Resumo:
Neste artigo, buscamos analisar os sentidos de oportunidade que jovens pobres cariocas atribuem à escola e compreender se, para estes jovens, a escola e a escolarização possuem um valor no agora e/ou no depois imaginado. Participaram do estudo 51 jovens, estudantes de 9º ano do ensino fundamental, de duas escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, com idades entre 14 a 16 anos. Foram realizados três grupos de discussão, que ocorreram no formato de oficinas. Na análise dos sentidos de oportunidade e do valor atribuído pelos jovens à escola, foram focalizadas as relações intra e intergeracionais que se estabelecem neste espaço e a relação imaginária que estes jovens têm com o que virá depois da escola.
Palavras-chave:
Jovem; Oportunidades; Escola; Escola Pública
Abstract:
In this article, we seek to analyze the senses of opportunity that poor young people from Rio de Janeiro attribute to the school and to understand if, for these young people, school and schooling have a value in the now and/or imagined later. A total of 51 youths participated in this research, being students in elementary schools, from two public municipal schools of Rio de Janeiro, with ages between 14 and 16. Three discussion groups were made in the format of workshops. In the analysis of the meanings of opportunity and the value attributed by young people to school, the intra and intergenerational relationships established in this space were focused and the imaginary relation that these young people have with what will come after school.
Keywords:
Young People; Opportunities; School; Public School
Introdução
Nos últimos anos, vêm ocorrendo transformações radicais nas formas de subjetivação dos indivíduos, o que fica visível no estabelecimento de novas relações com os registros do tempo e do espaço, diante do aumento dos níveis de incerteza, da falta de garantias e estabilidade. Em um contexto de crescente imprevisibilidade dos cursos de vida, diante de um sistema educacional e de um mercado de trabalho que não são capazes de garantir a realização de suas aspirações, pela precariedade estrutural e pela falta de oportunidades objetivas, a descrença, a incerteza e o temor em relação ao amanhã são vivenciados por grande parte dos jovens pobres brasileiros.
Estudos realizados com jovens de grupos populares brasileiros ressaltam a questão da escolarização precária destes, que somada às adversas condições de vida, tende a alimentar e perpetuar a situação de exclusão e desigualdade social vivenciada (Arpini, 2003ARPINI, Dorian Mônica. Violência e Exclusão: adolescência em grupos populares. Bauru: EDUSC, 2003.; Castro; Correa, 2005CASTRO, Lucia Rabello de; CORREA, Jane. Mostrando a real: um relato da juventude pobre do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: NAU Editora; FAPERJ, 2005.). Perante a formação escolar insuficiente, ocorre uma marginalização do trabalho, fazendo com que o jovem almeje oportunidades cada vez menores para si, limitando assim seu horizonte em relação ao amanhã (Arpini, 2003ARPINI, Dorian Mônica. Violência e Exclusão: adolescência em grupos populares. Bauru: EDUSC, 2003.).
Além disso, os jovens são os que mais sofrem com as mudanças do mercado de trabalho que resultam da globalização neoliberal da economia internacional. Tanto o mercado de trabalho quanto o sistema educacional parecem incapazes de garantir a concretização das aspirações de muitos deles. Diante das dificuldades de inserção profissional, muitos são, então, acuados por sentimentos de descrença e medo, traídos na capacidade de imaginar um amanhã com esperança.
Diante deste cenário, pesquisas vêm apontando que as vivências dos jovens estão cada vez mais encarnadas no aqui e no agora, marcadas por atitudes e comportamentos limitados ao imediato e ao cotidiano, já que, além da imprevisibilidade e das incertezas que marcam suas vidas, o amanhã muitas vezes fracassa em proporcionar possibilidades de concretização de suas aspirações (Cárdenas, 2005CÁRDENAS, Ana María Arango. Temporalidad Social y Jóvenes: futuro y no-futuro. Nómadas, Bogotá, n. 23, p. 48-57, out. 2005.; Oliva-Augusto, 2002OLIVA-AUGUSTO, Maria Helena. Tempo, Indivíduo e Vida Social. Ciência e Cultura, v. 54, n. 2, p. 30-33, 2002.; Pais, 2004PAIS, José Machado. Los Bailes de la Memoria: cuando el futuro es incierto. Jóvenes: revista de estudios sobre juventud, México, DF, v. 8, n. 20, p. 74-95, 2004. ; Soares, 2000SOARES, Camilo. Jóvenes, Transiciones y el Fin de las Certidumbres. Papeles de Población, Toluca, v. 6, n. 26, p. 9-23, out./dez. 2000.). Desse modo, as dimensões de aproveitar a vida aparecem com mais força nas mobilidades e discursos dos jovens do que as dimensões relacionadas à preparação em relação ao depois (Dayrell, 2003DAYRELL, Juarez. O Jovem como Sujeito Social. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 24, p. 40-52, dez. 2003.; Mendes, 2008MENDES, Juliana Thimóteo Nazareno. O Tempo Presente e os Projetos de Vida dos Jovens Pobres. In: CONFERÊNCIA MUNDIAL DE SERVIÇO SOCIAL, 19., 2008, Salvador. Anais... Salvador: Centro de Convenções, 2008. ).
Mesmo assim, o sistema de ensino formal parece insistir na tentativa de dominar o futuro, planejando-o, antecipando-o, de forma que ele possa ser controlado. Segundo Castro (2010, p. 64)CASTRO, Lucia Rabello de et al. Falatório: participação e democracia na escola. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010., “[...] toda organização desse espaço (escolar), suas ritualidades e valores ressaltam a importância do progresso individual, no qual o esforço e a dedicação de cada um são peças fundamentais na construção, a longo prazo, daquilo que virá a ser um ser humano racionalmente preparado e socializado”. Em relação a este aspecto, cada vez mais, tem se destacado uma lacuna entre a cultura juvenil-estudantil (experiências e vivências juvenis) e a cultura escolar (dinâmica escolar cotidiana), ou seja, entre as expectativas, interesses e necessidades dos jovens e os próprios da instituição educativa (López, 2012LÓPEZ, Francisco Miranda. Los Jóvenes Contra la Escuela: un desafío para pensar las voces y tiempos para América Latina. Revista Latinoamericana de Educación Comparada, v. 3, n. 3, p. 71-84, 2012.; Pereira, 2016PEREIRA, Alexandre Barbosa. Outros Ritmos em Escolas da Periferia de São Paulo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 217-237, jan./mar. 2016.).
Tendo em vista este panorama brevemente apresentado, interrogamos se a escolarização permanece como um valor para estes jovens inseridos em contextos de precariedade social. Em relação a esta questão, Arpini (2003)ARPINI, Dorian Mônica. Violência e Exclusão: adolescência em grupos populares. Bauru: EDUSC, 2003. refere que, para grande parte dos jovens pobres brasileiros, o trabalho pode ser mais atrativo do que a escolarização, em algum momento, sendo revestido de valor, mesmo nos casos em que suas condições e natureza sejam precárias. Seu valor reside no que ele pode oferecer a partir da renda obtida, como a conquista de certa autonomia em relação aos gastos e às escolhas que podem ser feitas bem como suas possíveis experiências de consumo. Por outro lado, na visão do jovem, a escola pode não oferecer, a curto prazo, as mesmas perspectivas e os ganhos que o trabalho teria a oferecer (Arpini, 2003ARPINI, Dorian Mônica. Violência e Exclusão: adolescência em grupos populares. Bauru: EDUSC, 2003.). De forma semelhante, a partir do contexto cultural francês, Bourdieu (1983)BOURDIEU, Pierre. A ‘Juventude’ É Apenas uma Palavra. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marca Zero, 1983. P. 112-121. já apontara o desejo de alcançar mais rapidamente o estatuto de adulto, e as capacidades econômicas que lhe são associadas, como um dos motivos que poderia levar o jovem a buscar abandonar a escola e inserir-se cedo no mundo do trabalho.
