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ENTREVISTA COM JOHN GLEDSON

JOHN GLEDSON

O entendimento atual da crônica machadiana está intimamente ligado ao exemplar trabalho de pesquisa e edição que John Gledson vem realizando ao longo das últimas décadas. Gledson, que já em 1986 defendia que a reconstrução da visão de Machado de Assis sobre a história “Não pode limitar-se aos romances, porém precisa incluir os contos e (talvez especialmente) as crônicas” (GLEDSON, 1986______. Machado de Assis: ficção e história. Tradução de Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986., p. 15), tem sabido desbravar os arquivos, onde muitas dessas crônicas estavam escondidas. De forma sistemática e persistente, o estudioso inglês tem perscrutado os arquivos, para depois propor edições com eruditos e inteligentes prólogos, bibliografias e notas. No plano crítico, Gledson tem descoberto conexões entre o texto machadiano e seu contexto histórico, social, político e cultural, assim como um vasto intertexto literário. Completam esse inovador trabalho de pesquisa, as traduções para o inglês da ficção de Machado e de Milton Hatoum, e da obra crítica de Roberto Schwarz.

Especialista em literatura brasileira e na obra de Machado de Assis e de Carlos Drummond de Andrade, John Gledson (1945) é doutor pela Princeton University. Professor aposentado da University of Liverpool, publicou três livros sobre Machado de Assis no Brasil: Machado de Assis: ficção e história (Paz e Terra, 1986; 2003), Machado de Assis: impostura e realismo (Companhia das Letras, 1991; 1999; 2005) e Por um novo Machado de Assis (Companhia das Letras, 2006). Com relação à edição das crônicas de Machado segundo a série à qual pertencem, organizou: Bons Dias! (Editora Unicamp, 1990; 2008), A semana (Hucitec, 1996) e, com Lúcia Granja, Notas semanais (Editora Unicamp, 2008), além da antologia intitulada Crônicas escolhidas (Penguin-Companhia das Letras, 2013). Por outro lado, a publicação, em Portugal, de sua antologia de vários cronistas brasileiros, intitulada Conversas de burros, banhos de mar e outras crônicas exemplares (Cotovia, 2006), suscita nesta entrevista reflexões que podem ser vistas como uma análise de tradução intralinguística.

A relação que Gledson estabelece entre Machado e a voz do cronista provocou frutíferas discussões sobre o alcance da ficção em um gênero limítrofe como a crônica publicada em jornal, com o singular papel desempenhado pela ironia. Sua ideia de que “esse conhecimento do contexto seja uma preliminar imprescindível a toda compreensão válida delas, inclusive a literária” (GLEDSON, 2006a______. “‘A semana’ 1892-3. Uma introdução aos primeiros anos da série”. Tradução de Maria Teresa David. In: __________. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006a, pp. 207-235., p. 209), estimula a pesquisa direta nos órgãos de imprensa em que as crônicas apareceram.

A proposta desta conversa com John Gledson (que foi Professor Visitante CAPES da PGET-UFSC, em 2005) foi discutir aspectos específicos de seu trabalho de edição de crônica. Partindo da relação entre edição, crítica e tradução do gênero crônica, as perguntas visaram conhecer as opiniões de Gledson sobre a traduzibilidade do gênero, as notas de tradução e a circulação da crônica brasileira no cenário internacional. A entrevista, que foi realizada em Liverpool em janeiro de 2015, teve alguns acréscimos, como o próprio Gledson indica em passagens específicas do texto.

ENTREVISTA COM JOHN GLEDSON

Cadernos da Tradução (CT): No prólogo de Conversas de burros, banhos de mar, o senhor sugere que a crônica seria brasileira não tanto por suas características intrínsecas, mas pela aceitação e êxito entre os leitores. Poderia ampliar essa ideia?

John Gledson (JG): Há uma tendência a achar que a crônica é uma coisa particularmente brasileira, o que, obviamente, é uma inverdade. Porque há crônicas em outros países, sob outros nomes, chronique francesa, columns ingleses, crónica na América Hispânica. Um amigo meu, Antonio Dimas, que fez uma grande coletânea das crônicas de Olavo Bilac, também acredita que esse suposto brasileirismo das crônicas é, no mínimo, um exagero.

