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Planejamento urbano participativo: o desafio da linguagem técnica1 1 O presente trabalho foi escrito a partir da dissertação de mestrado da autora, defendida no Programa de Pós-Graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (NPGAU-UFMG) em 2016, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Participative urban planning: the challenge of technical language

Resumo

Entendendo a linguagem como elemento estruturante do relacionamento humano com a realidade e a produção da cidade como um processo coletivo por direito, este artigo busca elucidar alguns dos efeitos da linguagem técnica do campo do planejamento urbano sobre as capacidades dos cidadãos de intervir em processos de tomada de decisão sobre a cidade e destes de atuarem como arenas para a educação democrática. A partir das teorias de Pierre Bourdieu e Michel Foucault, são elucidadas estruturas de poder disciplinares e institucionais que determinam a eficácia simbólica de linguagens especialistas e identificados seus efeitos de exclusão em dois processos participativos de planejamento urbano realizados no município de Belo Horizonte em 2015-2016 − uma Operação Urbana Consorciada e um Plano Global Específico. Aproximações com a teoria democrática possibilitam contribuições para a discussão normativa do papel do especialista em contextos inclusivos e apontamentos para o aprimoramento da atuação profissional.

Palavras-chave:
Participação social; Planejamento urbano; Linguagem técnica; Poder; Democracia.

Abstract

Understanding language as a structuring element of the human relationship with reality and the production of the city as a collective process by right, this work aims to elucidate some of the effects of the urban planning field’s technical language on citizens' ability to intervene in decision making processes concerning the city and on the possibility of these processes fulfilling their potential as arenas for democratic education. Disciplinary and institutional power structures that determine the symbolic efficacy of specialist languages are unveiled through the theories of Pierre Bourdieu and Michel Foucault. These theories allow for the identification of its exclusionary effects in two participatory urban planning processes (a big rezoning project and a small favela urbanization plan) carried out in the city of Belo Horizonte in 2015-2016. An approach to democratic theory allows for a contribution to the discussion on experts normative role in inclusive contexts and for outlining strategies towards the improvement of professional practice.

Keywords:
Social participation; Urban planning; Technical language; Power; Democracy.

Introdução

A inquietação que dá origem a este trabalho parte do reconhecimento de uma enorme distância que separa as conquistas jurídicas e a prática de inclusão social nos processos de tomada de decisão vinculados à produção das cidades no Brasil. Amplamente defendida teórica e discursivamente, a participação social junto ao campo do planejamento urbano é hoje uma conquista legal no país, obrigatória para a formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (Brasil, 2001Brasil. (2001). Estatuto da Cidade - Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil.). No que diz respeito ao tema da cidade, institucionalmente, nunca fomos tão participativos (Maricato, 2007Maricato, E. (2007). Nunca fomos tão participativos. São Paulo: Carta Maior.). No entanto, constata-se repetidamente a dificuldade de debate e de tomada de decisão democrática a respeito de questões estruturais no processo de produção das cidades.

Entre as diversas críticas à experiência participativa vinculada ao tema da cidade no Brasil, poder-se-ia argumentar que as mais relevantes são aquelas capazes de evidenciar sua inocuidade frente à capacidade de influência política dos setores imobiliários e o consequente esvaziamento dos fóruns participativos institucionalizados. Entretanto, como se pretende argumentar neste artigo, nos momentos efetivos de encontro entre Estado, técnica e cidadãos, em que é possível observar o que a participação de fato faz e não o que ela não faz, uma leitura crítica do planejamento urbano como disciplina permite perceber que a linguagem técnica, científica e acadêmica do campo também consiste um significativo entrave para a produção democrática da cidade. Esta entendida aqui como a linguagem que se faz presente na complexidade das terminologias, nas estratégias de representação abstrata da realidade, na parametrização, na multiplicidade de políticas urbanas e de instrumentos de planejamento embutidos nos processos técnicos de apreensão e proposição sobre o espaço, assim como na dificuldade de acesso e de interpretação da legislação urbanística, de seus significados, implicações e, especialmente, de suas possibilidades.

É através da linguagem que os sujeitos não apenas afetam aos outros, mas afetam a si mesmos, assumem papéis, constroem-se socialmente e intervêm nos processos que conformam a ordenação sociopolítica (França, 2006França, V. R. V. (2006). Sujeito da comunicação, sujeitos em comunicação. In C. Guimarães & V. Franca (Orgs.), Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano (Vol. 1, pp. 61-88). Belo Horizonte: Autêntica.). O caráter estruturante da linguagem no relacionamento humano com a realidade faz de sua imbricação com relações de poder objeto de estudo de múltiplos autores. Neste artigo, com o objetivo de revelar campos de poder que se fazem presentes em fóruns participativos institucionalizados relacionados à produção do espaço e, assim, contribuir para uma atuação mais consciente dos profissionais do campo do planejamento urbano em relação ao seu próprio papel junto a esses processos, optou-se por explorar conjuntamente as teorias de Pierre Bourdieu e Michel Foucault.

A partir da teoria social de Pierre Bourdieu, pretende-se explorar o entendimento de uma economia de trocas simbólicas, com o objetivo de dar a devida importância às condições sociais de produção da linguagem especialista do planejamento urbano: fundamentalmente condições disciplinares. Essas, por sua vez, justificam o comparecimento da teoria de Michel Foucault, imperativa para um estudo das relações entre poder e conhecimento e da aplicação destas como forma de controle social por meio de instituições.

Ainda que conceitos e pressupostos teóricos dos dois sociólogos franceses apresentem aspectos divergentes, particularmente no que diz respeito ao lócus do poder, que para Foucault se situa nas relações e para Bourdieu no interior dos campos sociais (Somma et al., 2015Somma, J., No., Dias, E. C., & Caleffi, R. (2015). Entre Bourdieu e Foucault: relações de poder nos campos político e comunicacional. Tuiuti. Ciência e Cultura, (50), 55-70.), ambas as teorias têm como base uma análise do poder centrada no sujeito e oferecem amplo referencial para a crítica das instituições modernas (Cronin, 1996Cronin, C. (1996). Bourdieu and Foucault on power and modernity. Philosophy & Social Criticism, 22(6), 55-85. https://doi.org/10.1177/019145379602200603.
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). De fato, não são incomuns os estudos capazes de fazer aproximações entre eles (ver Moreno, 2006Moreno, H. C. (2006). Bourdieu, Foucault y el poder. Iberóforum. Revista de Ciencias Sociales de la Universidad Iberoamericana, 1(2), 1-14.; Cappelle et al., 2005Cappelle, M. C. A., Melo, C. O. L., & Brito, M. J. (2005). Relações de poder segundo Bourdieu e Foucault: uma proposta de articulação teórica para a análise das organizações. Organizações Rurais & Agroindustriais, Lavras, 7(3), 356-369.; Laval, 2017Laval, C. (2017). Foucault and Bourdieu: to each his own neoliberalism? Sociologia & Antropologia, 7(1), 63-75.). Como se pretende evidenciar neste artigo, no que diz respeito às expressões linguageiras do poder especialista do planejamento urbano e seus efeitos, as teses dos dois autores apresentam significativos pontos de convergência.

A reflexão teórica desenvolvida a partir desses autores será embasada por depoimentos de participantes e técnicos articuladores de dois processos participativos vinculados a distintos instrumentos de planejamento urbano realizados no município de Belo Horizonte nos anos de 2015 e 2016 − a Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos/Pedro I + Leste-Oeste (OUC ACLO) e o Plano Global Específico (PGE) da Vila Mantiqueira.

