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Gardini, Nicola. Lost Words. Tradução de Michael F. Moore. 1.ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016, 232 p.

Gardini, Nicola. Lost Words. Moore, Michael F.. 1.ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016. 232

Publicado em janeiro deste ano, Lost Words é a tradução do livro Le parole perdute di Amelia Lynd, publicado em 2012 e vencedor do Premio di Narrativa Viareggio - Rèpaci do mesmo ano. A obra é de autoria de Nicola Gardini, escritor italiano que leciona Literatura Italiana na Universidade de Oxford, formado em Letras Clássicas pela Universidade de Milão e Ph.D. em Literatura Comparada pela Universidade de Nova Iorque. Publicou, além de ensaios críticos de literatura e coleções de poesias, alguns romances. A tradução foi feita por Michael F. Moore que, além de tradutor, é intérprete de língua italiana, PhD em italiano pela Universidade de Nova Iorque e com traduções que vão desde Alberto Moravia e Primo Levi até autores mais recentes, como Fabio Genovesi e Nicola Gardini. Atualmente, Michael é chefe do Advisory Board for the PEN-Heim Translation Fund1 1 Conselho Consultivo do The PEN/Heim Translation Fund - fundo de Tradução criado em 2003 por Priscila e Michael Henry Heim, com a finalidade de promover a publicação e recepção de literatura internacional traduzida em Inglês. e trabalha também como intérprete para as Nações Unidas.

Apesar de manter as características da versão italiana, a tradução apresenta domesticações que ajudam a inserir o leitor na narrativa e facilitam o entendimento deste sobre a verdadeira essência da obra: desfazer o esteriótipo de Bel Paese e mostrar a verdadeira Itália e sua camada social pobre. Lost Words contem 232 páginas e, assim como o texto de partida, apresenta uma narrativa dividida em cinco partes, cada parte sendo seguida por capítulos não intitulados e sem numeração, como quadros que se alinham para compor, ao final, uma visão geral da vida quotidiana dos italianos.

A história é ambientada na Itália, no início dos anos setenta e narrada a partir do olhar de Chino, um adolescente que mora em um condomínio de Milão, Via Icaro 15. Ele é filho de Paride, um operário e da porteira do condomínio, Elvira, que tinha como objetivo principal comprar uma casa e sair da portaria onde vivia com a família: o retrato de uma sociedade que desejava o progresso a qualquer preço. Ela acreditava que tornando-se proprietária de um apartamento, deixaria de ser explorada e humilhada pelos inquilinos, que exigiam seus serviços a qualquer hora do dia, tratando-a de forma áspera, e, por vezes, agressiva e rude.

A vida dos inquilinos, e principalmente de Chino, muda com a chegada da nova moradora do quinto andar, Amelia Lynd, uma senhora inglesa, reservada e misteriosa, que aguça a curiosidade de todos e se torna o novo alvo dos comentários. Com o intuito de ajudá-la na acomodação, Chino começa a frequentar sua casa, visitas essas que se tornam aulas de língua inglesa. A relação entre os dois dá ao romance uma nova nuance, pois os ensinamentos de Amelia permitem ao adolescente enxergar a própria vida de uma perspectiva diferente, percebendo que o mundo vai além da mesquinhez comum às pessoas que viviam ao seu redor.

Lost Words é uma tradução que consegue captar as nuances da obra de partida e, como dito anteriormente, usa recursos capazes de aproximar o leitor de língua inglesa da obra, recursos estes que não suscitam em perdas para a narrativa. As estratégias tradutórias, assim como apresentadas por Mona Baker (1998)BAKER, Mona (ed.) Routledge Encyclopedia of Translation Studies. London/ New York: Routledge, 1998., ajudam (com os elementos paratextuais) a reconstruir a formação cultural na qual a tradução foi produzida e divulgada e dividem-se principalmente em estratégias de domesticação ou estranhamento. No primeiro caso o texto estrangeiro é interpretado segundo os valores da língua de chegada, eliminando as diferenças que a tradução é chamada a transmitir; no segundo caso estas diferenças são enfatizadas, valorizadas, dando ao texto o caráter de tradução (Idem, pp. 240-4).

