Acessibilidade / Reportar erro

ESTEREÓTIPOS E ESTIGMAS DE OBESOS EM PROPAGANDAS COM APELOS DE HUMOR

STEREOTYPES AND STIGMAS OF OBESE IN ADVERTISEMENTS WITH APPEALS OF HUMOR

Resumo

Estereótipos positivos e negativos estão presentes em comunicações de marketing e são apresentados aos consumidores de forma indiscriminada. Com a atual epidemia de obesidade mundial, propagandas televisivas que se utilizam de indivíduos obesos em situações estigmatizadas não são exceção. Este artigo analisa o papel desempenhado por pessoas gordas em propagandas veiculadas na televisão sob a ótica de estigmas e estereótipos. Para tanto, realizaram-se três grupos focais com sujeitos que assistiram propagandas em que o protagonista era um indivíduo gordo. Fez-se inicialmente a análise do conteúdo de uma coleção de comerciais, bem como do corpus da pesquisa na qual se construiu uma figura representativa do “ser gordo” nessas mensagens. Sobressaiu nas análises que esses protagonistas apresentam-se com o objetivo de provocar o riso por meio do humor. Por conta disso, estigmas como “cômicos”, “estranhos” e “fracos” são formados a partir dos seus estereótipos e papéis desempenhados. Ao avançar nas investigações, questiona-se até que ponto essas interpretações podem comprometer a imagem da marca veiculada, considerando que o fenômeno obesidade está presente no quotidiano da maioria dos consumidores.

Palavras-chave
Comerciais de televisão; Pessoas gordas; Estigma

Abstract

Positive and negative stereotypes are present in marketing communications in everyday life to consumers indiscriminately. Taking in account the current epidemy of obesity worldwide, television advertisements that use obese individuals in stigmatized situations are no exception. This article analyzes, from the perspective of skinny consumers, the role played by fat people in commercials aired on television. Therefore, there were three focus groups with people who have seen advertisements in which the protagonist was a fat guy. There was initially a content analysis of a commercial collection and the research corpus in which it was built a representative figure of the “being fat” in these messages. The analyzes stressed that these protagonists present themselves in order to provoke laughter through humor. Because of this, stigmas as “comical”, “weird” and “weak” are formed from their stereotypes and roles. The question that remains is how far these interpretations may affect the brand image conveyed, considering that the obesity phenomenon is present in everyday life of most consumers.

Keywords
Television commercials; Fat people; Stigma

Considerações iniciais

A cultura ocidental valoriza a magreza embasada principalmente pelas descobertas da biomedicina, que transformou o corpo gordo em sinônimo não apenas de falta de saúde, mas em um “corpo desumanizado”; um caráter pejorativo de falência moral. Isso porque em nenhuma época o corpo magro e esbelto esteve tão em evidência (SUDO; LUZ, 2007SUDO, N.; LUZ, M. T. O gordo em pauta: representações do ser gordo em revistas semanais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 4, p. 1033-1040, 2007.). O corpo perfeito está na moda e os debates presentes na televisão e comerciais, matérias publicadas em revistas, jornais, internet, bem como outros meios de comunicação, sempre destacam a dieta, a forma perfeita, os medos da gordura e como não engordar e ter um corpo perfeito.

Empiricamente, assume-se aqui que nos meios de comunicação o corpo magro (ou musculoso) é apresentado como o tipo “ideal” e o obeso “não ideal” (estigmatizado) (GOFFMAN, 1988GOFFMAN, E. Estigma. 4. ed. São Paulo: LTC, 1988.). Logo, se a pessoa gorda não está nos padrões ideias “impostos” pela sociedade e comunicados pela mídia de modo geral, pode sofrer pressões e não ser aceita como adequada para fazer trabalhos diversos. Assim, os autores foram motivados a investigar a forma pela qual os indivíduos acima do peso (gordos ou obesos) são retratados em propagandas veiculadas na televisão. Buscou-se compreender qual o papel exercido por eles enquanto protagonistas e como são vistos pelos consumidores magros quando avaliam o desempenho desses obesos na propaganda de uma determinada marca. Estariam as empresas reforçando estereótipos e estigmas, ou o uso de humor afastaria a comunicação desses aspectos controversos do politicamente correto?

Considerando que os meios de comunicação não são imparciais e atendem aos interesses dos anunciantes, logicamente com base em questões éticas preestabelecidas, estes podem posicionar-se para aquilo que parece ser mais interessante, atrativo e lucrativo para seus espectadores. Neste estudo, a venda da informação considera a repercussão que esse tipo de pressão exerce na saúde pública, ao carregar o sentido de um modelo ou padrão de beleza inatingível e destratar a obesidade, sendo-a vista apenas como um problema de “gula, desleixo ou preguiça”. É nesse contexto que os estereótipos criados pela figura do(a) gordo(a) nasceram ao longo de muitos anos, que de doente, em alguns casos, passa a “relaxado” (FELIPPE et al., 2003FELIPPE, F. M. L. et al. Obesidade zero – a cultura do comer na sociedade de consumo. Porto Alegre: Sulina, 2003.), “idiota”, “incapaz”, “atrapalhado”, que só faz promessa para emagrecer, mas não é capaz de alcançar o corpo ideal.

Enquanto estigmatizadora, a obesidade produz discriminação, preconceito e exclusão social do indivíduo. Mas, o tema é mais complexo do que se imagina, pois há anos pesquisadores já a consideraram como um problema de saúde pública (ver HUNTE; WILLIAMS, 2009HUNTE, H. E. R.; WILLIAMS, D. R. The association between perceived discrimination and obesity in a population-based multiracial and multiethnic adult sample. American Journal of Public Health, United States, Washington, v. 99, n. 7, p. 1285-92, 2009.; PUHL; HEUER, 2010PUHL, R. M.; HEUER, C. A. Obesity stigma: important considerations for public health. American Journal of Public Health, v. 100, n. 6, p. 1019-1028, jun. 2010.). Observando a obesidade como uma realidade que faz parte do contexto social, considera-se que realizar uma análise a partir de uma perspectiva histórico-crítica pode ajudar na melhor compreensão desse fenômeno; já que essa temática, quando tratada nas áreas da saúde, geralmente tem como foco apenas o indivíduo (STENZEL; GUARESCHI, 2002STENZEL, L. M.; GUARESCHI, P. A. A dialética obesidade/magreza: um estudo em representações sociais com adolescentes. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, Especial Temática, p.183-194, 2002.). Embora existam diferenciações no conceito, aqui os termos obesidade e gordo(a) serão considerados como sinônimos, visto que o objetivo é discutir seus aspectos sociais e relações com interpretações do consumidor no senso comum. Também como sinônimos serão considerados os termos mensagens publicitárias e propagandas. O preconceito foi utilizado como forma de atitude discriminatória perante outras pessoas.

Se, por um lado, ao estudar sobre esses sujeitos, abre-se uma oportunidade de entendimento ao que está sendo dito e sentido para possibilitar a ruptura de uma dada situação, que pode ser transformada no momento em que é discutida, socializada, polemizada e politizada, como considera Felippe et al. (2003)FELIPPE, F. M. L. et al. Obesidade zero – a cultura do comer na sociedade de consumo. Porto Alegre: Sulina, 2003., por outro, é relevante entender como os consumidores comuns percebem esses sujeitos quando atuam em propagandas. Logo, quando da ocorrência de discriminação, parte-se do pressuposto de que a partir do momento em que a sociedade passa a vê-los como pessoas como qualquer outra, sem discriminá-los ao relacioná-los ao consumo, por exemplo, é possível se obter mudanças de comportamentos nas relações sociais. Cabe ressaltar que a avaliação das comunicações e mídias relacionadas aos produtos antecede e faz parte do ato de consumir (ENGEL; KOLLAT; BLACKWELL, 1968ENGEL, J. F.; KOLLAT, D. T.; BLACKWELL, R. D. Consumer behavior. New York: Holt Reinert & Winston, 1968.). Desse modo, pressupõe-se também que quando as comunicações são constituídas e interpretadas por meio de mecanismos que instigam a discriminação e o preconceito, sua essência pode influenciar negativamente na avaliação da empresa e do produto por parte dos consumidores; principalmente quando a comunicação é construída com a imagem de pessoas tidas como mais vulneráveis.

Sendo assim, o objetivo deste artigo foi analisar o papel desempenhado por pessoas gordas em propagandas veiculadas na televisão sob a ótica de estigmas e estereótipos. Certamente, trata-se de uma temática complexa, e aqui se aborda apenas uma perspectiva no intuito de provocar o leitor a uma reflexão e estimular pesquisas com esse enfoque no campo do marketing e comportamento do consumidor.

Magro sim, gordo não!