Para o desenvolvimento da discussão proposta, este artigo se divide em quatro partes. Na primeira, propõe-se retomar brevemente o histórico que conforma o campo do planejamento urbano no Brasil, evidenciando o atual cenário de contradição em que este se encontra e explicitando o embate entre especialistas e cidadãos que se dá internamente aos processos participativos institucionalizados vinculados à produção da cidade. Para tal, optou-se por uma revisão bibliográfica a partir de autores majoritariamente brasileiros que, inseridos em um campo da prática, buscam situar historicamente os entraves que constrangem as possibilidades para o planejamento democrático.

Em um segundo momento, utilizando como marcos as obras de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, propõe-se delinear o sistema de disposições que, apoiado em estruturas de poder disciplinares, determina a eficácia simbólica de linguagens especialistas e sua capacidade de composição de sistemas de restrição de falantes. Na terceira parte, a partir dos dois casos estudados, busca-se evidenciar alguns dos efeitos do discurso técnico como um discurso de autoridade e sua contribuição para distintas formas de exclusão em meio a processos que se pretendem democráticos. Em seguida, aproximações com a teoria democrática possibilitam alguns apontamentos normativos a respeito do papel a ser desempenhado por especialistas em contextos inclusivos. Por fim, tecem-se considerações finais advogando pela vivência da participação como via essencial para a superação dos entraves dela mesma.

Técnico versus participativo: o embate pós-transição democrática

A Revolução Industrial e o estabelecimento do capitalismo como como sistema econômico dominante provocaram dramáticas transformações na configuração das cidades, particularmente na Europa Ocidental. Como resposta à superpopulação e à ‘desordem’, o espaço urbano foi objetificado a partir das demandas de trafego e de higiene e dos discursos de racionalidade, eficiência e moralidade (Escobar, 2010Escobar, A. (2010). Planning. In W. Sachs (Ed.), The development dictionary: a guide to knowledge as power (2nd ed.). London: Zed Books.). A crença moderna em uma ciência neutra e autônoma reivindicou a adequação da técnica para a tomada de decisão pública e, assim, o campo do planejamento urbano se estabeleceu por meio de uma práxis tradicionalmente tecnocrática, heterônoma e centralizadora (Kapp, 2004Kapp, S. (2004). Autonomia Heteronomia Arquitetura. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, 10(11), 95-105.; Monte-Mór, 2007Monte-Mór, R. L. M. (2007). Planejamento Urbano no Brasil: emergência e consolidação. Etc, espaço, tempo e crítica. Revista Eletrônica de Ciências Humanas e Sociais, 1(4), 71-96.).

As concepções e práticas de planejamento introduzidas no então chamado Terceiro Mundo, no decorrer do século XX, carregavam consigo as marcas dessa reivindicação. No Brasil, particularmente durante o regime militar, concepções urbanísticas reformadoras e práticas de racionalidade administrativa europeias são importadas como estratégia de salvaguarda de legitimidade técnica para ações governamentais e consolidam o planejamento urbano como uma ideologia de Estado (Azevedo, 2011Azevedo, H. P. L. (2011). Planejamento e Gestão Municipal: planos diretores – avanços e alertas na implementação. In R. Faria, & B. Schvarsberg (Orgs.), Políticas urbanas e regionais no Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.; Ribeiro & Cardoso, 1994Ribeiro, L. C. Q., & Cardoso, A. L. (1994). Planejamento urbano no Brasil: paradigmas e experiências. Espaço & Debates, (37), 77-89.).

É nesse período que a elaboração de Planos Diretores se torna relevante no país, consolidando tanto a prática de produção de extensos levantamentos técnicos a respeito do território como de terceirização do planejamento pelas administrações locais, desprovidas de infraestrutura ou corpo técnico próprios para a elaboração destes planos. Tem-se a ascensão de um mercado de atuação profissional do urbanista que Azevedo (2011)Azevedo, H. P. L. (2011). Planejamento e Gestão Municipal: planos diretores – avanços e alertas na implementação. In R. Faria, & B. Schvarsberg (Orgs.), Políticas urbanas e regionais no Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. chama de “consultocracia” e a replicação da prática de produção de planos sem a participação nem mesmo dos funcionários municipais, tampouco dos cidadãos.

As críticas a esse modelo de planejamento e intervenção urbana não são novidade, havendo surgido ainda em fins dos anos 1950. Mas é apenas a partir dos anos 1970 que os jargões participação e participativo ganham força internacionalmente, quando o fracasso de planos de ajuda a países periféricos passa a ser atribuído à exclusão das populações afetadas do processo de concepção e implementação de projetos (Rahnema, 2010Rahnema, M. (2010). Participation. In W. Sachs (Ed.), The development dictionary: a guide to knowledge as power (2nd ed.). London: Zed Books.). Gradualmente, ativistas sociais e parte significativa dos próprios especialistas passam a defender o fim das estratégias de ação top-down (de cima para baixo) e a reivindicar a inclusão de métodos participativos como dimensão essencial para o desenvolvimento urbano.

No Brasil, marcadamente a partir de fins da década de 1980 e ao longo dos anos 1990, quando há um reflorescimento dos ideais de uma plataforma de reforma urbana refreada durante o período militar, a participação social passa a ser defendida como componente fundamental para a garantia da inclusão social e do afloramento de conflitos de interesses no debate democrático (Maricato & Santos, 2006Maricato, E. & Santos, O. A. S., Jr. (2006). Construindo a Política Urbana: participação democrática e o direito à cidade. Revista Teoria e Debate, 66.). Nesse período, prefeituras autodenominadas democrático-populares passam a buscar a eficiência administrativa por meio do estabelecimento de novos canais de compartilhamento do poder com a população. Em meio a políticas e reformas implementadas para atender aos princípios da legislação constitucional de 1988, surgem na escala municipal novas práticas inclusivas, como a instituição de Conselhos de Política Urbana e de programas de Orçamento Participativo (OP).

Amplamente defendida, a importância da participação social progressivamente se transforma em uma espécie de consenso discursivo, não apenas politicamente, mas também nos campos técnico e teórico vinculados à produção da cidade, e alcança status jurídico de obrigatoriedade nacionalmente na virada do século com a promulgação do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001). No entanto, o fortalecimento do espaço público e a abertura da gestão pública à participação da sociedade civil na elaboração de seus planos e políticas, em um país marcado por tradições estatistas, centralizadoras e patrimonialistas conformam um contraditório processo de rupturas e continuidades (Jacobi, 2002Jacobi, P. R. (2002). Políticas sociais locais e os desafios da participação citadina. Ciencia & Saude Coletiva, 7(3), 443-454. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232002000300005.
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).