CT: Haveria características estilísticas próprias da crônica produzida no Brasil?

JG: Uma dificuldade no estudo da crônica é que são tantas, não há unidade nem dentro da própria crônica, nem de todas as crônicas entre si. Você pode inventar um roteiro dentro de uma série como a de Bons dias!, mas vem da conjuntura política, social. Trata-se de um enredo que vem de fora. Generalizar nestes textos é particularmente complexo. Como não sou partidário de definições simples demais de identidade nacional, tenho uma certa relutância em definir a crônica em termos nacionais. A única coisa que a gente pode fazer é o que eu fiz em Conversas de burros: tentar uma cronologia, um esboço, isso em relação, sobretudo, à cultura em geral, à importância do jornal, que no século XIX era enorme, já que era a internet da época. Tudo passava por ele. Acho difícil caracterizar, escrever uma história da crônica fora desse contexto. Obviamente, há alguns cronistas excepcionais, como Machado, João do Rio, Bilac, Drummond, Rubem Braga, que são os que eu incluí na antologia citada. Faltou incluir o Nelson Rodrigues, mas os grandes estão: Rubem Braga, que é realmente excepcional e só escreveu crônica, Machado, Clarice. Os dois mineiros, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, são gozados, excelentes. Penso naquela crônica de Sabino, “O tapete persa”, que brinca com o inglês do inquilino americano.

CT: E se pensássemos em Machado em comparação com outros cronistas hispano-americanos da mesma época, como José Martí, seria possível falar de diferenças?

JG: Não conheço suficientemente a tradição hispano-americana, mas quando a política entra na crônica de Machado sempre é nas entrelinhas. Tento o tempo todo evitar os lugares comuns sobre o Brasil, que seria um país de falta de enfrentamento, uma ideia muito difundida e paradoxal. O Brasil não compartilha os mesmos processos que o resto da América, pelo fato de ter sido um Império, e pela escravidão em grande escala. Importa, sim, para estudar Machado saber que foi monarquista, mulato, que, por isso, teve uma relação um pouco difícil com a escravidão, que ele não criticava abertamente, mas que, no fundo, odiava. Quando Alfredo Bosi argumenta que na crônica de Machado não há propriamente politica, não é bem assim: quando aparece é dentro de um parêntese irônico. Quem diz isso deve ignorar Bons dias! e boa parte de A Semana, já que a política, a economia e as opiniões sobre esses assuntos entram bastante na crônica de Machado. Não é no sentido de Martí, que é um homem mais politizado, engajado, mas isso não quer dizer que Machado não advogue suas opiniões entre as linhas.

CT: Haveria uma explicação para a escassa circulação das crônicas em tradução?

JG: Aí há um problema, que é o contexto imediato da crônica. Quando a gente pensa em traduzir esses textos para estrangeiros, há dificuldades, já que teria que circundar a crônica de paratextos, notas, o que se torna um pouco chato. Há algumas crônicas nas quais não se aplica essa ideia, como por exemplo, “O punhal de Martinha”, que não precisa muito contexto. Mas como traduzir “Eu lhe furo”, que são as palavras da protagonista? Há crônicas como a de Abílio, “O autor de si mesmo” segundo o título de Mário de Alencar, que trata de um – horroroso – fait divers no Rio Grande do Sul, a morte de um menino, que é dos textos mais traduzíveis.

CT: Seriam essas as crônicas mais literárias?

JG: Não necessariamente. São as que precisam menos de explicação fora do texto, mas são relativamente poucas. No caso de Abílio, não precisa de nenhuma nota, mas já a crônica de Martinha toparia com dificuldades. A da conversa de burros, pode ser, mas ali também há um necessário contexto histórico, que é a chegada dos primeiros bondes elétricos ao Rio. A questão é saber se a qualidade é tão excelente, alta, que pode superar essas limitações do contexto. Acho difícil. Agora estão surgindo mais traduções para o inglês dos contos de Machado. Houve até uma resenha aqui na Inglaterra, no Times Literary Supplement, de umas três antologias de traduções.