As discussões sobre o preconceito nas relações sociais (destaque para o ambiente de trabalho) não é algo recente. A partir da década de 1960, nos Estados Unidos, os estudos sobre discriminação no emprego foram amplamente divulgados em virtude do aumento de mulheres e pessoas com deficiência física trabalhando em tempo integral. Por outro lado, mesmo não se enquadrando nessas características, a obesidade foi considerada como uma espécie de “deficiência” que remetia a preconceitos, despertando em seguida o interesse de pesquisadores (BELLIZZI; HASTY, 1998BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.). No Brasil, já havia discussões sobre o assunto nos anos de 1960. Mas, só em 1986 o debate se fortalece, por meio da criação da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (ABESO), cujo objetivo foi reunir profissionais ligados ao assunto, bem como aqueles da área terapêutica que lidavam com a orientação de pacientes com obesidade e doenças afins (ABESO, 2012ABESO. Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade. Histórico. 2012. Disponível em: <http://www.abeso.org.br/pagina/296/historico.shtml>. Acesso em: 7 nov. 2012.
http://www.abeso.org.br/pagina/296/histo...
).

Os estudos iniciais indicavam que as pessoas obesas eram vistas na sociedade como censuráveis, de vontade fraca, preguiçosas, não confiáveis, incompetentes e repugnantes (STAFFIERI, 1967STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.; LERNER, 1969LERNER, R. M. The development of stereotyped of body-build stereotypes in males. Child Development, v. 40, p. 137-141, 1969.; WEISS, 1980WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.). Weiss (1980)WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980., por exemplo, destacou que o obeso tende a ser associado à preguiça e dependência, sinalizando que essa associação permaneceria por muitos anos, o que se confirma posteriormente com as análises de Klassen (1987KLASSEN, M. L. The cognitive basis of social judgment: the role of stereotypical beliefs in the processing of information about obese and thin people. Dissertação (Doutorado)–Departament of Psycology, Kansas State University, 1987. apud BELLIZZI; HASTY, 1998)BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.. Esse autor destacou que as pessoas com excesso de peso são caracterizadas como preguiçosas, desleixadas, indisciplinadas, não confiáveis, insalubres, atrapalhadas (sem cuidado), inseguras, mas, alegres (extrovertidas). Relacionando essas características à lógica do mercado, estas são pouco associadas com o sucesso no trabalho, capacidade e competência (BELLIZZI; HASTY, 1998BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.).

Nesse contexto, observou-se que é comum haver atitudes preconceituosas com as pessoas gordas no ambiente empresarial (BELLIZZI; HASTY, 1998BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.). Desse modo, supõe-se que essas posturas possam ser refletidas na cultura organizacional e, consequentemente, nas comunicações de marketing das empresas. Firat e Venkatesh (1995)FIRAT, A. F.; VENKATESH, A. Libertatory postmodernism and the reenchantment of consumption. Journal of Consumer Research, v. 22, p. 239-267, dez. 1995. consideram que não existe distinção natural entre a cultura da organização e o que é produzido na mídia e consumido na sociedade. Cada ato de produção está relacionado a um ato de consumo e vice-versa. Essas ações estão relacionadas às estratégias de comercialização, à cultura organizacional e aos significados gerados a partir dos bens e serviços comunicados. Além disso, os aspectos simbólicos do consumo também passaram a ser tema de estudos no comportamento do consumidor por meio das análises das relações dinâmicas entre mercado, consumidores e significados culturais da sociedade (ARNOULD; THOMPSON, 2005ARNOULD, E. J.; THOMPSON, C. Consumer culture theory (CCT): twenty years of research. Journal of Consumer Behavior, v. 31, p. 868-883, mar. 2005.). Todo e qualquer tipo de consumo pode ser considerado um consumo de sinais simbólicos, no qual os consumidores são “atores” sociais que usam ideias, imagens, símbolos e produtos para (re)configurar sua projeção de identidade a partir do que é visto, desejado e consumido (SCHAU, 2000SCHAU, H. J. Consumer imagination, identity and self-expression. NA – Advances in Consumer Research, Provo, UT: Association for Consumer Research, v. 27, p. 50-56, 2000.); sendo que muitos dos símbolos são criados pelas empresas a partir da própria configuração social em que estão inseridas.

No que se refere à estética do corpo, na área do comportamento do consumidor, alguns estudos tendem a indicar a evidência e o culto ao corpo perfeito como um meio de reforçar a identidade predominante nas relações sociais. Por exemplo, Pereira e Ayrosa (2012)PEREIRA, S. J. N.; AYROSA, E. A. T. Between two worlds: an ethnographic study of gay consumer culture in Rio de Janeiro. BAR – Brazilian Administration Review, v. 9, n. 2, p. 211-228, abr./jun. 2012. investigaram como o discurso associado à posse do corpo é utilizado por homens gays para administrar o estigma relacionado à identidade homossexual. Os autores consideram que o corpo é uma “insígnia” que faz daquele que o possui um vigilante de si mesmo, o qual controla, disciplina, domestica e aprisiona esse mesmo corpo, visando atingir “a boa forma” ou a forma requerida pelo grupo de que faz parte. No caso das pessoas gordas, seria a busca de fazer parte da sociedade “normal”. Scaraboto e Fischer (2013)SCARABOTO, D.; FISCHER, E. Frustrated fatshionistas: an institutional theory perspective on consumer quests for greater choice in mainstream markets. Journal of Consumer Research, v. 39, n. 6, p. 1234-1257, abr. 2013. estudaram a maneira pela qual pessoas gordas, tidas como marginalizadas no mercado, se mobilizam para serem vistas pelas empresas de moda. As autoras apontam para a necessidade de mudanças na lógica do mercado, destacando que, para se minimizar a exclusão das minorias nas relações de consumo, três ações são relevantes: o desenvolvimento de uma identidade coletiva no mercado; a inspiração dos empreendedores para tratar o tema em suas políticas institucionais; e o acesso à mobilização das minorias para mudar as lógicas institucionais de campos adjacentes (SCARABOTO; FISCHER, 2013SCARABOTO, D.; FISCHER, E. Frustrated fatshionistas: an institutional theory perspective on consumer quests for greater choice in mainstream markets. Journal of Consumer Research, v. 39, n. 6, p. 1234-1257, abr. 2013.). A seguir, é discutido o estigma desse grupo na sociedade.

O estigma da “gordura”

Goffman (1988)GOFFMAN, E. Estigma. 4. ed. São Paulo: LTC, 1988. entende o estigma como um tipo de identidade específica; não uma identidade natural como se conhece, mas sim o que denomina “identidade deteriorada”. O autor afirma que a teoria do estigma foi elaborada a partir de uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando, algumas vezes, uma animosidade baseada em outras diferenças, por exemplo, as de classes sociais. Discute a ideia de identidade por meio da diferença entre uma identidade social virtual, o que se espera que uma pessoa deva ser, e uma identidade real social, aquela baseada nos atributos que a pessoa realmente possui. Trata-se de uma classificação social, com base em características aceitas na sociedade como positivas ou negativas. Daí, aqueles indivíduos que estiverem alinhados às características positivas estarão inseridos na categoria dos “normais”, enquanto aqueles associados aos atributos negativos estariam na categoria dos “estigmatizados” (GOFFMAN, 1988GOFFMAN, E. Estigma. 4. ed. São Paulo: LTC, 1988.). Ou seja, seguindo a perspectiva de Goffman (1988)GOFFMAN, E. Estigma. 4. ed. São Paulo: LTC, 1988., aqui os magros estariam no grupo de pessoas normais e os gordos no grupo dos estigmatizados.

Goffman (1988)GOFFMAN, E. Estigma. 4. ed. São Paulo: LTC, 1988. apresenta três categorias de estigmas: (a) a primeira está relacionada com as abominações do corpo, que consiste em deformidades físicas; (b) a segunda caracteriza-se por fraquezas de caráter, como vontade fraca, desordens mentais, paixões excessivas, vícios, etc.; (c) a terceira se refere às diferenças de raça, religião e nacionalidade. Aqui, percebe-se que o ser gordo estaria alinhado às questões de abominações do corpo, deformidade física.

