferior, também o primeiro ser criado, quando foi diferenciado, surgiram formas intelectivas que são infinitas. No entanto, embora diferenciadas, as formas intelectivas não se diferem umas das outras como se diferem os indivíduos. Isto porque elas são unificadas sem corrupção e separadas sem distinção, pois elas são uma unidade dotada de multiplicidade e uma multiplicidade na unidade.” (LdC IV 7.2-7.7; Taylor, 1981, p. 20-27; Anawati, 1950, p. 3; Riggs, 2017, p. 301) e a causalidade realizada sobre as coisas eternas que se seguem a ele. Como todo conteúdo inteligível é eterno, imperecível e não está sujeito ao tempo, a causa da intelecção também é eterna, imóvel e não gerada. Quanto à causalidade realizada sobre as coisas eternas, na medida em que os seres causados são eternos, imóveis e não estão sujeitos à geração ou corrupção, a causa é eterna, imóvel e não está sujeita à geração ou corrupção.

No caso da causa corpórea temporal, trata-se da alma (al-nafs). Por ser causa dos seres temporais, móveis e gerados, esse tipo de causa não poderia ser o intelecto, cuja natureza não é compatível com a natureza do que é passível de geração e corrupção. O intelecto não intelige o que é temporal e móvel, mas o que é atemporal e imóvel. Logo, essa causalidade não é realizada pelo intelecto, mas por uma causa igualmente temporal e móvel, a alma. O fato de ela ser dita corpórea se justifica pela relação mantida com os corpos. No LdC III (5.10-16; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 287. 1-10)55 55 Essa atribuição de três atividades à alma pode ser localizada nos Elementos de Teologia 201 (Proclus, 1963, p. 176-177). Contudo, nessa proposição, Proclo afirma que “todas as almas divinas” exercem providência ao serem potências intelectuais que conhecem todas as coisas. As almas seriam uma manifestação do divino no âmbito psíquico: “Todas as almas divinas têm três atividades, enquanto almas, enquanto recipientes do intelecto divino e enquanto derivadas dos deuses: enquanto divinas, elas exercem providência em direção ao todo, em virtude da sua vida intelectual elas conhecem todas as coisas, e em virtude do automovimento, transmitem movimento aos corpos” (Proclus, 1963, p. 176-177). , dentre as atividades atribuídas à alma, encontram-se a atividade de animar (al-fiʿl al-nafsānī), a atividade inteligível (al-fiʿl al-ʿaqlī) e a atividade divina (al-fiʿl al-ʾilāhī). A potência intelectual decorre do fato de a alma ser causada pela atividade dos intelectos. Contudo, embora mantenha uma relação com o intelecto, a alma também se relaciona com o corpo ao ser causa dos seus movimentos. Por isso, ou seja, devido ao vínculo com o corpo através do movimento, ela é dita móvel e corpórea mesmo sendo eterna e imóvel do ponto de vista da potência intelectual.

Portanto, dada a semelhança entre a causa e causado, as propriedades do intelecto (eterno, imóvel e inalterável) são deduzidas das propriedades dos conteúdos inteligíveis (eternos, imperecíveis, atemporais) e das propriedades dos causados (imóveis, ingênitos e incorruptíveis). Igualmente para a alma, cujas propriedades (temporal e corpórea) são deduzidas das propriedades dos seres sujeitos à sua causalidade (temporais, mutáveis, geradas, corruptíveis, corpóreas).

No entanto, ainda que todo intelecto contenha formas eternas e imperecíveis, o que é inteligido por cada intelecto varia conforme o tipo de intelecto. A diferença entre eles é explicada no LdC IX a) em vista de alguns intelectos conterem formas mais universais e b) em vista da natureza própria de cada intelecto. Assim, dado o critério de semelhança entre o que intelige e o que é inteligido, a natureza unitária própria de cada intelecto demandará um objeto inteligível que esteja mais próximo da sua unidade. Como os intelectos secundários possuem uma unidade menos intensa e uma maior multiplicidade, as formas que eles inteligem são menos universais: “os intelectos mais afastados (ʾabʿad) do uno são mais numerosos (ʾakar kammiyya) e mais fracos (ʾaaʿf)” (LdC IX 13.4-5; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 301; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 6).

