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Quando processos de organizar se chocam: hibridismos no espaço social de favelas

When organizing process collide: hybridisms in favela’s social space

Resumo

Neste artigo, nos propomos a responder à seguinte questão: como o encontro entre os processos de organizar de representantes do Estado e os processos de organizar dos moradores de favelas se refletem no espaço social? Para tal, foi realizada uma pesquisa de campo, de inspiração etnográfica, em duas favelas cariocas, com duração de 1 ano e 4 meses, que contou com observação participante e 91 entrevistas com moradores de favelas e representantes do Estado. As notas de campo e as entrevistas gravadas e transcritas totalizaram mais de 3.200 páginas de dados, que foram analisadas com base em teoria fundamentada. Observou-se que, enquanto processos de organizar de representantes do Estado seguem padrões de lentidão e descontinuidade, os processos de organizar de moradores de favela seguem padrões de agilidade e funcionalidade. Quando os processos de organizar com padrões distintos chocam-se no espaço social de favelas, podemos observar a expressão de hibridismos no espaço, entendidos como produto das contradições, inerentes ao espaço (SANTOS, 2009), entre processos de organizar com padrões distintos, que se materializam em formatos capazes de refletir as lógicas que ali se chocam. Apresentam-se, por exemplo, na forma de ocupações de obras iniciadas pelo Estado e finalizadas pelos moradores, em serviços informais que passam a seguir algumas regras formais, e até mesmo em estruturas organizacionais híbridas.

Palavras-chave
Processos de organizar; Espaço social; Favelas

Abstract

In this paper we propose to answer the following question: how the meeting between the processes of organizing of state’s representatives and the processes of organizing of slum’s dwellers are reflected in the social space? For this purpose, a field research with ethnographic inspiration was conducted in two slums, lasting 1 year and 4 months, which included participant observation and 91 interviews with residents of slums and state’s representatives. Field notes and taped and transcribed interviews totaling more than 3,200 pages of data, which were analyzed based on grounded theory. It was noted that, while processes of organizing of state’s representatives follow the slowness and discontinuity patterns, processes of organizing of slum’s dwellers follow standards of speed and functionality. When processes of organizing with distinct patterns collide in the social space of slums, we can observe the hybrids expressed in space, which are listed, for example, in the form of occupation of constructions initiated by the state and finalized by the residents, in informal services with some formal rules, and even in hybrid organizational structures.

Keywords
Organizing; Social space; Slums

Introdução

Do primeiro ao último dia de pesquisa de campo em favelas muita coisa mudou. Na intensidade das relações que passamos a estabelecer com esses espaços, muito do que era inicialmente estranho foi naturalizado, como a constante convivência com armas; e muito do que era naturalizado, tornou-se estranho e incômodo, como o quase inaudível (para os ouvidos do asfalto) preconceito com favelados. Mas um aspecto da vida na favela perpassou a pesquisa como um constante estranhamento: a materialidade tão particular das favelas, que ao mesmo tempo regulam de maneira tão particular a sua vida social. Quando a primeira autora, responsável pela pesquisa de campo, quase acreditava já estar se acostumando com o adensamento do espaço, se via obrigada a passar por baixo de uma casa como percurso natural para chegar ao ponto desejado. Em seu convívio diário, era sempre recolocada em sua posição de estranhamento.

Assim como essa materialidade moldava a vida social nas favelas, era também ela produto da dinâmica social. Como forma de resolver esse estranhamento, aproximávamos cada vez mais da ideia de que o material e o social estão imbricados, como um algodão mergulhado ao vinho, produzindo-se mutuamente, sempre inacabados e inseparáveis. Embora menos visível ao primeiro olhar, a vida social na favela também exibia uma peculiaridade inquietante, reflexo daquela materialidade que nos chamava atenção – ambas espelhavam-se.

Guiadas por essa ideia, sintetizada na noção de materialidade social, não pudemos deixar de nos questionar a respeito da interferência de ações de representantes do Estado na vida social das favelas e, consequentemente, em sua materialidade, no contexto de “pacificação” vivenciado em campo. As favelas da cidade do Rio de Janeiro passaram a receber, a partir de 2008, Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), como uma tentativa de retomar os territórios de favelas das mãos do tráfico de drogas. O programa das UPPs, implementado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, trouxe ainda a intensificação da ação de representantes do Estado em favelas. E a interferência desses representantes no espaço social era inevitável.

Foi assistindo a uma palestra do Mário Brum em uma disciplina sobre favelas cariocas, na Fundação Getulio Vargas, que voltamos nossa atenção para os hibridismos que se materializavam nos espaços de favelas, como consequência do choque entre processos de organizar do Estado e dos moradores, e a partir daí começamos a observá-los com mais cuidado em campo. Ao apresentar os principais resultados de sua tese a respeito da Cidade Alta, na Cidade de Deus, Mário Brum projetou algumas fotos do que havia se tornado a Cidade Alta, inicialmente construída como um complexo habitacional para receber os desabrigados após o incêndio na Praia do Pinto (BRUM, 2012BRUM, M. Cidade Alta: história, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.). As fotos eram alarmantes: os prédios padrão, todos iguais, construídos em blocos que em conjunto formavam o complexo habitacional, tinham sido alterados pelos moradores do local das mais diversas maneiras. Muitos construíram “puxadinhos”, formando uma estrutura retangular que se projetava para fora das paredes, que antes determinavam os limites do prédio. Para manter a estrutura sustentada, alguns construíram uma pilastra entre ela e a calçada externa ao prédio. Com o tempo, foram sendo construídos barracos ao redor dos prédios, e alguns até mesmo entre duas fileiras de prédios, ligando-as. Era um hibridismo de construções “padronizadas” do Estado e não padronizadas dos moradores que se materializava no espaço em formatos nada convencionais. A materialidade observada por Brum (2012)BRUM, M. Cidade Alta: história, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. parecia-nos ser decorrente de um choque entre os processos de organizar desempenhados por representantes do Estado e aqueles desempenhados por moradores de favelas, os quais parecem seguir padrões distintos.

No contexto da “pacificação”, essa questão parece destacar-se de forma ainda mais relevante, tendo em vista que novos representantes do Estado entram nas favelas buscando organizá-las à luz das formas de organização que se tem no asfalto. Diante desse cenário, no presente artigo nos propomos a responder à seguinte questão: como o encontro entre os processos de organizar de representantes do Estado e os processos de organizar dos moradores de favelas se refletem no espaço social?

Intervenções estatais em favelas

No contexto urbano do Rio de Janeiro, ao longo do século XIX, eram os cortiços que ocupavam o papel de lugar de pobreza e serviam como moradia para aqueles que na época eram considerados membros de uma “classe perigosa” (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.). Portanto, os cortiços tinham a eles associada a ideia de “antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício às epidemias, constituindo ameaça à ordem social e moral” (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005., p. 24). Por isso, segundo Valladares (2005)VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005., eram com frequência alvo dos discursos médicos e higienistas, o que muitas vezes desencadeava a adoção de ações por parte dos governos. Ainda de acordo com a autora, alguns estudos sugerem que os cortiços podem ser considerados o “germe” da favela no processo de periferização. Conforme os cortiços foram perdendo seu lugar de destaque entre aqueles preocupados com o higienismo, a partir do início do século XX, as favelas vão, pouco a pouco, assumindo esse lugar (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.).

A acelerada disseminação de favelas no Brasil teve início no fim do século XIX, quando foi formada a primeira aglomeração urbana que recebeu esse nome na cidade do Rio de Janeiro, no Morro da Providência (OLIVEIRA, 1985OLIVEIRA, J. S. Repensando a questão das favelas. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 9-30, 1985.). O Morro da Favella, como inicialmente era chamado, surge a partir da instalação, iniciada em 1887, de combatentes de Canudos que tinham por finalidade exercer pressão para que o Ministério da Guerra pagasse a eles o que os devia (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.). Não há consenso, entretanto, em relação à origem do nome. Valladares (2005)VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005. explica que, embora alguns defendam que o nome advém da planta favella, comum no Morro da Favella situado na Bahia e também encontrada no morro carioca que recebeu esse nome, outros defendem que o Morro da Favella localizado na Bahia foi um local de resistência dos combatentes durante a guerra de Canudos.

Aos poucos, a denominação “Morro da Favella” passou a ser estendida para qualquer aglomerado de barracos sobre terrenos invadidos, que não contavam com serviços públicos (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.; OLIVEIRA, 1985OLIVEIRA, J. S. Repensando a questão das favelas. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 9-30, 1985.). Embora, conforme relata Valladares (2005)VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005., já existissem outras aglomerações semelhantes ao Morro da Favella, foi este último que entrou para a história pela sua relação com Canudos e que teve seu nome associado ao fenômeno em geral.