De acordo com Mattos e Luz (2009)MATTOS, R. S.; LUZ, M. T. Sobrevivendo ao estigma da gordura: um estudo socioantropológico sobre obesidade. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 19, n. 2, 2009., o estigma da gordura é uma construção de natureza social que tende a desqualificar as pessoas, já que aqueles indivíduos que são magros atribuem juízos de valor pejorativos ao excesso de peso, identificando o gordo como preguiçoso e descontrolado. Com isso, há certo gerenciamento da aparência nos processos de individualização do indivíduo, na medida em que ele elege seu corpo, isto é, sua aparência, como um valor moral (DURET; ROUSSEL, 2003DURET, P.; ROUSSEL, P. Le corps et ses sociologies. Paris: Nathan, 2003.). Segundo Duret e Roussel (2003)DURET, P.; ROUSSEL, P. Le corps et ses sociologies. Paris: Nathan, 2003., as construções pessoais e coletivas inserem-se, portanto, nas representações contemporâneas das normas de beleza que excluem o corpo gordo, tornando-o marginalizado e estigmatizado (MATTOS; LUZ, 2009MATTOS, R. S.; LUZ, M. T. Sobrevivendo ao estigma da gordura: um estudo socioantropológico sobre obesidade. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 19, n. 2, 2009.).

Por conta desses e outros aspectos discutidos anteriormente, observa-se que, embora se tenham evidências científicas empíricas que o peso corporal é determinado por uma interação complexa de fatores biológicos e ambientais (CRANDALL, 1994CRANDALL, C. S. Prejudice against fat people: ideology and self-interest. Journal of Personality and Social Psychology, v. 66, n. 5, p. 882-882, 1994.), ainda existe uma percepção generalizada, por parte da sociedade, de que os indivíduos obesos são os próprios responsáveis por sua condição. Isso porque o ganho ou perda de peso está sob o controle pessoal, associando-se o ser gordo à falta de controle próprio, preguiça e autodisciplina (STAFFIERI, 1967STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.; LERNER, 1969LERNER, R. M. The development of stereotyped of body-build stereotypes in males. Child Development, v. 40, p. 137-141, 1969.; WEISS, 1980WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.). Desse modo, isso tende a reforçar a crença de que a causa da obesidade é resultado de impulsos e comportamentos não controlados (ROEHLING, 1999ROEHLING, M. V. Weight-based discrimination in employment: psychological and legal aspects. Personnel Psychology, v. 52, n. 4, p. 969-1017, 1999.).

Discussões sobre a mídia e sua contribuição ao estigma da obesidade

Há muitas manifestações de atitudes negativas relacionadas à forma pela qual as pessoas com excesso de peso são retratadas na mídia. Por exemplo, piadas vinculadas à gordura são comuns na televisão e os personagens com excesso de peso são vistos de maneira bastante negativa ou pejorativa (embora engraçada) em filmes e desenhos animados, sendo que, no caso dos desenhos, as crianças, ao observar seus comportamentos manipulados, passam a ridicularizá-los (PUHL; BROWNELL, 2003PUHL R. M.; BROWNELL, K. D. Psychosocial origins of obesity stigma: toward changing a powerful and pervasive bias. The International Association for the Study of Obesity. Obesity Reviews, n. 4, p. 213-227, 2003.). A questão é que não é algo que fica estático ali no momento em que estão assistindo, tais atitudes podem gerar consequências futuras e isso pode passar a ser considerado como “normal” nas relações sociais.

Duas abordagens presentes nas discussões em comunicação de massa sugerem que é provável que haja impactos negativos quando se retratam diferenças entre gordos e magros na mídia (HARRISON, 2000HARRISON, K. Television viewing, fat stereotyping, body shape standards, and eating disordered symptomatology in grade school children. Communication Research, v. 27, p. 617-640, 2000.; GREENBERG et al., 2003GREENBERG, B. S. et al. The portrayal of overweight and obese persons in commercial television. American Journal Public Health, v. 93, p. 1342-1348, 2003.). A primeira é que tais imagens vão se acumulando ao longo do tempo e, eventualmente, podem resultar em reais expectativas negativas na sociedade. A segunda é que algumas evidências suportam o argumento de que, ao assistir televisão, as pessoas podem passar a discriminar pessoas obesas a partir dos seus estereótipos (HARRISON, 2000HARRISON, K. Television viewing, fat stereotyping, body shape standards, and eating disordered symptomatology in grade school children. Communication Research, v. 27, p. 617-640, 2000.). Como exemplo de preocupação com o presente e o futuro, em seu estudo com crianças do Ensino Fundamental, Harrison (2000)HARRISON, K. Television viewing, fat stereotyping, body shape standards, and eating disordered symptomatology in grade school children. Communication Research, v. 27, p. 617-640, 2000. demonstrou que os meninos que mais assistiam a programas de televisão eram os mais propensos a atribuir estereótipos negativos a uma mulher com excesso de peso.

Vale destacar que vários estudos nacionais e internacionais relacionados à mídia e à obesidade estão focados nas crianças (p. ex., HARRISON, 2000HARRISON, K. Television viewing, fat stereotyping, body shape standards, and eating disordered symptomatology in grade school children. Communication Research, v. 27, p. 617-640, 2000.; SANTOS, 2003SANTOS, A. M. O excesso de peso da família com obesidade infantil. Revista Virtual Textos & Contextos, v. II, n. 2, p. 1-10, dez. 2003.; NJAINE; MINAYO, 2004NJAINE, K.; MINAYO, M. C. S. A violência na mídia como tema da área da saúde pública: revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, v. 9, n. 1, p. 201-211, 2004.; BARLOVIC, 2006BARLOVIC, I. Obesity, advertising to kids, and social marketing. Young Consumers, v. 7, n. 4, p. 26-34, 2006.; CRIVELARO et al., 2006CRIVELARO, L. P. et al. A publicidade na TV e sua influência na obesidade infantil. UNIrevista, v. 1, n. 3, p. 1-7, jul. 2006.; GODWIN, 2007GODWIN, J. H. Childhood obesity and advertising regulation: a historical, public policy and legal analysis. Lubbock: American Academy of Advertising, Conference Papers & Proceedings, p. 164-164, 2007.; SANTOS, 2009SANTOS, S. Efeitos da publicidade/marketing alimentar sobre a obesidade infantil. Monografia. Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, Universidade do Porto, Porto, Portugal, 2009.; GOUVEIA; YONETA, 2010GOUVEIA, A. G. C.; YONETA, S. S. A criança e a mídia. Revista da ABESO, v. X, n. 48, p. 1-3, dez. 2010.). Embora o público infantil não seja objetivo deste artigo, é relevante observar que há pesquisadores de diversas áreas do conhecimento interessados na discussão. Mesmo com essa interdisciplinaridade e diversas visões, parece que há um discurso alinhado, pois sempre destacam a influência da televisão (programas e comerciais publicitários) na formação da criança e que os papéis apreendidos nessa fase da vida podem influenciar nas atitudes e comportamentos enquanto adultos.

Greenberg et al. (2003)GREENBERG, B. S. et al. The portrayal of overweight and obese persons in commercial television. American Journal Public Health, v. 93, p. 1342-1348, 2003. realizaram uma análise detalhada de 1.018 personagens dos principais comerciais e programas de televisão populares de seis grandes redes de televisão norte-americanas. O objetivo foi investigar a representação de pessoas gordas e com sobrepeso no horário nobre de televisão. Os resultados revelaram que as mulheres gordas apresentavam menor probabilidade de serem atraentes, interagir com parceiros românticos e mostrar afeto físico. Os personagens obesos do sexo masculino eram menos propensos a interagir como parceiros românticos, falar sobre namoro, estar envolvidos com tarefas comportamentalmente orientadas (p. ex., interações de liderança) e geralmente eram vistos comendo e sendo usados como objeto de humor; características mais predominantes do que a inércia da energia física.

Outras discussões existentes apontam para o fato de que os meios de comunicação com o uso de propagandas e programas diversos tendem a confundir a sociedade. Veiculam ou produzem notícias, “representações e expectativas nos indivíduos com propagandas, informações e noticiários em que de um lado estimulam o uso de produtos dietéticos e práticas alimentares para o emagrecimento e, de outro, instigam o consumo de lanches tipo fast food” (SERRA; SANTOS, 2003SERRA, G. M. A.; SANTOS, E. M. Saúde e mídia na construção da obesidade e do corpo perfeito. Ciência & Saúde Coletiva, v. 8, n. 3, p. 691-701, 2003., p. 692). Desse modo, concorda-se com a lógica apresentada pelas autoras, pois “não se trata de uma decisão ou ação das empresas midiáticas, elas integram um contexto empresarial e um sistema de crenças em que há uma estreita relação entre uma suposta verdade biomédica e um desejo social e individual”. O corpo é um campo de luta que envolve diferentes saberes, práticas e imaginário social (SERRA; SANTOS, 2003SERRA, G. M. A.; SANTOS, E. M. Saúde e mídia na construção da obesidade e do corpo perfeito. Ciência & Saúde Coletiva, v. 8, n. 3, p. 691-701, 2003., p. 692). Desse modo, quando se parte para essa discussão, observa-se que não se trata apenas de uma questão de regulamentação, como é papel do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). É algo que vai além de ações interventivas e corretivas.