Ao dar preferência às atividades ocupacionais em detrimento da escola, o jovem pobre parece não aceitar a espera que a formação escolar prevê, uma vez que esta espera não significa que haverá um retorno satisfatório no amanhã e pode se constituir em um prolongamento de uma situação difícil de sobrevivência. Assim, ao invés de apostar em algo a longo prazo que não oferece garantias, alguns jovens podem acabar apostando naquilo que talvez lhes dê um retorno imediato, apesar de precário, como a inserção em trabalhos informais, ou até o envolvimento com atividades ilícitas (principalmente o tráfico e a prática de roubos e furtos). Destaca-se, por outro lado, que muitos jovens também seguem estudando e acreditando que a escolarização pode lhes garantir algo melhor.
Em relação ao valor da escolarização, Gomes (1997)GOMES, Jerusa. Jovens Urbanos Pobres: anotações sobre escolaridade e emprego. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 5/6, p. 53-62, mai./dez. 1997., a partir de estudos realizados na década de 90, questiona se, para os jovens e seus familiares, a permanência na escola era sentida como garantia de melhores condições de vida e de trabalho no futuro. Em relação a esse aspecto, a autora observa que a escolaridade ainda parecia se constituir em um critério secundário quando estava em jogo o acesso ao emprego do jovem de classe popular, já que naquela época (década de 90) ainda existia um número significativo de empregos acessíveis a jovens com pouca escolarização. Para a autora, o valor que os sujeitos atribuem à escolarização é proporcional à sua familiaridade com as coisas que dizem respeito à escola. Nas camadas populares, esta familiaridade é historicamente recente e ainda está em curso o processo de incorporação da escola e do valor atribuído à escolarização no que se refere ao capital cultural a ser herdado pelas gerações seguintes. Por outro lado, para os jovens de classes mais privilegiadas, que possuem uma história familiar de escolarização mais antiga, esta já se constitui em um valor incorporado ao capital cultural herdado (Gomes, 1997GOMES, Jerusa. Jovens Urbanos Pobres: anotações sobre escolaridade e emprego. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 5/6, p. 53-62, mai./dez. 1997.).
Burgos (2012)BURGOS, Marcelo Baumann. Escola Pública e Segmentos Populares em um Contexto de Construção Institucional da Democracia. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 1015-1054, dez. 2012., com base em estudos mais recentes, afirma que, a partir dos anos 90, vem ocorrendo uma universalização do acesso ao ensino fundamental em países da América Latina, levando ao surgimento de várias questões em torno da massificação da educação escolar, principalmente no que se refere à complexa combinação entre desigualdade social e diversidade cultural que passa a desafiar a estrutura escolar. Nos últimos anos, a escola vem assumindo crescente protagonismo na vida das famílias de classes populares. Isso é exemplificado pelo fato de que, em alguns contextos populares, “[...] a escola é a única agência pública a ter uma relação abrangente e duradoura com as suas famílias e, não raro, ela chega a famílias que nem mesmo as políticas sociais focalizadas nos segmentos mais pobres conseguem alcançar” (Burgos, 2012BURGOS, Marcelo Baumann. Escola Pública e Segmentos Populares em um Contexto de Construção Institucional da Democracia. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 1015-1054, dez. 2012., p. 1118).
O pesquisador realizou um estudo junto a pais/responsáveis de alunos de escolas públicas que atendiam, basicamente, crianças e jovens moradores de favelas do Rio de Janeiro. A pesquisa aponta para uma valorização crescente da escola por parte das famílias populares, a qual é percebida por estas enquanto espaço de socialização e lugar de acesso a saberes fundamentais ao ingresso no mercado de trabalho, o que se relaciona com a expectativa em torno do efeito de mobilidade social associado à escolarização (Burgos, 2012BURGOS, Marcelo Baumann. Escola Pública e Segmentos Populares em um Contexto de Construção Institucional da Democracia. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 1015-1054, dez. 2012.).
Podemos questionar até que ponto os jovens acreditam que a escolarização pode lhes oferecer garantias de acesso ao mercado de trabalho e a possibilidade de uma mobilidade social ascendente. A partir de pesquisas realizadas nos últimos anos, Novaes (2006)NOVAES, Regina. Os Jovens de Hoje: contextos, diferenças e trajetórias. In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de; EUGENIO, Fernanda (Org.). Culturas Jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. P. 105-120. afirma que os jovens mais pobres não se iludem, não embarcam no mito da escolaridade. Para eles, a escola já não é vista como garantia de emprego. Assim, muitos deles “[...] têm consciência de que a escola é importante como passaporte que permite a viagem para o emprego, mas não o garante” (p. 107). Outros estudos também apontam que, para muitos jovens, é fato que o certificado escolar não é garantia de que exista possibilidade de arranjar um emprego formal (Castro, 2012CASTRO, Lucia Rabello de. Entre a Subordinação e a Opressão. Os jovens e as vicissitudes da resistência na escola. In: MAYORGA, Claudia; CASTRO, Lucia Rabello de; PRADO, Marco Aurélio Máximo (Org.). Juventude e a Experiência da Política no Contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2012. P. 63-97.; Costa; Koslinski, 2006COSTA, Marcio da; KOSLINSKI, Mariane Campelo. Entre o Mérito e a Sorte: escola, presente e futuro na visão de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, p. 133-154, jan./abr. 2006.), o que pode levantar dúvidas sobre o valor de se investir fortemente hoje em algo que pode, ou não, ser útil no futuro (Castro, 2012CASTRO, Lucia Rabello de. Entre a Subordinação e a Opressão. Os jovens e as vicissitudes da resistência na escola. In: MAYORGA, Claudia; CASTRO, Lucia Rabello de; PRADO, Marco Aurélio Máximo (Org.). Juventude e a Experiência da Política no Contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2012. P. 63-97.).
Por outro lado, vale pensar no valor que a escola e a escolarização podem possuir no aqui e agora destes jovens. Talvez os planos e as certezas em relação ao amanhã não sejam os aspectos que vão determinar como a escola é importante e tem valor hoje, mas sim, como os jovens vivem o aqui e agora do espaço escolar. Em relação a este aspecto, Núñez e Litichever (2016)NÚÑEZ, Pedro; LITICHEVER, Lucia. Ser Joven en la Escuela: temporalidades y sentidos de la experiencia escolar en la Argentina. Psicoperspectivas, v. 16, n. 2, p. 91-102, 2016. referem, a partir de estudo realizado em escolas na Argentina, a emergência de sentidos do escolar que se relacionam com a possibilidade dos jovens desfrutarem o aqui e agora da experiência de estar neste espaço como um valor em si mesmo, para além das retribuições que podem ser obtidas no futuro, ou seja, sentidos mais associados a uma temporalidade de curto prazo do que a uma projeção a longo prazo.
Neste trabalho, a noção de oportunidade foi tomada como lente a partir da qual foi analisada a relação entre os jovens e o espaço escolar. A oportunidade é entendida como uma situação favorável que move e conduz o jovem para algum lugar, como uma porta, que abre caminho para o sujeito em direção a algo que tem a ver com ele e lhe faz sentido. É algo que é percebido como tendo valor no aqui e no agora, mas que pode também repercutir de forma favorável no depois. A oportunidade pode ser agenciada pelo próprio jovem, no sentido de que há uma busca para achar aquilo que se quer e oportunizar para si o que se deseja; ou pode ser da ordem do fortuito, isto é, encontrada a partir de uma mobilidade que não tem um direcionamento específico, ou seja, quando o jovem apenas se move à espera de que algo favorável aconteça.
A partir destas considerações, nos perguntamos se os jovens participantes deste estudo consideram a escola um lugar que lhes oferece oportunidades. Oportunidade no sentido de ser algo favorável ao sujeito, que pode projetá-lo e movê-lo - real ou imaginariamente - em relação a outros lugares. Desse modo, neste artigo pretendemos analisar os sentidos de oportunidade que jovens pobres cariocas atribuem à escola e buscamos compreender se, para estes jovens, a escola e a escolarização possuem um valor no agora e/ou no depois imaginado. Analisaremos a relação dos jovens com os pares e com os adultos e a relação imaginária que estes jovens têm com o depois da escola.