No início do século XX, as favelas começaram a se expandir e a se tornar “visíveis” (OLIVEIRA, 1985OLIVEIRA, J. S. Repensando a questão das favelas. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 9-30, 1985.). Embora esse processo tenha sido iniciado nos anos de 1930, é nos anos de 1950 a 1960 que começa uma expansão descontrolada das favelas (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.). Segundo Pino (1998)PINO, J. C. Labor in the Favelas of Rio de Janeiro, 1940-1969. Latin American Perspectives, v. 25, n. 2, p. 18-40, 1998., foram principalmente problemas como inflação, desemprego, bem como altos preços de aluguéis que levaram a esse quadro. As favelas foram se constituindo como parte da evolução urbana de algumas cidades do Brasil, como Belo Horizonte, Recife, Salvador e Brasília (SILVA et al., 2009SILVA, J. D. S. et al. (Ed.). O que é a favela afinal? Observatório de Favelas, 2009.). Agravado pela tendência migratória para centros urbanos, o crescimento das favelas acelerou-se e, em 1950, 7% da população total da cidade do Rio de Janeiro morava em favelas (OLIVEIRA, 1985OLIVEIRA, J. S. Repensando a questão das favelas. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 9-30, 1985.).

As favelas têm sido tradicionalmente definidas com base em uma lista de características que se propõe comum e generalizável a todas as favelas e que, em geral, retrata um cenário de precariedade. Segundo Maricato (2001)MARICATO, E. Favelas: um universo gigantesco e desconhecido. 2001. Disponível em: <http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab>. Acesso em: 19 jan. 2012.
http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab...
, por exemplo, o termo “favela” refere-se a regiões marcadas por uma situação ilegal de ocupação do solo, ou como regiões sujeitas à exclusão urbana, já que são mal servidas pela infraestrutura e serviços urbanos.

Com base nas suas definições correntes, as favelas são caracterizadas como espaços fortemente marcados por uma lógica de ausências, e historicamente definidos por aquilo que não tem ou não são (OBSERVATÓRIO DE FAVELAS, 2009). Como explicam Zaluar e Alvito (2006)ZALUAR, A.; ALVITO, M. Introdução. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006., tomando-se por base essas definições, as favelas acabaram sendo associadas a uma imagem de carência, falta, vazio.

A caracterização das favelas como espaços carentes, precários em uma série de aspectos, além da carga pejorativa que acaba por se associar a esses espaços, leva a uma falsa ideia de homogeneidade entre os diversos territórios denominados de favela. Para Valladares (2005, p. 151)VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005., ao se pensar a favela no singular, acaba-se reduzindo “um universo plural a uma categoria única” e negando as diferenças de natureza sociológica que existem entre elas.

Mas a visão de que as favelas se resumem a uma categoria singular parece predominar, e decorre de uma invenção disso que hoje se denomina “favela”. Como bem mostra Valladares (2005)VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005., a favela foi inventada. Em sua obra A invenção da favela: do mito de origem à favela.com, a autora retoma as representações sociais da favela desde sua origem, e mostra como ela passou de um problema a ser solucionado, alvo de um discurso médico-higienista, a um problema que exigia administração e conhecimento e até mesmo solução.

Esse lugar de “problema social” que foi atribuído às favelas passou a atrair ações governamentais que se apresentavam como possíveis soluções. No Brasil, as intervenções estatais em favelas podem ser mais bem analisadas na cidade do Rio de Janeiro, local em que foi formulado o maior número de políticas governamentais voltadas a elas (VALLADARES; FIGUEIREDO, 1983VALLADARES, L.; FIGUEIREDO, A. Housing in Brazil: an introduction to recent literature. Bulletin of Latin American Research, v. 2, n. 2, p. 69-91, maio 1983.).

Com base em sua pesquisa realizada em uma favela da cidade do Rio de Janeiro na década de 1970, Santos (2011)SANTOS, B. de S. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. 2011. reforça como as favelas possuem uma relativa autonomia, decorrente da ilegalidade coletiva existente nesses territórios. O autor fala em uma situação de pluralismo jurídico, em que mais de uma ordem política vigora em um mesmo espaço. Nesse sentido, as favelas também podem ser interpretadas como espaços às margens do Estado, como “places where state law and order continually have to be reestablished” (ASAD, 2004ASAD, T. Where are the margins of the State? In: DAS, V.; POOLE, D. (Ed.). Anthropology in the margins of the state. Santa Fe: School of American Research Press, 2004., p. 279).

Assumindo as favelas como espaços às margens, programas e políticas estatais voltam-se e tornam a se voltar para esses territórios. Entretanto, as políticas públicas voltadas para as favelas sempre as trataram como um universo homogêneo entre si, mas específico em relação ao restante da cidade, e essa visão serviu para justificar as especificidades das ações direcionadas às favelas (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.).

No início do século XX, as primeiras ações estatais direcionadas para as favelas assumiram a forma de políticas de remoção (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.), medida privilegiada para acabar de vez com o “problema social”, eliminar “o mal pela raiz”. É em 1937 que as favelas aparecem pela primeira vez em um documento público, sendo registradas no Código de Obras da cidade do Rio de Janeiro como uma “aberração” que precisava ser eliminada (BURGOS, 2006BURGOS, M. B. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006.). Com o Código de Obras, a partir da década de 1940, aos poucos começa a se impor a crença na necessidade de se administrar as favelas e os seus moradores (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.).

Seguindo as recomendações do Código de Obras de 1937, a primeira experiência de política pública voltada às favelas, os parques proletários, propunha a construção de parques, com a finalidade de resolver o problema de insalubridade das franjas do centro da cidade, seguindo uma abordagem sanitarista do problema (BURGOS, 2006BURGOS, M. B. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006.).

Quando tiveram início os programas do Estado de remoção em favelas, na década de 1940, tais programas tornaram-se frequentes e passaram a fazer parte da realidade das favelas, embora fossem muitas vezes intercalados com pequenas ações de urbanização (CAVALCANTI, 2009CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009.). Como consequência, os moradores começaram a se organizar, em um primeiro momento em comissões de moradores (BURGOS, 2006BURGOS, M. B. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006.), e mais tarde na Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg), formada por lideranças de moradores da favela que lutavam contra a remoção (CAVALCANTI, 2009CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009.). Segundo Cavalcanti (2009, p. 73), principalmente em decorrência do período de regime militar, “em meados dos anos de 1970, quase 140 mil moradores já haviam sido removidos de cerca de noventa favelas, sendo realocados para áreas distantes das favelas de origem”.

De forma sintética, Cavalcanti (2009)CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009. aponta um padrão de políticas públicas direcionadas para as favelas que se estabeleceu durante o século XX: durante os governos autoritários predominavam as políticas de remoção; em períodos democráticos predominavam políticas de urbanização, porém, com base em acordos clientelistas, efetivando-se apenas na forma de pequenas melhorias de infraestrutura.

De acordo com Cavalcanti (2009)CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009., na década de 1980, durante o primeiro governo Brizola, esse cenário se altera, e as favelas passam a receber uma diversidade de serviços públicos, na forma de eletricidade, redes de esgoto ou coleta de lixo. Burgos (2006)BURGOS, M. B. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006. reforça essa ideia ao marcar que durante o governo Brizola foi desenvolvida uma agenda social especialmente voltada para as favelas e houve mudanças importantes no que diz respeito à política de direitos humanos, que propunha uma nova conduta policial diante dos moradores das favelas.

A partir da década de 1980, conforme mostrou Burgos (2006)BURGOS, M. B. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006., a questão das favelas se complexifica ainda mais, diante de um contexto de disseminação da violência e da consolidação de grupos paraestatais, como traficantes e banqueiros do jogo do bicho, nas favelas cariocas. É nesse período e dentro desse contexto que a favela é inventada como território de violência (VALLADARES, 2005VALLADARES, L. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.). Ao mesmo tempo, sob influência da lógica da “cidade partida”, que ajuda a reforçar a compreensão da favela como gênese do crime, há uma mudança nas políticas governamentais, que passaram de um paradigma pautado na remoção para um paradigma de “integração” da favela ao restante da cidade (CAVALCANTI, 2009CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009.).

Nesse sentido, foram desempenhadas, por parte do Estado, algumas tentativas frustradas de recuperação do controle territorial das mãos dos criminosos por meio de programas de requalificação urbana ou de segurança pública. Cavalcanti (2009)CAVALCANTI, M. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009. explica que a apropriação das favelas pelo tráfico contribuiu para atrair ações do Estado voltadas para a urbanização, tendo em vista que a questão da segurança pública ganha lugar de destaque na agenda política e, portanto, projetos sociais e de urbanização voltaram-se para esses territórios com o intuito de reduzir as chances de envolvimento de sua população com o crime. Tais intervenções em alguns casos até levaram a melhorias na qualidade de vida, mas não conseguiram recuperar o controle dessas áreas, resultando na manutenção do domínio do tráfico nos territórios das favelas (BANCO MUNDIAL, 2012BANCO MUNDIAL. O retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: uma análise da transformação do dia a dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Rio de Janeiro: Banco Mundial, 2012.).

