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A hermenêutica filosófica e a experiência formativo-educacional: horizontes e desafios contemporâneos

Philosophical hermeneutics and the formative-educational experience: contemporary horizons and challenges

RESUMO

O presente artigo privilegia uma interface entre hermenêutica e educação considerando os fundamentos da filosofia de Hans Georg Gadamer. Seu objetivo é pensar, de modo propositivo, como a hermenêutica filosófica enquanto “sabedoria prática” pode contribuir para a discussão da experiência formativo-educacional em seu caráter dialógico e transformador. Tendo em vista a crítica hermenêutica dirigida à racionalidade técnico-científica e sua expansão na vida sociocultural, aborda-se alguns núcleos hermenêutico-conceituais (compreensão, experiência, tradição e diálogo) considerados fundamentos relevantes para pesquisas sobre o ensino-aprendizagem e sobre o fenômeno educacional. Problematiza-se a tese do “educar como educar-se” enquanto uma experiência dialógica com o mundo, fusão de horizontes atualizada e na perspectiva de repensar dinâmicas formativas e metodológicas nas experiências educacionais, devidamente contextualizadas.

Palavras-chave:
hermenêutica; educação; formação; diálogo; tradição

ABSTRACT

This article highlights an intersection between hermeneutics and education by assuming as its ground the philosophy of Hans-Georg Gadamer. Its objective is to think, in a purposeful manner, how philosophical hermeneutics can, as “practical knowledge”, contribute for discussing the formative-educational experience in its dialogical and transforming feature. Starting from hermeneutics critique over technical-scientific rationality and its expansion through social life, some conceptual-hermeneutical cores (comprehension, experience, tradition and dialogue), which are relevant for the research on teaching-learning process and the educational phenomenon. The thesis “teaching as teaching oneself” is developed as a dialogical experience with the world, effectual fusion of horizons and in the perspective of rethinking formative and methodological dynamics in educational experiences, properly contextualizedes.

Keywords:
hermeneutic; education; formation; dialogue; tradition

1 Introdução

Se pensar a relação entre filosofia e educação nos remete à própria tradição da filosofia enquanto atitude contemplativa e crítico-formadora da condição humana, o diálogo produtivo entre ambas contempla, em seu caráter histórico-cultural, diferentes reflexões críticas sobre a formação, o educar, o ensinar, o aprender, em distintas perspectivas - pedagógica, ética, estética e política -, e elege como um dos seus núcleos centrais de investigação o desafio de problematizar a experiência da educação como experiência de transformação; pensar uma educação que transforme a vida das pessoas, que construa saberes capazes de ressignificar seus modos de vida e assim possa oportunizar um lugar melhor de sobrevivência ou de esperança para uma convivência com mais dignidade. Do ponto de vista da contemporaneidade nos parece ainda relevante atualizar uma indagação: como formar seres humanos em um contexto de sociedades complexas e culturalmente plurais ainda primordialmente regidas por uma racionalidade técnico-instrumental, nas quais as ações formativo-educacionais estão mais voltadas a uma eficiência de resultados estatísticos, ao produtivismo e à qualificação para o mundo do trabalho, em detrimento do acolhimento da diferença e da densidade existencial do diálogo?

Nos últimos anos, no Brasil, temos assistido a uma crescente interface de estudos entre a hermenêutica e outros campos de conhecimento, dentre eles as artes plásticas e musicais, a literatura, o direito, as ciências da saúde e, também, o campo educacional. Inúmeros registros, incluindo dissertações e teses, dentre outras pesquisas científicas têm evidenciado esse diálogo singular entre a hermenêutica - aqui conferimos destaque à hermenêutica filosófica - e a educação, na ocasião em que esses produtos se predispõem a refletir, por exemplo, sobre a formação de professores, educação e sensibilidade estética1 1 A princípio, seguem como ilustração duas pesquisas sobre formação de professores, respectivamente dirigidas ao campo da educação física e da educação musical e devidamente fundamentadas na hermenêutica filosófica gadameriana: 1) DAL-CIN, Jamile e REZER, Ricardo. Experiência estética e formação inicial de professores: um olhar para o campo da educação física. Rev. Bras. Ciênc. Esporte [online]. 2018, vol.40, n.1, pp.32-38; 2) LAZZARINI, Luis Fernando. Educação da sensibilidade estética e multidimensionalidade: sentidos da experiência da música nas ‘filosofias’ da educação musical. Universidade Federal de Santa Maria. Anais do SEFIM. v.1,n.1,2023. Em ambas o paradigma formativo da experiência hermenêutica (Erfahrung), tomado em seu caráter de abertura, se constitui fundamento para, respectivamente, repensar e legitimar a experiência da música nos currículos escolares no horizonte de desconstrução de paradigmas pedagógicos hegemônicos e na perspectiva de abertura para a pluralidade das experiências musicais; bem como para discutir as contribuições da noção de experiência estética para a formação inicial de professores no campo da educação física. E de modo mais genérico: 3) ROZEK, Marlene. As contribuições da hermenêutica de Gadamer para a formação de professores. Educação (Porto Alegre, impresso), v. 36, n. 1, p. 115-120, jan./abr. 2013. No campo da pesquisa educacional em sua abordagem específica como experiência hermenêutica (auto) formativa e decolonial vale destacar:1) POZZER, Adecir. De(Colonialidade) do saber e pesquisa em educação no PPGE/UFSC: a atitude hermenêutica como percurso auto(formativo). Tese PPGE.UFSC. 2020. A referida pesquisa educacional assinala um importante diálogo entre o giro hermenêutico e o giro decolonial, considerando o horizonte de abertura de novos horizontes e mundos. , bem como sobre sua contribuição metodológica para pesquisa educacional2 2 Dentre eles, merece destaque: SIDI, Pilar de Moraes & CONTE, Elaine. A hermenêutica como possibilidade metodológica à pesquisa em educação. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v.12, n.4, p. 1942-1954, out./dez. 2017 e DALBOSCO, Claudio. Pesquisa educacional e experiência humana na perspectiva hermenêutica. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v. 40, n. 141, p.32-46. .

Entretanto, conforme vem destacando a pesquisadora brasileira Bernadete Gatti (2012GATTI, B. 2012. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. RBPAE, 28(1): p. 13-34.), a educação brasileira se constitui um campo tensionado tanto pelas mediações e pressões impostas por diretrizes de ordem científico-profissional e político-administrativa, quanto pela evidência de sua diversidade, tendo em vista objetos e características muito distintas, advindos das ciências humanas e ciências sociais aplicadas. Assim, além de um olhar pedagógico que investiga o que esses campos de saber têm construído em vistas à formação humana (Ciências da Educação/Pedagogia), temos também, e de modo crescente, um outro horizonte investigativo que parte desses campos de saberes em direção à experiência educativa. Ocorre que, tanto essa amplitude da realidade educacional (aspectos sócio-político-culturais, familiares, escolares, formativo-institucionais em geral), quanto a expressão do seu campo interdisciplinar propicia, como diz Gatti, uma expressiva dificuldade na estruturação dessas pesquisas que, embora advindas de diversas áreas, convergem no mesmo ponto de partida, ou seja, os chamados processos educativos, constantemente atravessados por diferentes possibilidades de investigação e de paradigmas. Por isso,

A organização conceitual e institucional do campo de pesquisa em educação e suas relações e articulações com outros campos, no contexto das tensões de ordem científica e das práticas profissionais a ele associadas, emerge contemporaneamente como uma necessidade, pelo risco da dispersividade e da consequente desconsideração dos demais campos nas ciências humanas e sociais, com os quais se confronta, ao mesmo tempo em que a eles se interliga ( Gatti, 2012 GATTI, B. 2012. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. RBPAE, 28(1): p. 13-34. , p.7).