Ademais, esse processo ocorre simultaneamente a expansão de uma economia neoliberal globalizada que ganha força no Brasil a partir dos anos 1990 e que vem sendo acompanhada de transformações nas políticas urbanas, habitacionais e fundiárias que impactam frontalmente os direitos à terra e à moradia (Rolnik, 2015Rolnik, R. (2015). Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo.). Instaura-se, assim, especialmente a partir do início do século XXI, um contexto de contradição no campo do planejamento urbano nacional: tem-se um quadro jurídico e institucional progressista que garante a participação social em contrassenso com as realidades tanto da possibilidade da tomada de decisão coletiva sobre o espaço, como da própria experiência de vida nas cidades. Essa contradição, no entanto, não se restringe unicamente a esse contexto sociopolítico adverso mais amplo, pois, como observa Saboya (2007Saboya, R. T. (2007). Construção de um sistema de suporte à elaboração de planos diretores participativo (Tese de doutorado). Programa de Pós-graduação em Engenharia Civil, Universidade federal de Santa Catarina, Florianópolis., p. 21),

[...] essa nova forma de gestão, mais democrática e agora amparada por lei, traz inúmeros benefícios para o processo de planejamento, mas também traz dificuldades para um corpo técnico que não foi preparado para trabalhar em conjunto com a população. Tradicionalmente, esta no máximo referendava ou solicitava pequenos ajustes nas propostas feitas pelos técnicos.

As dificuldades a que se refere o autor se devem, em grande parte, à própria composição das equipes técnicas responsáveis por organizar e conduzir processos participativos vinculados ao tema da cidade, comumente integradas por profissionais das áreas de arquitetura e urbanismo, geografia, economia, direito, engenharias, entre outras. Devido à complexificação da vida social moderna e à consequente preeminência por uma compartimentação que permita sua racionalização, passa a ser exigida desses profissionais uma formação altamente especializada, que, geralmente, não contempla de forma adequada o entendimento das implicações sociais e éticas de sua ocupação (Fischer, 2009Fischer, F. (2009). Democracy & expertise: reorienting policy inquiry. Oxford: Oxford University Press. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199282838.001.0001.
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), muito menos a atribuição de uma atuação que objetive a condução de processos de tomada de decisão democrática, tema clássico e objeto de estudo teórico e experimentação em outros campos, como os da ciência política, da sociologia e da comunicação.

Tampouco se pode ignorar que a participação social, ainda que falha, essencialmente tem o potencial de perturbar estruturas de poder, com consequências em relação à possibilidade de responsabilização e cobrança por parte dos cidadãos. Portanto, instituições, munidas de seus aparatos burocráticos, assim como seus agentes, frequentemente apresentam resistência a esses processos, entendendo que poderiam minar sua autoridade e interferir em seus campos de atuação. A obrigatoriedade da participação social reafirmada pelo Estatuto da Cidade provocou, portanto, uma série de tensões para os governantes locais, funcionários e técnicos, que se viram responsáveis por incorporar esses processos em sua prática.

Nesse sentido, entende-se que o legado tecnocrático, heterônomo e centralizador do campo do planejamento urbano ainda ecoa como um entrave para a tomada de decisão democrática. Mais especificamente, ele pode ecoar na forma de resistência institucional, na dificuldade de diálogo com os saberes locais, no despreparo para condução de processos participativos, assim como na imposição da linguagem técnica como forma legítima de enunciação internamente a fóruns que se pretendem democráticos, cujas implicações pretende-se delinear a seguir.

Linguagens especialistas e estruturas de poder

Em grande parte, o isolamento e a exclusividade são uma finalidade das linguagens especialistas que operam como mecanismos de conservação institucional e disciplinar do campo em que se inserem. Os saberes são velados pelo código técnico em uma relação de poder essencialmente reprodutora, garantindo a poucos o status de especialista. Particularmente, no caso da linguagem técnica da arquitetura e do urbanismo, a complexidade de conhecimentos necessários à compreensão do dinamismo das disputas travadas nas cidades faz com que essa clausura de saberes apresente diferentes níveis de profundidade crítica, perpassados por diferentes ideologias. Não basta ser capaz de ler um mapa, por exemplo, para que seja possível compreender e discutir as implicações de um zoneamento em relação à valorização do preço da terra, à manutenção ou expulsão de populações, às qualidades ambientais e espaciais que serão produzidas ou às suas influências regionais em diferentes escalas.

No entanto, não se pode reduzir o entrave da linguagem técnica para a construção de um espaço urbano mais democrático à codificação e consequente exclusividade do domínio de saberes. É preciso também compreender o sistema de disposições que determina a capacidade de dominação simbólica dessa linguagem, historicamente construído através da eficiência disciplinar de determinação de verdades. Em última instância, é preciso perceber que o exercício de uma competência técnica, ainda que imperfeita, é capaz de atuar nominalmente como uma competência social, autorizar e conferir autoridade a um falante e criar, assim, formas de exclusão sutis e difíceis de desafiar, impondo obstáculos à constituição de uma competência coletiva. Como anunciado na introdução deste trabalho, para avançar nessa compreensão, acredita-se que é preciso atentar para as condições sociais de produção das linguagens técnicas, que são fundamentalmente condições disciplinares.

Para Foucault (1995)Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In P. Rabinow, & H. Dreyfus (Ed.), Michel Foucault: uma trajetória filosófica - para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária., o conceito de disciplina pode ser entendido como um “bloco” no qual o ajuste das capacidades técnicas, os feixes de comunicação e o jogo das relações de poder constituem sistemas regulados e concordes, ajustados uns aos outros segundo fórmulas refletidas. Para essa definição, o autor se vale também de seu negativo, afirmando que “[...] uma disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou de sistematicidade” (Foucault, 2007Foucault, M. (2007). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 (15a ed.). São Paulo: Edições Loyola., p. 31). Efetivamente, segundo o autor, ao reconhecer proposições verdadeiras e falsas, cada disciplina, como um esquema artificialmente claro e decantado, repele para fora de suas margens toda uma teratologia do saber que não se inscreva em certo horizonte teórico. Ou seja, o contexto da produção disciplinar da linguagem consiste em um mecanismo de imposição de regras discursivas que determinam o verdadeiro internamente ao seu campo e que podem ser mais ou menos exclusivas e, portanto, excludentes.

O contexto social de produção disciplinar de uma linguagem carrega também um relevante atributo: a especial dificuldade de aquisição de seu domínio sem a oportunidade de um aprendizado formal. Ou seja, as possibilidades desiguais de acesso ao sistema educacional – especialmente marcantes no contexto brasileiro – atuam na manutenção e no reforço de desigualdades sociais, não apenas por proporcionar a poucos a capacidade de domínio dessas linguagens e, com elas, dos saberes que velam, mas, também, conferindo a esses poucos indivíduos autoridade em disputas subsequentes pelo poder da tomada de decisão, ao autorizá-los como representantes de instituições disciplinares.

Em consonância, constata-se a partir de Bourdieu (1992)Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press. que o poder da linguagem reside no fato de que ela não é produzida em nome da pessoa, que é apenas seu porta-voz. Segundo o autor, o falante autorizado como representante de uma instituição disciplinar só é capaz de utilizar palavras para agir sobre outros agentes e, através de suas ações, sobre as próprias coisas, porque seu discurso concentra internamente o capital simbólico acumulado da instituição que lhe delega autoridade. A esse respeito, o autor afirma que,

[...] de fato, o uso da linguagem, a maneira tanto quanto a substância do discurso, depende da posição social do falante, que governa o acesso que ele pode ter à linguagem da instituição, isto é, ao discurso oficial, ortodoxo e legítimo. É o acesso aos instrumentos de expressão legítimos, e portanto a participação na autoridade da instituição, que faz toda a diferença – irredutível ao discurso como tal. (Bourdieu, 1992Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press., p. 109, tradução nossa).