Método
No intuito de alcançar os objetivos propostos, realizamos uma pesquisa1 1 Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o parecer nº 1.518.016 e o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 54208116.9.0000.5582. de cunho qualitativo, junto a 51 jovens (25 meninas, 26 rapazes), com idades entre 14 a 16 anos, estudantes de 9º ano do ensino fundamental, de duas escolas públicas municipais (Escola 1 e Escola 2) do Rio de Janeiro, localizadas na Zona Central da cidade. Optou-se por realizar a pesquisa empírica com jovens estudantes de 9º ano, uma vez que estes se encontram em um momento importante de transição para o ensino médio, quando estão na iminência da situação de troca de escola, da vivência de mudanças consideráveis em termos de relações de sociabilidade e talvez num momento em que se deparam com a questão do que fazer num futuro próximo.
Observou-se que a maioria dos pais/responsáveis pelos jovens que responderam ao questionário socioedemográfico possuía ensino médio completo ou nem chegou a ter acesso ao ensino médio. Quanto à atividade profissional dos pais/responsáveis, observou-se que eram em sua maioria ocupações de baixo status socioeconômico, que provavelmente lhes conferiam uma renda baixa. A maioria dos jovens residia em favelas localizadas próximo às suas escolas.
A precariedade econômica é apenas um dos vários aspectos que caracteriza a pobreza desses jovens. Trata-se de uma condição social na qual estão imersos a despeito de sua vontade e que está ligada, dentre outros elementos, ao enfrentamento cotidiano de situações de exclusão no acesso às oportunidades e aos direitos colocados como iguais para todos na sociedade.
A escola 1 funcionava em turno integral, das 07:10 às 14:30 e atendia cerca de 280 alunos, do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. A escola 2 também funcionava em turno integral, das 07:10 às 14:30 e atendia cerca de 250 alunos, de 7º a 9º ano. Diferentemente dos professores da escola 1, os professores da escola 2 trabalhavam em um regime de dedicação exclusiva (40h), para atuarem somente nesta escola. A escola 2 também oferecia disciplinas eletivas voltadas para as artes, as quais eram realizadas em ateliês de grafitte, pintura, mídias, dentre outros.
Ao longo do trabalho de campo, foram realizados três grupos de discussão (Grupo 1 - G1 e Grupo 2 - G2, realizados na Escola 1 e Grupo 3 - G3, na Escola 2), que ocorreram no formato de oficinas. As oficinas tiveram um número médio de 12 participantes por encontro, tendo no mínimo oito e no máximo 16 jovens. Foram realizadas sete oficinas com o grupo 1, oito oficinas com o grupo 2 e 10 oficinas com o grupo 3, totalizando 25 encontros.
Recortamos, dentro dos resultados desta pesquisa mais ampla, aqueles que tiveram como enfoque o ir e vir dos jovens em relação à casa e a escola. A atividade De casa para a escola consistiu na criação, em grupos de 3 a 5 pessoas, de um desenho-história que mostrasse como seria o trajeto de casa para a escola de um(a) jovem como eles. As seguintes perguntas, destacadas em um cartaz, foram utilizadas como guia para a criação da história: Como esse(a) jovem vai à escola? O que acontece nesse trajeto? O que ele(a) faz? Quem encontra? Com quem fala? O que vê? Como se sente? Do que mais gosta? Algo especial acontece? O que ele(a) gostaria que acontecesse nesse trajeto? Além disso, foi proposto que os(as) jovens incluíssem na história elementos sobre a chegada dessa personagem na escola e descrevessem situações que costumam acontecer na escola. Na atividade Da escola pra casa, os participantes foram convidados a contar, através de um desenho individual, a história de um(a) jovem como eles, que realiza o trajeto da escola para casa. As mesmas questões-guia apresentadas na atividade De casa para escola foram utilizadas para balizar a história do percurso escola-casa.
Nos trajetos de idas e vindas em relação à escola, os jovens se colocam em movimento físico, mas um movimento imaginário e subjetivo também é acionado. Assim, buscamos abordar junto aos jovens, através desse dispositivo do movimento, suas lembranças, afetações e sentimentos em relação a estes trajetos, além dos sentidos de oportunidade que eles reconhecem na escola.
Os encontros foram gravados e transcritos. Foi também realizado o registro fotográfico dos desenhos produzidos durante as oficinas. Além das oficinas, foram realizadas observações participantes em ambas as escolas, as quais foram registradas em diários de campo. As informações foram analisadas através do método de Análise de Conteúdo, como proposto por Bardin (2011 [1977])BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. [1977].. Para chegar às categorias, as transcrições das oficinas, os desenhos e os relatos das observações realizadas nas escolas foram analisados primeiro de forma individual e, posteriormente, procedeu-se a análise da totalidade do material, partindo-se para os elementos presentes, considerando-se a força discursiva, os sentimentos manifestados, os silêncios ou conflitos em relação às temáticas.
Os sentidos da escola como oportunidade e valor para os jovens giraram em torno de algumas discussões que tomaram certa força nas narrativas e, a partir das análises, foram organizadas em torno das seguintes categorias: (1) as relações entre pares; (2) as relações intergeracionais; e (3) o valor da escola e da escolarização no agora e no depois imaginado, as quais serão apresentadas e discutidas na seção a seguir.
Resultados e Discussão
As Relações entre Pares e os Desafios da Convivência com o Diferente
A partir da realização do campo empírico, ficou evidente que as sociabilidades experimentadas no espaço escolar junto aos pares são um elemento muito valorizado pelos jovens, um aspecto que ainda parece conferir certo sentido ao estar na escola. Desse modo, a escola foi referida pelos participantes como um lugar onde é possível encontrar os amigos, namorar, zoar, divertir-se e praticar esportes.
No desenho abaixo, João2 2 Buscando manter o anonimato dos(as) jovens, seus nomes foram substituídos por nomes fictícios ao longo do texto. desenhou a história de um jovem que faz o percurso da escola para casa. A escola tem o nome de Breaks. Quando perguntado sobre o motivo desse nome, João disse que Breaks era o nome de um grupo que ele havia formado na escola com três amigos e colegas (G2, 3º encontro). Neste desenho [Figura 1], além do fato significativo da escola levar o nome do grupo de amigos, chama atenção a utilização da palavra break, que em inglês pode significar intervalo, recreio, ruptura, descanso, ou até oportunidade.
Na fala a seguir, Laís refere que a escola já havia sido boa, por causa da convivência com os amigos, que era possível quando todos estudavam na mesma turma:
S: O que tu acha da escola?
Laís: Ah, era bom, agora tá ruim.
S: Por quê?
Laís: Nesse ano separaram a nossa turma. Aí tem várias pessoas que estão na outra turma...
[Os colegas concordaram] (G1, 1º encontro).
O encontro e a convivência com os pares constituem um aspecto significativo da experiência escolar do jovem, aspecto também apontado por diversos outros estudos latino-americanos (Castro, 2010CASTRO, Lucia Rabello de et al. Falatório: participação e democracia na escola. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010.; Costa; Koslinski, 2006COSTA, Marcio da; KOSLINSKI, Mariane Campelo. Entre o Mérito e a Sorte: escola, presente e futuro na visão de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, p. 133-154, jan./abr. 2006.; López, 2012LÓPEZ, Francisco Miranda. Los Jóvenes Contra la Escuela: un desafío para pensar las voces y tiempos para América Latina. Revista Latinoamericana de Educación Comparada, v. 3, n. 3, p. 71-84, 2012.; Nascimento, 2013NASCIMENTO, Carmen Teresinha Brunel. A Casa, a Rua, a Escola: espaços de múltiplas práticas juvenis. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013.; Núñez; Litichever, 2016NÚÑEZ, Pedro; LITICHEVER, Lucia. Ser Joven en la Escuela: temporalidades y sentidos de la experiencia escolar en la Argentina. Psicoperspectivas, v. 16, n. 2, p. 91-102, 2016.; Pereira, 2016PEREIRA, Alexandre Barbosa. Outros Ritmos em Escolas da Periferia de São Paulo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 217-237, jan./mar. 2016.; Santos; Nascimento; Menezes, 2012SANTOS, Rubenize Maria dos; NASCIMENTO, Maria Aparecida; MENEZES, Jaileila de Araújo. Os Sentidos da Escola Pública para Jovens Pobres da Cidade do Recife. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 10, n. 1, p. 289-300, jan. 2012. ). O convívio com os pares, oportunizado em grande parte pela escola, exerce uma significativa influência na constituição da subjetividade dos jovens. Principalmente neste momento em que passa a haver um maior direcionamento do interesse do indivíduo para fora do âmbito familiar, desenvolvendo-se relações mais horizontais e igualitárias do que as relações com os adultos.