CT: Há uma antologia de crônicas de Machado na Espanha e no México, pela editora Sexto Piso, com poucas notas, mas que aparentemente não teve êxito comercial. A pergunta seria: quem lê crônica do século XIX fora de fronteiras?

JG: Pois é. Esse Conversas de burro vendeu relativamente pouco em Portugal, que eu saiba. Está dentro da coleção “Curso Breve de Literatura Brasileira”, editada por Abel Barros Baptista, colega e amigo português – um empreendimento corajoso. Confesso que sou meio pessimista em relação às vendas, porém. As crônicas da Clarice, por exemplo, têm melhor aceitação, são mais modernas, têm uma aceitação sua, que é particular dela, da autora. O mesmo com o Drummond.

CT: Nas histórias da literatura brasileira, o gênero da crônica está praticamente ausente, e sua genealogia deriva mais de análises de autores específicos sobre um cronista, ou de estudos de outras áreas do conhecimento que ressaltam a hibridez da crônica. O que faltaria para uma história da crônica no Brasil?

JG: Eu fiz, ousadamente, uma genealogia da crônica brasileira no prólogo do livro Conversas de burros. Se a gente quisesse escrever uma história da crônica no Brasil, implicaria muitíssima leitura. Para fazer essa antologia, tive que ler a obra de autores que eu praticamente desconhecia, mesmo que fosse só para rejeitá-los. Mesmo assim, faltam estudos sobre autores individuais. No caso de Bilac, o estudo de Dimas, Bilac o jornalista, é muito bom. Como a divulgação de João do Rio foi através de livros de crônicas, há bastantes coisas escritas sobre ele. Porém, para Mendes Campos ou Sabino, faltam estudos sérios e a edição de suas crônicas completas. No caso de Drummond, há muita crônica à qual o público não tem acesso. Fernando Py, quando Drummond ainda vivia, publicou a antologia Auto-retrato e outras crônicas. Agora a Companhia das Letras está publicando a obra completa de Machado de Assis em mais de 40 volumes. Eu fico com um pé atrás, às vezes, quando escuto essas notícias, porque as pessoas não sabem com o que vão ter que lidar em termos de crônica, já que o processo de edição é complexo. Como sabemos, a Companhia tem uma competência e seriedade grandes, quando a Aguilar só publicou uma Prosa seleta. Na Aguilar, a própria urgência do projeto (para publicar no centenário) levou a muitas deficiências. Quando me pediram ajuda, fiz o possível, mandando, entre outras coisas, uma lista das edições das crônicas de Machado, advertindo que nem todas eram completamente confiáveis, e recomendando voltar ao jornal, um trabalho lento, ingente, e idealmente de equipe, que eles não puderam arcar.

CT: A propósito, como pesquisador de crônica, como avaliaria o trabalho com o jornal?

JG: O que mudou a minha vida em relação às crônicas do Machado foram os microfilmes que a Biblioteca Nacional fez no final dos anos 80, disponibilizando a Gazeta de Notícias inteira. Eu tinha estudado em 1983 a série Bons dias! na edição de Magalhães Júnior, Diálogos e reflexões de um relojoeiro. Voltei do Brasil, adoeci de um negócio estranho que nunca explicaram, uma doença supostamente tropical, e que acabou não tendo maiores consequências. Passei três semanas em isolamento. A grande vantagem era que eu tinha um quarto só para mim, construído décadas atrás para tratamento de varíola. Nessa total tranquilidade, li as crônicas de Bons dias!, com as notas úteis do próprio Magalhães, e escrevi o capitulo de Ficção e História sobre o assunto. Depois veio uma oferta da Hucitec para editar Bons Dias!, para uma série da qual Davi Arrigucci Jr. e Alfredo Bosi eram editores. Quando empreendi esse trabalho, compreendi que as crônicas não podiam ser entendidas sem os jornais. Fui, então, ao Rio, e eu tinha uma rotina em que eu acordava cedo, ia à Biblioteca Nacional e passava o dia inteiro com as máquinas de microfilmes, tentando entender a relação da crônica com o resto do jornal. Foi, então, que me dei conta até que ponto não podiam ser entendidas sem esse contexto. Fiz essa edição, que teve boa recepção. Fizeramse muitas edições de outras séries depois, que ou pecam por não ir ao jornal, ou pecam, como se diz em português, por “mostrar serviço”, ou seja, por exagerar, fazer notas longas e irrelevantes sobre coisas de interesse secundário ou de conhecimento geral. Você deve limitar-se às crônicas. Pode ser egoísmo, mas as únicas edições boas são as minhas, e algumas poucas outras.