Opção metodológica

Para atender ao objetivo proposto, optou-se por realizar uma pesquisa do tipo exploratória descritiva de natureza qualitativa, conduzida por meio da orientação interpretativista (MORGAN; SMIRCICH, 1980MORGAN, G.; SMIRCICH, L. The case for qualitative research. Academy of Management. The Academy of Management Review, v. 5, n. 4, p. 491-500, out. 1980.; GODOY, 1995GODOY, A. S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995.; DEMO, 2009DEMO, P. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2009.). Nessa perspectiva, a compreensão do papel exercido por pessoas gordas em propagandas veiculadas na televisão e os estigmas e estereótipos relacionados se deu a partir do entendimento da maneira pela qual esses indivíduos contracenam nesses comerciais e como consumidores magros os percebem ao verem essas mensagens.

A pesquisa foi realizada em duas etapas: na primeira, 20 mensagens publicitárias, que foram veiculadas na televisão e atualmente estão disponíveis na internet, foram observadas e analisadas por três pesquisadores, com formação acadêmica na área do comportamento do consumidor (dois doutores e um doutorando). Eles realizaram as análises dos conteúdos das mensagens seguindo as orientações de Soares (2006). Para seleção dos vídeos, foram utilizadas palavras-chave no campo de consulta do website do YouTube. As palavras-chave foram: “comercial gordo”, “comerciais gordos”, “comercial pessoa obesa”, “comerciais pessoas obesas”, “comercial com gordinhos”, “comercial com gordinhas”, “propaganda gordo” e “propaganda gordinho”. Ao final da busca, foram selecionados 50 comerciais nos quais o protagonista era uma pessoa gorda. Após a análise preliminar, buscou-se o padrão de mensagens de 30 segundos, habitualmente utilizados em redes de televisão de canal aberto. Todos os comerciais foram observados e, em seguida, procedeu-se com a análise dos seus conteúdos (BARDIN, 2000BARDIN, L. Análise de conteúdo. 70. ed. Lisboa: Edições, 2000.). Verificou-se, nessa análise, que todos apresentavam semelhanças em suas estruturas e dimensões de estereótipos dos gordos, optando-se por trabalhar com 20 comerciais que refletiam o que foi observado no referencial teórico utilizado.

Na segunda etapa do estudo, procederam-se três seções de grupos focais, formados por 11, oito e nove participantes (Quadro 1), respectivamente, em cada grupo (MORGAN, 1998MORGAN, D. L. Planning focus groups. Portland State University, 1998. v. 2. Disponível em: <http://books.google.com.br>. Acesso em: 19 nov. 2012.
http://books.google.com.br...
). Esse método de coleta de dados oferece a “possibilidade de intervenção em tempo real no curso da análise e de confrontar as percepções de participantes, em suas similitudes e contradições, a respeito de um tema, ou grupo de temas, relacionados com o objetivo proposto” (RUEDIGER; RICCIO, 2004RUEDIGER, M. A.; RICCIO, V. Grupo focal: método e análise simbólica da organização e da sociedade. In: VIEIRA, M. M. F.; ZOUAIN, D. M. (Org.). Pesquisa qualitativa em administração. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 151). Sendo a obesidade um tema relativamente comum nas conversas e relações sociais, observou-se que esse método também seria o mais adequado para a realização do confronto das percepções entre os grupos de participantes após a análise das mensagens.

Quadro 1
Características dos participantes dos grupos focais.

Os informantes têm rendimentos na média de cinco mil reais e foram classificados como magros, conforme cálculo com base no peso e altura (parâmetros do Ministério da Saúde, 2012). Todas essas informações foram disponibilizadas pelos participantes antes do início de cada seção em grupo. Além dessa classificação, os sujeitos também se consideraram magros ou com peso normal. Os participantes têm características semelhantes, mas com apenas algumas variações na idade, o que indica, por conta dessa homogeneidade, a viabilidade do uso adequado do método de coleta de dados adotado (RUEDIGER; RICCIO, 2004RUEDIGER, M. A.; RICCIO, V. Grupo focal: método e análise simbólica da organização e da sociedade. In: VIEIRA, M. M. F.; ZOUAIN, D. M. (Org.). Pesquisa qualitativa em administração. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.).

Quanto aos grupos focais, procedeu-se da seguinte forma na sua condução: definição do problema, revisão da literatura, definição das características e quantidade de participantes (pessoas que tem o hábito de ver propagandas, com idade acima de 18 anos, que são magras), elaboração das questões, preparação do moderador, definição do local, transcrição das discussões e análise dos dados (MORGAN, 1998MORGAN, D. L. Planning focus groups. Portland State University, 1998. v. 2. Disponível em: <http://books.google.com.br>. Acesso em: 19 nov. 2012.
http://books.google.com.br...
; RUEDIGER; RICCIO, 2004RUEDIGER, M. A.; RICCIO, V. Grupo focal: método e análise simbólica da organização e da sociedade. In: VIEIRA, M. M. F.; ZOUAIN, D. M. (Org.). Pesquisa qualitativa em administração. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.; VERGARA, 2005VERGARA, S. C. Métodos de pesquisa em administração. São Paulo: Atlas, 2005.). Cada seção de grupo focal teve duração total de uma hora e 15 minutos. Nos primeiros 20 minutos, os comerciais foram apresentados de maneira contínua sem paradas e, ao final, houve uma reapresentação seguindo a mesma ordem da apresentação anterior. Das propagandas apresentadas, duas eram internacionais, no entanto, a tradução e as legendas foram inseridas.

A sala para a realização dos grupos de discussão foi preparada seguindo as recomendações de Ruediger e Riccio (2004)RUEDIGER, M. A.; RICCIO, V. Grupo focal: método e análise simbólica da organização e da sociedade. In: VIEIRA, M. M. F.; ZOUAIN, D. M. (Org.). Pesquisa qualitativa em administração. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004., no entanto, esta não tinha formato profissional (separada com vidro espelhado). As seções ocorreram em local acordado entre as partes e foi gravada com o consentimento prévio dos participantes (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, M. I. P. Variações sobre a técnica do gravador no registro da informação viva. São Paulo: T. A. Queirós, 1991.). Foi realizada a transcrição ipsis litteris e o tratamento do material empírico por meio da análise temática (conteúdo), que consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a fala dos entrevistados (BARDIN, 2000BARDIN, L. Análise de conteúdo. 70. ed. Lisboa: Edições, 2000.). Essa técnica privilegia o conteúdo dos relatos, sendo estes confrontados com os conceitos utilizados, permitindo-se avançar no conhecimento e entendimento sobre o tema estudado. O corpus de pesquisa foi constituído pelas análises dos conteúdos dos vídeos e das respostas originadas dos grupos.

Para uma melhor apreensão e posterior análise dos dados, procedeu-se da seguinte forma: a) pré-análise; b) exploração do material; c) tratamento dos resultados e interpretação (BARDIN, 2000BARDIN, L. Análise de conteúdo. 70. ed. Lisboa: Edições, 2000.). Já na primeira etapa, teve-se a preocupação de descrever detalhadamente as características observadas nas propagandas selecionadas, organizando as informações a partir dos tópicos do roteiro utilizado. O roteiro para as seções de grupo focal foi dividido em três partes: a) identificação do protagonista, b) características comportamentais e c) percepção e imagem (ver Quadro 2). Em seguida, as avaliações dos participantes dos grupos foram organizadas na mesma ordem, procedendo-se com o mesmo método de análise, no caso, de conteúdo.

Quadro 2
Roteiro de pesquisa e protocolo de análise.

Na análise de conteúdo, seguiram-se as orientações de Ander-Egg (1978)ANDER-EGG, E. Introducción a las técnicas de investigación social: para trabajadores sociales. 7. ed. Buenos Aires: Humanitas, 1978.: a) estabelecimento da unidade de análise: todos os termos ou vocábulos e palavras-chave originadas dos grupos focais, bem como os temas de uma proposição, afirmativa ou sentença; b) determinação das categorias: as escolhidas foram a de matéria – refere-se a assuntos abordados na comunicação – e de pessoas e atores – subdividem-se em status pessoal e traços de caráter; c) seleção de uma amostra do material de análise. A partir da identificação dos principais temas relativos aos estereótipos e estigmas identificados na análise do conteúdo do corpus, elaborou-se uma figura representativa do ser gordo na visão dos participantes que são magros (JODELET, 2001JODELET, D. (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.).