A segunda justificativa para a diferença entre os intelectos é apresentada no final do LdC IX e retomada no LdC XI. Trata-se do princípio da proporcionalidade: cada coisa recebe da sua causa apenas aquilo que ela é capaz de receber na proporção da sua natureza56 56 Isso aparece nos Elementos de Teologia 103 e 173: “tudo está em tudo, mas em cada um ao modo que lhe é próprio” (Proclus, 1963, p. 92-93). “Todo princípio participa dos seus superiores na medida da sua capacidade e não na medida do seu ser. Em ultima instancia, aqueles deveriam ser participados da mesma maneira por todas as coisas; o que não acontece: por conseguinte, a participação varia com o caráter distintivo e a capacidade dos participantes” (Proclus, 1963, p. 150-151). . O acréscimo deste segundo princípio visa mostrar que a individualidade de cada intelecto está na sua natureza única que contém, de modo único, as causas inteligidas na proporção da sua natureza. Uma das premissas assumidas57 57 A atividade de intelecção dos intelectos é descrita no LdC VII.z é que a auto-intelecção realizada por um intelecto é proporcional e adequada à sua substância e ao seu ser. Neste sentido, seres distintos têm conhecimentos distintos “conforme à sua própria substância (ǧawharihī) e seu próprio ser (ḏātihī), não conforme o modo pelo qual as coisas são” (LdC VII 11.3-4; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 296; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 5). São apresentados dois exemplos para elucidar como o mesmo princípio pode ser causa de diferentes causados sem se reduzir a nenhum deles58 58 Segundo Tomás de Aquino (1986, p. 298), a segunda exemplificação se dá porque o autor, no primeiro exemplo, menciona três princípios que não são realidades subsistentes. Assim, a distinção seria reaplicada a realidades que subsistem por si: o ser primeiro, o intelecto, a alma intelectiva e a alma sensitiva. . O primeiro exemplo se vale da relação entre ser (ʾanniyya)59 59 Ex.1: vida e intelecto estão no ser: vida e intelecto (causados) estão no ser (causa) ao modo de ser (causa); ser (causa) está na vida e no intelecto (causado) ao modo de vida e intelecto (causado). , vida (ḥayāt)60 60 Ex.2: ser e intelecto estão na vida: ser (causa) está na vida (causado) ao modo de vida (causado); intelecto (causado) está na vida (causa) ao modo de vida (causa). e intelecto (ʿaql)61 61 Ex.3: ser e vida estão no intelecto: ser (causa) está no intelecto (causado) ao modo de intelecto (causado); vida (causa) está no intelecto (causado) ao modo de intelecto (causado). ; o segundo, da relação entre ser (ʾanniyya), intelecto (ʿaql), alma (nafs) e sentido (ḥiss).

Exemplo 2: ser, intelecto, alma e sentido o sentido está na alma ao modo de alma Sentido (causado) está na alma (causa) ao modo de alma (causa) Alma (causa) está no sentido (causado) ao modo de sentido (causado) a alma está na inteligência ao modo de inteligência Alma (causado) está no intelecto (causa) ao modo de intelecto (causa) Intelecto (causa) está na alma (causado) ao modo de alma (causado) o intelecto está no ser ao modo de ser Intelecto (causado) está no ser (causa) ao modo de causa (ser) Ser (causa) está no intelecto (causado) ao modo de intelecto (causado)

A partir dos exemplos, o autor do LdC conclui que o causado não existe na causa ao modo de causado, mas ao modo de causa e que a causa não existe no causado ao modo de causa, mas ao modo de causado. Ao comentar este capítulo, Tomás de Aquino (1986TOMMASO D’AQUINO. 1986. Commento ao “Libro delle cause”. A cura de Cristina D’Ancona, Milano: Rusconi Libri S.p.A., p. 255) propõe a metáfora do calor: cada coisa quente aquece de modo proporcional à sua natureza. Assim, o calor do Sol é diferente do calor de uma fogueira ou de uma vela. Embora todos eles igualmente contenham o calor, o ato de esquentar realizado por cada um é diferente. Do mesmo modo com os intelectos. Ainda que todos eles sejam igualmente inteligentes e, por isso, realizem o mesmo tipo de ação (a auto-intelecção), cada um a realiza de um modo único.

Considerações finais

Assim, partindo da interpretação de Riggs (2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. ) da teoria da individuação no Liber de Causis, procurei mostrar que, embora o autor anônimo tenha reformulado o modelo metafísico procliano, abandonando as henádes divinas, a teoria apresentada fornece elementos suficientes para justificar não apenas a distinção entre espécies de seres (intelectos e almas), mas também entre os indivíduos da mesma espécie. Ao eliminar as henádes divinas do LdC, algumas funções que Proclo (nas proposições 113 a 165) atribui a elas teriam sido redistribuídas, incluindo a individuação.

Outro elemento que perde força no LdC é a função do par limite-ilimitado na intermediação entre o primeiro e aquilo que dele se segue. Se a função de ser causa de ser passa a ser atribuída à causa primeira, a intermediação entre a simplicidade absoluta da causa primeira e a multiplicidade dos seres passa a ser feita pelo primeiro intelecto criado, não pela henádes divinas nem pelo limite-ilimitado. Embora esse par seja mencionado no LdC IV, não se trata de um princípio em si, mas de uma propriedade dos intelectos.

Quanto à teoria da individuação no LdC, ao contrário de pensa-la em vista de dois princípios externos e das suas atividades, a proposta alternativa apresentada seria entender o que torna os seres indivíduos únicos em vista de elementos inerentes aos próprios seres; tal como a matéria é para os seres corpóreos. O próprio texto do LdC parece se desenvolver nessa direção na medida em que, logo após apresentar a hierarquia dos seres (LdC I-IX), o autor anônimo introduz os princípios da semelhança (LdC IX) e da proporcionalidade (LdC XI). Assim, uma vez estabelecida as diferenças entre os seres incorpóreos a partir da atividade realizada por cada um deles, retoma-se, a análise dos intelectos e das almas (LdC XII e LdC XIII).

Essas diferenças são apresentadas a partir de diferentes abordagens. Na primeira abordagem (LdC X), a distinção entre os intelectos e as almas se justifica através das propriedades dos seus causados. Se, por um lado, os inteligíveis e o que sofre a causalidade direta do intelecto são eternos e imóveis, por outro, o que sofre a causalidade direta da alma é temporal e móvel. Dada a semelhança entre a causa e o causado, o autor anônimo aponta a necessidade de reconhecer que os dois tipos de causalidade descritos são realizados por causas distintas, uma inteligível e eterna, outra corpórea e temporal. Na segunda abordagem, iniciada no final do LdC IX e tratada em detalhes no LdC XI, a fim de sanar as dificuldades relativas à interação entre causa e causado, tem-se o acréscimo do princípio da proporcionalidade. A causa e o causado são semelhantes, contudo, tal semelhança não aniquila a distinção entre ambos. Como se trata de seres incorpóreos e eternos, ou seja, que existem sempre do mesmo modo e não sofrem nenhum tipo de alteração, a diferença entre eles não pode ser pensada a partir de uma causa externa. A identificação entre o ser, a atividade e a causalidade de cada um deles, isto é, a natureza autossuficiente de cada um, é o que os distingue.