Daí a importância de refletirmos sobre como nos aproximarmos desse específico campo de pesquisa - a educação -, qualificando um aprofundamento teórico-metodológico. Nesse sentido, o objetivo aqui expresso é pensar, de modo propositivo, como a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, voltada à construção de uma “sabedoria prática”, pode contribuir para a discussão do fenômeno educacional em seu caráter dialógico e transformador tanto em sua significação mais ampla - enquanto um fenômeno sociocultural que no conjunto de suas instituições e segmentos forma o ser humano - quanto em seu caráter formal instituído na qualidade de uma educação escolar ou de uma formação de ensino superior, no propósito de pensar a atualidade e relevância da hermenêutica filosófica como uma filosofia da educação. Para tanto, abordaremos alguns núcleos hermenêutico-conceituais considerados fundamentais no horizonte de uma práxis educativa que não apenas priorizam uma singularidade do nosso estar-aí com os outros na construção afetiva de laços socioculturais no mundo, mas também nos permitem repensar dinâmicas nas ações pedagógicas e diretrizes nas pesquisas educacionais. Afinal, fortalecer o campo educacional também significa admitir que, por vezes,

temos sido descuidados nas teorizações e conceitos, na colocação clara de nosso objeto e/ou problemas e cabe lembrar que a não distinção conceitual que vem caracterizando estudos no campo da educação provoca dificuldades comunicacionais e “interpretativas nesse campo de investigação, na interlocução com outros campos e nos contextos sócio-políticos, com prejuízos na relevância dos seus estudos ( Gatti, 2012 GATTI, B. 2012. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. RBPAE, 28(1): p. 13-34. , p.7).

2 Educação, compreensão e experiência: a singularidade hermenêutica

A hermenêutica filosófica, por sua vez, constitui-se como uma racionalidade cujo fundamento de verdade advém não das diretrizes de uma metodologia científica instrumental e objetiva, mas da singularidade e condições humanas do discurso, da abertura de sentido promovida pela linguagem e da instauração do diálogo como expressão da finitude. Desse modo, considerando os fundamentos ontológicos-hermenêuticos da filosofia de Gadamer, uma hermenêutica da educação enquanto exercício de uma práxis hermenêutica precisa tomar como referência primordial a crítica dirigida à racionalidade técnico-científica que atua no âmbito educativo, condicionando ou por vezes limitando o desenvolvimento das experiências formativas. Parte-se da compreensão que as relações e procedimentos pedagógicos que envolvem a experiência de ensino-aprendizagem e integram a formação humana são (muitíssimas vezes) orientados pelas diretrizes de um instrumentalismo metódico da ciência no horizonte de sua produção técnica e especializada que controla os processos educativos e desqualifica a dimensão ontológica de nossa experiência de compreensão enquanto seres no mundo; desconsiderando a densidade das tradições, as socializações em comunidade, bem como as orientações axiológicas, ético-políticas e estéticas que, radicalmente, definem a nossa facticidade enquanto ser aí no mundo.

Pensar o âmbito educacional na perspectiva hermenêutico-filosófica, por conseguinte, implica problematizar o fenômeno educacional na contramão de uma racionalidade instrumental e cientificista, privilegiando-o enquanto experiência ontológico-hermenêutica de formação e compreensão que, existencialmente, acontece no médium da linguagem (Sprach), no horizonte da linguisticidade (Sprachlichkeit), seu modo de ser, no interior do diálogo, e sob a efetividade da história (Wirkungsgeschichte). Logo, enquanto um horizonte de ação humana e acontecimento histórico-existencial de sentido, diretamente vinculado àquilo que é inerente à nossa condição humana: a experiência do compreender (verstehen) em seu horizonte de conversação com os outros. Como escreve Gadamer (2015GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631., p.32):

[...] o modo como experimentamos uns aos outros, como experimentamos as tradições históricas, as ocorrências naturais de nossa existência e de nosso mundo, é isso que forma um universo hermenêutico. Nele [...] estamos sempre abertos para o mundo.

Daí por que uma hermenêutica da educação não pode prescindir da concepção do ser humano enquanto um ser inserido em um universo hermenêutico, necessariamente determinado pela contingência da finitude, pela disposição e abertura à compreensão e às novas interpretações de sentido atribuídas aos fenômenos em geral e historicamente atualizadas na pluralidade das relações intersubjetivas (eu-tu).

Assim, o ponto de partida de uma hermenêutica da educação constitui a problemática do ser humano como ser de compreensão, uma vez que a compreensão enquanto experiência e práxis formativa compõe o tema central do próprio acontecimento educativo. É necessário reconhecer que a experiência do educar-se corresponde, antes de tudo, à tarefa da compreensão como atribuição de sentidos e significados suscitados pelos acontecimentos, relações e por um circuito de experiências que integram a nossa con-vivência enquanto seres no mundo. Afinal, a formação humana se manifesta como um exercício existencial de interpretação, compreensão em um horizonte de sentido. Daí, como nos diz Molino (2017MOLINO, E. G. 2017. Significatividad, sentido y Educación. fundamentos filosóficos para la educación. Banfied. Livro Digital, p. 202.), a necessidade de abordar-se a compreensão em uma tripla perspectiva: ontológica, linguística, e enquanto experiência interativa e vinculada a processos educativos.

A atenção gadameriana está voltada a uma concepção de compreensão não em seu caráter teórico-instrumental que por sua vez prescreve ou orienta o procedimento metodológico das ciências da natureza ou por vezes das ciências humanas (Geisteswissenchaften))3 3 “Sua hermenêutica não é uma teoria geral da interpretação, nem um manual para guiar a compreensão das ciências humanas, mas devido a hermenêutica filosófica se ocupar da natureza geral da compreensão humana, a qual ocupa um espaço no domínio da filosofia: essa é a razão pela qual a hermenêutica gadameriana é inevitavelmente filosófica [...] O próprio Gadamer aplica perspectivas hermenêuticas, dentre outras coisas, a textos literários e filosóficos, à ciência médica e à educação [...]” (Lawn, 2011, p. 23). ; mas à concepção do compreender como forma originária de ser-no-mundo, expressa em nosso relacionamento imediato com o mundo; ou seja como um existencial em seu engajamento real e efetivo, como bem pensou Heidegger. Logo, não se trata de um tipo de captura de saber (representação), nem de uma compreensão temática em um sentido de explicar algo, ou da apreensão de um significado, mas uma compreensão que revela o modo como estamos aí na relação com o mundo4 4 O verbo verstehen refere-se “a um compreender algo”, um “saber-fazer”, a uma capacidade de desempenho prático a um saber situar-se, a nossa capacidade projetiva “Verstehen tem um sabor prático: verstehen seguido de um infinitivo significa ‘compreender, saber como fazer algo’, e sich verstehen auf significa ‘compreender, saber como fazer, lidar com algo’” (Inwood, 2002, p. 18). - o nosso projetar-se à diferentes possibilidades de interpretação -; o compreender, constituindo um ato de busca, ato infindável de reconciliação com o outro, com a natureza, com a realidade.

Essa diretiva hermenêutica do compreender parece estar distanciada do modo rotineiramente racionalista-pragmático pelo qual atribuímos sentidos e significados ao mundo dos fatos e acontecimentos e projetamos um suposto saber acerca da realidade sociocultural. Da mesma forma que em diversas experiências pedagógicas de ensino-aprendizagem nas escolas públicas e privadas e nas instituições de ensino superior somos frequentemente conduzidos por uma dinâmica do compreender mais objetiva e voltada à excelência de uma “pedagogia da transmissão” e à eficiência de técnicas de aprendizagem de modo instrumental e automatizado. Todavia, como nos diz Ángel Jusino (2018JUSINO, A. 2018. Hermenéutica y Educación, EscritosEditorial Biblioteca del Pensamiento Crítico.. Puerto Rico, OFDP Internacional, p. 5., p.1), ex-aluno e discípulo de Gadamer:

Hay que comenzar diciendo que la educación no es un acto de mera transmisión cultural o recepción de información, sino un evento de comprensión e interpretación, que lleva a cabo el estudiante sobre la tradición que, encarnada en disciplinas académicas y valores culturales, presentan los docentes. En este sentido, la educación como proceso de aprendizaje-enseñanza, es un evento hermenéutico que tiene que ser estudiado en sus condiciones de posibilidad para que pueda ocurrir de manera efectiva. La hermenéutica elaborada por Gadamer constituye un marco de referencia de indiscutible valor para esta tarea.