O aumento do poder de grupos paraestatais ameaça substancialmente o poder do Estado, uma vez que transfere o monopólio do uso da violência das mãos do Estado para o domínio do tráfico ou das milícias e torna mais complexa a relação com as favelas – que deixam de ser apenas uma ameaça “territorial” (território fora do domínio do Estado) e “legal” (cidadãos que não “obedecem” à lei, não pagam impostos, etc.), demandando estratégias mais sofisticadas de “resgate” territorial. Carvalho (1995, p. 4)CARVALHO, M. A. R. Cidade escassa e violência urbana. Série Estudos, Iuperj: Rio de Janeiro, n. 91, ago. 1995. chama atenção para uma histórica “baixa legitimação da autoridade política do Estado” como fator estreitamente relacionado à violência em grandes cidades, e destaca o Rio de Janeiro como uma cidade que evidencia esse cenário.

Como consequência do cenário descrito, as décadas de 1990 e 2000 podem ser caracterizadas como um período de “guerra ao tráfico” (LEITE, 2012LEITE, M. P. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Rev. Bras. Segur. Pública, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 374-389, ago./set. 2012.). A “guerra ao tráfico”, instalada nas favelas, acaba por se configurar, conforme mostrou Leite (2012)LEITE, M. P. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Rev. Bras. Segur. Pública, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 374-389, ago./set. 2012., como uma guerra a todos os habitantes de favelas, vistos como cúmplices dos bandidos por manterem com eles relações de proximidade consideradas uma escolha.

Com a aprovação do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos em 2016 e a Copa do Mundo em 2014, a preocupação com o problema da segurança da cidade potencializou-se. O Banco Mundial (2012)BANCO MUNDIAL. O retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: uma análise da transformação do dia a dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Rio de Janeiro: Banco Mundial, 2012. explica que foi dentro desse contexto que, em novembro de 2008, o governo estadual do Rio de Janeiro inaugurou a primeira UPP na favela Santa Marta, em Botafogo, zona Sul do Rio de Janeiro, “com o objetivo de recuperar o controle de territórios tomados pelo crime organizado, desarmando o tráfico de drogas e permitindo a integração social, econômica e política das favelas com a cidade” (BANCO MUNDIAL, 2012BANCO MUNDIAL. O retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: uma análise da transformação do dia a dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Rio de Janeiro: Banco Mundial, 2012., p. 12).

Não se pode perder de vista que a instalação da UPP nas favelas cariocas é acompanhada de um discurso que defende que a “pacificação” proporcionada pelo programa possibilita também a entrada de uma série de serviços urbanos e de ações sociais, considerados parte do processo de “pacificação” (CUNHA; MELLO, 2011CUNHA, N. V. da; MELLO, M. A. da S. Novos conflitos na cidade: a UPP e o processo de urbanização na favela. Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 3, p. 371-401, jul. 2011.). Além de facilitar o trabalho de órgãos públicos como a Comlurb ou o CRAS, que já atuavam nas favelas antes da entrada das UPPs, também foram criados novos programas destinados exclusivamente a favelas “pacificadas”, como a UPP Social1 1 A UPP Social é um programa municipal, vinculado ao Instituto Pereira Passos, que busca fazer uma articulação entre os moradores de favelas e o poder público, levantando demandas no território. ou o Territórios da Paz2 2 O Territórios da Paz é um programa vinculado à Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) e tem por objetivo o fortalecimento de redes nas favelas. , programas sociais que visam, em termos gerais, facilitar aos órgãos públicos responsáveis o atendimento às demandas dos moradores. É dentro desse contexto do programa das UPPs que esta pesquisa foi desenvolvida.

Organizando o espaço social

A noção de espaço social foi cunhada, principalmente, nas obras do geógrafo Lefebvre. Em sua obra The production of space, Lefebvre (2007)LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Blackwell, 2007. defende que o espaço social seja pensado, não como sujeito nem como objeto, mas como uma realidade social, um conjunto de relações e formas. A importância das relações sociais para se pensar em um espaço social, que é muito mais do que um espaço físico, é reforçada por Lefebvre (2007)LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Blackwell, 2007..

Fortemente influenciado pela obra de Lefebvre, Milton Santos, exímio geógrafo brasileiro, propõe uma noção de espaço condizente e similar. Para o autor, “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 2009SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2009., p. 63). Com base em sua definição, Santos (2009)SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2009. reforça a ideia de que os sistemas de objetos e os sistemas de ações não podem ser pensados um sem o outro. Os sistemas de objetos dão forma às ações, e os sistemas de ações criam novos objetos. Eles interagem e, por meio dessa interação, o espaço se transforma. Diante dessa indistinguibilidade, o autor propõe que a interação entre os dois sistemas seja tratada, ao mesmo tempo, como processo e como resultado. O espaço é, então, dinâmico e unitário, contendo materialidade e ação humana (SANTOS, 2008SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2008.).

Deriva do conceito de espaço social a noção de lugar. Partindo de sua definição de espaço, Santos (2008)SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2008. compreende o lugar enquanto um subespaço, que possui mutuamente uma existência corpórea e outra relacional. Em sentido semelhante, Spink (2001)SPINK, P. O lugar do lugar na análise organizacional. Revista de Administração Contemporânea, v. 5, n. SPE, p. 11-34, 2001. entende o lugar como um local ocupado, usado para um determinado fim. Segundo o autor, a noção de lugar, ao ser analisada em sua complexidade, possibilita uma aproximação do cotidiano, das formas, ações, lutas que ali se dão.

As noções de espaço social e lugar, assim compreendidas, revelam uma materialidade social a elas inerente (DALE, 2005DALE, K. Building a social materiality: spatial and embodied politics in organizational control. Organization, v. 12, n. 5, p. 649-678, 2005.; DALE; BURRELL, 2008DALE, K.; BURRELL, G. The spaces of organisation and the organisation of space: power, identity & materiality at work. New York: University of Leicester, 2008.). Com base nas reflexões de Lefebvre (2007)LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Blackwell, 2007., Dale (2005, p. 651)DALE, K. Building a social materiality: spatial and embodied politics in organizational control. Organization, v. 12, n. 5, p. 649-678, 2005. propõe a noção de materialidade social como um conceito “whereby social processes and structures and material processes and structures are seen as mutually enacting”. A autora lembra, ainda, que não é apenas a materialidade que assume significados sociais, mas a própria materialidade também molda a natureza da agência social. Portanto, para Dale (2005)DALE, K. Building a social materiality: spatial and embodied politics in organizational control. Organization, v. 12, n. 5, p. 649-678, 2005., é preciso romper com a ideia de que o material configura-se como algo fixo e inerte, enquanto o social como algo dinâmico e ativo.

Embora tenha havido, em tempos recentes, uma “virada espacial” nas ciências sociais (JESSOP; BRENNER; JONES, 2008JESSOP, B.; BRENNER, N.; JONES, M. Theorizing sociospatial relations. Environment and Planning D: Society and Space, v. 26, n. 3, p. 389-401, 2008.), o espaço vem sendo negligenciado em estudos organizacionais de forma que autores como Dale e Burrell (2008)DALE, K.; BURRELL, G. The spaces of organisation and the organisation of space: power, identity & materiality at work. New York: University of Leicester, 2008. chamam atenção para o fato de que as organizações têm sido afastadas de elementos do mundo material e social, e por isso precisam ser rematerializadas.

Mas para se pensar as organizações como produtoras e produto do espaço social, conforme demandam Dale e Burrell (2008)DALE, K.; BURRELL, G. The spaces of organisation and the organisation of space: power, identity & materiality at work. New York: University of Leicester, 2008., não se pode perder de vista o caráter dinâmico, contínuo e reflexivo da relação que se estabelece entre as organizações e os espaços nos quais estão inseridas. Portanto, a centralidade das organizações no processo de produção do espaço, e como mediadoras das práticas socioespaciais, só poderá ser assumida quando as organizações forem concebidas com base em uma perspectiva processual, enquanto acontecem (SCHATZKI, 2006SCHATZKI, T. R. On organizations as they happen. Organization Studies, v. 27, n. 12, p. 1.863-1.873, 2006.), como entidades inacabadas ou como um contexto para ação e interação humana (HERNES, 2004HERNES, T. The spatial construction of organizations. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2004.).