Além disso, o princípio da proporcionalidade ajuda a compreender o caráter ambíguo das almas, as quais são ditas eternas e temporais. A partir da relação com o intelecto, a causa, a alma recebe a eternidade e a inteligibilidade (quando se tratar de uma alma racional) na proporção da sua natureza. A partir da relação com o corpo, o causado, a alma recebe a corporeidade e a temporalidade também na proporção da sua natureza. Ela, portanto, não é eterna e imóvel como o intelecto, nem corpórea e temporal como o corpo; o que significa que tais termos são relativos ao expressarem o que a alma é.

Embora fuja ao escopo deste artigo, caberia aqui uma discussão do modo pelo qual Proclo apresenta o princípio da semelhança e o princípio da proporcionalidade a partir do vocabulário da participação, ausente no LdC. Uma das consequências imediatas da supressão da participação é o predomínio do vocabulário da causalidade (causa, causado, causar). Daí o esforço do autor anônimo em mostrar que os seres são semelhantes por haver uma relação de causalidade entre eles, não de participação. O movimento para se pensar as semelhanças será deduzir, a partir do causado, as propriedades da causa, não o contrário. Assim, os seres que inteligem não são ditos inteligentes porque participam do intelecto, mas porque manifestam propriedades do intelecto (causa) na proporção da sua natureza (causado), a qual existe independe da causa62 62 Segundo Steel (2002, p. 37), “Como demonstra Proclo, na processão dos seres a partir do Primeiro Princípio, as substancias incorpóreas tal como o intelecto e a alma racional não são simplesmente produto do ato criador da causa primeira. Eles não advêm de uma causa exterior a eles próprios, tal como se dá com os seres corpóreos, mas são, eles próprios, causa do ser de cada um deles enquanto dependentes da causa primeira [...]” .

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  • 1
    A versão latina, traduzida por Geraldo de Cremona no século XII) é uma tradução do texto árabe; ver Caiazzo, 2019CAIAZZO, I. 2019. “La première réception du Liber de causis en Occident (XIIe-XIIIe siècles)”. In CALMA, D. (ed.). Reading Proclus and the Book of Causes, 1. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 46-69., p. 46. Para o texto árabe, na maior parte das vezes, será utilizada a edição de Badawi (1955BADAWI. 1955. ʿAbd al-Raḥmān al-Badawī. Al-Aflaṭūnīyah al-Muḥdathah ʿindā al-ʿArab. Cairo.). As referências seguirão o formato LdC capítulo, página e linhas da edição Badawi, traduções.
  • 2
    [Incipit Leiden] “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Senão por Deus sucede meu êxito. Livro sobre a exposição (’īḍāḥ) de Aristóteles acerca do bem puro [...]” (Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 136.1-3). A lista completa com os títulos e datas dos manuscritos é fornecida por Taylor (1982TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 44-45).
  • 3
    [Incipit Istambul e Ancara] “Em nome de Deus, Clemente, Misericordioso. Que Deus abençoe Muḥammad e sua família. Discurso sobre o puro bem (maḥḍ al-ẖayr). Diz-se que Proclo o extraiu/resumiu (laẖẖaṣa) do discurso de Platão, sendo dito que é de Platão. Eis o que disse [...]” (LdC Incipit, ed. Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 136.1-5)
  • 4
    Zonta (1998ZONTA, M. 1998. “L’autore del De causis Pseudoaristotelico: una nuova ipotesi,” in FINAZZI, R. B., VALVO, A. (eds), La difusione dell’eredità classica nell’età tardoantica emedievale. Il Romanzo di Alessandro e altri scritti. Alessandria: Edizioni dell’Orso, p. 323-330., p. 328-29) sugere que o autor de LdC seria de uma família de tradutores que pertencia ao círculo de Al-Kindi.
  • 5
    Segundo D’Ancona (1998D’ANCONA, C. 1997-1998. Le Livre des Causes: structure, antécédents, histoire littéraire. Annuaire EPHE, Section sciences religieuses, t. 106, p. 423-433., p. 426), ainda que não conheçamos nenhuma tradução completa em árabe dos Elementos de Teologia de Proclo, ela teria existido. A estudiosa, em sua afirmação, leva em consideração as semelhanças entre algumas das proposições encontradas no LdC e partes do conjunto de textos em árabe intitulado Proclus Arabus.
  • 6
    “Em 1973, quando Endress publica seu Proclus Arabus, isto é, a edição crítica das proposições de Proclo traduzidas para o árabe [...] um passo decisivo foi dado para todo o âmbito de estudos [...] A análise lexical, estilística e doutrinal da tradução árabe de Proclo conduzida com extrema maestria e em comparação sistemática com os textos plotinianos árabes de um lado, e o Liber de causis de outro, tornou claro a todos, arabistas e não arabistas, que esses três textos, o corpus plotiniano árabe, a tradução dos Elementos de Teologia e o Liber de Causis, com efeito, provinham todos de um mesmo ambiente e pertenciam a uma mesma época, a dizer, aquela da estreia do movimento de tradução das obras gregas em árabe: o século IX”. (D’Ancona, 1997-1998D’ANCONA, C. 1997-1998. Le Livre des Causes: structure, antécédents, histoire littéraire. Annuaire EPHE, Section sciences religieuses, t. 106, p. 423-433., p. 425).