No entanto, estas relações podem ser limitadas pelo fato de permanecerem restritas ao âmbito das relações dos que são parecidos entre si e compartilham dos mesmos gostos, valores e crenças. A estranheza provocada pelo outro diferente, que não se pode compreender, pode abrir caminho para relações marcadas pela hostilidade. Neste sentido, foi possível observar que o preconceito e a discriminação circulam entre os jovens pela via da brincadeira e da zoação, mas também pela via da agressividade e do afastamento do outro, da recusa à convivência com ele, numa tentativa de controle e de manipulação da diferença, no intuito de minimizar o estranhamento que a alteridade provoca. Esta questão foi evidenciada em algumas discussões que ocorreram no decorrer das oficinas, uma das quais pode ser visualizada no trecho a seguir, onde dois jovens do grupo 3 (escola 2) falam sobre a questão do bullying e de como a diferença é negativizada na escola, o que gera mal-estar nas relações entre pares.
Raiane: Eu cheguei a uma conclusão assim própria, minha opinião, de que não é normal, mas é comum todo mundo sofrer bullying. Porque todo mundo quer ficar assim apontando os defeitos dos outros. [...] Não é nem reparar, tem que apontar, te mostrar que você tem esse defeito e querer zoar com ele. Assim, ele sofre e ele faz, eu sofro e eu faço, ou a pessoa que faz, sofre também, só que elas não se dão conta disso.
S: Mas por quê? A diferença do outro incomoda tanto assim?
Heitor: As pessoas hoje em dia acham que existe um padrão. Se a pessoa não está nesse padrão, é estranho, é diferente, é... um alienígena [...].
Raiane: É como o Heitor disse, você não pode gostar de outra coisa fora desse padrão que você é diferente. E seria legal se não fosse desse jeito, né. E se você fosse pelo menos visto assim como não... não é nem diferente, é estranho, o estranho, a estranha. Seria legal se você fosse visto como a pessoa que gosta só de outras coisas, ou que não só você gostasse dessas coisas, sabe, que mais pessoas gostassem. É muita superficialidade... é até repulsivo (G3, 6º encontro).
Na escola 1, a questão da tensão nas relações entre pares também veio à tona durante as oficinas. No final do primeiro encontro com o G1, Gleice e sua amiga Betina, após os colegas se retirarem da sala, dirigiram-se à coordenadora da atividade (primeira autora) e perguntaram se falaríamos sobre bullying nos encontros. Foi dito que este não era o tema central que abordaríamos no grupo, mas que elas poderiam trazer isso à tona em algum momento durante as oficinas, caso quisessem conversar com os colegas. Ao longo das oficinas seguintes, esta questão foi mencionada de forma recorrente nos desenhos e histórias de Gleice e Betina.
Betina: A gente pode falar que o menino sofria bullying na escola desde pequeno... [...] A gente vai falar dele que ele vem pra escola e fica triste porque sofre bullying. Todo mundo chama ele de pequeno... [risos dos colegas] (G1, 2º encontro).
Caio: Um belo dia, um menino indo pra escola sorrindo, que quando ele estava indo pra escola, ele entrou no ônibus, só que quando ele estava dentro do ônibus, ele começou a lembrar de tudo o que os outros faziam com ele, ficavam chamando ele de meio metro. Aí os cara chamavam ele de pequeno, meio metro, essas coisas, e fim, acabou.
[Enquanto Caio contava a história retratada no desenho [Figura 2], alguns colegas faziam muito barulho e algazarra. Pedi que escutassem o colega, mas não adiantou].
Gleice: Ele sai de casa, aí ele fica no ponto de ônibus esperando o ônibus, aí quando vem o ônibus acontece umas coisas dentro do ônibus. É um menino que sofre bullying, por isso as pessoas não falam com ele.
S: O que tem nesse caminho?
Betina: No caminho ele lembra de tudo de ruim que fizeram com ele. Chamavam ele de meio metro, de anão...
[Enquanto eles contam a história, os colegas continuam fazendo muito barulho e gritaria].
S: Ele espera que algo aconteça nesse caminho?
Betina: Sempre tem uma esperança, né.
S: Esperança do que?
Gleice: De que o que ele passa acabe.
S: E ia ter uma continuação essa história?
Caio: Ele conversa com a diretoria...
Betina: Aqui ele sorri e aqui ele tá triste.
S: Quando ele sorri?
Betina: Indo pra escola. Só que aí quando ele entra no ônibus ele fica triste por causa do bullying que ele sofre (G1, 2º encontro).
Parecia, assim, haver uma insistência por parte de Betina e Gleice em trazer para discussão nos grupos esta questão que as afetava em suas relações com os colegas. No entanto, a abordagem do assunto durante as oficinas não parecia reverberar nos colegas, que não pareciam se sentir afetados pelo que as colegas traziam.
Nota-se que o significante bullying parece ter sido fortemente incorporado no discurso dos jovens. Na base do que os jovens nomearam como bullying está o reconhecimento de uma suposta diferença no outro, que tem relação com aspectos físicos, comportamentais e/ou psicológicos, a qual é evidenciada, exposta aos demais e ao mesmo tempo desqualificada/desprezada. A desqualificação do outro, através da sinalização e exposição de sua diferença e precariedade pôde ser observada em diversos momentos durante as oficinas, principalmente na escola 1.
Paulo: Esse telhado todo torto, cara...
Renato: Tu nem tem cama, cara. Tu [Paulo] vai pra igreja com esse sapato... pô, tu vai todo amarrotado. Tu não tem nem bermuda...
Paulo: Tu usa só as camisetas da prefeitura...
Renato: Tu vem com essa cara todos os dias, cara!
Paulo: Tá com camiseta toda rasgada... A mãe dele nem costura as camisetas dele...
Renato: Ele [Paulo] vai pra igreja e pra casa, só. [risos]. Nem em ano novo ele vai pra rua. Sério, nem em ano novo ele pode ir pra rua, natal, ano novo...
Maicon: Ele só anda com roupa da C&A [risos].
Renato: E tu que só vem com essa calça desde o ano passado... E esse sapato? Esse sapato é de graça... [risos]. Tu não tem nem ar condicionado em casa, cara...
Paulo: E tu tem né... Tu dorme sem coberta.
Renato: Tu não tem nem travesseiro, cara... (G2, 2º encontro).
A relação com os pares é de ordem fundamental para o jovem, pois pode oferecer um grande potencial para este se conhecer, ver o mundo de outras formas, ir a lugares que nunca foi e conversar sobre seus anseios. No entanto, de acordo com a maioria dos relatos dos participantes, na escola, estas relações parecem ser muito mais perpassadas por experiências inoportunas do que por oportunidades. Muitos jovens, diante do sofrimento provocado por estas experiências ruins vivenciadas com os colegas, como o bullying, se isolam ou até comportam-se de forma autodestrutiva, através da mutilação, conforme relatado por alguns participantes.
Assim, foi possível observar, entre os jovens, dificuldades de se construírem a partir do outro, nas diferenças, ou seja, nos casos em que esse outro lhe é estranho e não-familiar, em termos de opiniões, valores, aparência, hábitos e preferências. Além disso, chamou a atenção a forte demanda dos jovens por falar sobre como a relação com os colegas oportuniza experiências basicamente ruins, que produzem sofrimento. O fato de tanto o bullying quanto a automutilação terem sido assuntos recorrentes nas oficinas talvez possa ser um indicativo de uma demanda dos jovens por espaços de escuta e discussão sobre estas questões, o que a escola talvez não esteja conseguindo oferecer.