Bourdieu (1992)Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press. verifica também que há uma disparidade estrutural entre a capacidade de utilização de uma linguagem oficial – aquela considerada como própria de um país, cujo léxico obedece a regras gramaticais – e a capacidade de reconhecimento dessa mesma linguagem pelos que não a dominam, sendo esta última ordinariamente muito mais uniforme. Segundo o autor, essa disparidade é justamente a condição para o estabelecimento de relações de dominação linguística. Uma constatação semelhante certamente poderia ser feita também a respeito das linguagens especialistas, uma vez que o reconhecimento do discurso disciplinar permite que, muitas vezes, sua força derive simplesmente da utilização de termos técnicos e não de seu real conteúdo argumentativo.

O sistema disciplinar reafirma, portanto, a manutenção da eficácia de discursos especialistas através da distinção entre a estrutura do espaço social em que esses são produzidos em oposição à estrutura do campo sociocultural em que seus interlocutores estão situados. Como afirma Bourdieu (1992Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press., p. 113), “[...] a linguagem de autoridade nunca governa sem a colaboração daqueles que ela governa. Sem a ajuda do mecanismo social capaz de produzir essa complexidade, baseada no erro de reconhecimento. Que é a base de toda autoridade”.

Sustenta-se, também a partir de Bourdieu (1992)Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press., que nenhuma linguagem é capaz de possuir valores externos ao mercado de trocas simbólicas, oriundos de virtudes intrínsecas como qualidades “lógicas”. No entanto, como afirma Galvão (2004)Galvão, M. C. B. (2004). A linguagem de especialidade e o texto científico: notas conceituais. Transinformação, 16(3), 241-251. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-37862004000300004.
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, tradicionalmente, a linguagem especialista chegou a ser entendida como o campo dos signos monossêmicos (relação entre um termo, um conceito e um referente), adquirindo qualidades presumidas de rapidez e eficiência comunicacional. Suas virtudes seriam tais que essas linguagens supostamente teriam a capacidade de solucionar problemas cognitivos e culturais através da equivalência funcional. Tanto é que a aparição de estudos que evidenciam as características linguísticas da linguagem técnica, suas dimensões sintática/semântica e sua dinamicidade social, geográfica, política etc. é relativamente recente e ainda objeto de controvérsia (Galvão, 2004Galvão, M. C. B. (2004). A linguagem de especialidade e o texto científico: notas conceituais. Transinformação, 16(3), 241-251. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-37862004000300004.
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).

O contexto de produção social de linguagens especialistas revela, portanto, uma capacidade de dominação simbólica historicamente construída através da eficiência disciplinar de determinação de verdades, compondo um complexo sistema de restrições que é base de sua autoridade (Bourdieu, 1992Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press.). No contexto dos processos participativos vinculados ao campo do planejamento urbano, entende-se que a imposição desse discurso de autoridade é capaz de provocar um desequilíbrio das relações de poder, determinando as sentenças compreensíveis, ouvidas e consideradas. Esse desequilíbrio, por sua vez, se reflete em algumas propriedades, muitas vezes sutis, capazes de conferir aos fóruns participativos o que poderia ser caracterizado, a partir de Foucault e Bourdieu, como a rigidez de rituais.

Para Foucault (2007)Foucault, M. (2007). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 (15a ed.). São Paulo: Edições Loyola., o que se pode agrupar sob o nome de ritual reúne formas superficiais e visíveis de sistemas de restrição. Um sistema de restrição consiste, por sua vez, em um grupo de procedimentos que permitem o controle dos discursos por meio da determinação das condições de seu funcionamento e da imposição de um certo número de regras aos indivíduos que os pronunciam. Em outras palavras, para o autor, um ritual é um sistema de rarefação dos sujeitos que falam, a partir de suas propriedades de definir: (i) quem entrará na ordem do discurso – na medida em que deve satisfazer certas exigências ou ser, de início, qualificado para fazê-lo – e será capaz de ocupar determinada posição e de formular determinado tipo de enunciados; e (ii) os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso. Enfim, um ritual, para Foucault, consiste em um sistema de restrição do discurso capaz de fixar a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem e os limites de seu valor de coerção.

Em consonância, Bourdieu (1992)Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press. constrói o entendimento de um ritual como uma operação de “mágica social” realizada por um discurso de autoridade. Segundo o autor, a questão mais importante a ser lembrada a respeito dessa operação “mágica” é sua dependência em relação a uma combinação sistemática de condições interdependentes, segundo as quais o discurso de autoridade que realiza o ritual deve: (i) ser pronunciado pela pessoa legitimamente licenciada para fazê-lo; (ii) ser pronunciado em uma situação legítima, isto é, diante de espectadores legítimos; e, finalmente, (iii) ser enunciado de acordo com as formas legítimas de fazê-lo. Em suma, Bourdieu (1992Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power. Cambridge: Polity Press., p. 115) afirma que, para que o ritual funcione e opere, ele deve:

[…] primeiramente se apresentar e ser percebido como legítimo, com símbolos estereotipados servindo precisamente para demonstrar que os agentes não agem em seu próprio nome ou em sua própria autoridade, mas em sua capacidade como delegados.

A partir desses autores, portanto, entende-se que o acesso aos instrumentos legítimos de expressão e, portanto, a participação na autoridade institucional, fazem toda a diferença no estabelecimento e reconhecimento da validade de um rito social capaz de coagir gestos, comportamentos e circunstâncias. Ou seja, o poder que certos termos têm de garantir o esforço de outros para sua compreensão sem despender esforço ele mesmo é o próprio objetivo da “ação mágica” que caracteriza um ritual. Para que um ritual exerça esse efeito, é preciso seu reconhecimento como fonte de autoridade, por meio da eficiência do simbolismo que representa – no sentido teatral do termo – a delegação. A seguir, propõe-se demonstrar a capacidade do discurso técnico do campo do planejamento urbano de exercer esse efeito impositivo e coercitivo sobre aqueles aos quais se dirige, culminando no reconhecimento dos rituais de participação institucionalizados como legítimos, sem que necessariamente cumpram o que se propõem.

Discurso técnico e exclusão

Os objetos empíricos em que se baseiam os apontamentos trazidos a seguir consistem em dois processos participativos institucionalizados realizados no município de Belo Horizonte ao longo dos anos de 2015 e 2016. O processo participativo vinculado à Operação Urbana Consorciada2 2 As Operações Urbanas Consorciadas são sofisticadas modalidades de parceria público-privada estabelecidas como instrumentos de planejamento urbano pelo Estatuto da Cidade com o objetivo de “[…] alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental” (Brasil, 2001, art. 32). Antônio Carlos/Pedro I + Leste-Oeste (OUC ACLO)3 3 A proposta (ainda não concretizada) de implantação de uma operação urbana na área onde se situa a OUC ACLO em Belo Horizonte é fruto de um polêmico e conturbado histórico que envolve a paralisação do processo de aprovação da então chamada “OUC Nova BH” pelo Ministério Público e sua posterior retomada sob o atual desígnio. e ao Plano Global Específico (PGE)4 4 Em aplicação desde fins da década de 1990 pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel) – empresa pública responsável pela implementação da Política Municipal de Habitação Popular –, o PGE é um instrumento de planejamento que norteia as intervenções de reestruturação urbanística, ambiental e de desenvolvimento social nas vilas, favelas e conjuntos habitacionais populares do município. da Vila Mantiqueira5 5 Localizada na regional Venda Nova, no extremo norte da Capital, a Vila Mantiqueira é reconhecida pelo atual Plano Diretor do município de Belo Horizonte como Zona Especial de Interesse Social tipo 1 (ZEIS-1). Segundo dados levantados pelo PGE, a Vila teve sua ocupação consolidada ao longo da década de 1970 e seus moradores convivem com condições precárias particularmente de transporte público e de saneamento. .