  • 7
    Sobre o círculo de al-Kindi, ver Endress (1997ENDRESS, G. 1997. “The Circle of al-Kindi. Early Arabic Translations from the Greek and the Rise of Islamic Philosophy” in ENDRESS, G., KRUK, R. (eds.) The ancient tradition in Christian and Islamic Hellenism. Studies on the transmission of Greek philosophy and sciences dedicated to H.J. Drossaart Lulofs on his ninetieth birthday, p. 43-76.).
  • 8
    Segundo Tomás de Aquino (1986TOMMASO D’AQUINO. 1986. Commento ao “Libro delle cause”. A cura de Cristina D’Ancona, Milano: Rusconi Libri S.p.A., p. 168-69): “Há alguns escritos sobre os primeiros princípios, divididos em proposições, quase como se considerassem as verdades uma por uma. Em tal formato existe, em grego, o livro do platônico Proclo, o qual contém 211 proposições e se intitula Elementos de Teologia. Já em árabe, existe este livro que vamos comentar, o qual foi nomeado Sobre as causas pelos latinos. Sobre ele, sabe-se que foi traduzido do árabe e que não existe em grego. Por isso, pode-se concluir que seja um estrato do livro citado de Proclo elaborado por um filósofo árabe, sobretudo se se tem em vista que tudo isso que esse livro contém encontra-se, de modo muito mais completo, no livro de Proclo”.
  • 9
    Contudo, o fato de Proclo não ser o autor do LdC não significa que não haja nenhum tipo de relação entre os Elementos e o LdC. Pelo contrário, o modelo teórico encontrado no LdC, embora não seja o mesmo dos Elementos, pressupõe alguns aspectos apresentados por Proclo ao longo das suas proposições.
  • 10
    Alguns estudos recentes como, por exemplo, D’Ancona (2014D’ANCONA, C. 2014. “The Liber de Causis” in GERSH, S. (ed.)Interpreting Proclus. From Antiquity to Renaissance. Cambridge: Cambridge U.P., p. 137-61.), Riggs (2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. ), Taylor (2020TAYLOR, R. C. 2020 “Contextualizing the Kalām fī maḥḍ al-khair / Liber de causis”. In CALMA, D. (ed.).Reading Proclus and the Book of Causes, 2. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 211-232.) e Vlad (2022VLAD, M. 2022. “L’Être Premier - Entre Proclus et Denys L’Aréopagite” in: CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes. Vol. 3. Leiden, The Netherlands: Brill.) nos levam a refletir sobre a tentativa de reduzir o LdC ao conteúdo dos Elementos de Teologia, tal como propôs Tomás de Aquino (Comentário ao Liber de Causis, Proêmio; trad. D’Ancona, 1986D’ANCONA, C. 1989. “Le fonti e la struttura del Liber de causis”. Medioevo 15:1-38., p. 168-69): “[...] pode-se concluir que seja um estrato do livro citado de Proclo elaborado por um filósofo árabe, sobretudo se se tem em vista que tudo isso que esse livro contém encontra-se, de modo muito mais completo, no livro de Proclo”.
  • 11
    Um quadro comparativo é fornecido por Anawati (1956ANAWATI, G. C. 1956. “Prolégomènes à une nouvelle édition du De causis arabe (Kitab al-hayr al-mahd)”. Mélanges Louis Massignon, Damas: Institut Français de Damas, p. 73-110., p. 85-93 [13-21]) e por Taylor (1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 61-62).
  • 12
    Segundo D’Ancona (1989D’ANCONA, C. 1989. “Le fonti e la struttura del Liber de causis”. Medioevo 15:1-38., p. 9, n. 26), o autor do LdC teria utilizado de modo não literal as seguintes proposições dos Elementos de Teologia: 3, 4, 59, 60, 72, 107, 116, 121, 125, 129, 143, 161, 180, 191 e 196.
  • 13
    Assim, ainda hoje (ver Calma, 2016CALMA, D. 2016. The Exegetical Tradition of Medieval Neoplatonism. Considerations on a Recently Discovered Corpus of Texts. In CALMA, D. (ed.). Neoplatonism in the Middle Ages. New Commentaries on Liber de causis (ca. 1250-1350). Turnhout, Belgium: Brepols Publishers, p. 11-52., p. 13; D’Ancona, 2019D’ANCONA, C. 2019. “Medieval Neoplatonism. Remarks on hitherto Unknown Works on the Liber de Causis and the Elementatio Theologica”,The International Journal of the Platonic Tradition, 13. , p. 70), há consenso quanto ao reconhecimento da influência dos textos de Proclo na elaboração do LdC.
  • 14
    A relação entre o LdC e as Enéadas é complicada na medida em que é preciso assumir que a Teologia de Aristóteles seria uma versão das Enéadas de Plotino.
  • 15
    Taylor (2020TAYLOR, R. C. 2020 “Contextualizing the Kalām fī maḥḍ al-khair / Liber de causis”. In CALMA, D. (ed.).Reading Proclus and the Book of Causes, 2. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 211-232., p. 214-215) apresenta essa relação.
  • 16
    Segundo Tomás de Aquino (D’Ancona, 1986D’ANCONA, C. 1989. “Le fonti e la struttura del Liber de causis”. Medioevo 15:1-38., p. 168-69): “Há alguns escritos sobre os primeiros princípios, divididos em proposições, quase como se considerassem as verdades uma por uma. Em tal formato existe, em grego, o livro do platônico Proclo, o qual contém 211 proposições e se intitula Elementos de Teologia. Já em árabe, existe este livro que vamos comentar, o qual foi nomeado Sobre as causas pelos latinos. Sobre ele, sabe-se que foi traduzido do árabe e que não existe em grego”.