Bakken e Hernes (2006)BAKKEN, T.; HERNES, T. Organizing is both a verb and a noun: Weick meets Whitehead. Organization Studies, v. 27, n. 11, p. 1.599-1.616, 2006. explicam, baseados no trabalho de Chia e Langley, a contraposição existente entre uma abordagem que enfatiza o processo (uma visão “forte” de processo) e uma abordagem que enfatiza a entidade (uma visão “fraca” de processo). Segundo os autores, a perspectiva “forte” de processos pensa as entidades como produtos dos processos, aqui assumidos como categoria central, e não como anteriores a ele. É com base nessa última perspectiva que as organizações podem ser pensadas em sua relação com o espaço social.

É nesse sentido que aqui se pretende trabalhar com a noção de processos de organizar. Conforme explica Alcadipani (2008, p. 20)ALCADIPANI, R. Practices of organizing: enacting boundaries and performing production in newspaper printing. Tese – Manchester Business School, University of Manchester, 2008., “to talk of organising is to consider that organisations are an active course of action, a continuous result of a precarious and partial process”.

Ao abandonar a noção de organização, Czarniawska (2010, p. 154)CZARNIAWSKA, B. Going back to go forward: on studying organizing in action nets. In: HERNES, T.; MAITLIS, S. Process, sensemaking, and organizing. Oxford University Press, 2010. defende que os pesquisadores organizacionais deveriam estudar processos de organizar (“organizing”) enquanto conexões entre ações:

My plea is to study organizing as the connection, re-connection, and disconnection of various collective actions to each other, either according to patterns dictated by a given institutional order or in an innovative way. Such collective action need not be performed within the bounds of a formal organization.3 3 Tradução livre: O meu apelo é para estudar a organização como a conexão, reconexão e desconexão de várias ações coletivas umas com as outras, quer de acordo com os padrões ditados por uma determinada ordem institucional ou de uma forma inovadora. Tal ação coletiva não precisa ser realizada dentro dos limites de uma organização formal.

A autora assume a noção de processos de organizar enquanto uma cadeia de ações, enquanto conexões não lineares entre eventos que possuem um propósito (CZARNIAWSKA, 2014CZARNIAWSKA, B. A theory of organizing. Edward Elgar Publishing, 2014.). Lindberg e Czarniawska (2006)LINDBERG, K.; CZARNIAWSKA, B. Knotting the action net, or organizing between organizations. Scandinavian Journal of Management, v. 22, n. 4, p. 292-306, 2006. explicam que o conceito de redes de ações tem como pressuposto a ideia de que os processos de organizar demandam que diferentes ações coletivas estejam ligadas entre si seguindo um padrão institucionalizado. Com base nesse conceito, é possível pensar os processos de organizar em sua relação recíproca com o espaço, como um processo de produção contínuo, em que os dois são, simultaneamente, produto e produtor e, portanto, inacabados.

Método de pesquisa

Para o desenvolvimento deste artigo, realizamos uma pesquisa de campo com duração de um ano e quatro meses (de janeiro de 2013 a abril de 2014) em duas favelas cariocas. A pesquisa de campo incluiu observação participante, de inspiração etnográfica, bem como entrevistas semiestruturadas.

Na pesquisa de campo desenvolvida, buscamos, em um primeiro momento, nos inserir na vida das favelas estudadas por meio de contato com os moradores locais, e, baseadas nisso, identificar os representantes do Estado que se inserem no cotidiano das favelas. As visitas às favelas eram sempre acompanhadas de notas de campo.

Também realizamos entrevistas com representantes do Estado que atuavam nas favelas e com moradores, para complementarmos ou aprofundarmos algumas informações. Nesse sentido, foram realizadas 91 entrevistas, que duraram em média duas horas. Vale ressaltar que as entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado. Os entrevistados são especificados nas Tabelas 1, 2 e 3 a seguir:

Tabela 1
Entrevistados na favela da Zona Sul.
Tabela 2
Entrevistados na favela da Zona Norte.
Tabela 3
Entrevistados gerais.

Selecionamos os moradores entrevistados com base na observação participante, que possibilitou identificar lideranças comunitárias e moradores que tinham mais contato com os representantes do Estado que atuavam nas favelas investigadas, aqueles que participavam mais ativamente da vida política das favelas, bem como aqueles moradores que vivenciaram historicamente a relação entre Estado e favela. Em relação aos representantes do Estado entrevistados, também os selecionamos baseadas na observação, que possibilitou identificar aqueles que atuavam diretamente na favela em questão ou ocupavam um cargo superior nos programas voltados para a favela, também com base na percepção dos próprios moradores acerca de quais eram os representantes do Estado mais atuantes na vida das favelas. Adotamos o critério de saturação para a determinação do número total de entrevistas necessárias.

Para a análise dos dados coletados, baseadas em teoria fundamentada, realizamos uma codificação inicial das notas de campo e nas entrevistas transcritas, que totalizaram mais de 3.200 páginas de dados. Com auxílio do software Atlas.ti, seguindo as etapas de análise sugeridas por Strauss e Corbin (2008)STRAUSS, A. L.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Artmed, 2008., iniciamos o processo de análise de dados pela microanálise, ou seja, pela análise detalhada, linha por linha, produzindo, a partir daí, as primeiras categorias, que se configuraram enquanto categorias iniciais. Tendo em vista que o processo de análise não é um processo estático ou rígido, mas envolve a liberdade e a criatividade do pesquisador, na microanálise já são realizadas tanto a codificação aberta quanto a axial. Enquanto a codificação aberta consiste em um processo analítico que possibilita a identificação de conceitos e de suas propriedades e dimensões nos dados, criando categorias ou subcategorias, a codificação axial consiste no estabelecimento de relações entre categorias e subcategorias. Nesse sentido, na primeira leitura detalhada buscamos identificar temas persistentes, aspectos-chave, que pudessem ser organizados em categorias, bem como a forma como eles estavam relacionados. Buscamos organizar esses dados empíricos recorrentes em códigos, que também foram influenciados pelos nossos pressupostos de pesquisa.

Após a primeira etapa de microanálise, partimos para uma nova etapa voltada para uma codificação seletiva, ou seja, para a integração e o refinamento d teoria às categorias, para a formação de um esquema teórico maior. Nesse sentido, ainda com o auxílio do software Atlas.ti 7, voltamo-nos novamente à leitura dos dados, buscando elevar as categoriais a um nível teórico. A aderência conceitual das categorias produzidas ajudou a validá-las enquanto categorias teóricas.

A partir daqui, para fins de apresentação dos resultados da pesquisa, a experiência em campo vivenciada pela primeira autora deste artigo será narrada em primeira pessoa do singular, de forma a retratar de forma mais fiel, baseada da visão da pesquisadora, a experiência vivida em campo.

Quando processos de organizar se chocam

Conforme lembrou Czarniawska (2010)CZARNIAWSKA, B. Going back to go forward: on studying organizing in action nets. In: HERNES, T.; MAITLIS, S. Process, sensemaking, and organizing. Oxford University Press, 2010., as redes de ações muitas vezes seguem padrões, e eu começava a perceber em meu campo que os processos de organizar que ali se davam tendiam a seguir alguns padrões, se davam de maneira repetida em diferentes ocasiões. Segundo Czarniawska (2014)CZARNIAWSKA, B. A theory of organizing. Edward Elgar Publishing, 2014., é quando as ações são repetidas que elas se tornam percebidas como padrões de ação, e por isso essa repetição torna-se tão importante. Há, na literatura de estudos organizacionais processuais, uma demanda por análises processuais que tragam contribuições a respeito de padrões repetitivos entre atividades e eventos (LANGLEY; TSOUKAS, 2010LANGLEY, A.; TSOUKAS, H. Introducing “perspectives on process organization studies”. In: HERNES, T.; MAITLIS, S. Process, sensemaking, and organizing. Oxford University Press, 2010.). Guiada pelos processos de organizar que seguiam padrões repetitivos em meu campo, e agora apoiada na literatura de estudos processuais, passei, então, a tentar identificar quais eram esses padrões de ação que marcavam os processos de organizar dos representantes do Estado em favelas e dos próprios moradores.

Em poucos meses de pesquisa, já me saltavam aos olhos as descontinuidades e interrupções em processos de organizar. Essas descontinuidades começaram a aparecer em processos mais simples, como cursos oferecidos aos moradores que não eram finalizados, como o programa Vamos Combinar, iniciado pela UPP Social em parceria com a Comlurb, que foi interrompido; ou o encerramento de alguns projetos sociais oferecidos pelas UPPs. Com o tempo, passei a presenciar interrupções com consequências mais drásticas, como a interrupção do programa Cimento Social, que estava reconstruindo casas para os moradores na favela da Zona Norte. Também na favela da Zona Sul o principal programa de reurbanização, o PAC, interrompeu as suas obras, e alterou o seu planejamento inicial, chegando a remover casas desnecessariamente. As descontinuidades nos processos de organizar pareciam ser um padrão.