A identificação de diferenças significativas entre esses dois processos justifica sua escolha em contraste e complementaridade como universo de análise contundente, ainda que restrito, para a discussão aqui proposta. Em especial, o contraste em relação à escala dos projetos em discussão (verFigura 1) e em relação ao perfil de seu público participante. No caso da OUC ACLO, tem-se um público composto majoritariamente por membros de associações diversas e da academia e por funcionários públicos e, no caso do PGE, pela população residente na Vila Mantiqueira, majoritariamente jovens e adultos com menos de 45 anos, que possuem ensino fundamental ou médio incompletos e renda domiciliar mensal inferior a três salários mínimos6 6 Essas afirmações têm como base dados estimados a partir das listas de presença dos eventos participativos OUC ACLO e levantamentos realizados pelo PGE da Vila Mantiqueira. .

Figura 1
- Área de intervenção dos planos urbanísticos da OUC ACLO e do PGE da Vila Mantiqueira no município de Belo Horizonte. Fonte: acervo da autora.

O processo participativo da OUC ACLO envolveu sete distintos formatos institucionais7 7 Oficinas Institucionais, Oficinas com Conselheiros da Sociedade Civil, Debates Regionais, Visitas de Campo, Oficinas com Moradores e Usuários, Grupos de Discussão Técnica, Audiências Públicas e apresentações públicas do projeto. em um total de 42 eventos coordenados pelo corpo técnico da Secretaria Adjunta de Planejamento Urbano da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (Smapu/PBH). Um total de 1.297 pessoas participaram do processo, sendo que 93% desse total estiveram presentes em apenas um ou dois eventos. Por sua vez, o processo participativo do PGE da Vila Mantiqueira envolveu onze distintos formatos institucionais8 8 Assembleia de Partida, Consolidação do histórico da Vila Mantiqueira, Capacitação Cartográfica, Entrevistas com moradores, Apresentação do Diagnóstico, Sugestão de Propostas, Apresentação de Propostas, Plantão, Assembleia de votação, Hierarquização e custos e Assembleia de Encerramento. em um total de dezessete eventos coordenados por técnicos de empresa de consultoria terceirizada para a elaboração do Plano. Boa parte do processo participativo envolveu exclusivamente um grupo de representantes dos moradores da Vila, chamado de Grupo de Referência (GR) composto por 67 pessoas – representantes de 28% do total de 242 domicílios da Vila.

Eventos que compunham ambos os processos participativos foram acompanhados pela autora e, posteriormente, realizaram-se entrevistas tanto com propositores/articuladores dos eventos participativos como com os participantes9 9 Para a elaboração deste trabalho, foram realizadas 40 entrevistas, algumas em dupla ou em grupo, totalizando 50 pessoas entrevistadas, sendo 13 participantes ou propositores/articuladores do processo participativo do PGE da Vila Mantiqueira e 37 da OUC-ACLO. , com o objetivo de observar assimetrias de poder manifestas internamente a esses processos e seus efeitos sob as possibilidades não apenas da tomada de decisão democrática, mas também sobre seu potencial de figurar como arenas para a educação democrática.

Como afirma Mendonça (2009)Mendonça, R. F. (2009). Challenging subtle forms of power in deliberation: a case study on the future of Hansen’s disease colonies in Brazil. Policy and Society, 28(3), 211-223. http://dx.doi.org/10.1016/j.polsoc.2009.08.001.
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, não é incomum que debates que se pretendem democráticos sejam marcados por diferentes tipos de assimetrias e formas de reforço de desigualdades preexistentes. A partir do autor, entende-se que essas desigualdades ou expressões de poder podem emergir de duas formas que se refletem na capacidade de imposição de grupos ou discursos sobre outros: a partir da própria estruturação do fórum que estabelece a agenda de discussões, configurando o que Young (2000)Young, I. M. (2000). Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press. define como “exclusão externa”; ou, de maneira mais sutil, com base na forma como os participantes mobilizam suas habilidades discursivas, definido como “exclusão interna” (Young, 2000Young, I. M. (2000). Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press.). Mendonça (2009)Mendonça, R. F. (2009). Challenging subtle forms of power in deliberation: a case study on the future of Hansen’s disease colonies in Brazil. Policy and Society, 28(3), 211-223. http://dx.doi.org/10.1016/j.polsoc.2009.08.001.
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destaca ainda que ambas essas formas de exclusão podem não ser sempre explícitas ou mesmo intencionais, mas, independentemente dessas condições, são capazes de moldar os indivíduos, suas expectativas, capacidades políticas e formas de se expressar.

Nos fóruns participativos acompanhados, o papel do discurso técnico para a efetivação da exclusão externa, forma mais óbvia e explícita de cerceamento das possibilidades de um processo de tomada de decisão que se pretende inclusivo, era evidente no caso da OUC ACLO, dada a abertura tardia do processo para a participação social. Efetivamente, implantação de uma OUC na área já vinha sendo debatida internamente na Smapu/PBH pelo menos desde 2010, quando o Plano Diretor Municipal, então revisado, demarcou no município áreas prioritárias para implantação de OUCs. Os próprios técnicos responsáveis pelo projeto admitiam o estado de predefinição do projeto e sua limitada abertura à participação, como verificado no depoimento de uma das coordenadoras do projeto, a seguir:

Na verdade, essa proposta que a gente apresentou depois ela já existia aqui dentro. […] Existe um projeto, ele é muito claro, não está nesse momento mais da gente fazer um diagnóstico. […] Então assim, a primeira premissa nossa era isso: “Já existe uma proposta.” Então o que a gente vai trabalhar ao máximo é que ela seja aberta, pra que a gente consiga incorporar, mas dentro das possibilidades que ela tem de abertura porque ela tem uma coisa muito estrutural já e tal. […] então o que a gente teve de contribuição [do processo participativo]... Não tiveram contribuições estruturais na proposta. (Técnica SMAPU/PBH. Coordenação OUC ACLO. Fala registrada em entrevista em 03/11/2015)

De forma semelhante, no caso do PGE da Vila Mantiqueira, ainda que o projeto em si não se encontrasse predefinido quando do início do processo participativo, um processo heterônomo de tomada de decisão fundamentado em uma perspectiva técnica também se impunha sobre a estrutura dos fóruns participativos, desta vez a partir do estabelecimento de uma rígida agenda de discussão. A rigidez de agenda era evidente em certas práticas de condução de eventos, como a realização de longas e complexas apresentações acompanhadas de um tempo restrito para o debate, a proposição de dinâmicas focadas na abordagem tecnocrática de solução de problemas, ou mesmo a insistência em pautas de enfoque tecnicista e/ou legalista, muitas vezes distantes das demandas cotidianas daqueles que habitavam o espaço sobre o qual se pretendia intervir.

Presente em ambos os processos, esse tipo de prática tolhia claramente as possibilidades de tomada de decisão democrática ao conferir a um grupo seleto de indivíduos – em geral, os próprios técnicos responsáveis pela condução do processo participativo – o controle dominante sobre o que acontecia nos fóruns e em seus debates, especialmente o controle sobre os termos em que se dava o processo de tomada de decisão. Ou seja, o estabelecimento da linguagem técnica como forma predileta de enunciação e, consequentemente, a determinação das sentenças compreensíveis, ouvidas e consideradas.