CT: São particularmente interessantes aquelas suas notas sobre a relação da crônica com outras partes do jornal...

JG: Existe uma dimensão não só histórica, mas também linguística. Porque Machado comenta as escolhas, os clichês, as maneiras de referir coisas constrangedoras, a “língua do jornal”. É um trabalho difícil, no qual você deve fuçar, ter faro, tentar entender a que Machado está se referindo. A dificuldade é juntar o trivial com o irônico, mas a gente deve se dar conta disso mesmo. Uma coisa muito frequente em Machado é que o que parece trivial não é trivial, e as pessoas ou sabem disso, ou ele brinca com o fato de alguns não saberem. O Dimas descobriu que, em 1908, Bilac escreveu sobre Machado, dizendo que as crônicas dele eram difíceis de entender. Naquele momento, vinte dias depois da morte do autor, ao que parece, Bilac se sentiu livre para dizer o que muita gente devia pensar. Na vida do Machado, as referências que vi às crônicas dele, são muito mais polite, mas às vezes exageram. Arthur Azevedo diz que em outro país mais literário que o Brasil, elas seriam reconhecidas como grande literatura. Mas acho arriscado afirmar que são grande literatura, e transportáveis a outra cultura. Até podem ser (ou, algumas delas podem ser) grande literatura, mas sempre dependem dos fatos da semana. Isso é a grande frustração para a gente, mas dentro do Brasil é mais fácil; acho que as possibilidades fora do país são mais limitadas.

CT: Em que está trabalhando atualmente?

JG: Neste momento, estou editando o que faltava da série A Semana, e me dou conta da importância desses fatos e da leitura de vários jornais para compreender o contexto. Por exemplo, há passagens onde Machado fala do júri, de que as pessoas não queriam participar, e os brasileiros nessa época não tinham consciência dessa responsabilidade. Para quem sabe de outras ocorrências do assunto, é fácil de entender. Depois, porém, começa a falar das “sessões secretas do Senado”. Mas como essas sessões são secretas, você não pode saber do que ele estava falando! Porém, podemos pesquisar isso nas reportagens de O Paiz, que era, em alguns aspectos, um jornal mais interessante que a Gazeta, porque era republicano. No próprio dia em que Machado publica a crônica, há uma reportagem nesse jornal dizendo que no dia anterior houve sessão secreta do Senado, e que alhures, em outra parte do jornal vai ser comentado do que se falou, porque as coisas extravasavam. Num caso desses, então, você deduzir o que realmente se passava, é complexo. Claro, é o assunto secreto que interessa. Mas você não vai entender a crônica se não compreender isso. Não é fuçar por fuçar.

CT: Também devemos ter em conta que estamos em um estágio inicial, de poucas décadas, de trabalho com essas crônicas.

JG: As crônicas não podem ser estudadas sem essas informações. Alguns estudos dizem que usam Bons dias! e os dois primeiros anos de A Semana, porque é do único que há boas edições. A tendência da crítica literária até há pouco tempo, era de querer ver a crônica no geral ao invés de no trivial, como se a crônica fosse autônoma, literária. A chave é entender o contexto não só histórico, mas jornalístico. Na minha carreira, isso tem sido a minha grande preocupação. No início, achei que era um trabalho agradável, que qualquer um pode fazer, e depois me dei conta de que não é assim. São necessários tino e conhecimento literários, mesmo com a ajuda do Google: o pesquisador deve conhecer a história literária, europeia e brasileira, claro, além de história, brasileira e mundial. A ironia, também não devemos esquecer nunca, é a chave, o fascínio de juntar o trivial com o irônico. (Um comentário suplementar, escrito em 2016: agora também existe a hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, uma maravilha, sobretudo quando penso no que eu tinha que fazer há um ano para consultar a edição de Bons Dias!: sento-me à minha mesa de trabalho, e está ao meu alcance tudo o que me fazia atravessar o Atlântico, levantar cedo, e copiar coisas à mão horas a fio naquele calor! É maravilhoso também que todo mundo tem acesso a esses jornais, pode consultar por si mesmo, e sobretudo experimentar esses jornais, diferentes e semelhantes aos nossos – em vias de desparecer).