Pode-se notar que a oportunidade positiva do encontro entre pares muitas vezes é tensionada, pois pode aparecer para o jovem mesclada com uma forte dose de sofrimento, pela possibilidade de ser atacado e humilhado. Assim, o valor da escola, presente na possibilidade de companheirismo, fruição, amizade e descoberta de si, fica minimizado pela ocorrência de diversas experiências traumáticas nas relações com os pares. Diante da dificuldade de simbolizar tais experiências e de lidar com o sofrimento, alguns jovens acabam recorrendo a certos expedientes, como a automutilação. Os comportamentos de automutilação, que se caracterizam por promover cortes superficiais na própria pele com objetos afiados, tiveram um aumento considerável nos últimos 30 anos. O uso de tais recursos não verbais objetiva aliviar uma avassaladora e insuportável tensão interna e envolvem certa relação entre o corpo próprio e a expressão do sofrimento. Ocorre, assim uma tentativa de substituição de uma dor por outra, na medida em que se constata a inegável dificuldade de elaboração psíquica de um evento doloroso (Fortes; Macedo, 2017FORTES, Isabel; MACEDO, Mônica Medeiros Kother. Automutilação na Adolescência - rasuras na experiência de alteridade. Psicogente, v. 20, n. 38, p. 353-367, jul./dez. 2017.).
As Relações Intergeracionais e os Tensionamentos que Barram a Participação e a Escuta dos Jovens
Da mesma forma que as relações com os pares, as relações intergeracionais na escola também são marcadas por sentidos de oportunidade. Os jovens participantes apontaram certas tensões na relação adulto-jovem no espaço escolar. Uma das principais queixas dos participantes da escola 2 foi a questão da falta de respeito - humilhações, broncas sem motivo, regras sem sentido - dos adultos em relação aos jovens e a dificuldade de serem escutados pelos adultos, os quais, segundo eles, atribuem aos jovens determinadas características que os subestimam, como inexperiência, imaturidade, ingenuidade e irresponsabilidade. A idade neste caso serve para reafirmar a diferença entre seres adultos e seres em formação e, assim, legitimar a atribuição de tais características aos jovens.
Joyce: Eu acho que assim, nós, 3 ou 4 estamos participando dessa conversa e expondo nossa opinião. Só que nenhum professor dá o direito, nenhum professor chama a gente pra ter esse tipo de conversa.
Giovana: Eles acham que a gente está sempre errado...
Joyce: Mesmo que não sejam todos, sejam só aqueles que acham realmente interessante. Então porque um professor não propõe uma conversa dessas? Sobre o que a gente quer, sobre o que a gente pensa em fazer quando sair daqui? Nenhum quer saber de escutar a gente...
Giovana: Eles só querem o tempo todo dizer que a gente está errado, que a gente não sabe fazer escolha na vida... [...] A gente sente falta de professores que escutem a gente. […] E eu acho que esse é um mal de gente mais velha, porque não tentam entender o nosso lado, acha que só porque a gente é jovem, a gente é inocente, a gente é ingênuo, a gente não entende nada da vida, a gente não tem experiência de nada...
Joyce: Não é maduro o suficiente... (G3, 2º encontro, grifos nossos).
Neste trecho, os jovens referem determinadas características como inocência, imaturidade, ingenuidade, irresponsabilidade, as quais, na concepção dos adultos, caracterizariam a juventude. Neste discurso, é conferida aos jovens uma condição de falta em relação a diversos atributos considerados adultos, principalmente ligados à racionalidade, maturidade, controle de impulsos e estabilidade emocional. Esta visão está muito relacionada a uma perspectiva desenvolvimentista, que atribui tais características, que serão superadas na adultidade, como inerentes à infância e à juventude. Os jovens tensionaram a atribuição destas características pelos adultos, colocadas por estes como essencialmente juvenis, apontando para o fato de que adultos também podem ser irresponsáveis e ingênuos, por exemplo.
Esse posicionamento dos adultos é sentido pelos jovens como uma desvalorização, como se eles não tivessem legitimidade para falar o que eles pensam em relação à escola, sua dinâmica e suas relações, e também sobre o que eles sentem e desejam em relação a suas vidas e ao seu depois. Além disso, estes jovens se deparam com um paradoxo, ao ouvir dos adultos que precisam se esforçar, pois dessa forma é possível conseguir o que se deseja, quando, por outro lado, já receberam destes mesmos adultos desqualificações e rótulos de imaturidade e irresponsabilidade.
Essas rotulações não oportunizam, no sentido de que não favorecem que o jovem participe ativamente dos debates e decisões sobre o que diz respeito à vida escolar. Participar da escola implicaria em poder colocar em questão o que nas interações que ali se estabelecem pode causar sofrimento e falar sobre as situações que consideram injustas e desrespeitosas. No entanto, essas relações tensas com os adultos se constituem em muros, pois limitam as possibilidades de participação dos jovens, uma vez que suas opiniões, queixas e questões não são levadas em consideração.
Chama atenção a crítica contundente que os jovens da escola 2 fazem ao que está posto e estabelecido, principalmente no que se refere às relações hierarquizadas entre adultos e mais novos. Eles parecem não encontrar na escola um espaço de acolhida e escuta para que estas dificuldades da convivência possam ser expressas, discutidas e negociadas. Quando questionados se já havia sido realizada alguma tentativa de dialogar com os adultos sobre estes incômodos e reivindicações, eles apontaram o efeito nulo de suas falas e demandas, como se, na visão dos mais velhos, eles não constituíssem interlocutores válidos, ao falar sobre o que vai mal na escola.
S: Mas vocês já tentaram falar isso num conselho, por exemplo?
Joyce: Eles dizem que a gente tá errado.
Giovana: Que a gente é inexperiente, que a gente não entende nada da vida... (G3, 2º encontro).
A partir destas falas, podemos observar diversas vivências na escola, em relação aos adultos, que são sentidas pelos jovens como obstáculos, que não movem e não oportunizam, no sentido de não poderem contar com a escola como um lugar onde possam ser escutados em relação às questões pessoais que os angustiam e no sentido de não se sentirem legitimados para participar e opinar nas questões que dizem respeito à vida escolar. Quando estes jovens sinalizam estas aflições e angústias, eles parecem desejar um entendimento sobre o que estão vivendo, um conhecimento sobre si que pode eventualmente ajudá-los a se inserir de outras formas no meio em que vivem, assumir escolhas e tomar decisões sobre suas vidas. No entanto, a escola costuma priorizar um conhecimento formal e mais voltado para os conteúdos e, muitas vezes, deixa de oportunizar aos jovens uma experiência de autoconhecimento, participação e descoberta dos próprios valores.
O principal obstáculo parece ser a falta de laços com os adultos, o que envolve uma falta de proximidade e afetividade e a escassa sensibilidade dos adultos (professores e direção) para compreender suas realidades, aspectos que também foram referidos pelo estudo de López (2012)LÓPEZ, Francisco Miranda. Los Jóvenes Contra la Escuela: un desafío para pensar las voces y tiempos para América Latina. Revista Latinoamericana de Educación Comparada, v. 3, n. 3, p. 71-84, 2012.. Os jovens apontam que o laço com o professor é sentido por eles como significativo. No entanto, além de alguns professores não atentarem para a importância de se criar esse laço, a própria situação de muitos deles, que em seu trabalho precisam se dividir entre várias escolas, não favorece isso.
Os jovens também criticam a imposição de regras cerceadoras e pouco claras, transmitidas de forma autoritária e destacam, assim, o desejo de que sua opinião seja valorizada na tomada de decisões em relação às dinâmicas escolares. E, principalmente, demandam dos adultos uma postura de escuta e acolhida em relação ao que eles têm a dizer, sobre o que desejam para si, sobre suas expectativas e angústias em relação ao amanhã. Este distanciamento e a falta de diálogo dificultam a criação de um ambiente escolar criativo e imaginativo, no qual os jovens sintam-se convocados a participar.