A identificação dos grupos e participantes foi realizada com as letras G e P, respectivamente. Após a análise temática dos conteúdos e interpretação das duas etapas do estudo, procedeu-se com a triangulação dos dados (DENZIN, 1978DENZIN, N. K. The research act: a theoretical introduction to sociological methods. 2. ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1978.). No tocante às dimensões ou categorias analisadas, definiram-se, preliminarmente, três pertinentes ao objetivo proposto, alinhado ao protocolo de análise. Porém, considerou-se que outras poderiam surgir durante o processo de análise dos dados empíricos. Esse procedimento é definido como grade de análise mista (VERGARA, 2005VERGARA, S. C. Métodos de pesquisa em administração. São Paulo: Atlas, 2005.). Desse modo, tendo como base a literatura, seguida de algumas adaptações para o contexto estudado, as categorias estabelecidas a priori foram: papel exercido nas propagandas (HARRISON, 2000HARRISON, K. Television viewing, fat stereotyping, body shape standards, and eating disordered symptomatology in grade school children. Communication Research, v. 27, p. 617-640, 2000.; GREENBERG et al., 2003GREENBERG, B. S. et al. The portrayal of overweight and obese persons in commercial television. American Journal Public Health, v. 93, p. 1342-1348, 2003.), estereótipos criados pela figura do(a) gordo(a) (STAFFIERI, 1967STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.; LERNER, 1969LERNER, R. M. The development of stereotyped of body-build stereotypes in males. Child Development, v. 40, p. 137-141, 1969.; WEISS, 1980WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.; MCADAMS; MOUSSAVI; KLASSEN, 1992McADAMS, T.; MOUSSAVI, F.; KLASSEN, M. Employee appearance and the Americans with disabilities act: an emerging issue? Employee Responsibilities and Rights Journal, v. 5, n. 4, p. 323-338, 1992. apud BELLIZZI; HASTY, 1998BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.; PUHL; BROWNELL, 2003PUHL R. M.; BROWNELL, K. D. Psychosocial origins of obesity stigma: toward changing a powerful and pervasive bias. The International Association for the Study of Obesity. Obesity Reviews, n. 4, p. 213-227, 2003.; FELIPPE et al., 2003FELIPPE, F. M. L. et al. Obesidade zero – a cultura do comer na sociedade de consumo. Porto Alegre: Sulina, 2003.), imagem e estigma (STAFFIERI, 1967STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.; LERNER, 1969LERNER, R. M. The development of stereotyped of body-build stereotypes in males. Child Development, v. 40, p. 137-141, 1969.; WEISS, 1980WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.; CRANDALL, 1994CRANDALL, C. S. Prejudice against fat people: ideology and self-interest. Journal of Personality and Social Psychology, v. 66, n. 5, p. 882-882, 1994.; ROEHLING, 1999ROEHLING, M. V. Weight-based discrimination in employment: psychological and legal aspects. Personnel Psychology, v. 52, n. 4, p. 969-1017, 1999.). Todas essas categorias foram descritas de acordo com a visão dos participantes magros, enquanto consumidores, sendo consideradas também as análises dos comerciais.

Descrição das propagandas e associação dos conteúdos à teoria

Nas análises iniciais relacionadas ao conteúdo das propagandas, percebeu-se que praticamente todos os protagonistas das mensagens publicitárias selecionadas eram do sexo masculino. Em apenas dois comerciais (Renault Logan e Matte Leão), mulheres gordas contracenavam, mas não faziam o papel principal, apresentando-se de maneira discreta. Isso nos remete a uma reflexão, pois, segundo Brown e Bentley-Condit (1997BROWN, P. J.; BENTLEY-CONDIT, V. K. Culture, evolution and obesity. In: BRAY, G. A.; BOUCHARD, C.; JAMES, W. P. T. (Org.). Handbook of obesity. New York: Marcel Dekker, 1997. p. 143-155. apud SUDO; LUZ, 2007)SUDO, N.; LUZ, M. T. O gordo em pauta: representações do ser gordo em revistas semanais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 4, p. 1033-1040, 2007., na ditadura da magreza a mulher é mais atingida do que os homens.

O Quadro 3 apresenta um resumo contendo as 20 propagandas, as respectivas empresas, produtos e anos de veiculação, seguidos da descrição dos papéis exercidos pelas pessoas gordas e os estereótipos percebidos nas análises, identificados à luz da teoria. As empresas que veicularam as mensagens publicitárias atuam em diversos segmentos de mercado, sendo todas de médio ou grande porte. As demais selecionadas têm atuação nacional e internacional, exceto Elsys, Sanauto, Diário Gaúcho e Farmácias Pague Menos, que têm suas atividades concentradas apenas no Brasil, e a Gran Bingo VTR, apenas no Chile.

Quadro 3
Identificação da empresa, descrição dos papéis e estereótipos criados.

A identificação dos estereótipos nos vídeos se deu com base na literatura revisada, e estas foram identificadas pelos pesquisadores ao analisarem as propagandas. Primeiro, a análise foi feita individualmente por cada pesquisador e, em seguida, estes se reuniram com o intuito de confrontar seus achados individuais, ocorrendo uma concordância entre as categorias identificadas. Conforme descrito no Quadro 3, os temas relacionados aos estereótipos identificados foram associados aos estudos analisados.

Resultados e análises

A partir das categorias de análise identificadas com base na literatura, apresentam-se os resultados e as análises do corpus gerado por meio dos grupos focais, alinhados aos conteúdos dos comerciais.

O papel desempenhado pelos gordos nas mensagens publicitárias

Muitos risos e gargalhadas. Foi a maneira como os participantes dos três grupos focais se comportaram durante a apresentação das mensagens publicitárias. Porém, após a observação dos comerciais e agrupamentos das falas no momento da interação, alguns comentários foram surgindo e, de maneira unânime nos três grupos, os sujeitos indicaram que as pessoas gordas estavam sendo “usadas” como objeto para provocar o riso, como palhaços. Por meio da observação de uma participante, todos do G1 passaram a concordar que, na verdade, os protagonistas estavam em situações desfavorecidas. Comenta: “em nenhum desses comerciais eu vi algum desses atores principais protagonizando em cenas boas...” [P7].

No comercial da Procter & Gamble, por exemplo, fica clara a associação direta ao “produto bom” com a “pessoa magra” e o “produto ruim” com a “pessoa gorda”. Ou seja, o homem magro toma um ótimo banho com água quente e sabão líquido de qualidade (foco do comercial), e o gordo com água fria, não consegue tomar banho porque é impossível passar um sabão em pó no corpo, ficando em uma situação sofrível. Um dos participantes comenta, ao final das visualizações: “o gordo é sempre associado ao ridículo ou comparado a um produto ruim...” [G2, P6].

Outra característica de inferioridade bem observada foi aquela em que o homem gordo, no comercial das piscinas Igui, com aparência de riqueza, tomando banho de piscina e pedindo ao mordomo bebidas e churrasco, estava apenas sonhando, dando a entender que em nenhum momento poderia ter uma vida com essas mordomias. Ficaria apenas no sonho, porque o gordo era o motorista e essa condição deveria ser, na verdade, a realidade do seu chefe. Esses dois exemplos servem para facilitar a discussão, porém, percebe-se que em todas as propagandas o desfavorecimento relacionado à incapacidade, preguiça e incompetência é predominante, alinhando-se com a literatura sobre como o mercado vê as pessoas obesas (ver STAFFIERI, 1967STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.; LERNER, 1969LERNER, R. M. The development of stereotyped of body-build stereotypes in males. Child Development, v. 40, p. 137-141, 1969.; WEISS, 1980WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.; SARGENT; BLANCHFLOWER, 1994SARGENT, J. D.; BLANCHFLOWER, D. G. Obesity and stature in adolescence and earnings in young adulthood. Analysis of a British birth cohort. Arch Pediat Adol Med, v. 148, p. 681-687, 1994.; ELIAS et al., 2003ELIAS, M. F. et al. Lower cognitive function in the presence of obesity and hypertension: the Framing-ham heart study. International Journal of Obesity, v. 27, p. 260-280, 2003.). Relatos indicam que o fato de o “engraçado” predominar nos comerciais acaba fazendo com que outros aspectos, aos quais os protagonistas enquanto gordos são submetidos, não sejam percebidos à primeira vista. Por exemplo, no momento das discussões, disseram:

“[...] quando eu vi a primeira ‘propaganda’ não tinha me atentado para ver o papel que o gordo exercia, mas depois da segunda, comecei a perceber que embora sejam engraçados, eles passam por muitas situações difíceis e constrangedoras” [G1, P7].

“Concordo, lembrei que tenho um amigo gordo e ele é muito engraçado, mas já percebi que quando vamos sair com novas pessoas e eu apresento ele, alguns tendem a excluí-lo das conversas, sabe... Nossa!... Lembro agora que às vezes ele é tratado como estranho e fica no canto, quando não está fazendo palhaçadas” [G3, P1].