Desse modo, se educar é compreender, a experiência formativa do educar não pode ser estranha à própria natureza da compreensão (abertura-projeção), cujo acontecimento se constitui enquanto experiência - experiência hermenêutica da educação.

Como ratifica Verdade e Método (Wahrheit und Methode) e outros ensaios, os propósitos de compreender e interpretar, bem longe de constituírem específicos desígnios da ciência, pertencem à vastidão das experiências humanas. Não se trata, no entanto, da experiência resultante de um procedimento científico de rigor e verificações, mas da experiência (Erfahrung) que advém do seu confronto histórico-dialético com a própria finitude de suas experiências em suas inquietações e dúvidas, rupturas e um fluxo de negatividade5 5 Aqui a referência está diretamente vinculada à concepção de experiência (Erfahrung) histórico-dialética sustentada pelo idealismo alemão de Hegel, devidamente expressa em sua obra Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des Geistes,1807). .

A compreensão no processo formativo não pode desconsiderá-lo enquanto um desdobramento de experiências de finitude, mediadas na linguagem (Sprach) e transmitidas sob os efeitos da história (Wirkungsgeschichte) na consolidação de diferentes culturas. Uma experiência de negação, haja vista sua radical abertura à novas experiências - as coisas podem ser bem diferentes do modo como havíamos pensado antes -. E na medida em que a experiência implica abertura (histórico-dialética), ela também nos remete a uma relação com a tradição. Tradição não como um acontecimento simplesmente controlado pela experiência, mas correspondendo à ideia de entrega, transmissão (Tradition / Überlieferung). Por isso, o termo “tradição” significa, antes de tudo, linguagem, uma experiência essencialmente linguístico-dialógica sob a especificidade de uma relação eu-tu/eu-outro que, no experimento de suas possibilidades, são niveladas no encontro e na conversação com o outro. Não se trata de um simples reconhecimento da alteridade de um passado, de uma teoria, de um fato histórico, mas da revelação de que a tradição tem algo a me dizer e a nos dizer; daí por que pensar a identidade da experiência implica se deixar conduzir por uma hermenêutica da linguagem e da memória, condições expressas de nossa própria finitude. Enquanto insistência hermenêutica, vale lembrar, ser finito é ter memória, é ser afetado pelo conjunto de nossas concepções prévias (pré-conceitos), bem como pelo outro em sua identidade linguístico-cultural, cultivada no conjunto de suas experiências. Memória que também é coletiva e exerce um fator decisivo em nossa experiência, porém sob a advertência de que

[...] não conseguiremos apreender corretamente a essência da própria memória caso vejamos nela apenas uma disposição ou uma capacidade genérica. Reter, esquecer e voltar a lembrar pertencem à constituição histórica do homem e fazem parte de sua história e formação. Quem exercita sua memória como uma mera capacidade - e toda técnica de memória é tal exercício - continua sem possuir o que é mais próprio da memória ( Gadamer, 2015 GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631. , p. 52)

Tais formulações acima expostas são determinantes para um processo de ressignificação hermenêutica da educação no mundo contemporâneo, sobretudo em nossa realidade e conjuntura educacional que, por vezes, conduz a experiência da aprendizagem inspirada por uma lógica técnico-instrumental de desenvolvimento de “competências e habilidades”, em detrimento aos nossos enraizamentos.

Revigorando o discurso que desde a década de 90 insere a perspectiva curricular da educação brasileira na pedagogia das habilidades e competências - Parâmetros e Diretrizes Curriculares Nacionais -, segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), “[...] competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL,2008, p.8). Desse modo, visando uma formação mais dirigida às necessidades do processo produtivo; orientadas por uma racionalidade de eficiência e devidamente adaptada às mudanças que emergem do mundo do trabalho e na vida social6 6 A esse propósito é muito oportuna a leitura crítica e teórico-política do livro A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação de Marise Nogueira Ramos (2006) que discute a ideia de “pedagogia das competências” como aquela que parte das situações concretas em detrimento a um conjunto de componentes curriculares existentes. .

Por conseguinte, vale refletir: como a concepção de experiência hermenêutica fornece uma decisiva contribuição para as experiências formativas institucionalizadas no campo educacional? Em que medida a relação de ensino-aprendizagem, vigente nas escolas e demais instituições formativas, privilegiam uma reflexão crítica sobre o processo de compreensão nos diversos componentes curriculares e itinerários formativos com vistas à aprendizagem e enquanto uma experiência de sentido?

A racionalidade hermenêutico-filosófica parece se constituir um referencial de importância desde que a experiência formativo-educacional seja concebida na contramão de uma racionalidade técnico-científica associada à concepção de uma ideia de subjetividade autocentrada. O que aqui temos em vista é a concepção de experiência como práxis humana que, por sua vez, não significa uma simples aplicação de conhecimentos sob determinadas regras, mas rigorosamente privilegia “[...]a situacionalidade mais original do ser humano em seu entorno natural e social” (Gadamer, 2001GADAMER, H.-G. 2001b. La idea de la filosofía práctica. In: HG GADAMER (ed.), El Giro Hermenéutico. Madrid, Ed. Cátedra, p. 187-197., p.183). Uma experiência de aprendizagem que privilegie o cotidiano, o contexto natural, social e emocional, porém não limitado às diretrizes pragmáticas do mundo prático e funcional, mas considerando a universo da finitude em sua perspectiva existencial de abertura e diversidade no conjunto de suas raízes histórico-culturais.

Em seu contexto de implantação nacional, as Bases Nacionais Comuns Curriculares (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. 2018. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 600 p.), ao prescreverem as aprendizagens essenciais a serem realizadas pelo alunos (as) mediante o desenvolvimento de competências, não podem desconsiderar que, se o processo do educar-se se desdobra no circuito dinâmico de nossas atitudes compreensivas, de nossos estranhamentos e aproximações junto às teorias, isso só é possível diante de uma tradição de saberes que chega até nós; é só dessa forma que a aprendizagem confere valor à nossa condição socioeconômica e histórico-cultural. Nesse sentido, vale lembrar que “[...]é incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a que nada o ameaça, a quem nada ocorre” (Larrosa, 2002LARROSA, J. 2002. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, (19): p. 189., p.24-25).

As aprendizagens significativas e hermeneuticamente essenciais não podem estar a serviço de uma pedagogia funcionalista que se deixa conduzir sobretudo pelas necessidades práticas de um mundo social racionalmente tecnicizado; aquelas, por outro lado, dependem da escuta de nossa finitude em suas condições efetivas e da memória de uma tradição. Assim, a formação de nossa aprendizagem é enriquecida por um conjunto dinâmico de experiências que se relativizam e enriquecem nossas vivências e partilhas de alteridade com o passado e com o moderno. Toda experiência é confronto consigo mesmo e com o outro, de modo que o confronto nos forma. Logo, é preciso reconhecer o quanto aprendemos de nós mesmos nesse processo de estranhamento junto ao outro. Conforme diz o hermeneuta, nossas compreensões se ativam “[...] quando algo nos interpela” (Gadamer,2003GADAMER, H.-G. 2003. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro, Editora FGV, p. 72., p.69), quando, sob a forma de “fusão de horizontes”, buscamos entender o outro em uma mediação que busca sentido no acordo entre a memória de uma tradição e a temporalidade e presença de uma situação. Compreendemos na condição de estarmos em “situação” e, portanto, limitados à “horizontes” que determinam o nosso âmbito de visão tendo em vista as contingências socio-históricas nas quais estamos inseridos. Do ponto de vista formativo-educacional é imprescindível construir uma consciência pedagógica sustentada na ideia de horizonte como capacidade de ultrapassar as fronteiras do que se mostra mais próximo, vislumbrando sempre ir mais além.