Por outro lado, os jovens de ambas as escolas também apontaram a existência de professores com quem se pode contar, que enxergam neles algum potencial e que, de alguma forma, apostam neles.
Jéssica: O único projeto aqui da escola que deu certo mesmo foi o basquete.
S: Como é esse projeto?
Jéssica: É um projeto de basquete que realmente o professor se esforçou, tanto que a gente conseguiu ver os jogadores da NBA, a gente foi lá com eles, lá em Copacabana. A gente foi, tirou foto, a gente ganhou camisa, boné... Ele é um professor que luta pra gente ter um futuro melhor, pra gente não desistir dos nossos sonhos. [...] Ele sempre tá conversando, sempre tá arrumando um jeito de ajudar a gente de um jeito ou de outro. Ele sempre tá te botando pra cima.
Naiana: Literalmente, ele pega a gente e joga pro alto [risos].
S: Bacana... E tem mais algum professor ou alguma pessoa que vocês conhecem, que coloca vocês pra cima?
Jéssica: A X., professora de matemática...
S: De que forma ela faz isso?
Jéssica: Dando conselho, falando pra gente nunca desistir (G2, 6º encontro).
Nesta situação relatada por Jéssica e Naiana, a escola parece ter oferecido aos jovens a possibilidade de se deslocarem física e simbolicamente para um lugar diferente, no sentido de entrarem em contato com outras oportunidades e assim perceberem ser possível se verem ocupando determinados espaços e se projetarem imaginariamente em relação a outros lugares. Desse modo, o laço afetivo, a confiança e o respeito são referidos como aspectos oportunos das relações intergeracionais na escola, que contribuem para mover e conduzir o jovem para outros lugares e outras vivências, fazendo com que a escola possa ter valor no aqui e no agora e também no depois.
Para além dos conteúdos que a escola transmite, os laços que ali se estabelecem foram referidos como muito importantes pelos jovens, principalmente os participantes do G3. Eles parecem precisar desses laços, da confiança e do respeito dos adultos para sentirem-se se movendo. O fato de o professor se interessar por eles e por suas vivências e escutá-los pode movê-los para outros lugares e possibilitar que sintam que o presente não se esgota no agora, mas que existe um presente acontecendo no depois, como se essa vivência do instantâneo pudesse ser dilatada em relação a um tempo um pouco mais para frente.
O Valor da Escola e da Escolarização no Agora e no Depois
A escolarização como um meio de obter um futuro melhor para e si e para a família foi outro aspecto mencionado pelos jovens durante as oficinas e apareceu principalmente como um pressuposto que parte de seus familiares. Grande parte dos jovens atribuiu às cobranças dos familiares seu sentimento de obrigatoriedade em relação aos estudos. Neste caso, seus familiares acreditavam que a escolarização seria uma via que proporcionaria uma vida melhor, porém, esta ideia não parecia ser plenamente apropriada pelos jovens.
S: O que te faz vir pra escola?
Mariana: O que me faz vir pra escola? Minha mãe, porque por mim eu não viria, não.
S: Porque ela acha que tu tem que vir?
Mariana: Educação... esse negócio de futuro...
S: E tu concorda com ela?
Mariana: Ela tá certa em querer que o meu futuro seja bom, só que eu não ligo... (G1, 1º encontro, grifos nossos).
Se considerarmos a escolaridade dos pais dos jovens participantes, a maioria não chegou a concluir o ensino médio. Apesar da baixa escolaridade dos pais, parece que para eles a escolaridade dos filhos é considerada um valor, no sentido de estar relacionada à ampliação das chances de acesso ao mercado de trabalho e à esperança de um futuro melhor, algo diferente do que tiveram. Assim, podemos considerar que, apesar do contato recente das famílias populares com a escolarização (Burgos, 2012BURGOS, Marcelo Baumann. Escola Pública e Segmentos Populares em um Contexto de Construção Institucional da Democracia. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 1015-1054, dez. 2012.), essa parece estar se tornando, cada vez mais, um valor para estes pais e responsáveis, que no passado não tiveram acesso a esse processo e talvez coloquem alguma expectativa na trajetória escolar de seus filhos, com relação à mobilidade social que essa pode implicar.
Esta expectativa em torno da mobilidade social que pode ser oportunizada pela escolarização foi referida por Jéssica, quando falou sobre o desejo de seus pais de que ela estude, para que possa “ter um trabalho melhor que o deles”.
Jéssica: Eu tenho que estudar. Sou obrigada a estudar.
S: Obrigada por quem?
Jéssica: Minha mãe.
Naiana: Lá em casa nenhum dos meus irmãos mais velhos estuda.
Jéssica: Minha família também, ninguém estuda. Meu pai é analfabeto. A minha mãe quer que eu seja a filha que estudou. Falo da minha, aparece o corpo dela lá fora. [Risos]. (A mãe de Jéssica trabalha como funcionária da limpeza da escola).
S: Mas por que os familiares querem que vocês estudem?
Naiana: Pra gente não ser que nem eles, pra gente ter um futuro bom, sabe.
Jéssica: Um futuro diferente.
S: Mas o que é um futuro bom?
Jéssica: Tipo assim, ter estudo, ter um trabalho melhor do que o deles.
Naiana: Um emprego bom.
Jéssica: Que nem a minha mãe fala que não quer me ver no lugar dela, ela espera que seja algo melhor.
S: E o que vocês esperam?
Naiana: Eu também espero isso de mim.
Jéssica: Eu também. (G2, 4º encontro, grifos nossos).
Cabe destacar ainda que houve uma significativa diferença de posicionamento em relação à escola, à escolarização e às expectativas em relação a um agora mais dilatado, por parte dos jovens da escola 1 e da escola 2. Além do respeito e do reconhecimento como sujeitos de direitos no que se refere à relação com os adultos na escola, os jovens da escola 2 também demandam uma melhoria na qualidade da escolarização e um maior investimento governamental na instituição escolar. Eles destacam a falta de investimento e a desvalorização da escola pública, o que contribui para que eles se sintam desanimados para frequentá-la.
Os jovens da escola 2 (grupo 3) também referiram sua situação de alunos de uma escola pública, concluintes do ensino fundamental, que tentarão ingressar em escolas técnicas estaduais ou federais de ensino médio, que possuem um ensino reconhecidamente mais avançado, onde o ingresso se dá mediante a aprovação em um processo seletivo. No entanto, apontaram a ineficiência da escola pública, que não os prepara para o nível de conhecimento exigido para as seleções que muitos pretendem fazer, ou mesmo para frequentarem com uma base efetiva de conhecimento o ensino médio. Eles dizem que sua escola e as escolas públicas de forma geral são moleza pura, ou seja, oferecem um ensino com um nível de exigência baixo, o que os preocupa, pois não os prepara para o que precisarão enfrentar lá fora(G3, 2º encontro). Estes jovens alegam, por exemplo, não ter base suficiente para competir com alunos de escolas particulares, pois percebem que o que aprenderam na escola não foi o suficiente. Desse modo, reivindicam um ensino de qualidade para poderem competir de forma igual com os alunos de escolas particulares, no acesso a uma escola de ensino médio ou técnico e no acesso à universidade, posteriormente.
Giovana: [...] a gente vai viver isso agora no final do ano, competindo por uma vaga numa escola. É triste.
Raiane: Eu acho que é muito triste que tem muita gente com potencial, mas não teve...
Giovana: A chance...
Raiane: Não teve orientação, não teve essa chance de poder ter expandido esse potencial [...].
Brenda: Uma coisa que me dói o coração é ouvir de pessoas que vieram de colégio particular dizerem: ‘ah, aprendi isso no ano passado’...
Raiane: O ruim é que a gente está numa escola pública. Aí se a gente quer passar pra uma escola boa, federal, ainda mais pro Enem, você tem que tirar do seu bolso pra pagar explicadora e professor particular.