A domesticação pode ser percebida em vários momentos, tem-se como exemplo o trecho “Do you want us to get fined by the city?” (GARDINI, 2016______. Lost Words. Tradução de Michael F. Moore. 1. ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016. 232 p., p. 12), no qual a informação ‘by the city’ é acrescentada pelo tradutor, não presente na versão italiana por ser desnecessária, uma vez que os italianos sabem que na situação narrada, a multa é aplicada pela prefeitura, tem-se então “Avete voglia di prendere la multa?” (GARDINI, 2012GARDINI, Nicola. Le Parole Perdute di Amelia Lynd. 1. ed. Milano: Feltrinelli, 2012. 235 p., p.21). Outros exemplos são trocas feitas de uma versão para outra, como a substituição de Raffaella Carrà (p. 32), apresentadora e atriz da tv italiana, pela atriz londrina Liz Taylor (p.23), tem-se ainda o trecho “Che devo fare? Mettermi gli occhiali di Gustavo Thöni quando entro in pattumiera?” (GARDINI, 2012GARDINI, Nicola. Le Parole Perdute di Amelia Lynd. 1. ed. Milano: Feltrinelli, 2012. 235 p.. p. 35), no qual há a substituição de Gustavo Thöni, ex-esquiador e treinador de esqui italiano, por ‘máscara de esqui’ na versão em inglês “What am I supposed to do? Put on a ski mask before I enter the trash room?” (GARDINI, 2016______. Lost Words. Tradução de Michael F. Moore. 1. ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016. 232 p., p.26).

Por outro lado, o tradutor opta por trocas não muito pertinentes, como a da cidade de Alassio (p.200) pela cidade de Savona (p. 196), que é hipoteticamente mais conhecida. Esta troca ocasiona uma mudança no sentido do que está sendo narrado, pois Alassio é uma cidade litorânea que recebe turistas durante as férias, enquanto Savona não é um destino turístico. Outra perda identificada é a do dialeto, um dos traços culturais mais marcante dos italianos, como percebe-se nos trechos a seguir: “‘Xeo beo’, mormorò la sarta. E subito dopo, con un improvviso innalzamento del volume: ‘Dameo che vojo provarmeo’”. (GARDINI, 2012GARDINI, Nicola. Le Parole Perdute di Amelia Lynd. 1. ed. Milano: Feltrinelli, 2012. 235 p., p. 156) na versão em italiano, e “‘Ooooh, how pretty,’ the seamstress murmured, and immediately followed in a higher-pitched tone, ‘give it here so I can try it on’” (GARDINI, 2016______. Lost Words. Tradução de Michael F. Moore. 1. ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016. 232 p., p. 152) na tradução para o inglês. Contudo, deve-se destacar que, ainda que com a perda desses traços culturais, a essência do texto de partida foi mantida, ou seja, alcançou-se a finalidade de revelar um país ainda sem identidade nacional e que é formado por uma maioria de pessoas mesquinhas, cheias de vícios e preconceitos.

A crítica à sociedade italiana dos anos ‘70 é muito presente no romance, tanto que as cenas descritas e as relações criadas por Gardini evidenciam os principais vícios e defeitos dos italianos nessa época. A vida dos condôminos é tão banal quanto a vida do próprio protagonista, permeada de afazeres, necessidades, acontecimentos e futilidades diárias. A visão primordial que se tem do local é de que é um pequeno universo, onde tudo se estrutura de forma arcaica e, se assim permanece, é porque todos se beneficiam desses arcaísmos. A hipocrisia, a dissimulação, a pequenez e os “princípios” apresentados pelos inquilinos, nada mais eram do que a representação fiel de toda uma sociedade marcada por visões restritas e que ainda não tinha consciência da própria liberdade. Essa crítica fica ainda mais evidente nas palavras que Chino escreve, em uma prova de italiano, na qual escolhe falar sobre a liberdade:

Italians postpone everything until tomorrow, and the next day they do the same thing, infinitely, and meanwhile they make do and try to manage with what they have. They wouldn’t know what to do with real freedom because it would require hard work, dedication, constant vigilance - and Italians are lazy, a little selfish, and concerned only with themselves and their families. They don’t care too much about their rights: they would rather break the law fight to protect what was owed to them. (GARDINI, 2016______. Lost Words. Tradução de Michael F. Moore. 1. ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016. 232 p., p. 154)

Gli italiani rimandano tutto al giorno dopo, e il giorno dopo lo stesso, all’infinito, e intanto si accontentano, tirano a campare. Della libertà vera non sanno che farsene. Perché la libertà chiede impegno, dedizione, una vigilanza continua, e gli italiani sono pigri, un po’ troppo egoisti, ognuno si preoccupa solo di sé e della propria famiglia. Dei loro diritti agli italiani non importa granché. Preferiscono disobbedire alle leggi che lottare per la salvaguardia o per l’ottenimento di ciò che è loro dovuto.(GARDINI, 2012GARDINI, Nicola. Le Parole Perdute di Amelia Lynd. 1. ed. Milano: Feltrinelli, 2012. 235 p., p. 158)

Dentre as muitas questões expostas no romance, Gardini aborda, através de Lynd, a problemática da unificação italiana, pouco conhecida pelos demais países, evidenciando que o povo italiano ainda não conseguira criar uma identidade cultural propriamente italiana. Em outras palavras, o estado e o povo italiano não existiam na realidade, uma vez que as diferenças de cunho histórico, linguístico, cultural e a diferença do desenvolvimento econômico entre o Norte e o Sul foram entraves na criação do estado italiano.

The Italians never did unite! Ci hanno provato - They tried but failed! And the signs of their failure are everywhere. Can’t you see them? The only people who talk about unification are priests and fascists. If there really were an Italy, would the Italians be so divisive, so egotistical, so deplorably vain? Dov’è il popolo - Where is il popolo? The Italians have no idea what they’re doing! They have no idea where they’re going! (GARDINI, 2016______. Lost Words. Tradução de Michael F. Moore. 1. ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016. 232 p., p. 65)

Gli italiani non si sono mai unificati! Ci hanno provato. Ci hanno creduto, ma la cosa non è avvenuta. They failed! I segni del fallimento sono dovunque. Non li riconosci? Di unificazione parlano solo i preti e i fascisti. Se l’Italia esistesse, gli italiani sarebbero forse così divisi, così egoisti, così deplorably vane? Dov’è il popolo? The italians don’t know what they’re doing. The italians don’t know where they’re going! (GARDINI, 2012GARDINI, Nicola. Le Parole Perdute di Amelia Lynd. 1. ed. Milano: Feltrinelli, 2012. 235 p., p. 73)

Gardini recria, em sua obra, um pequeno mundo que se resume àquilo que é vivido por Chino: a portaria, o condomínio e as pessoas ao seu redor. Esses aspectos compõem a visão de mundo do personagem que observa a vida das pessoas que adentram o local onde ele vive, tornam-se donos e em seguida, recebem o título máximo de “condomini”, uma alegoria das sociedades baseadas no capital e, por conseguinte, um retrato da dinâmica social italiana.

O condomínio, além de Chino e Amelia Lynd, também merece especial atenção: à parte com os estudos sociológicos, sabemos que para Max Weber, os indivíduos estão submetidos à ação social e o sentido de tais ações é apreendido no conjunto delas, orientada a partir das ações feitas pelos outros (relação social)2 2 In: WEBER, Max. Economia e Sociedade, 1999, p. 187. . O objetivo dos indivíduos, segundo Weber, é o Poder, não apenas pela acumulação do capital em si, mas também para ter a imposição de sua própria vontade como indivíduo, já que a ação social parte, a priori, de um elemento que reage à ação dos demais. A regularidade dessas ações gera uma ordem legítima, seja pelo uso de leis ou pelo hábito (convenção) – a desaprovação dos indivíduos é que norteia essa ordem.