  • 17
    Os títulos das quatro primeiras partes que não se encontram no LdC são: a) Sobre o um e o múltiplo (§1-6); b) Sobre as causas (§7-13); c) Sobre os graus de realidade (§14-24); d) A emanação e o retorno (§25-89). Cf. Anawati, 1956ANAWATI, G. C. 1956. “Prolégomènes à une nouvelle édition du De causis arabe (Kitab al-hayr al-mahd)”. Mélanges Louis Massignon, Damas: Institut Français de Damas, p. 73-110., p. 89 [17].
  • 18
    A metodologia de análise é a comparação entre um capítulo do LdC e aquele (ou aqueles) que poderia ser o seu equivalente nos Elementos de Teologia. O próprio Tomás de Aquino utiliza tal metodologia no seu Comentário. Contudo, Tomás o faz, na maior parte das vezes, em vista de mostrar as semelhanças entre os textos.
  • 19
    Há uma longa literatura sobre as henádes e as mônadas em Proclo. Embora escape aos objetivos deste artigo apresentar uma análise da função metafísica das henádes divinas na teoria procliana, indicarei mais à frente, nas notas de rodapé, os pontos de maior desacordo entre os estudiosos. Segundo Greig (2020GREIG, J. 2020. “Proclus on the Two Causal Models for the One’s Production of Being: Reconciling the Relation of the Henads and the Limit/Unlimited.” The International Journal of the Platonic Tradition, 14:1-26., p. 24), “Contudo, Proclo elucida um segundo grupo de causas intermediárias [além das henádes] que também são responsáveis pela produção de Ser: o Limite e o Ilimitado, princípios que Proclo toma emprestado do Filebo 16c-d de Platão, onde são considerados princípios constitutivos de todos os seres”.
  • 20
    Embora Steel (2022STEEL, C. 2022 “Substantia stans per essentiam suam: Proclus et l’ auteur du De causis sur les êtres qui se constituent eux-mêmes”. In CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes, 3. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 37-59., p. 37) reconheça que o autor do LdC “interpreta e transforma” o conteúdo dos Elementos, no seu estudo de caso, ele aponta que o autor do LdC “não apenas retoma a doutrina de Proclo [...], mas também a amplia”.
  • 21
    O autor do LdC também utiliza a expressão “ser verdadeiro (ʾanniyya bi-ḥaqq)”, a qual se encontra em algumas proposições dos Elementos de Teologia (86, 88; Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 79, 81) “ser verdadeiro/de fato (τὸ ὄντως ὂν)” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 79).
  • 22
    Essa distinção reaparece no LdC XX (30.5-7; Taylor, 1982TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 332; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 14): “Fica, assim, claro e evidente que dentre as substâncias, algumas são perpétuas e estão acima/além do tempo, outras são perpétuas no tempo sem que o tempo se separe delas e, outras estão no tempo, mas são descontínuas com eles [...] Essas são as substâncias sujeitas à geração e corrupção.”
  • 23
    Segundo Taylor, “o autor indica que a inteligência, a qual é imutável e indivisível, ao se voltar para sua essência, é capaz de conhecer, por meio de sua essência, as coisas corpóreas que são extensas. Já que o conhecimento consiste em um tipo de identidade entre o que conhece e o que é conhecido [...] a inteligência se torna intelectualmente um objeto extenso, permanecendo separada, subsistente e estável. Isso permite que se diga que, ao conhecer objetos corpóreos, a inteligência é intelectualmente estendida, permanecendo, ela própria, uma substância não extensa e imaterial essencialmente.” (Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 376).
  • 24
    Tomás de Aquino (D’Ancona 1986D’ANCONA, C. 1989. “Le fonti e la struttura del Liber de causis”. Medioevo 15:1-38., p. 211) explica que essa dualidade das inteligências se deve ao fato de, embora única e limitada, cada inteligência pode participar de vários outros seres e, assim, multiplicar-se através deles.
  • 25
    “Os intelectos primários emanam (tufīḍu) sobre os intelectos secundários as virtudes (al-faḍāʾil) obtidas da causa primeira [...]” (LdC IV 7.8; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 290; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 4)
  • 26
    Embora toda inteligência contenha formas, essa característica varia conforme os diferentes tipos de inteligência. Assim, algumas contêm formas mais universais, outras formas menos universais. Contudo, não há referência a quais formas seriam mais ou menos universais. Assim, o que é dito no LdC IX parece indicar que se trata das mesmas formas, contudo, com graus de universalidade distintos: “as formas que estão nas inteligências inferiores estão de um modo particular enquanto estão nas inteligências superiores de um modo universal”. (LdC IX 12.20-13.1; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 301; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 7)
  • 27
    Pode-se chamar de hierarquia ontológica, pois, diferentemente de Proclo para o autor do LdC, a causa primeira também é chamada de ser primeiro.
  • 28
    “Assim, nos primeiros princípios deve haver a seguinte ordem: imediatamente antes do ser deve encontrar-se um não-ser que é unidade e superior ao ser”. (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 123)
  • 29
    Segundo Vlad (2022VLAD, M. 2022. “L’Être Premier - Entre Proclus et Denys L’Aréopagite” in: CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes. Vol. 3. Leiden, The Netherlands: Brill., p. 93), “Enquanto mônada, o ser é apenas um (ἕν ἐστι µόνον)”. Contudo, essa unidade não é a mesma do Uno por já envolver a multiplicidade.