A lembrança de estranho faz com que se volte ao comercial do Greenpeace. Como se vê nas descrições, ele começa com uma música de Michael Jackson e, em seguida, aparece um homem gordo dançando e andando com uma camisa de plástico, acompanhado por outros dois homens magros. Logo, aparece a mensagem: “Estranho? Estranho é quem usa roupa de pano, mas tem atitude de plástico. Não pense descartável, aja sustentável”. A questão mostra que o estranho não está apenas relacionado à roupa de saco, mas também em quem está usando. Nesse caso, se fosse um homem magro com corpo perfeito, causaria a mesma sensação de estranheza? Algo a se pensar, considerando que quando os gordos são vistos como repugnantes e são censurados, são tratados e percebidos como estranhos.

Papéis que remetem à preguiça, desleixo, indisciplina e não confiabilidade são percebidos nas mensagens publicitárias. Como no comercial da Personal Care Academia, no qual, inicialmente, um homem gordo aparece fazendo um exercício de barra, e só depois é mostrado que ele está tendo ajuda de outros dois homens fortes, com corpo perfeito, indicando que ele estava “trapaceando”. Ao final do comercial, aparece a mensagem: “Tá na hora de treinar de verdade”. Veja-se o relato de um participante quando esse comercial terminou: “... rapaz, gordo é preguiçoso mesmo, o cara tava só enganando na barra... quando eu vi, pensei que era ele mesmo e já estava me sentindo mal aqui porque sou magro e não consigo... risos...” [G1, P3]. Weiss (1980)WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980., por exemplo, já havia destacado, ainda na década de 1980, que o obeso tende a ser associado à preguiça e dependência, sinalizando que essa associação permaneceria por muitos anos (1987 apud BELLIZZI; HASTY, 1998BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.).

As características observadas são comuns nos papéis exercidos por pessoas gordas em comerciais e se alinham aos achados de Weiss (1980)WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.. Por outro lado, observa-se que nos papéis houve o predomínio do lado alegre e extrovertido, mas que isso é alcançado em virtude do modo de ser do gordo, considerado atrapalhado, inseguro e insalubre (p. ex., BELLIZZI; HASTY, 1998BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.). Desse modo, alguns estereótipos são criados e, além do preconceito social que já existe atualmente, ganham reforço por meio do discurso midiático.

Estereótipos criados pela figura do(a) gordo(a)

Viu-se na revisão da literatura que, ao se aproximar de uma pessoa no estado de obesidade, as pessoas magras tendem a procurar estabelecer causas e mostram suas reações a essas pessoas (RUSH, 1998RUSH, L. L. Affective reactions to multiple social stigmas. The Journal of Social Psychology, v. 138, n. 4, p. 421-430, ago. 1998.) por meio de comentários indiretos, além de gerar percepções sobre um determinado grupo a partir de interpretações de cunho negativo. Isso explica, por exemplo, a fala do participante [G1, P3], quando destaca que estava se sentindo mal porque viu o gordo fazendo a barra, algo que ele normalmente não conseguiria fazer. É sabido que cada indivíduo já é constituído de conhecimentos e experiências anteriores que remetem a avaliações no seu contexto atual. Porém, a cena do comercial fez com que ele fizesse automaticamente essa associação, evidenciando o estereótipo de incapacidade associado ao homem gordo, opinião talvez já formada na sua mente.

Em razão de demonstrações dessa natureza, os estereótipos vão sendo criados e fomentados nas relações sociais. Aqui, a partir das análises, é possível notar que a mídia, além de reforçar os já existentes, cria novos, associados ao personagem gordo, como no caso da empresa Prezunic, que apresenta o homem gordo em uma situação de “sofrimento”. E para conseguir um “filezinho” depois, ele precisa sofrer comendo um prato de salada. Ou seja, são “sofredores” por natureza.

Nesse sentido, observou-se que os estereótipos que remetem aos estigmas muitas vezes são reforçados pela mídia, nesse caso, nas mensagens publicitárias. Os estereótipos de engraçados levam ao riso, mas, por exemplo, podem gerar avaliações negativas por parte dos consumidores. Veja-se este relato: “[...] é até engraçado o papel que eles fazem, mas o problema é que sempre estão em situação difícil, e os vi nas propagandas sobre como bobos e atrapalhados... parando para pensar não sei se isso é legal” [G1, P11]. No momento desse comentário, outros participantes destacam:“[...] é, agora pensando melhor, não entendo porque eles aceitam fazer papel de bobo... acho que existem várias maneiras de se fazer humor e acho que não precisa associar o gordo ao ridículo para chamar atenção do público...” [G1, P11]. “[...] as empresas deveriam evitar esse tipo de associação com a imagem dos gordinhos já que sofrem preconceito em todo canto” [G3, P7].

Nos primeiros momentos, não se observou uma visão crítica dos participantes no que se refere aos papéis das pessoas gordas nos comerciais. No entanto, ao longo das discussões em todas as seções, os sujeitos passaram a analisar as situações e, embora concordassem que o humor era o item central dos comerciais por conta das características (estereótipos) dos personagens, começaram a ver o lado complexo dessas associações. Todavia, a imagem que destacaram foi de pessoas engraçadas fazendo papel de ridículo e de que as empresas vendiam uma imagem negativa do gordo. É possível notar isso, por exemplo, no seguinte comentário: “[...] alguns comerciais vendem uma imagem negativa do gordo e isso é considerado como engraçado por quem vê... eu achei engraçado... todos, mas parece que fica na cabeça que todo gordo é assim mesmo...” [G3, P2].

É importante lembrar aqui que os estímulos que são percebidos muitas vezes são ambíguos. Desse modo, o consumidor determina seu significado com base nas suas experiências, expectativas e necessidades anteriores. Tende a projetar seus próprios desejos ou pressuposições nos produtos e anúncios. Porém, já é considerado pelos profissionais de comunicação de marketing que um estímulo pode gerar consequências contrárias (SOLOMON, 2011SOLOMON, M. R. O comportamento do consumidor: comprando, possuindo e sendo. 9. ed. Porto Alegre: Bookman, 2011.), o que leva a perceber que associações como essas estereotipadas vinculadas à figura do gordo podem gerar interpretações diferenciadas para os consumidores.

Imagem e estigma

Qual a imagem que fica dos personagens principais após os comerciais? As respostas dos participantes foram: “os gordos são engraçados e bobos; são incapazes e mentirosos; são feios, horríveis, estranhos, mas engraçados; a única forma que tem de chamar atenção é pelo riso, pois não tem beleza nenhuma; estão para divertir e conseguir vender os produtos da empresa; estranhos, desajeitados; os gordinhos servem para os magros fazerem chacota, pois são ‘abestalhados’, bobos; estão fora dos padrões de beleza”. A imagem que fica está relacionada aos estigmas vinculados ao ser gordo. Como se viu na revisão da literatura, Crandall (1994)CRANDALL, C. S. Prejudice against fat people: ideology and self-interest. Journal of Personality and Social Psychology, v. 66, n. 5, p. 882-882, 1994. propôs que o estigma da obesidade é resultante de uma ideologia social que utiliza atribuições negativas para explicar os resultados ruins da vida de pessoas nessa condição. Ou seja, como todos os participantes da pesquisa eram magros, observou-se claramente que foi fácil identificar atribuições negativas à imagem dos gordos nos comerciais.

Essa última suposição é válida porque, no início da seção, houve o seguinte comentário: “gordo é gordo porque quer” [G1, P4] e, em seguida, outros participantes concordaram, mas sem afirmação verbal, apenas corporal. Crandall (1994)CRANDALL, C. S. Prejudice against fat people: ideology and self-interest. Journal of Personality and Social Psychology, v. 66, n. 5, p. 882-882, 1994. afirma que ainda existe uma percepção generalizada de que os indivíduos obesos são os próprios responsáveis por sua condição. Isso porque o ganho ou perda de peso está sob o controle pessoal, associando-se o ser gordo à falta de controle próprio e autodisciplina, bem como à preguiça (STAFFIERI, 1967STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.; LERNER, 1969LERNER, R. M. The development of stereotyped of body-build stereotypes in males. Child Development, v. 40, p. 137-141, 1969.; WEISS, 1980WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.). Isso tende a reforçar a crença de que a causa da obesidade é resultado de impulsos e comportamentos não controlados (ROEHLING, 1999ROEHLING, M. V. Weight-based discrimination in employment: psychological and legal aspects. Personnel Psychology, v. 52, n. 4, p. 969-1017, 1999.). Ora, se ainda há esse tipo de percepção por parte das pessoas e nas imagens formadas predominam características negativas, dificilmente os estigmas da obesidade serão extintos nas relações sociais.