Por sua vez, a ideia de exclusão interna está relacionada aos efeitos de constrangimento e às desigualdades de recursos que levam à incapacidade de indivíduos questionarem outros, seja devido a uma escassez de habilidades comunicativas ou à sua própria identidade e inserção social (Mendonça, 2009Mendonça, R. F. (2009). Challenging subtle forms of power in deliberation: a case study on the future of Hansen’s disease colonies in Brazil. Policy and Society, 28(3), 211-223. http://dx.doi.org/10.1016/j.polsoc.2009.08.001.
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). Trata-se de efeitos particularmente danosos a contextos democráticos, pois, ao constranger participantes a não se pronunciarem, abrem a possiblidade de apropriação de processos participativos para o referendo de decisões heterônomas através do falseamento de consensos. Sabe-se, a partir de Foucault e Bourdieu, que o domínio da linguagem legítima é capaz simultaneamente de dificultar a compreensão de argumentos e transparecer autoridade, coercivamente legitimando declarações de alguns enquanto restringe as possibilidades de outros os contraporem. Os depoimentos de participantes de ambos os processos destacados a seguir explicitam o papel do discurso técnico para a efetivação dessa forma mais sutil de exclusão:

Eu fiquei inseguro na verdade. Porque eu fui mais pra conhecer, sabe? Aí como eu estava mais pra conhecer, eu falo muito na verdade, mas como eu estava mais pra conhecer, eu falei: “Não. Vamos só ficar conhecendo”. Eu sou de uma que quando eu não tenho o que falar eu não abro a boca, sabe? […]Eu acho que sim, por falta de conhecimento mais aprofundado do projeto, eu fui mais pra conhecer e saí com mais dúvida do que entrei. (Participante OUC ACLO. Funcionário PBH − Secretaria Municipal Adjunta de Gestão Compartilhada. Fala registrada em entrevista em 23/10/2015).

A maior parte do tempo eu fiquei mais de espectador porque tinha muita coisa ali que eu não entendia mesmo. Estava tentando entender. (Participante OUC ACLO. Setor acadêmico – pesquisador. Fala registrada em entrevista em 15/10/2015).

Algumas [apresentações] eu consigo entender, mas eu acho que eu que sou meia lenta mesmo pra entender. Porque todo mundo entende, eu que sou meia lenta. (Participante PGE − moradora Vila Mantiqueira. Fala registrada em entrevista em 16/04/2016).

Assim, entende-se que as críticas que apontam para a cooptação dos processos participativos vinculados ao tema da cidade, seja para a chancela de decisões prévias, para a efetivação de apenas pequenos ajustes projetuais, ou mesmo para a reprodução de relações de clientelismo, não podem se furtar a reconhecer o papel desempenhado pelo discurso técnico tanto na defesa pública de decisões heterônomas e na obliteração de propostas contrárias, que invariavelmente valer-se-ão de argumentos técnicos, mas também na incorporação de uma autoridade conferida pela técnica a essas mesmas decisões. Pois, como questiona Mendonça (2009Mendonça, R. F. (2009). Challenging subtle forms of power in deliberation: a case study on the future of Hansen’s disease colonies in Brazil. Policy and Society, 28(3), 211-223. http://dx.doi.org/10.1016/j.polsoc.2009.08.001.
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, p. 216, tradução nossa), “[…] como alguém pode discordar de algo que não consegue compreender plenamente? E como alguém pode discordar de outro que parece saber tanto?”.

É preciso salientar ainda que efeitos de exclusão interna não eram exclusividade da atuação dos técnicos condutores dos processos participativos acompanhados. Justamente a capacidade que permitia que alguns dos participantes – em geral, representantes do mercado imobiliário, membros de associações diversas que acumulam uma prática de atuação pública em defesa de interesses específicos ou mesmo membros da academia – deixassem de ser espectadores e pudessem influenciar e incidir sobre o processo de tomada de decisão, alterando resoluções a favor de suas perspectivas, também afetava as possibilidades de expressão dos demais. Como destacam os depoimentos, respectivamente, de uma acadêmica, participante da OUC ACLO, e de uma das técnicas que compunha a equipe responsável pela condução do processo participativo, a seguir:

Nas reuniões técnicas a gente estava lá pra trazer a coisa técnica sobre gestão, então a gente não estava lá pra fazer um debate genérico, a gente estava lá pra falar assim: “Somos técnicos, entendemos disso também e vamos disputar com vocês isso.” Então, quando a gente falava, muitas pessoas às vezes se sentiram desconfortáveis porque não entendiam. E aí quando pegavam a fala, falava de forma grosseira: “Ah, eu não fiz doutorado, pós-doutorado e não sei o que lá.” […] algumas reuniões eu saí meio triste, pensando, não precisava, foi ruim. Elas se sentiam acuadas porque a gente estava tendo o mesmo nível de debate da Prefeitura e de certa forma excluindo eles daquele debate. (Participante OUC ACLO. Setor acadêmico − grupo de pesquisa. Fala registrada em entrevista em 22/10/2015).

É, porque a questão mesmo das audiências tem muitas pessoas que detêm um discurso técnico, que é muito forte e é claro pra gente é muito produtivo, mas ele intimida a fala do outro que não consegue ter aquele mesmo discurso, não consegue às vezes nem acompanhar o que o outro está falando e se sente intimidado: “Vou falar pra que? Pra passar vergonha?”. (Técnica SMAPU/PBH. Equipe OUC ACLO. Fala registrada em entrevista em 03/11/2015).

Por vezes, ao contrário de fazer desses fóruns momentos de tomada de decisão democrática ou contribuir para a construção discursiva e contextual de relações de cidadania, entende-se que a capacidade exclusiva de alguns de inserção nessa disputa discursiva pode atuar na manutenção e no reforço de desigualdades sociais estruturais, particularmente dada a já mencionada dificuldade de aquisição do domínio da linguagem técnica sem a oportunidade de um aprendizado formal.

Como mecanismo de coerção, a linguagem especialista figurava também como elemento-chave da transmutação do reconhecimento da competência técnica em autorização para o exercício de uma competência social – a tomada de decisão sobre a cidade. A partir dos processos participativos acompanhados, observou-se a ocorrência dessa transmutação de duas formas distintas. Para participantes da OUC ACLO, ela se deu no estabelecimento de uma relação de confiança naqueles que dominavam o discurso técnico, muitas vezes independentemente da compreensão das discussões empreendidas ou das possíveis consequências das decisões alcançadas. Tal como evidenciado pelo depoimento de um acadêmico, participante da OUC ACLO, destacado a seguir:

Acho que eles têm muita credibilidade sabe? Eu tenho confiança no que eles falam. Por mais que muitas vezes o aspecto técnico eu não consiga chegar, eu me esforço, mas não tenho a formação de arquitetura e urbanismo e muitas vezes é difícil acompanhar. Acho que eles têm competência pra fazer. […] A percepção que eu tive é que a equipe da Prefeitura é extremamente qualificada, os servidores têm total condição de fazer o melhor trabalho possível. […] Então, confiança, eu pelo menos tenho total. (Participante OUC ACLO. Setor acadêmico − pesquisador. Fala registrada em entrevista em 04/11/2015).