  • 30
    Embora o ser participe do bem, disso não se pode concluir que ele participe do Uno. Embora Vlad (2022VLAD, M. 2022. “L’Être Premier - Entre Proclus et Denys L’Aréopagite” in: CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes. Vol. 3. Leiden, The Netherlands: Brill., p. 91) afirme que “este ser, que é autossuficiente, não é, portanto, o próprio Uno-Bem, mas participa dele (τῷ µετέχειν τοῦ ἀγαθοῦ)”, a autora (Vlad, 2022VLAD, M. 2022. “L’Être Premier - Entre Proclus et Denys L’Aréopagite” in: CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes. Vol. 3. Leiden, The Netherlands: Brill., p. 96) discute os problemas envolvidos em torno dessa participação: “por que o Ser primeiro, unitário, simples e sem partes precisa participar do Uno uma vez que ele não se constitui de uma pluralidade de partes que, desprovidas de unidade, correriam o rico de cair em um regresso ao infinito e uma vez que é impossível concebê-lo como não-uno que necessitaria receber a unidade?”.
  • 31
    Henádes (ἑνάδες) é o nominativo plural de henás (ἑνάς). Segundo Butler (2014 BUTLER, E. P. 2014. Essays on the Metaphysics of Polytheism in Proclus. New York City: Phaidra Editions. , p. 17), “Heniaios é o termo técnico utilizado por Proclo para se referir ao tipo de unidade possuída pelos supra-essenciais (huperousios), contrastando com o termo hênômenos, ou ‘unificado’, o qual se aplica estritamente aos seres. Anteriormente a Proclo, o termo heniaios caracterizava simplesmente um agente unificado [...]”.
  • 32
    Cf. Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 139.
  • 33
    A proposição 6 (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 7) sugere o contrário, ou seja, que as henádes participam do Uno: “[...] se há o Uno em si mesmo, ele deve possuir um primeiro participante, a dizer, o primeiro grupo unificado”. Sobre a relação entre o Uno e as henádes, “As henades não podem proceder do Uno nem por hupobasis nem por proodos, pois ambos implicariam algum tipo de declínio e não há nenhum declínio do Uno às henades.” (Butler, 2014BUTLER, E. P. 2014. Essays on the Metaphysics of Polytheism in Proclus. New York City: Phaidra Editions. , p. 52). A comparação entre algumas proposições dos Elementos de Teologia, em especial, as proposições 6 e 9, mostra não ser clara a questão da participação no Uno.
  • 34
    “[...] o que participa do Uno é uno e não-uno e se o Primeiro Princípio fosse uma multiplicidade ou pluralidade, não haveria nenhum uno. Contudo, é impossível haver uma multiplicidade que não participe de modo algum do Uno. Logo, a multiplicidade não é anterior ao Uno” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 4-5).
  • 35
    “Toda multiplicidade se compõe de grupos unificados ou de henádes, unidades. Como é evidentemente impossível que cada ser constitutivo de uma multiplicidade seja uma pura multiplicidade, e cada constitutivo desta nova multiplicidade seja, por sua vez, uma multiplicidade. Se a parte constitutiva não é uma mera multiplicidade, ou é um grupo unificado ou uma henade: um grupo unificado se possuir a unidade por participação e uma henade se for constituído do primeiro grupo unificado. Se há um Uno em si, ele tem que possuir um primeiro participante, que é o primeiro grupo unificado. E este primeiro grupo é composto de henades: pois, se fosse composto de grupos unificados, eles, por sua vez, seriam compostos e assim ao infinito. Por isso, o primeiro grupo unificado é composto de henades; assim fica demonstrada a verdade do nosso enunciado.” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 6-7)
  • 36
    Dodds (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 7) traduz como grupo unificado.
  • 37
    “Todas as henádes estão umas nas outras e são unidas umas às outras e sua unidade é muito maior que a comunidade e semelhança entre os seres” (Proclo, Comentário ao Parmênides de Platão in BUTLER, 2014BUTLER, E. P. 2014. Essays on the Metaphysics of Polytheism in Proclus. New York City: Phaidra Editions. , p. 8)
  • 38
    “A potência unitária dos deuses (assim, das henádes divinas) detém em si mesma as potências de todos os seres. Por esta potência unitária, os deuses causam todas as coisas a partir deles mesmos. As henádes atuam sobre todas as ordens subordinadas, ao multiplicar suas transmissões, embora mantenham seu caráter unitário [...]” (Vlad, 2022VLAD, M. 2022. “L’Être Premier - Entre Proclus et Denys L’Aréopagite” in: CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes. Vol. 3. Leiden, The Netherlands: Brill., p. 95).
  • 39
    Cf. Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 139-141.