A concentração do poder corrobora para a existência de duas classes sociais, onde uma usufrui do trabalho da outra. Se uma delas quebra o acordo, e se espera que seja aquela que é explorada, o sistema se corrompe e desmorona. Os pais de Chino representam bem essa visão: Elvira almeja sair da portaria, mas é constantemente rechaçada pelos residentes do prédio que se consideram superiores a ela, enquanto Paride está convicto de que a mobilidade entre classes é impossível.

Gardini, a partir do condomínio, descreve como se dá o processo de dominação dos indivíduos dentro da própria comunidade, aos moldes weberianos: a primeira, aquela racional, feita a partir da ostentação do título de “condômino”; a segunda, expressa por meio da tradição dos condôminos: a legitimidade do poder dos senhores residentes, pois nunca houve quem os contestasse e a terceira, aquela nomeada carismática, que identificamos como a dominação de Amelia Lynd sobre o próprio Chino, baseada nas qualidades pessoais da residente nova e no mistério que ela evoca em torno de si, perpetuada pelo aparecimento do the Professore (filho de Lynd), visto que Weber afirma ser esse tipo de dominação instável, pois não há nada que garanta o vínculo entre o dominador e seus subordinados.

A presença de Amélia Lynd aporta como uma ruptura irrecuperável na estrutura local: ela é a presença do Outro em face do meu Eu, aquela que aponta que existe uma realidade gigantesca para além do pequeno mundo de Chino. Amélia ainda traz consigo uma aura de mistério, que fascina o jovem que a vê como uma ponte para fora da monotonia do lugar e, por isso, logo ele é contagiado pela ideia da escrita cheia de significados e não apenas de palavras. Deslumbrado pelo caminho que se abre para ele através das mãos daquela estrangeira, Chino inicia uma jornada em busca da escrita significativa e da sua própria identidade. Gardini deixa claro que é impossível construir uma individualidade e aperceber-se dela permanecendo em seu mundo particular. O conhecimento é abrangente e expansivo. Para obtê-lo, é preciso confrontar o Eu e o Outro, como os próprios signos linguísticos, onde um signo é limitado pela presença de outros signos. A obra oferece também um estudo prolífico sobre como se estabelecem as relações de poder na sociedade.

A leitura desta obra é recomendável para aqueles que desejam conhecer a Itália, em sua verdadeira face e não circunscrita pela expressão poética Bel Paese. Gardini nos confronta com uma Itália arcaica, preconceituosa e burguesa, porém, essa Itália se apresenta de tal forma configurada, tão especialmente composta, que poderia representar qualquer lugar do mundo que também seja reacionário e trivial. Conta-se que as grandes obras têm o poder de sair de seu meio, um ambiente hermético e sufocante, e partir para a descrição do mundo inteiro. A narrativa se abre no condomínio de Milão, mas pode fechar-se na rua e no condomínio do leitor.

  • 1
    Conselho Consultivo do The PEN/Heim Translation Fund - fundo de Tradução criado em 2003 por Priscila e Michael Henry Heim, com a finalidade de promover a publicação e recepção de literatura internacional traduzida em Inglês.
  • 2
    In: WEBER, Max. Economia e Sociedade, 1999, p. 187.

Referências

  • BAKER, Mona (ed.) Routledge Encyclopedia of Translation Studies. London/ New York: Routledge, 1998.
  • GARDINI, Nicola. Le Parole Perdute di Amelia Lynd 1. ed. Milano: Feltrinelli, 2012. 235 p.
  • ______. Lost Words Tradução de Michael F. Moore. 1. ed. New York: New Directions Publishing Corporation, 2016. 232 p.
  • WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva/ Max Weber; tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; Revisão técnica de Gabriel Cohn - Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. 586p. Tradução de: Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehende Soziologie

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2016
  • Aceito
    11 Abr 2016
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