Langley e Tsoukas (2010) lembram que as ações não existem de forma separada de suas relações com outras coisas, e as descontinuidades como padrões nos processos de organizar que eu observava ali também só existiam de forma relacional. Pautada no pressuposto de Gergen (2010)GERGEN, K. J. Co-constitution, causality, and confluence: organizing in a world without entities. In: HERNES, T.; MAITLIS, S. Process, sensemaking, and organizing. Oxford University Press, 2010. de que toda ação é simultaneamente um suplemento do que a precedeu, passei a investigar o que aqueles processos de organizar suplementavam e a que davam sentido.

A interrupção no programa Cimento Social que tanto me instigou era decorrente de uma causa clara: os acordos políticos que faziam parte das regras políticas que regiam aquelas ações. Os acordos ou falta de apoio político também se mostraram antecedentes dos padrões de descontinuidade em outras situações.

A UPP Social, por exemplo, teve seus processos de organizar voltados para a resolução do problema do lixo das comunidades interrompidos por causa da falta de apoio político da Comlurb, responsável por dar continuidade às ações. O PAC manteve por diversas vezes obras paradas porque dependia das ações de outros, como da CEDAE ou da CEG, e ao serem questionados a respeito da inação desses órgãos apontavam para uma possível falta de apoio político entre eles. A noção de processos de organizar aqui nos ajuda a perceber que o organizar ocorre para além de pensáveis limites, na forma de alianças ou esforços cooperativos, conforme Czarniawska (2010)CZARNIAWSKA, B. Going back to go forward: on studying organizing in action nets. In: HERNES, T.; MAITLIS, S. Process, sensemaking, and organizing. Oxford University Press, 2010..

A existência de cargos políticos é também responsável pelos padrões de descontinuidades. Os relatos de que a troca de secretário levou à troca de diversos funcionários e a mudanças nas diretrizes que guiam os processos de organizar foram destacados por representantes dos diversos programas. Durante o meu período em campo, o programa Territórios da Paz trocou de superintendente três vezes, e cada um deles ditava novas diretrizes que produziam descontinuidades nos processos de organizar.

Da mesma forma, a UPP Social teve descontinuidades em seus processos de organizar em virtude da alteração do presidente do IPP: enquanto o primeiro presidente propunha que o programa desempenhasse ações voltadas para o levantamento de demandas e para a articulação dos moradores com os órgãos públicos, a nova presidente deu essas ações por encerradas e propunha ações voltadas para o empreendedorismo e para a parceria com o setor privado. Alguns funcionários, insatisfeitos com as mudanças, chegaram a deixar o programa, intensificando as descontinuidades.

No CRJ, um representante referiu-se a esse padrão como uma “dança das cadeiras”: “É sempre a troca de governo que tem a dança das cadeiras e aí você fica ali, pô vai continuar o trabalho, será que vai continuar ou não o trabalho que você está realizando?” (Representante do CRJ 1, favela da Zona Sul). Em decorrência dessa “dança das cadeiras”, os processos de organizar tornam-se descontínuos: os cursos oferecidos pelo CRJ são alterados conforme se alteram os superintendentes dos programas – seja como uma forma de eliminar cursos mais caros, como foi o caso do curso de fotografia, seja por uma mudança de diretrizes. Um representante do CRJ me explicou que a adesão dos moradores aos cursos leva um tempo, e muitas vezes eles não conseguem sustentar um mesmo curso por tempo suficiente a ponto dos moradores aderirem a ele. Como consequência, muitos cursos ficam vazios.

Na UPP a troca de comando era constante. Na favela da Zona Sul o comando mudou três vezes ao longo de minha pesquisa de campo, e na favela da Zona Norte quatro vezes. As implicações dessas mudanças de comando para os processos de organizar eram perceptíveis. Alguns comandantes autorizavam eventos com mais facilidade, demandavam uma postura menos agressiva dos policiais e incentivavam o desenvolvimento de projetos sociais na UPP. Outros proibiam eventos, demandavam uma postura mais repressiva e chegavam a encerrar os projetos sociais que estavam em curso naquela UPP. Um policial explica: “o Comando é o espelho da tropa. Se o Comandante é mais voltado para a pacificação, eu vejo a tropa mais tranquila. Se o Comandante está mais disposto a combater o crime, a tropa vai ‘dançar conforme a música’ dele” (Representante da UPP 14, favela da Zona Sul).

Os moradores também reconheciam essas mudanças, e pareciam perceber uma alteração na postura dos policiais de acordo com o comando:

“Depois que ele saiu, aí o negócio melhorou mais um pouco. Era mototáxi sendo agredido, era mototáxi que tinha que dar dinheiro [...]. E assim ficou. Então ele foi embora. E aí veio um outro. Tudo bem ficou. Não ficou nem um mês também. Coitado. E esse daí está tentando impor a ordem. Mas assim, até com os policiais que estão com eles, estão super mais calmos. Vamos ver até quando. Apesar que já diz que ele já sai agora. Só ficou um mês porque ele é comandante do Choque, ele é comandante do Choque. Então aí ele está aqui. Mas já vai trocar. E aí a gente vai ver o que que vai dar. A gente fica assim.”

(Morador 28, favela da Zona Norte).

Outro padrão de ação dos processos de organizar de representantes do Estado em ação nas favelas é a lentidão que os marca. Os padrões de lentidão tornam-se especialmente visíveis quando dizem respeito a uma interface entre o Estado e as favelas. O imediatismo que marca as favelas, como consequência das muitas demandas básicas insatisfeitas, requer processos de organizar mais ágeis, e os representantes do Estado se percebem em um novo território a respeito do qual não possuem muito conhecimento, e no qual ainda estão aprendendo a estabelecer novas rotinas.

As obras do PAC pareciam infindáveis, e as reclamações dos moradores nas mais diversas reuniões que pude acompanhar iam, em geral, no sentido de cobrança de prazos que já estavam esgotados: as obras nunca finalizavam no prazo previsto. Os programas Territórios da Paz e UPP Social iniciavam suas ações, mas demoravam tanto para mostrar os poucos resultados mais concretos que podiam apresentar, como livros produzidos com base em eventos, ou mapas decorrentes do levantamento de informações, que os moradores davam aqueles projetos por encerrados e inacabados. A Comlurb, por sua vez, não parecia acompanhar o ritmo de produção de lixo dos moradores da favela, demorava para atender suas demandas e gerava insatisfações diante de caçambas lotadas.

Aqui, mais uma vez partindo da ideia de que as ações só existem de forma relacional (LANGLEY; TSOUKAS, 2010), é possível notar que é em função das restrições impostas por uma lógica burocrática, característica do Estado, que os padrões de lentidão marcam os processos de organizar.

As regras e normas formais e o formalismo, exemplos da lógica burocrática, impõem exigências de documentação e formalização aos processos de organizar dos representantes do Estado em ação nas favelas, que os tornam muito mais lentos, em um espaço no qual não estão habituados a agir, diante da necessidade de criação de novas rotinas em espaços para eles complexos.

Como uma exigência do PAC, o ITERJ atuou na favela da Zona Sul com o objetivo de regularizar a situação fundiária dos moradores. Entretanto, as exigências legais em termos de produção de documentos e seguimentos de regras são tantas, que o ITERJ demora anos para finalizar o processo. O PAC, por sua vez, atrasou uma de suas obras porque não tinha a licença adequada para realizar a poda das árvores que estavam impedindo a obra.

A impessoalidade e a meritocracia também são responsáveis pelo padrão de lentidão, na medida em que impõem exigências de processos de seleção formais e transparentes, que costumam demandar um tempo longo. As obras do PAC, interrompidas pela retirada da construtora, ficaram paralisadas durante meses porque era necessário abrir um novo processo de licitação para que uma nova construtora pudesse assumir as obras. Conforme explicou um representante do PAC:

“A [construtora] pediu para sair, quando eles pediram para rescindir o contrato, foi legal, foram chamar a 2ª. colocada. A 2ª. colocada por logística não pôde aceitar, aí a lei manda que a gente faça uma nova licitação e aí agora estamos trabalhando com uma nova licitação, para chamar uma nova empresa, voltar tudo para trás, preparar tudo de novo para continuar as obras e aí é isto que está rolando lá.”

(Representante do PAC 3, favela da Zona Sul).

É também prezando a impessoalidade e a meritocracia que os programas levam tanto tempo para a contratação de novos funcionários, o que torna os seus processos de organizar mais lentos, em decorrência do baixo efetivo que tem que dar conta de muito trabalho. Uma representante do Territórios da Paz explica que é por conta de questões burocráticas que um novo concurso público para contratação de novos funcionários para o programa ainda não aconteceu.