  • 40
    Sobre tais divergências (interpretações de D’Ancona, Van Riel e Butler, ver Greig. 2020GREIG, J. 2020. “Proclus on the Two Causal Models for the One’s Production of Being: Reconciling the Relation of the Henads and the Limit/Unlimited.” The International Journal of the Platonic Tradition, 14:1-26., p. 29-43): “[...] a principal aporia que se encontra é a tensão entre a consideração que as henades são causalmente derivadas dos princípios Limite/Ilimitado e, por outro lado, a consideração que a natureza das henades é uma unidade pura, o que implica que elas não podem ser ‘derivadas’ [...]”. A solução sugerida por por Greig (2020, GREIG, J. 2020. “Proclus on the Two Causal Models for the One’s Production of Being: Reconciling the Relation of the Henads and the Limit/Unlimited.” The International Journal of the Platonic Tradition, 14:1-26.p. 24, 43-45) para esse problema é assumir que o limite-ilimitado, princípios responsáveis pela presença da composição de propriedades nas henades, seriam as primeiras henades que adviriam a partir do Uno. Assim, o limite e o ilimitado também seriam henades: “[...] o Uno é responsável pela subsistência (ὕπαρξις) de todas as henades e o Limite e Ilimitado são responsáveis pelas propriedades individuais das henades que tornam os diferentes tipos ou ordens de henades responsáveis por seus efeitos específicos relativos ao Ser.” (Greig, 2020GREIG, J. 2020. “Proclus on the Two Causal Models for the One’s Production of Being: Reconciling the Relation of the Henads and the Limit/Unlimited.” The International Journal of the Platonic Tradition, 14:1-26., p. 24-25)
  • 41
    A distinção se fundamenta no princípio da proporcionalidade segundo o qual cada ser recebe do participado na medida da sua “posição e capacidade (τάξις καὶ δύναµις)” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 124-125); o que justifica o fato de um único princípio, realizando uma única atividade, ser causa de diferentes seres.
  • 42
    Butler (2014BUTLER, E. P. 2014. Essays on the Metaphysics of Polytheism in Proclus. New York City: Phaidra Editions. , p. 39-48), de modo resumido, apresenta as diferentes tendências interpretativas.
  • 43
    “Todo deus está acima do ser, acima da vida e acima da inteligência (Πᾶς θεὸς ὑπερούσιός ἐστι καὶ ὑπέρζωος καὶ ὑπερνους)” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 100-101)
  • 44
    “De uma perspectiva ética, esta ausência não é trivial: as henádes são princípios metafísicos que Proclo pode usar, e efetivamente usa, para justificar a atribuição de identidades essenciais únicas a almas individuais. Isso lhe permite evitar a perda indesejada de individualidade que, de outro modo, seguir-se-ia da separação das almas da matéria se a matéria fosse o único princípio de individuação disponível. Em tal caso, as almas, quando liberadas da matéria, simplesmente se fundiriam em uma única alma universal ou em uma série de almas universais idênticas (o que significaria a mesma coisa). (Riggs, 2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 290)
  • 45
    Riggs (2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. ), ao longo do artigo, menciona outros capítulos, mas a sua argumentação se fundamenta, de modo central, nestes capítulos indicados; os quais teriam relação direta com o tratamento das henádes nos Elementos de Teologia: “Liber 4 = ET 138 (mas também 177, 182 e 183); Liber 5 = ET 123; Liber 19 = ET 122; Liber 20 = ET 127; Liber 22 = ET 134; Liber 23 = ET 142; Liber 31 = ET 116 (mas também 107).” (Riggs, 2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 298)
  • 46
    “O Adaptador também redistribuiu as funções atribuídas por Proclo às henádes a outros princípios, isto é, ao Primeiro Ser Criador (Deus) e ao Ser Primeiro Criado (Intelecto) [...] Mesmo que ele tenha obtido sucesso nisso, sua manobra teve um preço [...]” (Riggs, 2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 292)
  • 47
    “Causa pelo modo da criação (bi-nawʿ ʾibdāʿ; per modum creationis)”. (LdC XVII 19.10, 19.12, Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 312.20; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 10; ed. latina Pattin XVIIPATTIN, A. 1966. Le liber de causis. Édition établie à l’aide de 90 manuscrits avec introduction et notes.Tijdschrift Voor Filosofie28 (1):90-203..148; Reegen, 2000REEGEN, J. G. J ter. 2000. O livro das causas. Porto Alegre: EDIPUCRS. , p. 136).
  • 48
    “Causa pelo modo de forma (bi-nawʿ ṣūra; per modum formae)”. (LdC XVII 19.11; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 312. 20; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 10; ed. latina Pattin XVIIPATTIN, A. 1966. Le liber de causis. Édition établie à l’aide de 90 manuscrits avec introduction et notes.Tijdschrift Voor Filosofie28 (1):90-203..148; Reegen, 2000REEGEN, J. G. J ter. 2000. O livro das causas. Porto Alegre: EDIPUCRS. , p. 136)
  • 49
    “O resultado da adaptação do Adaptador e da modificação da distinção procliana original combinada com o conteúdo de Liber, 6.13-7.7 (4), é que, como poderia parecer, somos encorajados a conceber a existência dada pela Primeira causa na criação como uma espécie de substrato inteligível que é receptivo do conteúdo inteligível dado por meio da forma pela Causa Primeira pela mediação do primeiro intelecto”. (Riggs, 2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 302-303)
  • 50
    “Seria essa concepção de um substrato inteligível um princípio adequado de individuação para as almas? Ela parece, pelo menos, dar conta da diferença entre os tipos de seres, por exemplo, a diferença entre os intelectos e as almas. Ainda assim, parece improvável que ela seja suficiente para diferenciar os outros membros do mesmo tipo, uma vez que as únicas diferenças que o Adaptador parece reconhecer entre os seres incorpóreos são as diferenças entre os tipos e a diferença entre os mais e menos universais no interior dos tipos.” (Riggs, 2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 303-304)
  • 51
    “Essas seções do Liber têm em vista: 1) um esboço preliminar da hierarquia inteligível (IV e V); 2) a Causa Primeira nomeada Primeiro Ser como ela é conhecida através da sua atividade criadora (XIX, XX, XXII e XXIII); e 3) o retorno à Causa Primeira como a unidade anterior a todas as unidades derivadas (segunda parte de XXXI)” (Riggs, 2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 298)
  • 52
    Esses dois princípios já são enunciados por Proclo, de modo geral, nos Elementos de Teologia 135. Nos Elementos de Teologia 142, Proclo apresenta apenas o princípio da proporcionalidade.