No tocante às pesquisas educacionais, o paradigma hermenêutico se mantém atualizado e vigilante no sentido de ressaltar e diferenciar possibilidades de dizer o mundo, apropriar-se ou mesmo de emitir uma experiência de sentido a partir de suas experiências histórico-culturais. Privilegiar essa dinâmica pedagógico-formativa favorece, ainda pelas lentes da hermenêutica-filosófica, uma reconsideração quanto à ideia de subjetividade: quem é esse sujeito que formamos nas escolas e que está submetido a uma experiência educativa? Ora, a própria concepção hermenêutica de experiência em abertura nos remete a um processo de ressignificação da ideia de sujeito ao formular a compreensão “eu-tu”, cuja referência conceitual não apenas desautoriza a autonomia de uma subjetividade isolada, bem como identifica no horizonte intersubjetivo uma ampliação do horizonte compreensivo e intercultural, reconhecendo a relevância de ouvir outro, vincular-me a ele e incluí-lo em meu mundo. Em um ensaio intitulado Sobre o ouvir, publicado em Hermeneutische Entwürfe, Gadamer, curiosamente, desloca o poder do discurso do orador para o ouvinte ao nos dizer que: “[...] a palavra falada já não é minha, está entregue ao ouvir de outros. Nisso consiste a grande responsabilidade do falar: que a palavra, uma vez dita, não pode ser retirada. A palavra falada pertence ao que a ouve” (Gadamer, 2002GADAMER, H.-G. 2002a. A incapacidade para o diálogo. In: HG GADAMER (ed.), Verdade e método II: complementos e índices. Petrópolis, Vozes, p. 242-254., p. 70). Portanto, aquele que ouve precisa aprender a ouvir e a esse feito está vinculada sua capacidade de saber falar, silenciar e dialogar. Enquanto manifestação da aisthesis humana, é assim que aquele que ouve, em um exercício de abertura, constitui-se em relação com outrem.

No propósito de ratificarmos a importância dessas formulações teórico-hermenêuticas para a pesquisa educacional, em seu contraponto às pesquisas metódico-experimentais, parecem ser pontuais as palavras de Dalbosco (2014DALBOSCO, C. A. 2014. Pesquisa educacional e experiência humana na perspectiva hermenêutica. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. 44(154): p.1028-1051. Consulta realizada em 22 de junho de 2022. ISSN 0100-1574. Disponível em https://doi.org/10.1590/198053142820
https://doi.org/10.1590/198053142820...
, p.22)

No âmbito da pesquisa, tem-se então o flagrante contraste entre a postura objetivante e a postura ouvinte do sujeito pesquisador: ouvir o outro obviamente não possui nem deve possuir o mesmo sentido que observar e descrever um objeto. Trata-se, nesse caso, de um tipo diferente de experiência daquela que se origina do procedimento metódico-experimental. O processo formativo do sujeito pesquisador requer então, na perspectiva hermenêutica, a capacidade de ouvir o outro. A “observação” transforma-se em escuta e saber observar significa saber escutar. Em síntese, na perspectiva hermenêutica gadameriana, torna-se parte indispensável da “boa” formação do sujeito pesquisador sua abertura para ouvir o outro. Abertura e escuta são dois núcleos fundantes de sua formação.

3 Hermenêutica e formação: desafios de um caminho

Quando falamos em educação, mencionamos um amplo conceito que abarca diferentes fenômenos de interação cultural a partir dos quais os seres humanos são integrados socialmente à luz de regras, da constituição de saberes e ao exercício de práticas. Daí por que não apenas a escola, mas a diversidade das instituições sociais também educa e se ocupa da experiência formativa dos seres humanos. Mas, na perspectiva hermenêutico-filosófica, o que é visado nesse propósito?

Esta pressuposição teórica da educação dirige uma atenção especial ao conceito de formação (Bildung) como experiência do compreender. O referencial tomado é a abordagem clássica alemã do conceito de formação, em sua relação direta com a cultura, cujo perfil de identidade é contrário ao reducionismo técnico-científico do saber moderno. O homem bem formado e educado é aquele cujo desenvolvimento de capacidades e potencialidades culminou em sua ruptura com o imediato promovendo uma significativa transformação espiritual; o que resulta do distanciamento do que é eminentemente particular e inculto (ungebildet), isto é, de uma postura carente do “poder de abstração”. Enquanto movimento espiritual implica, portanto, o reconhecimento do estranho como algo que lhe é familiar, o que só é possível mediante o “retorno a si mesmo a partir do outro” (Gadamer, 2015GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631., p.50). É desse modo, nesse exercício de superar a particularidade, familiarizar-se como estranho e retornar a si, que os seres humanos imersos na substancialidade cultural das instituições, crenças e costumes se apropriam e estão sempre “a caminho da formação”.

Fundamentada na própria concepção hermenêutica de experiência, antes abordada, o que sobressai de essencial na formação implica tanto o alheamento quanto o retorno a si. Portanto, sua dinâmica inclui não apenas o resultado do processo tendo em vista uma “finalidade técnica”, mas envolve o processo interior de sua formulação espiritual - o elemento onde se move e se forma. Daí a ideia de que formar é extrair de si o que se é. Inspirando-se em Hegel, afirma Gadamer (2015GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631., p.53): a característica universal da formação é “o manter-se aberto para o diferente, para outros pontos de vistas mais universais”. Eis uma tarefa grandiosa que gera muitas dificuldades e desafios na experiência educativa. Do ponto de vista educacional, seja na família, na sociedade civil, nas escolas públicas e privadas e instituições de ensino superior, o que é visado enquanto busca de formação não está mais adequado a um perfil de aquisição de conhecimentos - privilegiando alguns domínios de conhecimento em detrimento de outros - ou mesmo a um padrão de comportamento, do que uma experiência de conflito e de estranhamentos? Até que ponto as escolas e as instituições formativas asseguram nesse espaço a ideia de busca de um tempo livre7 7 Em seu propósito de caracterizar o escolar são bastante pontuais e relevantes os argumentos apresentados por Masschelein e Simons (2013) no livro Em defesa da escola, associando-o ao skolé, ao tempo livre, ao estudo, ao adiamento e à discussão. , cultivado pela experiência de convívio com a diferença e com o conflito? Se a formação implica uma relação de estranhamentos e familiaridades é por que no fluxo de um processo de ensino-aprendizagem podemos ser capazes de acessar outros horizontes de sentido junto à diferença e assim, como diz Herman (2003HERMANN, N. 2002. Hermenêutica e Educação. Rio de Janeiro, DP&A Editora, p. 112.), ultrapassar a particularidade de um eu. As instituições formativas do cenário educacional precisam estar atentas ao fato de que “Formación es la capacidade de gracias a que somos capaces de hacer justicia ao punto de vista de los outros, para así poder compreender desde donde se está constituyendo el ámbito de significación sobre la cosa que discutimos” (Lombana, 2012LOMBANA, C. A. D. 2012. La experiência de la lectura. Aproximación a la Hermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Bogotá, Uniediciones, p. 179., p.78). Esse fundamento desafiador sustenta, por exemplo, o caráter dinâmico da experiência escolar e tudo depende do modo como vivenciamos existencial e politicamente a instituição.

4 O educar-se nas fronteiras da linguagem e no horizonte do diálogo

Como antes abordado, a relação educação, compreensão e linguagem faz-se decisiva, uma vez que as práticas educativas enquanto experiências intersubjetivas se constituem como acontecimento existencial de sentido que se determinam na interação e compreensão com o outro. Afirma Gadamer (2015GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631., p. 503):

[...] a linguagem é o médium universal em que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a interpretação. [...] Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no médium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete.