Os agentes reconhecem que o tempo do Estado é muito mais lento, e que este padrão também é responsável por gerar insatisfação nos moradores: “e os tempos do Poder Público são tempos bem diferentes das comunidades, a gente também entende isso [...]. Então, assim, é, essa diferença de tempos, eu consideraria como um dos desafios a serem cumpridos” (Representante da UPP Social 1, Geral).

De acordo com Langley e Tsoukas (2010), a busca por padrões de ação também inclui uma busca por padrões temporais, e no campo burocrático do Estado em ação nas favelas um padrão temporal torna-se perceptível: a lentidão que marca os seus processos de organizar.

Os processos de organizar do Estado parecem contrastar com aqueles dos moradores de favelas, onde foi possível observar a existência de uma lógica própria, a qual chamarei aqui de lógica de “lutas”, denominação que parte de uma expressão cunhada pelos próprios moradores. Diante de uma série de necessidades básicas não satisfeitas e de uma escassez de ações do Estado, os moradores de favelas são guiados por um sentido de urgência, tendo em vista que lhes faltam coisas básicas para sua sobrevivência. Nesse sentido, passaram a assumir para si a responsabilidade de “lutar” para que suas demandas sejam satisfeitas, seja fazendo eles mesmos, seja por meio de um grande esforço para cobrar uma ação do Estado. Parece existir uma crença generalizada de que os moradores de favelas precisam lutar.

Embora Cavalcanti (2007)CAVALCANTI, M. Of shacks, houses, and fortresses: an ethnography of favela consolidation in Rio de Janeiro. Tese (Doutorado) – University of Chicago, Chicago, 2007. tenha se referido às “lutas” para marcar um período específico da vida na favela, o termo “lutas” ainda é hoje usado pelos moradores para retratar a dinâmica da favela, e o mecanismo que eles utilizam para conseguir melhorias para esse espaço. As “lutas” retratam tanto o fato de os moradores fazerem muitas coisas por eles mesmos, como obras, mutirões de limpeza ou de construção, quanto a estratégia por eles desempenhada para conseguir atrair ações do Estado ou fazer com que os órgãos públicos cumpram a sua função dentro das favelas. “Antes era muita dificuldade mesmo. E hoje você sabe a minha luta, né?” (Morador 6, favela da Zona Norte) – assim comparou uma moradora o período passado e o atual.

Enquanto o Estado é marcado pela lógica burocrática, que exige alto grau de formalização, a favela e sua lógica de “lutas” é pautada em uma informalidade, que permite aos moradores “lutarem” de maneira mais ágil e funcional. Nas favelas que frequentei, os traços da informalidade estavam por toda parte: os meios de transporte que eu usava para subir os morros variavam entre a Kombi e o mototáxi, ambos irregulares; nas associações de moradores havia amplos escaninhos onde era organizada a correspondência a ser distribuída na favela, tendo em vista que os endereços não eram formalizados; as moradias não possuíam um registro formal; as organizações que funcionavam na favela e quase todo o comércio eram irregulares; boa parte da energia elétrica era distribuída pela comunidade por meio dos famosos “gatos”, ligações elétricas ilegais.

Partindo para a informalidade, nesses anos de “luta” em prol da comunidade, em muitos aspectos os moradores de favelas aprenderam a ser muito mais ágeis e funcionais do que o próprio Estado. Em outras palavras, eles aprenderam a resolver os próprios problemas em um ritmo de urgência compatível à natureza de suas demandas, de uma forma que o Estado, em sua lógica burocrática, ainda não consegue fazer. Por isso, em alguns casos eles assumem a incapacidade dos representantes do Estado de resolver os problemas, reconhecem a sua funcionalidade superior, e “arregaçam as mangas”, fazem eles mesmos o que seria função do Estado.

Já em meus primeiros contatos com a favela da Zona Sul, primeira que frequentei, me deparei com uma infinidade de organizações criadas pelos próprios moradores para tentar suprir demandas não atendidas pelo Estado – suas ações giravam em torno de questões ambientais, educacionais, música, dança. Embora a favela da Zona Sul recebesse especial atenção, por se tratar de uma favela de grande visibilidade, logo no início da minha pesquisa de campo tive oportunidade de constatar que essa não era uma característica que se restringia a ela. Participei do evento Troca de Saberes, organizado pelo Territórios da Paz, na favela da Rocinha. Lá tive oportunidade de conhecer diversos projetos de moradores das mais diversas favelas da cidade, que se propunham a suprir as demandas não atendidas, naquele caso especialmente voltadas para a área ambiental, foco do evento.

Para além desse tipo de organização, que funcionava de uma forma mais permanente, os moradores de favelas têm, em geral, o hábito de realizar mutirões, nos quais se organizam coletivamente para realizar alguma ação em prol da comunidade. Tive oportunidade de participar de alguns desses mutirões na favela da Zona Norte. Os moradores queriam remover o lixo de uma pedra no alto do morro, muito importante para a história da comunidade: ali era o local onde no passado pegavam água; depois se tornou o “micro-ondas” do tráfico de drogas, e com a entrada da UPP virou local de grande acúmulo de lixo. A ideia era retirar o lixo para a construção de um ecomuseu. Recorreram à Comlurb para a retirada do lixo. A Comlurb respondeu que não seria capaz de atender a essa demanda. Assim, fizeram um acordo de que eles retirariam e ensacariam o lixo, e a Comlurb desceria com o lixo aos poucos, de dez em dez sacos. Reconhecendo a incapacidade da Comlurb de resolver esse problema, o assumiram para si, arregaçaram as mangas e com “muita luta” tiraram o lixo de lá.

A lógica parece ser esta: se o Estado não tem condições de fazer, os moradores fazem por eles mesmos. Essa lógica foi retratada em entrevista por uma moradora:

“As coisas que acontecem aqui que eu te falei é na força do braço. Então eu acredito que [...] da comunidade a gente não espera o Poder Público chegar, a gente não espera o Estado chegar, [...] a gente, a gente. Que que tem que fazer? Tem que desentupir bueiro. Vai lá, desentope. Árvore está ameaçando cair em cima da casa de uma pessoa. Tem que vir o Estado. Não. Vai lá, corta a árvore.”

(Morador 22, favela da Zona Norte).

A necessidade das “lutas” para que suas demandas sejam satisfeitas parece não ser mais questionada, nem por moradores de favelas, nem pelos representantes do Estado. Por diversas vezes os agentes do Estado criticavam os moradores porque estes não se mobilizavam, não participavam das reuniões, não se inscreviam em cursos oferecidos, como se sua falta de esforço fosse um dos grandes motivos que justificasse a situação atual das favelas. E mesmo entre os moradores parecia haver uma aceitação de que eles tinham a obrigação de fazer mais esforço. As mesmas queixas que faziam os agentes do Estado, faziam os moradores a si mesmos: reclamavam que eram desmobilizados, que quase ninguém comparecia às reuniões, e ouvi uma liderança comunitária fazer um discurso acalorado aos jovens, dizendo que eles tinham que se esforçar muito mais do que os outros, porque eram negros e pobres.

Na ocasião do mutirão de limpeza relatado anteriormente, eu parecia a única realmente indignada com a incapacidade da Comlurb de retirar o lixo dali – indignação que só fez aumentar quando dois policiais da UPP pararam para filmar a nossa ação de limpeza. Bastante inconformada com aquela situação, diante da enorme quantidade de lixo que ainda tínhamos que retirar, enquanto trabalhava questionei a um morador a respeito do motivo da impossibilidade da Comlurb. O morador me respondeu que a Comlurb não tinha infraestrutura e nem efetivo suficiente para realizar o trabalho. Deixando escapar a minha indignação, falei em voz alta “a Comlurb não dá conta, mas os moradores dão, né?” (Notas de Campo, 21/09/2013). Um representante da UPP Social que também ajudava no mutirão tentou “salvar” a Comlurb (e o munícipio em geral) da minha crítica e respondeu: “mas tem coisas que a gente não tem condições mesmo de fazer” (Notas de Campo, 21/09/2013). Meio sem graça respondi: “entendo...” (Notas de Campo, 21/09/2013), e guardei para mim a minha indignação. Posteriormente, em entrevista com uma moradora, percebi que os moradores pareciam não questionar o fato de estarem fazendo o trabalho da Comlurb. Orgulhosa, assim ela retratou a contribuição da Comlurb para os mutirões na pedra: “A Comlurb tá fazendo o papel dela. Ela tá providenciando os sacos que nós estamos enchendo, né? Ela está descendo... Todo dia ela carrega dez saquinhos e coloca lá na caçamba e leva” (Morador 4, favela da Zona Norte). Com o tempo pude identificar de onde vinha esse aparente conformismo dos moradores com a incapacidade do Estado em atendê-los: os moradores entendiam, muito melhor do que eu, que para o Estado a favela era um território novo e complexo, e que eles precisariam de tempo para criar novas rotinas que incluíssem esse espaço “alheio” da cidade. Diante desse reconhecimento, moradores e agentes do Estado assumiam que os primeiros precisavam “lutar”.