O ser gordo em comerciais na ótica do consumidor magro

Para entender melhor como o indivíduo gordo é visto socialmente, na visão dos consumidores magros, elaborou-se uma figura que representa essa percepção. Nesse sentido, a partir da literatura analisada e dos significados atribuídos pelos participantes da pesquisa, a Figura 1 foi elaborada.

Figura 1
O ser gordo, a sociedade, seus papéis em comerciais e a imagem do consumidor.Fonte: Os autores (2015).

Conforme demonstrado na Figura 1, a partir dos resultados e com base na literatura analisada, separou-se em um quadrante quais são os estereótipos predominantes nas relações sociais referentes ao ser gordo e seus papéis exercidos nas mensagens publicitárias. Os estereótipos foram agrupados conforme as características principais predominantes nos comerciais analisados: a) não confiável, incompetente, não inteligente e preguiçoso estão presentes nos comerciais em que a pessoa gorda aparece trapaceando em alguma atividade física; b) censurável e repugnante estão relacionados ao preconceito de quando a pessoa gorda se interessa por algo que, supostamente, não irá possuir; c) relaxado, sem noção e incapaz relacionam-se aos comerciais nos quais a pessoa gorda não tem capacidade de realizar alguma atividade física; e d) engraçado, característica predominante em todas as mensagens publicitárias, aparece quando a pessoa gorda participa de cenas trágicas e atrapalhadas.

Dentro apenas do quadrante maior, tem-se as percepções dos participantes do estudo. No primeiro agrupamento (linhas pontilhadas), inseriram-se as características dos gordos mais indicadas pelos participantes predominantes em todos os comerciais; todas relacionadas ao humor, tais como: engraçados, palhaços, atrapalhados e bobos. Na literatura, o estereótipo de engraçado pouco aparece nos achados de várias pesquisas (p. ex., STAFFIERI, 1967STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.; WEISS, 1980WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.; ELIAS et al., 2003ELIAS, M. F. et al. Lower cognitive function in the presence of obesity and hypertension: the Framing-ham heart study. International Journal of Obesity, v. 27, p. 260-280, 2003.). Porém, neste estudo, por causa da exaltação dessa característica nos comerciais como forma de atrair a atenção do consumidor, esse aspecto apareceu com maior frequência. O estigma mais associado referente ao papel do gordo, vinculado a essas características, foi denominado “cômico”.

No segundo agrupamento, os estereótipos censurável e repugnante foram relacionados também ao preconceito de quando a pessoa gorda se interessa por algo que ela, supostamente, não irá possuir, alinhando-se ao que se observou anteriormente. O estigma referente ao papel do gordo, vinculado a essas características, foi denominado “estranho”. Por outro lado, no terceiro agrupamento, conforme as análises dos resultados, verificou-se que na visão dos participantes as características de preguiçosos, relaxados, sem noção e incapazes estavam relacionadas à fraqueza. Desse modo, o estigma referente ao papel do gordo, vinculado a essas características, foi denominado “fraco”.

Considerações finais

Com base nas análises do conteúdo das propagandas e dos relatos dos participantes dos grupos de discussão, verificou-se que o papel desempenhado por pessoas gordas nas propagandas investigadas está vinculado diretamente ao ato humorístico, o que a princípio não é algo negativo. O que chamou a atenção foi que a associação entre os estereótipos do ser gordo vistos nos comerciais e já presentes nas relações sociais estimulam, de um lado, o preconceito, e de outro, por conta da maneira pela qual exerciam seus papéis e suas diferenças físicas, o estigma; na visão dos indivíduos que são magros. Dessa forma, com base nas análises dos resultados dos grupos, por meio dos seus comportamentos e estereótipos, os gordos desempenham papéis como protagonistas de comerciais nos quais sua imagem tende a ser utilizada para atrair a atenção do consumidor pelo ridículo, sendo isso interpretado como algo cômico. Por isso, estigmas como “cômicos”, “estranhos” e “fracos” são formados a partir dos estereótipos vinculados à obesidade e papéis desenvolvidos nas propagandas analisadas.

Foi possível também verificar que, a partir do momento que os participantes dos grupos de discussão passaram a refletir melhor sobre as propagandas, alguns apresentaram relatos de interpretação negativa, mesmo tendo achado o comercial engraçado. Especula-se que, nesse momento, eles tiveram tempo de elaborar julgamentos que talvez em uma exibição dos comerciais na mídia televisiva, em um ambiente natural (não de pesquisa), não teriam a avaliação aqui apresentada. Com isso, é possível supor que, a partir do momento que os consumidores passarem a perceber o que de fato está por trás de discursos do tipo preconceituosos, poderão fazer associações negativas frente à empresa e seus produtos. Desse modo, a suposição inicial torna-se relevante, pois se pressupõe que, quando as comunicações são constituídas e interpretadas por meio de mecanismos que instigam a discriminação (mesmo disfarçadas com o uso do humor), sua essência pode influenciar negativamente na avaliação da empresa e do produto por parte dos consumidores; quando se sabe que a obesidade é uma doença e não uma questão estética simples.

Ao mesmo tempo em que as discussões sobre o corpo perfeito podem gerar problemas sociais por meio do estigma, acredita-se também que nem tudo que é produzido pelos profissionais de marketing é de extremo interesse para os consumidores e a sociedade. Hoje, os padrões de consumo direcionados ao corpo perfeito estão imbuídos de aspectos egoístas, que proporcionam o individualismo, por meio de arquétipos dificilmente alcançáveis pela maioria das pessoas, gerando ansiedade e insatisfação em alguns. Percebe-se que algumas campanhas de marketing tendem a exaltar de maneira deliberada tais padrões físicos como sendo o “ideal” (magro), colocando sobre o “não ideal” (gordo) a máscara do ridículo. Tudo isso com o objetivo de atrair a atenção do consumidor. A questão é que é difícil mensurar as consequências sociais originadas de tais ações de cunho mercadológico. Por conta disso, acredita-se estar longe de fazer algum tipo de apologia ao corpo gordo.

A principal contribuição deste estudo foi identificar, principalmente no contexto brasileiro, que as propagandas nas quais gordos são protagonistas utilizam-se do humor, o que geralmente é bem recebido pela audiência. No entanto, verificou-se que o humor encobre preconceitos, estereótipos e estigmas, reforçando a estética do corpo perfeito (magro, sarado). Ser gordo não é desejável na sociedade de consumo atual. Os rótulos negativos são muitos, conforme apontado na literatura e aqui, pelos participantes magros dos grupos focais. O uso de vídeos e grupos de discussões permitiu visualizar o que estava escondido por trás do uso do humor no conteúdo das mensagens. Desse modo, a apresentação de grupos mais vulneráveis a sanções sociais, como gordos, negros, gays, entre outros, deve levar em consideração o não reforço de estereótipos negativos que levem a uma avaliação negativa de marcas associadas a esse tipo de comunicação. O humor pode ser agradável de ser visto, mas a mensagem não pode contribuir para o bullying ou manutenção de comunicações não mais adequadas na atualidade.

O referencial teórico e os resultados do estudo permitem identificar alguns pontos que merecem ser investigados futuramente. Torna-se relevante verificar como os consumidores avaliam as empresas e/ou produtos quando percebem que suas campanhas publicitárias reforçam o preconceito e, consequentemente, o estigma social. Outro ponto seria investigar qual lógica predomina no processo de desenvolvimento das comunicações de marketing quando se pretende trabalhar com pessoas gordas como protagonistas. Pela sua delimitação, ou melhor, o fato de ter sido analisado apenas um tipo de comunicação (comerciais de televisão), este estudo apresenta apenas um viés de uma problemática bastante ampla.

Destaca-se como limitações algumas interpretações de cunho provocativo, bem como as adaptações realizadas no método. Certamente, também há limitações relacionadas às escolhas metodológicas aqui empregadas, como ter realizado apenas grupos focais na coleta de dados, bem como a análise de conteúdo, que pode ter o viés subjetivo típico das analises qualitativas. Mas, acredita-se que o embasamento teórico realizado, o cuidado nos procedimentos e sistematizações na condução da pesquisa permitem que os resultados sejam academicamente válidos e estimulem a realização de estudos com uso de procedimentos metodológicos diversificados para ampliar o conhecimento na área teórica deste artigo. Apesar dessas limitações, o estudo procura também contribuir com a disseminação da pesquisa transformativa do consumidor no contexto brasileiro, ao investigar um grupo de consumidores negligenciados ou tratados de forma preconceituosa nas comunicações de marketing; provocando uma discussão de que nem sempre o que é engraçado, como o humor, está desprovido de preconceito velado, causando dor e pesar psicológico a grupos específicos de consumidores.