CT: Pensando no Machado de Assis cronista, existe uma diferença radical entre literatura para ganhar o sustento e a literatura onde a necessidade material imediata se dilui, como no caso dos romances?

JG: Existe, sem dúvida. Machado pensa que a crônica é efêmera. A única exceção a isso é a meia dúzia de textos que ele selecionou para Páginas recolhidas, de 1899. Todas essas crônicas são do início da década de 90, até 1894. Dessa coletânea, há algumas cuja seleção é mais óbvia. Está a “Conversa de burros”, e “Vae soli”, mas ele corta pedaços. Ele só queria reproduzir o que pudesse ser lido sem o contexto, pois não achava o resto literariamente interessante. Quem vai discordar disso? O objetivo dele ao reproduzir crônicas é diferente do meu, que também é histórico, biográfico. O mesmo aconteceu com Mário de Alencar, que publicou algumas crônicas de A Semana em 1914, e que corta pedaços, dá títulos quando não tinham. Os nossos interesses não são os deles. Alencar estava interessado na literatura contemporânea, e inclui muitas crônicas sobre livros recentes, que podem nos interessar menos. É interessante, porém, porque mostra o gosto da época.

CT: O fato de Machado muitas vezes escrever crônicas assinadas com pseudônimos, tem alguma consequência no plano estilístico desses textos publicados em jornal?

JG: Há contos e crônicas assinados com o mesmo pseudônimo, como Manassés. Machado inventou esse pseudônimo em um pequeno jornal dirigido por Joaquim Nabuco. Depois usou para as Histórias de Quinze Dias e para as Histórias de Trinta Dias. Às vezes, os críticos e editores veem as crônicas como algo mais unificado do que realmente são, acredito que pelo fato de estarem reunidas em livro. Mas, claro, não havia enredo, era uma coisa que se fazia toda semana, e para aquela semana. Às vezes tem algum personagem, como o José Rodrigues, o criado burro, que aparece várias vezes em A Semana, mas nem por isso podemos falar de uma ficcionalização total, já que é muito intermitente como estratégia. Cada série tem, em geral, um pseudônimo, às vezes de significado duvidoso: Lélio, Manassés, por exemplo. Acho difícil que os leitores entrassem em malabarismos de interpretação, pelo menos além de certo ponto. Com Bons dias!, assinado “Boas noites”, Machado estabelece, desde o começo da série, uma estratégia de polidez, mais importante que o “pseudônimo” em si, ou de qualquer nome que inventa, de passagem, para o “cronista”. A Semana não tem assinatura, porque todo mundo sabia que era Machado, e ele até se apresenta nessas crônicas como tal. Por exemplo, diz que mora perto da estação do trenzinho do Corcovado, conta o primeiro encontro com Carolina, fala de ter saído em carruagem no dia da Abolição, ou lembra as conversas com José de Alencar na livraria Garnier. Esses momentos são comoventes. Mas, em geral, quando ele fala em primeira pessoa, sempre ironiza ou até “mente”.

CT: Seria possível sistematizar o corpus de crônicas machadianas em etapas? Elas têm relação com a produção ficcional? Ou com a vida do autor?