É no médium da linguagem, âmbito no qual desenvolvemos o nosso universo hermenêutico de conversação com o mundo, sob a primazia do perguntar, do ouvir e do falar que encontramos as referências para pensarmos como nos formamos e também refletirmos as diretrizes dos processos educacionais. Assim como as demais, o fenômeno da educação pertence ao âmbito da experiência do mundo que, inexoravelmente, se manifesta no horizonte da linguagem8 8 Gadamer utiliza duas expressões: Sprach (linguagem) e Sprachlichkeit (linguisticidade). Em Verdade e método há um maior registro da segunda expressão. A esse propósito destaca Grondin: “No Diálogo da Antologia, de 1996, Gadamer expõe mais detalhadamente essa diferença [...] Por linguisticidade entende unicamente o esforço de nossa finitude encaminhado à linguagem, quer dizer, a uma compreensão: um esforço que conhece muito bem os limites dos correspondentes enunciados. Pensa-se na virtualidade do entender linguístico, quer dizer, na possibilidade sempre aberta, embora nem sempre realizada de nossa ação de compreender [...] Assim, uma imagem, uma representação, uma interpretação musical, provoca sempre uma compreensão...” (Grondin, 2003, p. 195). e revela sentido. Enquanto tal, o grande desafio que essa experiência nos impõe é, pois, como os processos compreensivos de formação, de significação, de ensino-aprendizagem se estabelecem enquanto relação eu-tu e, em seu dizer a si, aos outros e a partir do confronto com nós mesmos? Daí a relevância da experiência educativa ser considerada como experiência de declaração (Aussage), de interpretação (Auslegung) e de compreensão (Verständnis) e de confronto; eis o que a torna essencialmente um fenômeno linguístico. Como bem nos advertiu Flickinger (2014FLICKINGER, H-G. 2014. Gadamer & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editorial, p. 136.), estudos tem demonstrado que dificuldades de leitura, estruturação de argumentos e produção textual decorrem da “visão reducionista da língua” que torna essa um mero objeto de manipulação e gera sinais de uma tendência instrumentalista da língua decorrentes de um excesso de informação, da sujeição acrítica à normas e ideais, da postura receptiva das pessoas em detrimento de sua expressão crítica e indagadora, da transformação do debate em retórica vazia e desprezo pelo ouvir. O contraponto a esse cenário seria uma experiência formativa que privilegiasse o médium da linguagem pelo “carisma do diálogo” e pelo exercício de colocar uma pergunta.

No mínimo esse cenário nos faz pensar em um conjunto de atitudes e perfil de comportamento que sobressai em grande parte dos ambientes formativos e que revelam como temos nos comportado enquanto linguagem que somos. De acordo com a fundamentação hermenêutico-filosófica, o desenvolvimento e alcance da nossa compreensão reside no fato de que

[...] em toda experiência encontra-se pressuposta a estrutura da pergunta. Não se fazem experiências sem a atividade do perguntar. O conhecimento de que algo é assim, e não como acreditávamos primeiramente pressupõe evidentemente a passagem pela pergunta se de fato algo é assim ou de outro modo. ( Gadamer, 2015 GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631. , p. 473).

Compreender é, pois, inserir-se no horizonte do perguntar para além daquilo que está sendo dito. Por isso, a hermenêutica filosófica está orientada pela “lógica da pergunta e da resposta”9 9 Conferindo destaque à primazia do perguntar, a “lógica da pergunta e da resposta” sobressai como núcleo fundamental a partir do modelo dialético platônico, referência fundamental para a circularidade da compreensão hermenêutica. , inerente à estrutura da experiência hermenêutica. Isto porque cada compreensão decorre de termos aplicado algo em nós, de modo que só descobrimos respostas a partir de interrogações que fazemos e de respostas que buscamos. Perguntas que foram assumidas em uma tradição, que determinam nossa compreensão, mas que podem ser retomadas e atualizadas em uma outra perspectiva de questionamento, de busca de sentido e de alcance de resposta. Afinal, o que estimula a investigação de um texto, a compreensão de uma teoria, de uma lei, de um fato natural ou um acontecimento histórico-social ou mesmo o desenvolvimento da experiência do educar é sua possibilidade falante, seu horizonte expressivo a ser interpretado e compreendido, estimulado pelas motivações de um perguntar e pela expectativa de respostas. Desse modo, a compreensão realiza-se como uma relação de conversação (Gespräch),

“[..] pois a dialética da pergunta e da resposta [...] permite que a relação da compreensão se manifeste como uma relação recíproca, semelhante à de uma conversação. É verdade que um texto não nos fala como faria um tu. Somos nós, os que o compreendemos, os que temos de trazê-lo à fala, a partir de nós” ( Gadamer, 2015 GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631. , p. 492).

É na dinâmica da relação entre a pergunta e a resposta, no médium da conversação, que a experiência de compreensão ganha reciprocidade e não se deixa conduzir por uma unilateralidade subjetiva. E é desse modo que conversar com um texto só é possível a partir de nós mesmos, portanto não o limitando à autossuficiência de um tu, já que é só a partir de nossas demandas que o trazemos à fala. Por isso, as conversações são formativas, já que nos oportunizam a atualização de interpretações, leituras e perguntas de sentido que emergem de nós.

De qualquer forma, por que os espaços formativos-educacionais estão silenciados de perguntas? Como as diretrizes de avaliação educacional têm se dedicado a esse comportamento? Em nosso cotidiano formativo, qual o nosso comprometimento com aquilo que nos vem à fala ou com aquilo que vem na fala do outro?

É no médium da linguagem - e, vale lembrar, é nela que habitamos e vivemos - que algo vem à fala, não como um ajuste de ferramentas ou como um simples revestimento de palavras e expressões, mas como uma conversação que se estabelece e reúne os interlocutores em uma nova comunidade e cujo acordo põe-se como uma “transformação rumo ao comum, de onde já não se continua sendo o que se era” (Gadamer, 2015GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631., p. 493). Essa compreensão hermenêutica nos coloca, dentre outras coisas, ante o desafio de pensarmos a possibilidade da escola e de outras instituições formativas serem construídas e privilegiadas como comunidades dialógicas capazes de garantir o respeito e a escuta à diversidade das expressões, à pluralidade dos discursos e à irreverência das palavras.

No entanto, em seu texto O que é práxis? As condições da razão socialGADAMER, H.-G. 1983. O que é práxis? As condições da razão social. In: HG GADAMER (ed.) A razão na época da ciência. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, p. 46-56., Gadamer destaca o processo de tecnificação da razão social e sua expansão na conjuntura da vida social como condição determinante que culminaria em um impedimento para a obtenção de sentidos comuns, o que segundo o hermeneuta se constitui num fator decisivo de autoalienação da humanidade e que pode comprometer as possibilidades de construção de um mundo comum. Mas, se tal processo de tecnificação determina as experiências formativas é a própria experiência de práxis, pautada no horizonte das necessidades humanas e de suas reflexões em comunidade que, segundo hermeneuta, nos reorienta à novas conquistas pelo medium da palavra, no âmbito das conversações e pela singularidade do diálogo.

A realização da linguagem, vale lembrar, está no acordo que se verifica sob a forma de uma conversação desde que tal experiência resulte em um acontecimento decisivo: a primazia do diálogo.

O que perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo novamente, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência de mundo. O diálogo possui uma força transformadora. Onde um diálogo teve êxito ficou algo para nós que nos transformou. ( Gadamer, 2002 GADAMER, H.-G. 2002b. Acotaciones hermenéuticas. Trad. Ana Agud e Rafael de Agapito. Madri: Trotta, p.299. a, p. 247).