Referências

  • ABESO. Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade. Histórico 2012. Disponível em: <http://www.abeso.org.br/pagina/296/historico.shtml>. Acesso em: 7 nov. 2012.
    » http://www.abeso.org.br/pagina/296/historico.shtml
  • ANDER-EGG, E. Introducción a las técnicas de investigación social: para trabajadores sociales. 7. ed. Buenos Aires: Humanitas, 1978.
  • ARNOULD, E. J.; THOMPSON, C. Consumer culture theory (CCT): twenty years of research. Journal of Consumer Behavior, v. 31, p. 868-883, mar. 2005.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo 70. ed. Lisboa: Edições, 2000.
  • BARLOVIC, I. Obesity, advertising to kids, and social marketing. Young Consumers, v. 7, n. 4, p. 26-34, 2006.
  • BELLIZZI, J. A.; HASTY, R. W. Territory assignment decisions and supervising unethical selling behavior: The effects of obesity and gender as moderated by job-related factors. The Journal of Personal Selling & Sales Management, v. 18, n. 2, p. 35-49, 1998.
  • BROWN, P. J.; BENTLEY-CONDIT, V. K. Culture, evolution and obesity. In: BRAY, G. A.; BOUCHARD, C.; JAMES, W. P. T. (Org.). Handbook of obesity New York: Marcel Dekker, 1997. p. 143-155.
  • CRANDALL, C. S. Prejudice against fat people: ideology and self-interest. Journal of Personality and Social Psychology, v. 66, n. 5, p. 882-882, 1994.
  • CRIVELARO, L. P. et al. A publicidade na TV e sua influência na obesidade infantil. UNIrevista, v. 1, n. 3, p. 1-7, jul. 2006.
  • DEMO, P. Metodologia do conhecimento científico São Paulo: Atlas, 2009.
  • DENZIN, N. K. The research act: a theoretical introduction to sociological methods. 2. ed. New York: McGraw-Hill Book Company, 1978.
  • DURET, P.; ROUSSEL, P. Le corps et ses sociologies Paris: Nathan, 2003.
  • ELIAS, M. F. et al. Lower cognitive function in the presence of obesity and hypertension: the Framing-ham heart study. International Journal of Obesity, v. 27, p. 260-280, 2003.
  • ENGEL, J. F.; KOLLAT, D. T.; BLACKWELL, R. D. Consumer behavior New York: Holt Reinert & Winston, 1968.
  • FELIPPE, F. M. L. et al. Obesidade zero – a cultura do comer na sociedade de consumo. Porto Alegre: Sulina, 2003.
  • FIRAT, A. F.; VENKATESH, A. Libertatory postmodernism and the reenchantment of consumption. Journal of Consumer Research, v. 22, p. 239-267, dez. 1995.
  • GODOY, A. S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995.
  • GODWIN, J. H. Childhood obesity and advertising regulation: a historical, public policy and legal analysis. Lubbock: American Academy of Advertising, Conference Papers & Proceedings, p. 164-164, 2007.
  • GREENBERG, B. S. et al. The portrayal of overweight and obese persons in commercial television. American Journal Public Health, v. 93, p. 1342-1348, 2003.
  • GOFFMAN, E. Estigma 4. ed. São Paulo: LTC, 1988.
  • GOUVEIA, A. G. C.; YONETA, S. S. A criança e a mídia. Revista da ABESO, v. X, n. 48, p. 1-3, dez. 2010.
  • HARRISON, K. Television viewing, fat stereotyping, body shape standards, and eating disordered symptomatology in grade school children. Communication Research, v. 27, p. 617-640, 2000.
  • HUNTE, H. E. R.; WILLIAMS, D. R. The association between perceived discrimination and obesity in a population-based multiracial and multiethnic adult sample. American Journal of Public Health, United States, Washington, v. 99, n. 7, p. 1285-92, 2009.
  • JODELET, D. (Org.). As representações sociais Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.
  • KLASSEN, M. L. The cognitive basis of social judgment: the role of stereotypical beliefs in the processing of information about obese and thin people. Dissertação (Doutorado)–Departament of Psycology, Kansas State University, 1987.
  • LERNER, R. M. The development of stereotyped of body-build stereotypes in males. Child Development, v. 40, p. 137-141, 1969.
  • MATTOS, R. S.; LUZ, M. T. Sobrevivendo ao estigma da gordura: um estudo socioantropológico sobre obesidade. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 19, n. 2, 2009.
  • McADAMS, T.; MOUSSAVI, F.; KLASSEN, M. Employee appearance and the Americans with disabilities act: an emerging issue? Employee Responsibilities and Rights Journal, v. 5, n. 4, p. 323-338, 1992.
  • MORGAN, D. L. Planning focus groups Portland State University, 1998. v. 2. Disponível em: <http://books.google.com.br>. Acesso em: 19 nov. 2012.
    » http://books.google.com.br
  • MORGAN, G.; SMIRCICH, L. The case for qualitative research. Academy of Management. The Academy of Management Review, v. 5, n. 4, p. 491-500, out. 1980.
  • NJAINE, K.; MINAYO, M. C. S. A violência na mídia como tema da área da saúde pública: revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, v. 9, n. 1, p. 201-211, 2004.
  • PEREIRA, S. J. N.; AYROSA, E. A. T. Between two worlds: an ethnographic study of gay consumer culture in Rio de Janeiro. BAR – Brazilian Administration Review, v. 9, n. 2, p. 211-228, abr./jun. 2012.
  • PUHL R. M.; BROWNELL, K. D. Psychosocial origins of obesity stigma: toward changing a powerful and pervasive bias. The International Association for the Study of Obesity Obesity Reviews, n. 4, p. 213-227, 2003.
  • PUHL, R. M.; HEUER, C. A. Obesity stigma: important considerations for public health. American Journal of Public Health, v. 100, n. 6, p. 1019-1028, jun. 2010.
  • QUEIROZ, M. I. P. Variações sobre a técnica do gravador no registro da informação viva São Paulo: T. A. Queirós, 1991.
  • ROEHLING, M. V. Weight-based discrimination in employment: psychological and legal aspects. Personnel Psychology, v. 52, n. 4, p. 969-1017, 1999.
  • RUEDIGER, M. A.; RICCIO, V. Grupo focal: método e análise simbólica da organização e da sociedade. In: VIEIRA, M. M. F.; ZOUAIN, D. M. (Org.). Pesquisa qualitativa em administração. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
  • RUSH, L. L. Affective reactions to multiple social stigmas. The Journal of Social Psychology, v. 138, n. 4, p. 421-430, ago. 1998.
  • SANTOS, A. M. O excesso de peso da família com obesidade infantil. Revista Virtual Textos & Contextos, v. II, n. 2, p. 1-10, dez. 2003.
  • SANTOS, S. Efeitos da publicidade/marketing alimentar sobre a obesidade infantil Monografia. Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, Universidade do Porto, Porto, Portugal, 2009.
  • SARGENT, J. D.; BLANCHFLOWER, D. G. Obesity and stature in adolescence and earnings in young adulthood. Analysis of a British birth cohort. Arch Pediat Adol Med, v. 148, p. 681-687, 1994.
  • SERRA, G. M. A.; SANTOS, E. M. Saúde e mídia na construção da obesidade e do corpo perfeito. Ciência & Saúde Coletiva, v. 8, n. 3, p. 691-701, 2003.
  • SCARABOTO, D.; FISCHER, E. Frustrated fatshionistas: an institutional theory perspective on consumer quests for greater choice in mainstream markets. Journal of Consumer Research, v. 39, n. 6, p. 1234-1257, abr. 2013.
  • SCHAU, H. J. Consumer imagination, identity and self-expression. NA – Advances in Consumer Research, Provo, UT: Association for Consumer Research, v. 27, p. 50-56, 2000.
  • SOLOMON, M. R. O comportamento do consumidor: comprando, possuindo e sendo. 9. ed. Porto Alegre: Bookman, 2011.
  • STAFFIERI, J. R. A study of social stereotypes of body image in children. Journal of Pesonality and Social Psychology, v. 7, p. 101-104, 1967.
  • STENZEL, L. M.; GUARESCHI, P. A. A dialética obesidade/magreza: um estudo em representações sociais com adolescentes. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, Especial Temática, p.183-194, 2002.
  • SUDO, N.; LUZ, M. T. O gordo em pauta: representações do ser gordo em revistas semanais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 4, p. 1033-1040, 2007.
  • VERGARA, S. C. Métodos de pesquisa em administração São Paulo: Atlas, 2005.
  • WEISS, E. Perceived self-infliction and evaluation of obese and handicapped persons. Perceptual and Motor Skills, v. 50, 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2015
  • Aceito
    18 Jan 2016
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Av. Reitor Miguel Calmon, s/n 3o. sala 29, 41110-903 Salvador-BA Brasil, Tel.: (55 71) 3283-7344, Fax.:(55 71) 3283-7667 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revistaoes@ufba.br