JG: Isso pode ser feito, mas com muitas restrições. As etapas mais óbvias têm a ver com o jornalismo, com o desenvolvimento do jornal, sobretudo com o aparecimento da Gazeta, em 1874, o mesmo ano em que começam a chegar telegramas através do Atlântico, pelo cabo submarino. Romances, contos, crônicas, teatro, tudo faz parte de uma história única, na qual Machado lança mão de cada gênero segundo as necessidades dele. Por exemplo, Brás Cubas foi um surto de gênio escrito com relativa rapidez, uma ousadia maior, mas quando acabou esse livro e Papéis Avulsos, para onde ele vai? Começa uma coisa nova, aparecem contos realistas, simplesmente, como “Singular Ocorrência”, de 1883. Depois surgem contos e mais contos, tanto que em quatro anos publica os melhores, justamente porque o gênero servia para o que ele podia e queria dizer. Só depois escreve, com grande dificuldade, Quincas Borba, que deu um trabalho terrível. Sendo um escritor ousado, ele não tinha modelos. Nas crônicas dessa época, ele tem menos independência literária, como na série Balas de Estalo, em que fazia parte de uma equipe. Todos os seus romances da maturidade são muito individuais, possuem condições narrativas muito diferentes, e a minha impressão é que amadurecem ao longo dos anos; algumas crônicas fazem parte desse processo. Na década de 90, seu impulso criativo se dirige às crônicas da série A Semana, um terço da sua produção cronística total. Ali é que se concentra sua produção desses anos, de 1892 a 1897, e ali sobressai não só a maturidade do autor, como também a situação política da república e a modernização. Depois, ele volta para o passado, pois Dom Casmurro centra-se nos anos cinquenta e sessenta, vai para a frente com Esaú e Jacó, que termina em 1894; Memorial de Aires também aborda esse mundo mais moderno.

CT: Como foi feita a seleção de uma antologia como a da Penguin-Companhia das Letras? Havia orientações da editora em relação ao público-alvo da obra?

JG: Na antologia para a Companhia das Letras não tive orientação, e acho que deveria ter tido, já que é uma coletânea de grande divulgação. Nas edições de contos que fiz na mesma coleção, fizemos questão de colocar notas, eu e Hélio de Seixas Guimarães. No caso de Quincas Borba, foi diferente, porque minha amiga Maria Cristina Carletti já tinha feito edições excelentes de Machado. Eu não via necessidade de reinventar a roda, e decidimos trabalhar juntos para as notas. O ideal foi a antologia dos contos para a Companhia, e que ainda dá dinheiro. Esse livro tem uma introdução curta, e que procura ser simpática. Porém, nas crônicas, há outros problemas, relacionados com a quantidade de notas de pé de página. Em certo sentido, talvez não seja possível fazer uma edição “popular” dessas crônicas, em termos de sucesso de vendas. Fazer as notas pode parecer pedantismo – você entra em especulações que podem não ser justificadas – mas levanta questões interessantes, e no fundo, é necessário para o pleno entendimento delas, até no que têm de mais superficial.

CT: E nas outras edições, como foi o processo?

JG: Em Conversas de burros, fiz muita leitura, e excluímos certas crônicas que são interessantes, mas que precisam de muita explicação. Sempre tive consciência de que ia ser vendido em Portugal, por isso até incluí alguns textos sobre esse país que eram bons, como “Aventura em Lisboa”, de Paulo Mendes Campos. A seleção foi dos cronistas que eu conhecia bem, como Drummond, Machado; Bilac porque estava bem editado e é muito representativo; João do Rio porque é famoso e bem visto na área de história literária; Rubem Braga, porque era inevitável. Stanislaw Ponte Preta foi uma escolha pessoal, porque eu li muito no passado e gosto muito. A Clarice foi uma escolha natural. Os dois mineiros eu achei bom incluir. Mas há pontos cegos, o principal Nelson Rodrigues, que eu deveria ter incluído. Gostaria de reproduzir esse livro no Brasil, mas acrescentaria o Nelson Rodrigues.

CT: A edição de A Semana, de Mário de Alencar, como o senhor lembra em “A história das edições das crônicas machadianas” (2012), foi responsável pela introdução de títulos para algumas crônicas que hoje são conhecidas por esses títulos, como “O punhal de Martinha”. Quais poderiam ser os acréscimos ‘permanentes’ das suas edições?