Não dialogamos para chegar a um consenso ou conclusão, nem tampouco para fazer valer nossa possível superioridade desprezando compreensões alheias. Por isso que a abertura ao diálogo também significa colocar em risco nossas convicções, ideias e preconceitos que nos determinam. Desse modo, o diálogo é um processo de auto esclarecimento que se dá pelo confronto entre a minha experiência e a do outro; sua singularidade reside na predisposição a ouvir o que o outro tem a dizer e na possibilidade de reconhecer que em seu dito ele pode ter razão. Dialogar é, por conseguinte, alargar e expandir horizontes de sentido em uma relação de conversação com o outro. Como diz Gabilondo em entrevista a Teresa Oñate (2012OÑATE, T.; CÁCERES, D. L; ZUBÍA, P. O. 2012. Acontecer y compreender. La hermenêutica crítica tras diez años sin Gadamer, Madri, Editorial Dikynson, p. 390., p.34): “La conversación es el arte de escuchar juntos y de escuchar aquello que nos hace decir: a uno decir y a uno escuchar, y a su turno, al outro decir y a uno escuchar, pero que nos permite poder “ver” o “escuchar” lo que nos hace falar a ambos a la vez”.

Daí também a relevância de pesquisas educacionais de matriz hermenêutico-filosófica que denunciam a fragilidade de uma clássica metodologia de “exposição dialogada” que muito pouco ouve, por que está determinada tanto pela suposta eficiência e autossuficiência do seu discurso, quanto pela manutenção de uma escuta submissa que quase não faz valer a voz da sua palavra e a diferença de suas ideias e compreensões.

A esse propósito nos parece de extrema a importância que o fenômeno educacional seja problematizado a partir da categoria hermenêutica do diálogo, tanto como orientação metodológica que perfaz o processo de ensino-aprendizagem, quanto mediação metodológica que se predispõe a ouvir sujeitos de pesquisa validando suas interpretações e compreensões de mundo. Do ponto de vista hermenêutico, a reflexão sobre o perfil docente nas instituições formativas, por exemplo, não pode estar restrita a dados estatísticos que revelam nível de escolaridade, qualificação em nível de pós-graduação ou mesmo por um Indicador de Regularidade Docente (IRD), conforme bem ilustram o Censo Escolar 2020 (Brasil, 2021BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). 2021. Censo da Educação Básica 2020: Resumo Técnico. Brasília, 82 p.) e Censo da Educação Superior 2019 (Brasil,2020BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). 2020. Censo da Educação Básica 2019: Resumo Técnico. Brasília,70 p.) realizados pelo INEP. Embora sejam marcadores relevantes e referências fundamentais para pesquisas, o perfil do professor também precisa ser pensado por sua predisposição ao diálogo, o que por vezes revela-se comprometido por sua formação e autossuficiência técnico-científica. Na experiência formativa de base hermenêutica, o diálogo segue como condição de possibilidade para a construção de saberes reconhecendo que o outro, mesmo em seu circuito de estranhamentos sempre tem algo a nos dizer a partir de suas experiências e de sua tradição. Assim como também é importante registrar a importância de pesquisas capazes de criar um espaço dialógico que metodologicamente viabilize organização de grupos, intercâmbio de distintos saberes e promova uma reflexão intersubjetiva sobre a prática docente. Como ilustração merece destaque a pesquisa Roda de Conversa como partilha para partilha de saberes docentes (Silva, 2020SILVA, A. T. V. 2020. Roda de conversa como metodologia para partilha de saberes docentes. (Dissertação de Mestrado). Instituto de Ciências Exatas e Biológicas, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.) que se propõe à aplicação da metodologia de Rodas de Conversa com um grupo de professores da Educação Básica em uma unidade de ensino estadual da rede pública do município de Ouro Preto e cujo propósito é dar voz a esses atores sociais com vistas à favorecer a dialogicidade e o empoderamento entre docentes, bem como fortalecer as percepções individual e mútua e estimular suas participações em um contexto escolar voltado à construção de conhecimentos integrados. A referida pesquisa também destaca o quanto a abertura ao diálogo incrementa a criação e desenvolvimento de projetos interdisciplinares que priorizam parcerias entre pesquisa, e ensino e experiências profissionais as mais diversificadas

Por isso, refletir o fenômeno da educação implica pensar o nosso próprio processo de autoformação oriundo do conjunto de nossas experiências pessoais, profissionais intersubjetivas e institucionais resultantes de nossa conversação com a tradição, com as indagações contemporâneas e com a atualizada busca de sentido.

5 Autoformação e a construção dialógica da morada

Ao refletir o impacto da racionalidade técnico-científica nas relações que promovem a vida cotidiana no horizonte de seus laços existenciais e ético-políticos, Gadamer registra que na dinâmica da civilização moderna, baseada na crença da cultura científica, sobressai a “incapacidade para o diálogo” (Die Unfähigkeit zum Gespräch), cujo reflexo também se revela nas experiências pedagógicas atuais, muito expressivas na realidade educacional brasileira, sobretudo porque continua privilegiando processos formativos em sua orientação científica objetivadora e produtivista, em detrimento de um diálogo eu-tu com a tradição histórico-cultural. “Incapacidade para o diálogo” enquanto dissolução dos laços dialógicos de comunicação e sociabilidade; decadência do diálogo como incapacidade para alteridade e ruptura com a disposição para ouvir o discurso que o outro pode ter a nos dizer.

O diálogo pedagógico, e mais especificamente o diálogo professor-aluno, desponta na discussão gadameriana como uma experiência exemplar enquanto testemunho de tal incapacidade. O que dificulta e compromete o seu exercício está no “perigo da cátedra” ao qual está submetida a construção da identidade docente que por sua vez assume como perfil de competência apenas a construção de uma fala articulada e consistente; uma fala representante e transmissora de um saber constituído pela ciência, enquanto um saber verdadeiro, pronto e acabado. Essa postura docente projeta como seu correspondente uma concepção de aprendizagem que se limita à uma “recepção eficiente e disciplinada” de conteúdos político-educacionalmente estabelecidos e legitimados pela ciência e devidamente representada por um perfil de aluno (a-luno) que assume uma postura exclusivamente receptiva como se fosse não iluminado e “despotencializado” do ato de falar e de construir saber. A crise que aí se instala é revelada pela incapacidade de as relações pedagógicas serem conduzidas pelo “carisma do diálogo” - “apenas presente na espontaneidade viva da pergunta e da resposta, no dizer e deixar dizer” (Gadamer, 2002GADAMER, H.-G. 2002b. Acotaciones hermenéuticas. Trad. Ana Agud e Rafael de Agapito. Madri: Trotta, p.299.a, p. 244).

Na análise gadameriana,

A incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor da ciência moderna, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica ( Gadamer, 2002 GADAMER, H.-G. 2002b. Acotaciones hermenéuticas. Trad. Ana Agud e Rafael de Agapito. Madri: Trotta, p.299. a, p. 248)

Ser isolado no contexto pedagógico acima apresentado significa reconhecer-se apenas na autoridade autônoma daquele que “ensina” enquanto transmite, bem como na passividade daquele que se predispõe a ouvir um discurso articulado e eficiente daquele que diz ensinar; comprometendo, assim, a construção de um processo de ensino de aprendizagem alimentado pelo exercício dialético da pergunta e da resposta, e pela primazia do diálogo.

Como diz Richard Bernstein (1983BERNSTEIN, R. J. 1983. Beyond objectivism and relativism. Philadelphia: University of Pennsylvania, p. 320., p.4),

[...] somente buscando apreender do “outro”, somente pela totalidade do compreender de suas reivindicações pode-se ter um encontro crítico. Um diálogo engajado e crítico necessita abertura de si mesmo a todo poder do que o “outro diz”. Tal abertura não indica concordância, mas sim um confronto dialógico.

Tendo em vista a concepção hermenêutico-dialética da experiência e do conceito de formação, a educação seria então pensada como autocompreensão, como autoformação, conversação com o mundo e acolhimento da diferença. Porém, tomada em seu caráter de abertura, a proposta de ressignificação hermenêutica da experiência educativa parece estar bem expressa na curiosa formulação de Gadamer (2000GADAMER, H.-G. 2000. Educar es educarse. Trad. Francesc Blasi. Barcelona, Paidós, p. 55., p.11): “educar é educar-se”. Enquanto espaço formativo, a experiência educativa precisa assegurar uma abertura que viabilize ao aluno realizar suas experiências, apreciar a posição do outro, expor-se ao risco e aprender dialogicamente com as próprias falhas. Para isso, também se faz necessário reconsiderar a estrutura de preconceitos, as pré-concepções que necessariamente agem e interferem em nosso processo auto formativo e de compreensão de mundo.