  • 53
    Anteriormente a Proclo, o princípio da semelhança já era utilizado pelos filósofos da antiguidade clássica no contexto de análise da percepção sensível e inteligível. Aristóteles, no De anima I.2, ao apresentar a teoria dos autores predecessores sobre a natureza e atividade da alma formula o princípio da semelhança do seguinte modo: “[...] de fato, afirmaram que semelhante conhece semelhante (γινώσκεσθαι τὸ ὅµοιον τῷ ὁµοίῳ) e porque a alma conhece todas as coisas a compuseram de todos os princípios”. (Aristóteles, 2008ARISTOTELE. 2008. De anima. Trad. G. Movia, Milano: R.C.S. Libri S.p.A. , p. 74-75.
  • 54
    “Assim, quando o intelecto foi diferenciado, as formas intelectivas nela passaram a ser diferenciadas. E assim como da forma una se originaram indivíduos infinitos quanto à multiplicidade quando a forma foi diferenciada no mundo inferior, também o primeiro ser criado, quando foi diferenciado, surgiram formas intelectivas que são infinitas. No entanto, embora diferenciadas, as formas intelectivas não se diferem umas das outras como se diferem os indivíduos. Isto porque elas são unificadas sem corrupção e separadas sem distinção, pois elas são uma unidade dotada de multiplicidade e uma multiplicidade na unidade.” (LdC IV 7.2-7.7; Taylor, 1981TAYLOR, R C . 1981. The Liber de Causis (Kalām fī Maḥḍ al-Khair). A Study of Medieval Neoplatonism. A thesis submitted in conformity with the requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the University of Toronto. , p. 20-27; Anawati, 1950ANAWATI. O. P. 1950. Liber de Causis. Université de Montréal, Institut d’Etudes Médiévales., p. 3; Riggs, 2017RIGGS, T. 2017 “On the Absence of the Henads in the Liber de Causis: Some Consequences for Procline Subjectivity” In LAYNE, D., BUTORAC, D. D. (eds.). Proclus and his Legacy. Berlin, Boston: De Gruyter, pp. 289-310. , p. 301)
  • 55
    Essa atribuição de três atividades à alma pode ser localizada nos Elementos de Teologia 201 (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 176-177). Contudo, nessa proposição, Proclo afirma que “todas as almas divinas” exercem providência ao serem potências intelectuais que conhecem todas as coisas. As almas seriam uma manifestação do divino no âmbito psíquico: “Todas as almas divinas têm três atividades, enquanto almas, enquanto recipientes do intelecto divino e enquanto derivadas dos deuses: enquanto divinas, elas exercem providência em direção ao todo, em virtude da sua vida intelectual elas conhecem todas as coisas, e em virtude do automovimento, transmitem movimento aos corpos” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 176-177).
  • 56
    Isso aparece nos Elementos de Teologia 103 e 173: “tudo está em tudo, mas em cada um ao modo que lhe é próprio” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 92-93). “Todo princípio participa dos seus superiores na medida da sua capacidade e não na medida do seu ser. Em ultima instancia, aqueles deveriam ser participados da mesma maneira por todas as coisas; o que não acontece: por conseguinte, a participação varia com o caráter distintivo e a capacidade dos participantes” (Proclus, 1963PROCLUS. 1963. The Elements of Theology. A Revised Text with Translation, Introduction and Commentary by E. R. Dodds, Oxford: Oxford University Press., p. 150-151).
  • 57
    A atividade de intelecção dos intelectos é descrita no LdC VII.z
  • 58
    Segundo Tomás de Aquino (1986, p. 298), a segunda exemplificação se dá porque o autor, no primeiro exemplo, menciona três princípios que não são realidades subsistentes. Assim, a distinção seria reaplicada a realidades que subsistem por si: o ser primeiro, o intelecto, a alma intelectiva e a alma sensitiva.
  • 59
    Ex.1: vida e intelecto estão no ser: vida e intelecto (causados) estão no ser (causa) ao modo de ser (causa); ser (causa) está na vida e no intelecto (causado) ao modo de vida e intelecto (causado).
  • 60
    Ex.2: ser e intelecto estão na vida: ser (causa) está na vida (causado) ao modo de vida (causado); intelecto (causado) está na vida (causa) ao modo de vida (causa).
  • 61
    Ex.3: ser e vida estão no intelecto: ser (causa) está no intelecto (causado) ao modo de intelecto (causado); vida (causa) está no intelecto (causado) ao modo de intelecto (causado).
  • 62
    Segundo Steel (2002STEEL, C. 2022 “Substantia stans per essentiam suam: Proclus et l’ auteur du De causis sur les êtres qui se constituent eux-mêmes”. In CALMA, D. (ed.) Reading Proclus and the Book of Causes, 3. Leiden, The Netherlands: Brill, pp. 37-59., p. 37), “Como demonstra Proclo, na processão dos seres a partir do Primeiro Princípio, as substancias incorpóreas tal como o intelecto e a alma racional não são simplesmente produto do ato criador da causa primeira. Eles não advêm de uma causa exterior a eles próprios, tal como se dá com os seres corpóreos, mas são, eles próprios, causa do ser de cada um deles enquanto dependentes da causa primeira [...]”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2022
  • Aceito
    18 Abr 2022
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