JG: Normalmente, a minha política é mencionar o título, mas não usá-lo. Eu quero reproduzir a edição do jornal. Pode ser que no futuro outras pessoas achem coisas que eu não vi, ou coisas que estão erradas. Evidentemente, o que eu fiz foi um avanço grande na compreensão dessas crônicas. O bom, hoje em dia, é que o acesso ao jornal está aí, na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, como falei, e, claro, existe a pesquisa digital no Google. Mas, mesmo assim, devemos ter o instinto, a sensibilidade e o conhecimento para selecionar o que serve e o que não serve. Machado citava a literatura mundial muito mais que o resto dos cronistas brasileiros – Dickens, Molière e tutti quanti – e o conhecimento dessas referências pelo editor traz esclarecimentos para a crônica. Eram crônicas mais difíceis, o motivo pelo qual o Bilac o critica. Por exemplo, em uma crônica que estou editando, ele diz “Farà da se”, que eu sei o que quer dizer, claro, mas fui buscar e apareceu a frase “L’Italia farà da se”, que é uma citação de Carlos Alberto, rei de Sardenha, nos começos do processo do Risorgimento. E isso faz parte do universo do século XIX.

CT: As edições críticas das crônicas machadianas começam a aparecer com mais intensidade a partir dos anos 90. Como avaliaria as suas edições em comparação com a pioneira de Raimundo Magalhães Junior (1958)______. Crônicas de Lélio. Organização, prefácio e notas de Raimundo Magalhães Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958., e depois com as de Heloisa Helena Paiva de Luca (1998)______. Balas de Estalo de Machado de Assis. Organização de Heloisa Helena Paiva de Luca. São Paulo: Annablume, 1998., Salete de Almeida Cara (2003)______. Melhores crônicas. Seleção e prefácio de Salete de Almeida Cara. São Paulo: Global, 2003., Leonardo Affonso de Miranda Pereira (2009)______. Histórias de quinze días. Introdução e notas de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas: Editora Unicamp, 2009., João Roberto Faria (2009)______. Histórias de quinze días. Introdução e notas de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas: Editora Unicamp, 2009., Silvia Maria Azevedo (2011)______. Crônicas: A + B/ Gazeta de Holanda. Organização, introdução e notas de Mauro Rosso. Rio de Janeiro: Editora PUC/Loyola, 2011. e Mauro Rosso (2011)______. Crônicas: A + B/ Gazeta de Holanda. Organização, introdução e notas de Mauro Rosso. Rio de Janeiro: Editora PUC/Loyola, 2011.?

JG: O interesse pelas crônicas tem crescido muito nos últimos anos. Atualmente, estão sendo feitas edições das crônicas de O Futuro, e eu estou fazendo a série de A Semana: pode ser que haja outras que eu não conheço. Mas destas sete que você citou, há péssimas, há boazinhas e há boas, como a edição de João Roberto Faria, e eu tenho uma grande simpatia ainda hoje pelas edições de Magalhães Júnior, apesar de tê-lo criticado. Ele foi um verdadeiro pioneiro, e sabia que sem notas essas crônicas não podiam ser entendidas. Os outros ou pecam por não entender o lado literário, que é o caso de Leonardo Affonso de Miranda Pereira; ou por não ir ao jornal, que é o caso de Heloisa Helena Paiva de Luca, Silvia Maria Azevedo e Mauro Rosso. Teoricamente, poderíamos colocar junto as edições de Leonardo Affonso e de Sílvia Maria Azevedo, que fazem a mesma série, porque ela identifica as citações literárias, e ele as jornalísticas. Nenhum deles sabe como juntar as duas coisas. O principal problema de boa parte das edições é que simplesmente não consultam o jornal, e eu não consigo entender a razão disso. Afinal, o exemplo do que eu fiz está aí. Hoje, também, você já não precisa ir diretamente à Biblioteca Nacional, no Rio, pode acessar tudo on-line. Eu tenho a Gazeta, O Paiz aqui mesmo em casa, em Liverpool. O que não existe on-line é o Jornal do Commercio (Correção, 2016: agora, para felicidade minha e nossa, já existe). É importante esse jornal, porque era o Times da época, era sério, sisudo, e melhor informado, dá detalhes. Onde a Gazeta só dá um resumo dos debates do Conselho Municipal do Rio, por exemplo, o Jornal do Commercio escreve tudo, dá a história minuciosa em colunas e colunas. Esse universo de publicações é básico para a pesquisa, já que Machado comprava e lia muitos jornais.

CT: O senhor defende as notas de rodapé como subsídio para a compreensão das crônicas. Que outros ajustes seriam necessários na reconfiguração da crônica, quando publicada como livro? As notas seriam necessárias também na tradução?