Giovana: A prova da Cefet é barra... Aí imagina, se você não tem uma base boa, como é que vai chegar lá? Eles falam tanto pra gente lutar pelos nossos sonhos, pra gente buscar... a gente quer buscar. Mas quando você não tem condições pra isso?
Raiane: É, às vezes você não tem a base... é que nem você querer estudar, e não saber o que estudar.
Giovana: Eu imagino quem é do interior. Às vezes a pessoa quer estudar, mas não tem escola. Aqui a gente quer ter uma base pra passar nos concursos, mas... (G3, 10º encontro, grifos nossos).
Diante da precariedade do ensino escolar, os jovens apontam a necessidade de buscar alternativas individuais, que muitas vezes são estimuladas pelos seus professores, como assistir vídeo-aulas, pagar uma explicadora ou fazer cursos preparatórios. No entanto, a maior parte destas alternativas são restritas aos que têm uma situação financeira um pouco melhor que a maioria dos alunos de escola pública. Como afirma Raiane, “[...] tem gente que consegue [passar em um concurso], porque consegue pagar fora, que é o caso dela [colega], que é o meu caso, mas quem não pode?”.
Na escola 2 (G3), apesar de haver queixas por parte dos alunos sobre alguns aspectos da dinâmica e das relações escolares que eles percebem como problemáticos e inoportunos, parece que eles ainda esperam algo da escola. Apesar de denunciarem que a escola, da forma como se apresenta, não consegue sustentar seus sonhos e projetos, mesmo assim percebe-se certa valorização deste espaço quando, por exemplo, afirmam que desejam uma escola com melhores condições para acolhê-los e reivindicam um ensino de qualidade. Os mesmos jovens que denunciam a falta de investimentos na escola pública e o baixo nível de ensino e que reivindicam uma escola melhor, que transmita os conteúdos de uma forma que ultrapasse o básico, são aqueles que ainda parecem depositar suas apostas na escola e na escolarização, mesmo que de maneira tímida, no sentido de que esta poderia possibilitar mobilidades e o acesso a oportunidades que lhes permitam ascender socialmente.
Também pelo lado da direção e dos professores notou-se um maior investimento e certa aposta nos alunos por parte da escola 2, o que se observou menos na escola 1. Na escola 2, os alunos participantes das oficinas afirmaram que, apesar da escola apresentar aspectos negativos, reconheciam que os professores ensinavam muito bem. Além disso, referiram o ensino da gramática como um diferencial desta escola e algo que pode ser importante, já que alguns concursos costumavam cobrar este conhecimento.
A maioria dos jovens do G3 (escola 2) parece conseguir se identificar com algo que diz respeito a um tempo mais dilatado que o imediato, talvez pelo fato da escola apostar mais neles e de eles estabelecerem mais laços na e com a instituição. Ao destacarem que “[...] a escola preenche os períodos que seriam vagos com aulas”, que “[...] oferece gramática, que pode ser útil em concursos” e que “[...] alguns professores dão aulas extras preparatórias para concursos” (G3, 2º encontro), poderíamos, em uma primeira análise, considerar que os jovens parecem estar demonstrando uma preocupação com o depois e valorizando aquilo que na escola lhes parece oportuno em relação ao que eles desejam para além do agora. Mas, para além disso, poderíamos considerar que estas possibilidades oferecidas pela escola podem estar sendo vistas pelos jovens como oportunas agora. Talvez os jovens não estejam apenas visualizando o sentido instrumental do estudo, mas o valor e o sentido oportuno que o acesso a essas aulas e esses conteúdos tem no hoje. Este valor pode estar, por exemplo, na transferência positiva e na relação de identificação que os alunos estabelecem com estes conteúdos e aulas, com os professores que oferecem estes conteúdos e com os colegas que compartilham destes espaços e no prazer e gratificação que estas vivências podem oferecer no aqui e no agora.
Diferentemente do G3, da escola 2, nos dois grupos da escola 1 não houve queixas em relação à precariedade do ensino escolar e as desigualdades de acesso às oportunidades também não foram uma questão para a maioria deles. Durante o último encontro que tive com o G2 (Escola 1), perguntei o que eles pensavam em relação ao término do ano e à ida para outra escola, onde dariam início ao ensino médio. Fernando respondeu: “tem que ir” e Milena falou de forma irônica: “vou virar moradora de rua...”. Quando Milena afirma isso, parece apontar para o fato de que, para ela, o valor da escola no depois é nulo, e que a escola não parece sinalizar para algo oportuno para além daquele momento que ela está vivendo ali.
Talvez essa apatia e desinteresse em relação ao depois não signifique que o amanhã não seja importante para estes jovens, mas seja uma resposta de desamparo e impotência em relação à precariedade desse presente, à falta de garantias e certezas e ao fato de não existirem ou existirem poucas identificações com professores que os mobilizem afetiva e intelectualmente a pensar sobre o porquê da escola, sobre o que eles querem, e que, de fato, se vinculem com esses jovens.
Poderíamos inferir que este posicionamento distinto dos jovens das instituições 1 e 2 em relação à escola e à escolarização também seja influenciado pela diferença na proposta das duas escolas. A escola 2 possui uma proposta diferenciada, voltada para as artes visuais, oferecendo aos alunos ateliês de arte e salas de aula equipadas e decoradas de acordo com cada matéria que lhes são designadas. Além disso, os professores dedicam-se exclusivamente à escola e talvez consigam ter uma implicação maior com as questões que envolvem a instituição e seus alunos do que aqueles que precisam dedicar-se a mais de uma escola, como é o caso dos professores da escola 1.
Apesar das vivências dos jovens serem muito marcadas pela valorização do agora, a escola ainda insiste em iniciativas, inclusive institucionalizadas, de abordagem da questão do projeto de vida junto aos alunos. Por exemplo, a disciplina de projeto de vida faz parte da matriz curricular das escolas em tempo integral (com turno único de 7 horas) da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. Ambas as escolas envolvidas neste estudo eram de tempo integral e tinham essa disciplina em sua grade curricular.
Durante o trabalho de campo, estive presente em algumas aulas da disciplina de projeto de vida, na escola 2. Durante uma destas aulas, chamou-me a atenção a situação em que uma jovem afirmou: “Eu não tenho futuro!”. Não compreendi o que a motivou a falar aquilo naquele momento. O professor, muito incomodado, disse, diante de toda a turma, que ela não deveria falar aquilo, pois seria um mau exemplo para os alunos menores que estavam presentes na aula. Ela retrucou: “[...] eu não tenho futuro mesmo... sou realista!”. Alguns alunos riram. O professor disse então, em tom de sermão: “É necessário olhar para onde se quer ir e para qual caminho deve ser trilhado [...]. Nós como indivíduos somos os únicos capazes de mudar nossa realidade, os únicos responsáveis por mudar o próprio futuro”. Este professor utilizou como exemplo sua própria história, como alguém que morava em uma favela e que não se conformou com sua realidade, afirmando que era possível através do estudo e do esforço individual, chegar aonde ele chegou, “[...] com uma profissão digna, ganhando um bom salário”. Usou também como exemplo o caso de atletas que encontram dificuldades em sua carreira, já que muitas vezes não recebem incentivo do governo, mas mesmo assim esforçam-se treinando diariamente para alcançar o que desejam. Os alunos ouviram estas palavras silenciosamente e não expuseram sua opinião sobre o assunto. Talvez alguns elementos da fala do professor - sobretudo aquilo que remetia à ideologia meritocrática - fizessem pouco sentido para esses jovens, uma vez que, posteriormente, durante as oficinas, alguns deles pareciam apontar para uma direção que colocava em questão este discurso do esforço individual como o principal e quase que exclusivo fator envolvido na oportunização do que se deseja. A fala do professor, a partir de sua experiência, revela que pôde reconhecer valor no seu agora ao vislumbrá-lo como favorecendo e oportunizando o depois. No entanto, estes jovens não parecem se identificar com essa fala, já que vivenciam a situação em que o agora não tem valor já que o depois é algo sem grandes chances e precário. Neste sentido, talvez a moralização do discurso não seja a saída para que o jovem veja o valor da escola no agora como também no que imagina do depois.