O que me inquietava não era a visão de que é necessária uma mobilização social. Sempre acreditei e defendi essa ideia, e não foi à toa que decidi me dedicar à área de estudos organizacionais, quando constatei a dimensão libertadora que a noção de organizações também pode conter, embora a primeira vista pareça paradoxal. Entretanto, qualquer forma de desigualdade sempre me inquietou, e me deparei em campo com uma forte desigualdade de percepções em termos do que são obrigações de um morador de favela e de um morador do “asfalto”. Como parte do segundo grupo, nunca tive que fazer grandes esforços para ter o meu lixo removido, e também nunca sofri pressões para participar de reuniões com os mais diversos órgãos públicos, e ainda assim tive minhas necessidades básicas atendidas. Por que se cobra de um morador de favelas um esforço tão maior?

Representantes do Estado referem-se a uma diferença que marca o “tempo do Estado” e o “tempo da favela”, reflexo das diferenças de lógicas, levando a uma inquietação dos moradores, que acabam por resolver os seus próprios problemas. Acontece que os processos de organizar de moradores de favela, marcados pelo imediatismo, assumiram padrões de maior rapidez e funcionalidade, em um espaço em que se pode apelar para a informalidade. Já os processos de organizar dos representantes do Estado em ação nas favelas assumem padrões de lentidão e descontinuidade, decorrentes do encontro entre sua lógica burocrática e a influência política com a novidade de um espaço, para eles, complexo, que exige novas rotinas.

A incompatibilidade de tempos sobre a qual me falavam alguns agentes do Estado ganhou forma para mim, especialmente em uma das reuniões de integração do PAC. Na ocasião, uma representante do programa “ensinava” aos moradores que eles não podiam deixar móveis e sofás velhos nas dependências do prédio. Era preciso ligar para a Comlurb buscar. E completou: “A Comlurb é muito rápida!” (Notas de Campo, 23/09/2013). Ao seu comentário, uma moradora respondeu: “Ela é muito rápida quando é ali na Vieira Souto!” (Notas de Campo, 23/09/2013). E daí desencadeou-se uma discussão a respeito da agilidade da Comlurb. Em voz baixa, a senhora que sentava atrás de mim comentou: “Mas que discussão idiota! Tem um monte de bêbado aqui, é só dá um trocado para o bêbado que ele se livra do sofá na hora!” (Notas de Campo, 23/09/2013).

Diante da incapacidade, da demora ou das excessivas exigências burocráticas dos representantes do Estado na resolução dos problemas dos moradores de favelas, muitos dos quais dizem respeito a demandas urgentes, mesmo em um contexto de uma presença mais intensa do Estado nas favelas, dá-se perpetuidade à lógica de “lutas”, e os moradores fazem por eles mesmos. Esse é o caso, por exemplo, dos gatos, que ainda são adotados por alguns moradores, mesmo com uma atuação mais intensa da Light nas favelas:

“Eu tentei normalizar quando eu fiz a minha casa, quando eu comprei um relógio quando eles chegaram lá eles falaram que não era aquele relógio. Tinha que ser um outro e botou mil e um empecilho. Eu continuei com o gato porque eu tinha acabado de gastar num relógio que eu pedi para eles colocar, fiz caixinha dentro, fora da minha casa, tudo para encaixar, eles disseram que não era nada daquilo, que eu tinha que comprar um outro e não-sei-o-quê, não-sei-o-quê, quebrar de novo a casa, eu continuei no gato.”

(Morador 6, favela da Zona Norte).

É por meio do choque entre processos de organizar com padrões distintos, ágeis e lentos, transitando entre informalidade e formalidade, que o espaço social de favelas parece ser produzido. E esse choque reflete-se no espaço social, expressando-se em hibridismos.

Hibridismos no espaço social de favelas

Ao retornar, meses depois, ao local do mutirão de limpeza do qual participei na favela da Zona Norte, me deparei, com muito pesar e com lágrimas nos olhos, com os sacos de lixo que enchemos durante os mutirões decompondo-se no local onde os posicionamos para que a Comlurb os retirasse. O lixo ensacado já estava ficando exposto, e os moradores começavam a jogar mais lixo em cima dos sacos. A Comlurb não estava conseguindo retirar o lixo com tanta rapidez quanto conseguimos ensacá-lo, e a diferença de tempos entre os processos de organizar da favela e do Estado materializava-se no espaço naqueles sacos decompostos que voltavam a se tornar um grande bloco de lixo. Ao lembrar-me dos longos sábados quebrando lixo com a enxada e ensacando-os com uma pá, tive vontade de chorar.

De acordo com Spink (2001)SPINK, P. O lugar do lugar na análise organizacional. Revista de Administração Contemporânea, v. 5, n. SPE, p. 11-34, 2001., é no lugar que se concretizam as disputas. Como um subespaço, as contradições são inerentes ao lugar. Conforme apontou Santos (2009)SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2009., por meio de sua definição de espaço, o conjunto de sistemas de objetos e de sistemas de ações é indissociável, mas também, em sua essência, contraditório. É nesse sentido que falo aqui em hibridismos espaciais, como o produto dessas contradições, inerentes ao espaço (SANTOS, 2009SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2009.), entre processos de organizar com padrões distintos e, às vezes, opostos, que se materializam no espaço em formatos capazes de refletir as lógicas distintas que ali se chocam.

Embora o caso do lixo tenha sido o mais comovente, esse não foi o único exemplo em que pude enxergar no espaço os efeitos dos choques entre processos de organizar com padrões distintos, produzindo hibridismos espaciais. Logo após a interrupção das obras do PAC na favela da Zona Sul, que deixou várias obras inacabadas, pude observar a rápida ocupação que os moradores faziam desses espaços temporariamente abandonados pelo PAC. O espaço, um recurso escasso nas favelas, tende a ser disputado entre moradores e entre representantes do Estado e moradores. Mas a maior agilidade dos processos de organizar dos moradores de favelas permite que eles se apropriem com rapidez de espaços em que o Estado deixa de atuar, mesmo que temporariamente.

Por isso, vi as ruas semiabertas pelo PAC serem ocupadas por mesas de pingue-pongue, onde os moradores jogavam em cima do asfalto. Vi apartamentos serem ocupados por moradores, que depois impediam a retomada da obra, e logo davam a “sua cara” ao espaço ocupado. Ouvi um relato de degraus de cimento que foram construídos para dar sustentação a um parque infantil que foram ocupados por casas construídas rapidamente pelos moradores. E mesmo quando as obras eram finalizadas, mas não agradavam aos moradores, dava-se um jeito: vi uma praça com mesas e bancos de cimentos ser ocupada com uma poltrona velha, que embora não “combinasse” muito com a decoração da praça, era muito mais confortável para se sentar.

Os hibridismos espaciais também apareciam como consequência do choque entre a informalidade da favela e a formalidade da lógica burocrática do Estado. Um bom exemplo é o mototáxi. Conforme lembrou Misse (2013)MISSE, D. G. Políticas Sociais em territórios pacificados. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2013., as favelas nunca contaram com transporte público, e por isso desenvolveram seus próprios meios de locomoção, tendo em vista que a inclinação dos morros dificulta que se suba a pé. Em ambas as favelas pesquisadas, as opções de transporte para subir o morro se davam com o uso de Kombi ou mototáxi, ambos no valor de R$ 2,50, à época da pesquisa. Com a entrada da UPP, que veio acompanhada de um discurso de que as leis da favela agora teriam que seguir as leis do “asfalto”, a questão do transporte informal teve que ser repensada. Entretanto, Misse (2013)MISSE, D. G. Políticas Sociais em territórios pacificados. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2013. explica que a profissão de mototaxista não é reconhecida pela prefeitura. Com a “pacificação”, esses meios de transporte não foram formalizados pela prefeitura e continuam atuando de forma irregular, tendo em vista que são indispensáveis à vida na favela, e que o Estado não apresentou nenhuma outra alternativa formal.

Entretanto, como pude perceber ao longo de minha pesquisa de campo e conforme reforçado também por Misse (2013)MISSE, D. G. Políticas Sociais em territórios pacificados. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2013., os comandantes das UPPs, embora tenham mantido os meios de transporte informais, impuseram uma série de regras para o seu funcionamento, como o uso obrigatório de capacetes e de coletes, e a determinação do local dos pontos. Diante da incapacidade do Estado de prover transporte público, os moradores resolveram o problema à sua própria maneira, marcada pela informalidade. Com o choque de processos de organizar, que se intensifica com a entrada das UPPs, a formalidade do Estado produz na favela um hibridismo: um meio de transporte ilegal com regras formais de atuação.