JG: As notas são necessárias na tradução, mas como se dirigem a um determinado leitor, devem variar de público para público. Depende muito da edição. Eu não tenho regras absolutas. Como falei, eu não gosto de usar títulos, mas na antologia portuguesa eu usei e não coloquei notas. Por exemplo, eu fiz a edição de Dom Casmurro, vernácula e em tradução para o inglês, e as notas diferem. A primeira resenha que eu tive de uma edição de crônica minha, foi na Folha. Reclamavam de que eu dizia quem era Darwin. Talvez até tivessem razão: mas importa menos que a multidão de aspectos e personagens – na sua maioria brasileiras – em que não há discussão possível. Eu faço o que acho necessário, sem me impor ao leitor e tendo em conta que o primeiro dever é com Machado, que, paradoxalmente, não queria que esses textos perdurassem...

CT: Nesse mesmo prólogo, o senhor afirma que, de Drummond em diante, o antologista pode relaxar. Qual é a razão de tal afirmação? Como é a relação com a história dessas crônicas mais próximas da atualidade? Isso aconteceria porque os textos de Sabino, Drummond e Clarice estão menos ligados às circunstâncias históricas em um sentido estrito, ou as referências são mais próximas para o leitor atual?

JG: Um pouco as duas coisas. Alguns leitores compartilharam a realidade que esses dois cronistas descrevem. Talvez seja ilusão nossa... Eu escolhi os cronistas mais óbvios, menos o Stanislaw.

CT: Na crônica, Machado inaugura uma tradição?

JG: Eu sempre acho que Machado é uma exceção. Drummond lia Machado, gostava muito das suas crônicas. Mas a gente vê pouca influência, ou se existe, é uma coisa tão diluída, tão íntima, que você não percebe. O tipo de crônica feita por Machado tem a ver com questões da época. Seus contos e romances são únicos, difíceis de imitar, e ele não é fundador de uma tradição. Quando Bilac fala (relativamente) mal na morte de Machado, nos damos conta de que não é um modelo. O Brasil é um país que sofreu mudanças gigantescas em pouco tempo, é uma coisa que eu sempre penso. Isso é colossal, e os escritores devem arcar com esse fato. Machado se dá conta disso, porque ele até convive com o “bota-abaixo”. A população do Rio não varia tanto de 1850 a 1880. As grandes mudanças são de 1890 e do começo do século XX. A Semana é, em parte, consequência disso. A crônica, em geral, é um esforço deliberado de compreender o que está acontecendo naquele momento, sem contexto maior. Mas esse contexto existe. Em A Semana, Machado comenta muitas vezes mais os acontecimentos estrangeiros, porque queria situar o Brasil dentro do contexto mundial.

Bibliografia relacionada com a entrevista

  • ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A semana Edição, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996.
  • ______. Balas de Estalo de Machado de Assis Organização de Heloisa Helena Paiva de Luca. São Paulo: Annablume, 1998.
  • ______. Bons Dias! (1888-1889) Edição, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec/Editora Unicamp, 1990.
  • ______. Comentários da semana Organização, introdução e notas de Lúcia Granja e Jefferson Cano. Campinas: Editora Unicamp, 2008.
  • ______. Crônicas: A + B/ Gazeta de Holanda Organização, introdução e notas de Mauro Rosso. Rio de Janeiro: Editora PUC/Loyola, 2011.
  • ______. Crônicas de Lélio Organização, prefácio e notas de Raimundo Magalhães Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958.
  • ______. Crónicas escogidas Traducción de Alfredo Coello. Madrid: Sexto Piso, 2008.
  • ______. Crônicas escolhidas Edição de Fernando Paixão. São Paulo: Ática/Folha, 1994.
  • ______. Crônicas escolhidas Organização, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2013.
  • ______. Diálogos e Reflexões de um Relojoeiro Organização de Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1956.
  • ______. Histórias de quinze días Introdução e notas de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas: Editora Unicamp, 2009.
  • ______. História de quinze dias, história de trinta días Organização de Sílvia Maria Azevedo. São Paulo: UNESP, 2011.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2015
  • Aceito
    12 Dez 2015
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