O hermeneuta então nos adverte que, embora possa parecer estranho, “não devemos jamais esquecer que nos educamos a nós mesmos, que alguém se educa e que o chamado educador participa apenas como o pai e como a mãe em uma modesta contribuição” (Gadamer, 2000GADAMER, H.-G. 2000. Educar es educarse. Trad. Francesc Blasi. Barcelona, Paidós, p. 55., p.15). Ora, isso não significa simplesmente desqualificar os agentes de formação, a matriz curricular ou mesmo as singularidades docentes como referências formativas, mas insistir no caráter dialógico da experiência educativa que, dialeticamente, se atualiza no modo como essas experiências de encontro com cada um de nós imprimiu uma marca de sentido, de confronto e, assim, foi determinante em nosso processo de compreensão de mundo. Educar-se, portanto, não significa simplesmente um voltar-se para si, uma disposição solipsista e autônoma, mas uma possibilidade de dialogar com os laços construídos de experiência. Em seus diferentes sentidos, entender a tese gadameriana significa, como ressalta Aguilar (2004AGUILAR, L. A. 2003. Conversar para Aprender. Gadamer e a educação. Sinéctica Revista Eletrônica de Educação. (23): pp. 11-18. Consulta realizada em 20 de julho de 2022. ISSN: 1665-109X. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=99815908003 .
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=9...
, p.11) que:

Uno se educa a sí mismo porque, sobre todo, el aprendizaje depende de cada cual; uno se educa junto con otros porque somos seres en conversación, en relación con otros, nos constituimos en la comunicación, el juego, las experiencias que intercambiamos con los otros. Uno se educa al educar no tanto por lo que logra en los otros sino por lo que a uno le ocurre en el encuentro y la comunicación con ellos. Hay una razón de fondo para reconocer que los otros ya están presentes en nuestro educarnos en cualesquiera de nuestras experiencias. El lenguaje es el medio común en el que somos unos con otros.

Daí por que o processo de formação, como ressalta Gadamer, mais se aproxima da ideia de “chegar a estar em casa”, a partir do qual o ser humano confere a ele mesmo sua morada. É “sentindo-se em casa”, reconhecendo-se nela que aprendemos a falar, escrever. Por isso, a construção da nossa morada não pode prescindir do diálogo com a diferença de ideias, com o mundo que podemos compreender e a respeito do qual podemos conversar e buscar acordos. Nesse sentido, o fenômeno da educação se constitui um fenômeno social por excelência integrado pelos esforços e exercícios de aprendizagens sempre remetidos à interlocução com o outro e com as vozes de uma tradição que asseguram o rompimento de um mundo privado. Desse modo, as experiências de educar e educar-se não podem desconsiderar a força de uma alteridade que chega até nós e, de algum modo, forma-nos. Educar-se como esse movimento de reabilitar esse percurso dialógico que habita em nós enquanto experiência de sentido. Por isso, alguém educado é sempre alguém transformado pelo diálogo e que reconhece as consequências desse alcance.

6 Considerações finais

Na pluralidade de seus diálogos com âmbitos de saberes diferenciados, a atualização da hermenêutica filosófica como uma ponderação filosófica sobre a educação tem se projetado em um amplo reconhecimento. Mesmo não havendo uma sistematização teórico-filosófica específica sobre a temática, a crítica dirigida ao mundo da racionalidade técnica, ao positivismo metodológico-científico e à própria compreensão de subjetividade moderna são decisivos para nos fazer repensar os processos formativo-educacionais e nossos ideais de formação.

A elucidação de alguns núcleos conceituais hermenêutico-filosóficos possuem o intento de ratificar a importância de discutirmos a experiência educacional e formativa pelo critério da alteridade, da conversação e da vigilância histórica, pois como diz o hermeneuta “Não é a história que pertence a nós, mas nós é que a ela pertencemos [...] antes que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos”. (Gadamer, 2015GADAMER, H.-G. 2015. Verdade e Método I. Trad. Flavio Paulo Meurer. 15ª ed. São Paulo, Ed. Vozes, p. 631., p. 281). Para tal, a singularidade da educação enquanto experiência hermenêutica nos provoca à necessidade de vincularmos o processo formativo ao fluxo de nossas interpretações e de arguirmos como, pedagogicamente, compreendemos e atribuímos sentidos e significados àquilo que nos integra ao mundo.

Se, por um lado, o diálogo sobressai como uma das categorias centrais que fundamenta a proposta de uma pedagogia hermenêutica, na medida em que ratifica o médium da linguagem como abertura para o dizer, para o ouvir e para o registro da palavra, a ideia de formação (Bildung) como disposição dialética para ultrapassar o horizonte do particular e o vigor da tradição como transmissão e entrega se constituem decisivos conceitos para uma ressignificação hermenêutica da educação. Formação como um percurso de desafios e aprendizagens adquirido e reconhecido ante o diferente. Tradição como uma “pluralidade de vozes” que emerge de um passado e se atualiza na memória e no vigor de um tempo presente. Eis o que implica não apenas novas interpretações, rupturas epistêmicas, metodológicas e pedagógicas, bem como a reconstrução de identidades dos sujeitos que compõem o processo educativo: estudantes, professores, instituições.

Ademais, pensar a educação é também contemplar contextos sócio-culturais singulares que movem a nossa existência e redimensionam nossas referências formativas atualizando nossa lógica de conversação alimentada por uma nova dinâmica de perguntas e respostas indagadoras por novos sentidos. Para efeito de ilustração, no contexto da pademia da Covid 19 que acometeu a população mundial no início de 2020, marcado por uma heterogeneidade de situações, a forma de manutenção dos vínculos de estudos e aprendizagens foi e ainda tem sido fonte de debates e discussões calorosas, haja vista a própria discussão sobre a da ideia de isolamento ou a própria tentativa de naturalização do campo virtual como campo formativo recomendável e ideal institucional. Do ponto de vista hermenêutico, trata-se de uma temporalidade que exige compreensão de novos horizontes existenciais a serem ressignificados, mas sem perder de vista a primazia do outro. Além das alternativas de solução com vistas a manutenção do vínculo entre os sujeitos que compõem o processo ensino-aprendizagem e as instituições - ensino remoto -, emergiram dificuldades resultantes dessa singularidade intersubjetiva viabilizada pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs) e seus aparelhos digitais, oriundas da suspensão dos laços presenciais. Nesse cenário, uma reflexão hermenêutico-educacional se constitui como um fundamento ético-político e crítico-social na construção de planejamentos que objetivem a equidade, já que a alteridade é ampla e com ela um conjunto multicultural de desigualdades sócio-econômico-culturais entra em evidência demandando novos horizontes de diálogo.

Embora em sua incontestável utilidade, a tecnologia digital nos oportunize uma forma de relação intersubjetiva (eu-tu) que não substitui o contato pessoal e direto entre os sujeitos do processo formativo, é o caráter do humano na expressão maior de sua presença social, econômica, política e cultural que faz a diferença quando se trata da educação. Como diz Abdeljalil Akkari (2022AKKARI, A. W.; WERLE. F. O. C.; SILVA, R. M. D. 2022. Interculturalidade e educação para a cidadania: uma entrevista com Abdeljalil Akkari. Entrevista. Revista Educação Unisinos. 26: p. 1-10. Consulta realizada em 19 de julho de 2022. ISSN: ISSN 2177-6210. Disponível em: https://doi.org/10.4013/edu.2022.261.02
https://doi.org/10.4013/edu.2022.261.02 ...
, p. 8) em entrevista recente sobre Interculturalidade e educação: “É necessário re-humanizar a educação em vez de digitalizá-la”. Ademais, uma hermenêutica da educação ratifica a necessidade de não nos limitarmos a horizontes interativos específicos, bem como de ultrapassarmos as fronteiras da educação formal, da escola e das instituições de ensino superior em busca de ouvir a “voz pedagógica” de outras comunidades. Eis o desafio atualizado da experiência do educar-se - a construção de novas “fusões de horizontes” a partir de distintas visões de mundo e referências existenciais. Isso nos faz pensar e repensar como a nossa formação é ressignificada em um contexto que nos exige um isolamento social, mas que que pode ser vivido de modo solidário nos rearticulando em comunidades no exercício de novas experiências formativas.