Enquanto, para os participantes do processo do PGE, essa transmutação se deu na forma de sensação de impotência, fazendo do planejamento participativo um arrastar de dúvidas e inseguranças muitas vezes sobre aspectos básicos do cotidiano vindouro, como a possibilidade de remoção habitacional. Tal como evidenciado pelos depoimentos de duas participantes, destacados a seguir:

A gente não entende muito, mas assim, do pouco que eu entendo, eu tô achando mais ou menos razoável. Vamos ver até vai dar né? Todo mundo está assim, apreensivo. […] A gente está muito apreensivo ainda, porque a gente fica com medo, porque não sabe se vai tirar, fala que não vai tirar, sabe? E a gente tem medo, né? Porque tem muitos anos que a gente mora aqui […] É, mas eu tenho muito medo que tire né, a gente. Tá todo mundo desse jeito, todo mundo aqui tá assim: “Será que vai tirar, será que não vai? Leva a gente pra um lugar que a gente não conhece. Não conhece o pessoal.” […] Meu filho também fala: “Ai mãe, será que vai tirar a gente daqui? Meu Deus do céu.” Deus ajuda que não. Mas a rua aqui já é larga né? […] Mas aí é igual estou te falando, a gente não sabe se realmente, o que vai acontecer certo. A gente ainda não tem uma clareza assim. Por enquanto não. (Participante PGE − moradora Vila Mantiqueira. Fala registrada em entrevista em 16/04/2016).

Eu quero saber, assim, mais a fundo o que vai acontecer aqui na Vila, né? Porque... Se vai tirar a gente daqui ou se não vai tirar né? Pra onde vai levar. Porque a gente aqui, não sei se você reparou, nessa parte aqui da Vila a gente é quase uma família. […] Então era isso que eu queria saber, o que realmente eles estão pretendendo fazer aqui com a Vila. […] Estou achando demorado, o que eles vão decidir realmente. Porque se na cabeça deles vai decidir, vai tirar a gente, que fale logo de uma vez, que pelo menos a gente fica ciente. (Participante PGE − moradora Vila Mantiqueira. Fala registrada em entrevista em 16/04/2016).

De fato, a sensação de impotência identificada nas falas desses participantes é um reflexo não apenas da dificuldade de inserção no campo do discurso técnico, mas também de apropriação do significado de participação e da prerrogativa de igualdade de poder que carrega um processo de planejamento participativo. Nesse sentido, entende-se que a transmutação do reconhecimento de uma competência técnica em autorização para o exercício de uma competência social, independentemente da forma como se realiza, tem sérias consequências em relação às possibilidades desses fóruns figurarem como ambientes favoráveis ao exercício coletivo de educação democrática capazes de contribuir para a construção discursiva e contextual de relações de cidadania a partir da arena estratégica da cidade.

Assim, argumenta-se que os eventos participativos acompanhados em muitos aspectos se assemelhavam ao que Foucault e Bourdieu caracterizam como rituais. A prescrição da linguagem técnica como forma legítima de enunciação constituía justamente o atributo estilístico e retórico impositor de autoridade que conformava a solenidade chamada processo participativo. Aqueles capazes de inserção em sua ordem discursiva, de dominar certo conjunto de signos, ocupar determinada posição e de formular determinado tipo de enunciados tinham licença para o pronunciamento e integravam o rito performático da participação; enquanto presenças coercitiva ou inadvertidamente silenciadas desempenhavam o papel de espectadores legítimos de processos que deveriam incluí-los. Dessa forma, através de uma operação de “mágica social”, esses processos se faziam transparecer como legitimamente participativos, apesar de permanecerem muito aquém de seu potencial transformador da práxis social. Assim, põe-se em voga o papel a ser desempenhado por especialistas em contexto democráticos, sobre o qual se propõe refletir a seguir.

Apontamentos: o especialista e a democracia

Dada a complexidade técnica e social de grande parte dos programas, políticas e da própria vida urbana contemporânea, um grau significativo de competência é requerido tanto dos cidadãos quanto de seus representantes para que uma participação efetiva na tomada de decisões seja possível. Se os mesmos encontram dificuldades para compreender e fazer julgamentos complexos a respeito dos temas debatidos, tem-se, potencialmente, um problema em relação à aplicabilidade da democracia em tempos contemporâneos. No entanto, é evidente que a reivindicação tradicional de uma ciência neutra e autônoma e, portanto, perfeitamente adequada à tomada de decisão pública, tampouco se sustenta, pois é preciso reconhecer o caráter necessariamente político da própria ciência (Pogrebinschi & Franco, 2008Pogrebinschi, T., & Franco, A. (Orgs.), (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (1927-1939). Porto Alegre: EDIPUCRS.).

A partir dessa perspectiva, em um movimento que propõe a radicalização da democracia, Dewey (1927)Dewey, J. (1927). The public and its problems. New York: Henry Holt & Co. aponta, desde o início do século XX, para a necessidade de revisão do papel dos especialistas na democracia, convocando esses profissionais para uma atuação como facilitadores da deliberação democrática e da publicização de conhecimento. Ou seja, em um contexto democrático ampliado, uma democracia verdadeiramente participativa que se conforma para além do Estado ou de um sistema de governo como uma política comunicativa, construída em torno de interações face a face (Mendonça, 2013Mendonça, R. F. (2013). A liberdade de expressão em uma chave não dualista: as contribuições de John Dewey. In: V. Lima & J. Guimarães (Orgs.), Liberdade de expressão: as várias faces de um desafio (Vol. 1, pp. 41-63). São Paulo: Paulus.), os especialistas são solicitados a desempenhar uma atividade profissional próxima àquela de professores ou de intérpretes, adquirindo a atribuição de decifrar as complexidades técnicas relevantes para os cidadãos, de forma que estes sejam empoderados para realização de julgamentos políticos.

Segundo Fischer (2009)Fischer, F. (2009). Democracy & expertise: reorienting policy inquiry. Oxford: Oxford University Press. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199282838.001.0001.
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, para assumir o papel de professores ou de intérpretes, os especialistas precisariam desenvolver o que ele chama de “experiência interacional”: o acúmulo de certa intimidade com variados grupos, de maneira que consigam explicar os conceitos de um grupo para os demais. Para essa tarefa, Fischer afirma que o especialista precisaria utilizar sua subjetividade para compreender as visões dos outros, envolvendo-se nos modos de aprendizado conectados aos seus cotidianos. A ideia de uma atuação do especialista como intérprete, portanto, estaria mais relacionada ao encaixe de dados em narrativas específicas que se conectem aos cotidianos desses grupos do que à explanação ou à validação de informações técnicas. Distinta, portanto, de uma atuação apoiada nas estratégias de capacitação, que comumente se baseiam na tentativa de popularização de terminologias, formas de representação da realidade e conceitos técnicos preestabelecidos, ou de tradução, que abarcam apenas substituição de certas expressões consideradas técnicas por outras consideradas acessíveis.

Fischer (2009)Fischer, F. (2009). Democracy & expertise: reorienting policy inquiry. Oxford: Oxford University Press. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199282838.001.0001.
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defende ainda, a partir de perspectivas críticas em torno da participação, que um empoderamento genuíno deve abordar as condições materiais em que se constitui a realidade, acrescentando ao especialista a atribuição de auxiliar os cidadãos no entendimento e na interpretação de sua própria experiência junto às estruturas e forças econômicas e sociais que a moldam. Como descreve Mills (2000)Mills, C. W. (2000). The sociological imagination. Oxford: Oxford University Press., trata-se de uma tarefa imaginativa de tradução de processos biográficos em processos históricos.