Entretanto, os representantes do Estado em ação nas favelas também começam a se apropriar da lógica da própria favela, principalmente no que diz respeito à funcionalidade. De fato, muitos representantes do Estado passaram a incorporar em suas próprias estruturas organizacionais formas organizacionais advindas da favela, produzindo estruturas híbridas. Conforme mostrou Silva (2013)SILVA, M. C. de A. A transformação da política na favela: um estudo de caso sobre os agentes comunitários. Dissertação (Mestrado) – PPGSA, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., os mutirões de limpeza, por exemplo, que costumam ser realizados pelos moradores, passam a ser remunerados pelo Estado. Um exemplo emblemático em minha pesquisa é o caso do PAC, que firmou contrato com uma organização dos moradores da favela da Zona Sul que trabalha com a questão do lixo, para que esta realize mutirões de limpeza periódicos, conscientizando os moradores a respeito da questão do lixo. De forma ainda mais ampla, como mostrou Silva (2013)SILVA, M. C. de A. A transformação da política na favela: um estudo de caso sobre os agentes comunitários. Dissertação (Mestrado) – PPGSA, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., surge recentemente nas favelas a figura do agente comunitário: morador da favela que passa a atuar para um determinado órgão público. Diversos agentes do Estado em ação nas favelas analisadas contavam com este cargo: UPP Social, PAC, Clínica da Família, CRAS, são alguns deles. A Comlurb incorporou como parte de suas funções o estímulo aos mutirões em favelas – realizados pelos moradores, para os quais ela cedia o material –, como me explicou um gerente da Comlurb em entrevista:

“V – E como é que funcionam esses mutirões?

K – Tem moradores voluntários, a gente cede no caso a luva e o equipamento necessário e eles marcam um dia e entra a Comlurb e o material da Comlurb e os moradores voluntários, né. [...].

V – Entendi. É... E aí essas encostas são limpas no mutirão porque no trabalho do dia a dia da Comlurb vocês não têm acesso a esse tipo de...?

K – Essas encostas... Quando acontece isso são encostas que... A Comlurb tem a rotina dela, mas não de ficar limpando dia a dia o que o morador faz de errado [...]. Aí combinam “Vamos fazer uma limpeza ali e vamos orientar os moradores”. Aí alguns aceitam, outros continuam jogando no terreno lá, tem má vontade de carregar o seu lixinho até um container mais próximo. Sai jogando, infelizmente...

V – E esses mutirões eles acontecem por iniciativa dos moradores ou é a própria Comlurb que propõe, que chega lá e ‘ah, vamos fazer um mutirão’?

K – Não, quando tem assim necessidade,... Isso aí depende muito da visão técnica, quando precisa a gente convoca e vê se eles podem colaborar... Porque também, é um mutirão, não é obrigado, né... É voluntário, é uma coisa bem espontânea. Mas aqui eu ainda não fiz. Lá no Borel acontecia sempre porque já virou uma rotina.

V – Uhum. Entendi. Aí vocês chegam, propõem, veem ...

K – Vai na associação de moradores, convocar os líderes daí, indicados por eles, aí vamos convocar o pessoal no dia tal.

V – E fora das comunidades tem esse tipo de trabalho também?

K – De mutirão não. Da Comlurb não.”

(Representante da Comlurb 1, favela da Zona Norte).

Como se pode perceber no trecho anterior, a Comlurb reconhece sua incapacidade de responder à urgência imposta pela lógica da favela, concretamente, de fazer uma limpeza completa das favelas, e por isso conta com os próprios moradores para ajudá-los nessa função, embora não possa obrigá-los a tal. Em algumas favelas, como é o caso do Borel, relatado pelo gerente da Comlurb, os moradores são quase “incorporados” à estrutura da organização, e já se conta com o trabalho deles para que a função da Comlurb seja cumprida, com auxílio desses mutirões que passam a ocorrer periodicamente. Já no asfalto isso não acontece, uma vez que a rotinização já está estabelecida.

Em síntese, o que aqui me propus a demonstrar é que a lógica de “lutas” da favela levou os moradores historicamente a desenvolverem formas mais funcionais e ágeis de se organizar, possíveis em um campo marcado pela informalidade e pela urgência imposta pelos problemas enfrentados. Já no caso do Estado, que busca “penetrar” o espaço das favelas, os processos de organizar são marcados pela formalidade e parecem ser “lentos” e demorados aos olhos dos moradores. Quando os processos de organizar se encontram, em um período de “pacificação”, esse choque produz efeitos no espaço, exemplificado discursivamente pela metáfora da luta e materializado em hibridismos espaciais, seja em construções, em serviços informais semiformalizados, ou mesmo nas próprias estruturas organizacionais dos agentes que atuam naquele espaço.

Conclusão

Neste artigo, nos propusemos a responder à seguinte questão de pesquisa: como o encontro entre os processos de organizar de representantes do Estado e os processos de organizar dos moradores de favelas se refletem no espaço social? Para tal, nos pautamos nas noções de materialidade social e de processos de organizar, conceitos que emergiram do próprio campo, tendo em vista que se percebe uma capacidade de ação da própria matéria, já que ela também molda os processos de organizar, e que as organizações, constantemente produzidas pelo espaço, também demandam um caráter processual.

Com base nas observações empíricas, foi possível identificar padrões enquanto repetições de ações, impostos aos processos de organizar tanto de representantes do Estado quanto de moradores de favelas. No primeiro caso, percebeu-se que padrões de descontinuidade e de lentidão são impostos aos processos de organizar, como decorrência da influência da política e da lógica burocrática do Estado. Já os processos de organizar dos moradores parecem apresentar padrões de maior agilidade e funcionalidade, pautados na informalidade comum à vida social das favelas. É por meio do choque entre processos de organizar com padrões distintos que o espaço social de favelas é produzido.

O encontro entre processos de organizar de representantes do Estado e de moradores de favelas parece produzir hibridismos espaciais, entendidos como produto das contradições, inerentes ao espaço (SANTOS, 2009SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2009.), entre processos de organizar com padrões distintos, que se materializam em formatos capazes de refletir as lógicas que ali se chocam. Quando a agilidade e a funcionalidade dos moradores se encontram com a lentidão e descontinuidade do Estado, o choque entre os processos de organizar parece materializar-se no espaço em ocupações de obras iniciadas pelo Estado e finalizadas pelos moradores, em serviços informais que passam a seguir algumas regras formais, e até mesmo em estruturas organizacionais híbridas, com a incorporação de moradores de favelas nas estruturas organizacionais do Estado, seja na figura do agente comunitário ou no pagamento de moradores para realização de mutirões.

A compreensão dos processos de organizar, ainda que os mais formais como aqueles desempenhados por representantes de um Estado burocrático, não é plenamente apreendida se descolada do espaço social, da vida cotidiana dos habitantes desse lugar, que é também produto e produtor dos processos de organizar. A busca por uma organização dos espaços de favelas, aos moldes daquilo que há muitos anos se faz no “asfalto”, pode levar a uma reorganização que também desorganiza, tendo em vista que os que habitam esse espaço também consolidaram sua própria maneira de organizar. É no choque entre processos de organizar com padrões distintos que o espaço social de favelas vem sendo produzido no contexto da “pacificação”, criando nas favelas hibridismos que são também desorganizadores.

  • 1
    A UPP Social é um programa municipal, vinculado ao Instituto Pereira Passos, que busca fazer uma articulação entre os moradores de favelas e o poder público, levantando demandas no território.
  • 2
    O Territórios da Paz é um programa vinculado à Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) e tem por objetivo o fortalecimento de redes nas favelas.
  • 3
    Tradução livre: O meu apelo é para estudar a organização como a conexão, reconexão e desconexão de várias ações coletivas umas com as outras, quer de acordo com os padrões ditados por uma determinada ordem institucional ou de uma forma inovadora. Tal ação coletiva não precisa ser realizada dentro dos limites de uma organização formal.
  • 4
    O PAC é um programa vinculado ao governo federal, voltado para obras de infraestrutura.
  • 5
    O CRAS é vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e visa garantir o acesso dos cidadãos aos seus direitos.
  • 6
    A Clínica da Família é vinculada à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e compõe uma rede de atendimento de saúde na cidade do Rio de Janeiro.
  • 7
    Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP) oferecem ensino público aos alunos da rede estadual.
  • 8
    O Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) é responsável pela política fundiária do estado, visando a promoção do acesso à terra.
  • 9
    O Centro de Referência da Juventude (CRJ) é vinculado à SEASDH e está voltado para o atendimento da população de 15 a 29 anos, oferecendo qualificação aos jovens.
  • 10
    A Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) é responsável pela limpeza da cidade do Rio de Janeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2015
  • Aceito
    11 Out 2016
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