Através dessa fala, o professor revela uma preocupação pelos alunos; pode ser muito doloroso deparar-se em seu cotidiano com jovens que possuem poucas chances e garantias, o que talvez o impeça de mandar a real para estes jovens, ou seja, dialogar com eles abertamente sobre esta falta de garantias e todos os muros e barreiras que estes jovens provavelmente encontrarão. Talvez a única linha de fuga seja não acessar o mal-estar e a indignação que a precária realidade desses jovens provoca e, assim, utilizar de forma defensiva uma fala que sinaliza para a importância do esforço individual.
Em outra situação, durante o 6º encontro com o grupo 1, na escola 2, os jovens comentaram que na escola havia a disciplina de projeto de vida. Quando os questionei sobre como eles viam a matéria, me responderam: “[...] o professor fala coisa com coisa; ele fala de política; fala sobre o que você vai ser quando crescer; a gente fala sobre o que quer ser quando crescer; o professor quer que a gente pense o que a gente vai fazer quando acabar a escola”. Suas respostas foram acompanhadas por expressões de desinteresse, o que talvez indique que os assuntos abordados e/ou a forma de abordagem façam pouco sentido para eles.
Nestes casos, talvez os professores apresentem aos alunos discursos muito formatados e fechados e os alunos parecem não sentir que têm um espaço para debater ou até contradizer, a partir da sua própria experiência, o que é apresentado. Estes jovens parecem desejar um espaço de escuta para que as angústias e dúvidas relacionadas ao agora e ao depois possam ser apresentadas.
Considerações Finais
Percebemos através do campo empírico, que o que é oportuno para os jovens em suas mobilidades é algo relacionado ao que se pode ver o valor agora, uma vez que, se constitui como uma porta para algo bom e favorável no depois. Se o que é oportuno para o jovem é aquilo que se pode usufruir no aqui e agora e este jovem se depara com práticas escolares com as quais não consegue se identificar, pois estão muito distantes de sua vivência encarnada no hoje, neste caso a escola não é vista como uma oportunidade. Talvez esse seja um dos motivos pelo qual a escola é referida pelos jovens com tanta frequência como um lugar chato e sem sentido.
Mas, por outro lado, ainda parece haver aspectos oportunos no espaço escolar, que conferem sentido a ele, dentre os quais destacamos os laços que por vezes são formados com os adultos, o que foi ressaltado principalmente pelos alunos da escola 2, e o convívio com os pares, que exercem uma significativa influência na constituição da subjetividade do jovem e oportunizam sentidos de se conhecer, mover-se para outros lugares e outras vivências e falar sobre seus anseios e angústias.
Apesar de haver queixas por parte dos alunos da escola 2 sobre alguns aspectos da dinâmica e das relações escolares percebidos como problemáticos e inoportunos, a maioria dos jovens do G3 (escola 2) pareceu ainda esperar algo da escola e se identificar com algo que diz respeito a um tempo mais dilatado que o imediato, talvez pelo fato de haver um investimento e uma aposta maior nos alunos por parte da direção e dos professores e de eles estabelecerem mais laços na e com a instituição, aspectos que foram menos observados na escola 1. Por outro lado, na escola 1, observou-se uma maior tensão e agressividade nas relações entre jovens e adultos e uma apatia mais evidente dos alunos, em comparação com a escola 2.
Os sentidos da escola e a relação dos jovens com este espaço e seus atores são marcados por inúmeras contradições, mas o que foi mais evidenciado pelos jovens foi a falta de sentidos de oportunidade da escola, principalmente no que se refere ao sofrimento provocado pela negativização da diferença, nas relações com os colegas e, no que diz respeito às relações intergeracionais, à falta de laço afetivo com os adultos, à falta de espaços de escuta e à desvalorização relacionada ao fato de serem jovens e, portanto, imaturos, irresponsáveis e, assim, não terem legitimidade para falar sobre o que vai mal na escola e sobre o que julgam ter valor no aqui e agora.
Foi possível observar, a partir deste estudo, que o que é valorizado pelos jovens, em suas mobilidades na escola, geralmente tem a ver com a fruição no aqui e agora, junto aos pares e àqueles que lhes são familiares, o que nos leva a questionar até que ponto estas mobilidades junto aos iguais oportunizam, no sentido de realizarem um deslocamento subjetivo significativo. Nota-se, desse modo, um movimento dos jovens no sentido de uma individualização e uma dificuldade de convívio com o diferente, ocorrendo um enfraquecimento da vida coletiva e restringindo as possibilidades de subjetivação nos espaços públicos.
Neste sentido, destaca-se que o modo de subjetivação dominante na sociedade contemporânea relaciona-se com a privatização dos costumes e a individualização. Isso pode ser observado na valorização do consumo, na expansão da esfera privada, em que os indivíduos veem a possibilidade de se realizarem e serem felizes, e no afastamento cada vez maior do indivíduo das questões que dizem respeito ao político e ao interesse coletivo (Castro, 2010CASTRO, Lucia Rabello de et al. Falatório: participação e democracia na escola. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010.). Compreendemos que a participação de crianças e jovens no meio escolar demanda o deslocamento subjetivo do indivíduo ao grupo, ao coletivo. No entanto, a tendência à individualização, ao solipsismo e à competitividade não favorecem esta abertura, mas, ao contrário, propiciam o fechamento de cada um em suas próprias questões e interesses, fazendo do processo escolar cada vez menos um empreendimento coletivo.
Alguns jovens parecem ter se apropriado do espaço das oficinas para falar sobre as questões que lhes parecem muito difíceis em sua realidade como jovens pobres de periferia urbana e na realidade das escolas públicas onde estão inseridos, questões que parecem pouco encorajadas pelos adultos a serem trazidas à tona na escola. Neste sentido, consideramos que o espaço da disciplina projeto de vida, oferecida por ambas as escolas, poderia ser melhor aproveitado para que os jovens pudessem falar principalmente sobre as questões que os angustiam, relacionadas ao agora e ao depois. Esta abordagem poderia ocorrer de forma menos estruturada, mais aberta à escuta destes jovens, sobre o que eles demandam e o que é questão para eles ao se verem em uma sociedade tão desigual, diante da falta de garantias e certezas e à mercê das fortuidades negativas do tempo.
Destacamos, por fim, que as vidas destes jovens são tão marcadas pela falta de oportunidades e pela desvalorização, que parece ser difícil para muitos deles visualizarem que suas ações tenham valor no agora e também algum impacto no que imaginam do depois. Esse desvalor vai muito além de uma referência ao espaço escolar, mas se refere muitas vezes à falta de um sentimento de si valorizado, de um sentimento de que suas vidas possuem valor no agora e no amanhã.
Notas
-
1
Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o parecer nº 1.518.016 e o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 54208116.9.0000.5582.
-
2
Buscando manter o anonimato dos(as) jovens, seus nomes foram substituídos por nomes fictícios ao longo do texto.
Referências
- ARPINI, Dorian Mônica. Violência e Exclusão: adolescência em grupos populares. Bauru: EDUSC, 2003.
- CASTRO, Lucia Rabello de et al. Falatório: participação e democracia na escola. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010.
- CASTRO, Lucia Rabello de. Entre a Subordinação e a Opressão. Os jovens e as vicissitudes da resistência na escola. In: MAYORGA, Claudia; CASTRO, Lucia Rabello de; PRADO, Marco Aurélio Máximo (Org.). Juventude e a Experiência da Política no Contemporâneo Rio de Janeiro: Contra Capa , 2012. P. 63-97.
- CASTRO, Lucia Rabello de; CORREA, Jane. Mostrando a real: um relato da juventude pobre do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: NAU Editora; FAPERJ, 2005.
- BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo São Paulo: Edições 70, 2011. [1977].
- BOURDIEU, Pierre. A ‘Juventude’ É Apenas uma Palavra. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia Rio de Janeiro: Marca Zero, 1983. P. 112-121.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Fev 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
12 Abr 2019 -
Aceito
18 Out 2019