Nesse sentido, destaca-se também abordagem conhecida como pedagogia crítica, desenvolvida pelo educador brasileiro Paulo Freire, que introduz a ideia da problematização como substituta da abordagem tecnocrática de solução de problemas. Na abordagem tecnocrática, o perito estabelece uma certa distância da realidade, analisa-a em suas partes componentes, cogita meios para resolver as dificuldades da maneira mais eficiente e, então, determina a estratégia ou política a ser seguida. Essa forma de intervenção no meio social, segundo Freire, distorce a totalidade da experiência humana, reduzindo-a dimensões que são passíveis de tratamento, como meros problemas a serem resolvidos ou impedimentos a serem superados. Problematizar, por outro lado, segundo o autor, significa codificar em símbolos narrativos uma história integrada da realidade que, no curso de seu desenvolvimento, possa gerar uma consciência crítica capaz de alterar as relações de um indivíduo com ambos os mundos físico e social (Freire, 1997Freire, P. (1997). A pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.).

Ainda que talvez abstratas, essas outras formas de se pensar a atuação profissional fornecem pistas a respeito dos caminhos a serem percorridos para a mitigação do entrave da linguagem técnica rumo a uma produção mais democrática do espaço urbano. Sem dúvida, um melhor entendimento dos efeitos do discurso especialista sob as capacidades políticas e formas de expressão dos cidadãos é um primeiro passo nesse sentido. No que diz respeito à formação profissional, acredita-se ainda que a valorização e a ampliação da extensão universitária (capaz de oferecer oportunidades de aproximação entre a universidade e o corpo social), assim como da transdisciplinaridade (já característica do campo do planejamento urbano), são também passos importantes para uma formação sincrônica dessa consciência.

Considerações finais

Espera-se, ao longo da discussão desenvolvida neste artigo, haver explicitado alguns dos desafios impostos pela linguagem técnica do campo do planejamento urbano ao planejamento participativo e desvelado alguns dos aparelhos repressores corporificados nos especialistas, muitas vezes responsáveis condução desses processos.

Em suma, espera-se haver elucidado que a linguagem especialista é capaz de provocar inseguranças, constrangimento e hesitação de participantes em suas próprias capacidades de integrarem os debates participativos. Que a proeminência dessa linguagem no debate sobre a cidade atua na manutenção do silêncio de participantes e consequentemente na fabricação de consensos e na prescrição das resoluções possíveis de serem extraídas desses processos. E, ainda, que através da incorporação de autoridade a competência técnica se transforma em autorização para o exercício de uma competência social com consequências em relação às possibilidades de constituição de uma competência coletiva.

Espera-se ainda, através da discussão normativa do papel a ser desempenhado por especialistas em contextos democráticos, haver fornecido pistas para a efetivação de uma atuação profissional atenta à experiência interacional.

Finalizando, faz-se ainda necessário destacar que a obrigatoriedade legal e consequente recorrência de processos participativos vinculados ao tema da cidade ou, em outras palavras, a normalização do ritual da participação na estrutura sócio-organizacional e no debate sobre o urbano nacionais, representa em si mesma uma possibilidade para que as estruturas de poder aqui explicitadas possam ser contestadas e desestabilizadas. Como revela Dewey (Pogrebinschi & Franco, 2008Pogrebinschi, T., & Franco, A. (Orgs.), (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (1927-1939). Porto Alegre: EDIPUCRS.), democracia significa uma ênfase precípua nos meios pelos quais os fins de liberdade e igualdade para todos devem ser cumpridos, constituindo-se não apenas como modelo utópico de futura sociedade ideal, mas como alternativa de presente. Em suma, entende-se que a participação como vivência é essencial para a superação dos entraves dela mesma, inclusive daquele representado pela linguagem técnica. Um entrave que talvez seja mais significativo para aqueles que não ousam participar.

  • 2
    As Operações Urbanas Consorciadas são sofisticadas modalidades de parceria público-privada estabelecidas como instrumentos de planejamento urbano pelo Estatuto da Cidade com o objetivo de “[…] alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental” (Brasil, 2001Brasil. (2001). Estatuto da Cidade - Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil., art. 32).
  • 3
    A proposta (ainda não concretizada) de implantação de uma operação urbana na área onde se situa a OUC ACLO em Belo Horizonte é fruto de um polêmico e conturbado histórico que envolve a paralisação do processo de aprovação da então chamada “OUC Nova BH” pelo Ministério Público e sua posterior retomada sob o atual desígnio.
  • 4
    Em aplicação desde fins da década de 1990 pela Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel) – empresa pública responsável pela implementação da Política Municipal de Habitação Popular –, o PGE é um instrumento de planejamento que norteia as intervenções de reestruturação urbanística, ambiental e de desenvolvimento social nas vilas, favelas e conjuntos habitacionais populares do município.
  • 5
    Localizada na regional Venda Nova, no extremo norte da Capital, a Vila Mantiqueira é reconhecida pelo atual Plano Diretor do município de Belo Horizonte como Zona Especial de Interesse Social tipo 1 (ZEIS-1). Segundo dados levantados pelo PGE, a Vila teve sua ocupação consolidada ao longo da década de 1970 e seus moradores convivem com condições precárias particularmente de transporte público e de saneamento.
  • 6
    Essas afirmações têm como base dados estimados a partir das listas de presença dos eventos participativos OUC ACLO e levantamentos realizados pelo PGE da Vila Mantiqueira.
  • 7
    Oficinas Institucionais, Oficinas com Conselheiros da Sociedade Civil, Debates Regionais, Visitas de Campo, Oficinas com Moradores e Usuários, Grupos de Discussão Técnica, Audiências Públicas e apresentações públicas do projeto.
  • 8
    Assembleia de Partida, Consolidação do histórico da Vila Mantiqueira, Capacitação Cartográfica, Entrevistas com moradores, Apresentação do Diagnóstico, Sugestão de Propostas, Apresentação de Propostas, Plantão, Assembleia de votação, Hierarquização e custos e Assembleia de Encerramento.
  • 9
    Para a elaboração deste trabalho, foram realizadas 40 entrevistas, algumas em dupla ou em grupo, totalizando 50 pessoas entrevistadas, sendo 13 participantes ou propositores/articuladores do processo participativo do PGE da Vila Mantiqueira e 37 da OUC-ACLO.
  • Como citar: Nassif, T. (2020). Planejamento urbano participativo: o desafio da linguagem técnica. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 12, e20190188. https://doi.org/10.1590/2175-3369.012.e20190188
  • 1
    O presente trabalho foi escrito a partir da dissertação de mestrado da autora, defendida no Programa de Pós-Graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (NPGAU-UFMG) em 2016, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Referências

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  • Bourdieu, P. (1992). Language and symbolic power Cambridge: Polity Press.
  • Brasil. (2001). Estatuto da Cidade - Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências Brasília: Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil.
  • Cappelle, M. C. A., Melo, C. O. L., & Brito, M. J. (2005). Relações de poder segundo Bourdieu e Foucault: uma proposta de articulação teórica para a análise das organizações. Organizações Rurais & Agroindustriais, Lavras, 7(3), 356-369.
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Editado por

Editor: Fábio Duarte

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2019
  • Aceito
    20 Jan 2020
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