Se a interface hermenêutico-filosófica entre filosofia e educação não pode desconsiderar o fundamento da ideia de formação (Bildung) que nos conduz a um auto desdobramento espiritual elevando-nos de nossa particularidade e predispondo-nos a um circuito de estranhamentos, é também no horizonte de constituição de uma sabedoria prática, advinda da experiência humana que as discussões formativo-educacionais ganham amplitude. Por isso, além de um olhar empírico, as pesquisas educacionais precisam exercitar sua capacidade teórico-reflexiva para além do sentido reduzido e instrumental da experiência humana. Eis a condição hermenêutica para compreendermos o educar-se como diálogo atualizado com o mundo.

Referências

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    » https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/9270/6932
  • SILVA, A. T. V. 2020. Roda de conversa como metodologia para partilha de saberes docentes (Dissertação de Mestrado). Instituto de Ciências Exatas e Biológicas, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil.
  • 1
    A princípio, seguem como ilustração duas pesquisas sobre formação de professores, respectivamente dirigidas ao campo da educação física e da educação musical e devidamente fundamentadas na hermenêutica filosófica gadameriana: 1) DAL-CIN, Jamile e REZER, Ricardo. Experiência estética e formação inicial de professores: um olhar para o campo da educação física. Rev. Bras. Ciênc. Esporte [online]. 2018DAL-CIN, J.; REZER, R. 2018. Experiência estética e formação inicial de professores: um olhar para o campo da educação física. Rev. Bras. Ciênc. Esporte [online]. 40(1): pp.32-38. Consulta realizada em 22 de junho de 2022. ISSN 0101- 289. Disponível em https://doi.org/10.1016/j.rbce.2018.01.009 .
    https://doi.org/10.1016/j.rbce.2018.01.0...
    , vol.40, n.1, pp.32-38; 2) LAZZARINI, Luis Fernando. Educação da sensibilidade estética e multidimensionalidade: sentidos da experiência da música nas ‘filosofias’ da educação musical. Universidade Federal de Santa Maria. Anais do SEFIM. v.1,n.1,2023. Em ambas o paradigma formativo da experiência hermenêutica (Erfahrung), tomado em seu caráter de abertura, se constitui fundamento para, respectivamente, repensar e legitimar a experiência da música nos currículos escolares no horizonte de desconstrução de paradigmas pedagógicos hegemônicos e na perspectiva de abertura para a pluralidade das experiências musicais; bem como para discutir as contribuições da noção de experiência estética para a formação inicial de professores no campo da educação física. E de modo mais genérico: 3) ROZEK, Marlene. As contribuições da hermenêutica de Gadamer para a formação de professores. Educação (Porto Alegre, impresso), v. 36, n. 1, p. 115-120, jan./abr. 2013. No campo da pesquisa educacional em sua abordagem específica como experiência hermenêutica (auto) formativa e decolonial vale destacar:1) POZZER, Adecir. De(Colonialidade) do saber e pesquisa em educação no PPGE/UFSC: a atitude hermenêutica como percurso auto(formativo). Tese PPGE.UFSC. 2020. A referida pesquisa educacional assinala um importante diálogo entre o giro hermenêutico e o giro decolonial, considerando o horizonte de abertura de novos horizontes e mundos.
  • 2
    Dentre eles, merece destaque: SIDI, Pilar de Moraes & CONTE, Elaine. A hermenêutica como possibilidade metodológica à pesquisa em educação. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v.12, n.4, p. 1942-1954, out./dez. 2017SIDI, P. M.; CONTE, E. 2017. A hermenêutica como possibilidade metodológica à pesquisa em educação. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, 12(4): p. 1942-1954. Consulta realizada em 20 de junho de 2022. E-ISSN: 1982-5587. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/9270/6932
    https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoa...
    e DALBOSCO, Claudio. Pesquisa educacional e experiência humana na perspectiva hermenêutica. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v. 40, n. 141, p.32-46.
  • 3
    “Sua hermenêutica não é uma teoria geral da interpretação, nem um manual para guiar a compreensão das ciências humanas, mas devido a hermenêutica filosófica se ocupar da natureza geral da compreensão humana, a qual ocupa um espaço no domínio da filosofia: essa é a razão pela qual a hermenêutica gadameriana é inevitavelmente filosófica [...] O próprio Gadamer aplica perspectivas hermenêuticas, dentre outras coisas, a textos literários e filosóficos, à ciência médica e à educação [...]” (Lawn, 2011LAWN, C.; KEANE, N. 2011. The Gadamer Dictionary. London, Continuum, p. 178., p. 23).
  • 4
    O verbo verstehen refere-se “a um compreender algo”, um “saber-fazer”, a uma capacidade de desempenho prático a um saber situar-se, a nossa capacidade projetiva “Verstehen tem um sabor prático: verstehen seguido de um infinitivo significa ‘compreender, saber como fazer algo’, e sich verstehen auf significa ‘compreender, saber como fazer, lidar com algo’” (Inwood, 2002INWOOD, M. 2002. Dicionário Heidegger. Trad. Luisa Buarque Holanda. Rio de Janeiro, Jorge Zahr Editor, p. 239., p. 18).
  • 5
    Aqui a referência está diretamente vinculada à concepção de experiência (Erfahrung) histórico-dialética sustentada pelo idealismo alemão de Hegel, devidamente expressa em sua obra Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des Geistes,1807).
  • 6
    A esse propósito é muito oportuna a leitura crítica e teórico-política do livro A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação de Marise Nogueira Ramos (2006RAMOS, M. N. 2006. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? - 3ª ed. São Paulo: Cortez, p. 167.) que discute a ideia de “pedagogia das competências” como aquela que parte das situações concretas em detrimento a um conjunto de componentes curriculares existentes.
  • 7
    Em seu propósito de caracterizar o escolar são bastante pontuais e relevantes os argumentos apresentados por Masschelein e Simons (2013MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. 2013. Em defesa da escola. Belo Horizonte, MG: Autêntica, p. 176.) no livro Em defesa da escola, associando-o ao skolé, ao tempo livre, ao estudo, ao adiamento e à discussão.
  • 8
    Gadamer utiliza duas expressões: Sprach (linguagem) e Sprachlichkeit (linguisticidade). Em Verdade e método há um maior registro da segunda expressão. A esse propósito destaca Grondin: “No Diálogo da Antologia, de 1996, Gadamer expõe mais detalhadamente essa diferença [...] Por linguisticidade entende unicamente o esforço de nossa finitude encaminhado à linguagem, quer dizer, a uma compreensão: um esforço que conhece muito bem os limites dos correspondentes enunciados. Pensa-se na virtualidade do entender linguístico, quer dizer, na possibilidade sempre aberta, embora nem sempre realizada de nossa ação de compreender [...] Assim, uma imagem, uma representação, uma interpretação musical, provoca sempre uma compreensão...” (Grondin, 2003GRONDIN, J. 2003. Introducción a Gadamer. Trad. C.R. Garrido. Barcelona, Herder, p. 256., p. 195).
  • 9
    Conferindo destaque à primazia do perguntar, a “lógica da pergunta e da resposta” sobressai como núcleo fundamental a partir do modelo dialético platônico, referência fundamental para a circularidade da compreensão hermenêutica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2023
  • Aceito
    25 Maio 2023
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