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RELATOS DE VIAGEM E A TRADUÇÃO DE PALAVRAS CULTURALMENTE MARCADAS: UM ESTUDO DE CASO

THE TRANSLATION OF CULTURALLY MARKED WORDS IN TRAVEL WRITING: A CASE STUDY

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar palavras culturalmente marcadas (AIXELA, 2013) e/ou culturemas (NADAL, 2009; SOTO ALMELA, 2014) presentes nos relatos de viagem e, mais precisamente, na obra O Brasil tal qual ele é/ Le Brésil tel qu’il est, de Charles Expilly, polêmico viajante francês que fixou residência durante dois anos no Rio de Janeiro, em meados do século XIX. Trata-se de um livro riquíssimo, que foi deixado de lado pela historiografia brasileira e francesa por muito tempo e que nos propicia, graças às palavras culturalmente marcadas e/ou culturemas, uma reflexão sobre tradução (LAPLANTINE, 1996; FERREIRA, 2013) naquilo que diz respeito à transformação do olhar em linguagem, a fazer existir no texto um Outro, ao encontro entre culturas, numa via de mão dupla. Concluímos o artigo comentando as estratégias de tradução utilizadas, para os culturemas, na nossa tradução para a língua portuguesa desta obra (CAMARGO, 2016).

Palavras-chave
Relato de viagem; Palavra culturalmente marcada; Charles Expilly

Abstract

The present article aims at showing the culture-specifc item analysis (AIXELA, 2013) and/or culturemes (SOTO ALMELA, 2014) that appear in travel writing, more specifically, in the work of the controversial French traveller, Charles Expilly, who resided in Rio de Janeiro for two years in the mid 19th century – Le Brésil tel quíl est/O Brasil tal qual ele é. Here we are dealing with a dense book that has been ignored by Brazilian and French historians for many years, and which provides us, thanks to the culture-specifc item, and/or culturemes, with reflections on translation (LAPLANTINE, 1996; FERREIRA, 2013), paying attention to the transformation of the gaze into language, so that on encounutering cultures, on a two way path. We conclude the commented translation, addressing translation strategies used for the culturemes, in our translation into Portuguese (CAMARGO, 2016).

Keywords
Travel literature; Culture-specifc item; Charles Expilly

Introdução

Os relatos de viagem caracterizam-se pela versatilidade e uma de suas características é a estreita relação com a cultura do lugar visitado, a presença de um léxico emprestado à essa língua-cultura, além do uso de termos e expressões cujo referente extralinguístico pode ser diferente nas culturas relacionadas, quando não inexistente, o que dificulta o processo tradutório. Assim, organizei este artigo da seguinte maneira: 1. Características do gênero relato de viagem no século XIX; 2. As estratégias encontradas pelo escritor-viajante para transpor a observação do Outro em linguagem, no texto original, (LAPLANTINE, 1996LAPLANTINE, F. La description ethnographique. Paris: Armand Colin, 1996.), utilizando, para tanto, a noção de “palavras culturalmente marcadas” (AIXELÁ, 2013AIXELÁ, J. F. Itens culturais-específicos em tradução. In-Traduções. Florianópolis, 2013, v. 5, n. 8, p. 185-218. Disponível em: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/intraducoes/article/viewFile/2119/2996. Acesso em: 13 dez 2016.
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) e, 3. Descrição do nosso processo tradutório, ao traduzirmos a obra Le Brésil tel qu’il est/ O Brasil tal qual ele é para o português do Brasil (EXPILLY, 2016______. O Brasil tal qual ele é. Trad. Katia Aily Franco de Camargo. Jundiaí, SP: Paco, 2016.).

Dediquei-me, nos últimos quatorze anos, a estudar os relatos de viagem ao Brasil, durante o século XIX, publicados nas páginas da afamada revista parisiense Revue des Deux Mondes, e o papel que tiveram na formação de uma autoimagem brasileira, uma vez que a leitura e circulação deste periódico no Império é um fato (CAMARGO, 2007CAMARGO, K. A. F. A Revue des Deux Mondes: intermediária entre dois mundos. Natal : EdUFRN, 2007.; 2015).

Charles Expilly não conheceu a mesma sorte de alguns de seus confrades: Ferdinand Denis, Théodore Lacordaire, Adolphe d’Assier, Francis de Castelnau, etc., mas sua obra teve repercussão na mencionada revista, segundo o próprio escritor-viajante atesta em Prefácio de Les femmes et les mœurs du Brésil: “Heureusement, l’appréciation que la presse parisienne, y compris la Revue des deux Mondes, et les journaux de Marseille, de Lyon, de Bordeaux, de Belgique et aussi ceux de Buenos-Ayres [sic], ont faite de mon livre, me lave du reproche d’avoir chargé mes peintures.” (1863, p. VII).

Segundo o Dicionário Literário Brasileiro, de Raimundo de Menesez (1969)MENEZES, R. Dicionário Literário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1969., Expilly nasceu em Salon, Bouches-du-Rhône, em 1814. Foi jornalista e romancista. Partidário das doutrinas liberais, abandonou a França após o golpe de Estado de Luís Napoleão, em 1851, e dirigiu-se à América do Sul buscando fortuna. Foi diretor de uma fábrica de fósforos no Rio de Janeiro, juntamente com seu primo. Era casado com uma brasileira. Era adversário tenaz da escravidão negra, daí seu codinome de inimigo do Brasil. Tencionava fundar, juntamente com sua esposa, um estabelecimento de educação profissional para os filhos pobres dos funcionários públicos em terras brasileiras. Falido, retornou à França onde publicou inúmeros livros e artigos de jornal, sob vários pseudônimos (Visconde de Canourgues, Tisté, C.-E du Thorat e Claude la Poëpe) criticando o Brasil, seus usos e costumes. Foi nomeado comissário adjunto de Emigração no Havre e em Marselha. Faleceu em Tain, Rhône, em 1886 (CAMARGO, 2016______. Apresentação. In: EXPILLY, C. O Brasil tal qual ele é. Trad. Katia Aily F. de Camargo. Jundiaí, SP: Paco, 2016.).

1. O relato de viagem

A prática do relato de viagem remonta os séculos e suscita, no correr do tempo, o interesse de inúmeros leitores. Desde a Antiguidade colocam-se lado a lado as viagens de descoberta, as explorações do desconhecido, as viagens de retorno à terra natal e a reapropriação daquilo que é familiar. Viajar não deixa de ser a experiência, subjetiva, do e no estrangeiro, vivido ou imaginado, ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo, uma vez que o espaço da viagem não é apenas o geográfico, mas o da biblioteca e o da memória: “... a viagem é, simultaneamente, uma experiência humana singular, única, inconfundível para aquele que a viveu, e um testemunho humano que se inscreve num momento preciso da história cultural de um país: o do viajante” (MACHADO; PAGEAUX, 2001MACHADO, A. M.; PAGEAUX, D.-H. Da literatura comparada à teoria da literatura. 2ª ed. rev. e aum., Lisboa: Editorial Presença, 2001., p. 33).

Até o Romantismo, com os relatos de Chateaubriand e Georges Sand, as narrativas de viagem eram tidas como meramente informacionais, estrangeiras, portanto, ao literário. O relato de viagem, considerado um gênero de fronteira, aberto, versátil, engloba uma série de gêneros tais como o diário, a autobiografia, o discurso epistolar, o ensaio etnográfico, o literário e o científico. Essa inconstância lhe assegura, portanto, certa liberdade formal que lhe permite se adaptar melhor às diferentes alterações estéticas e ideológicas que afetam uma determinada sociedade (HUENEN, 1987LE HUENEN, R. Le récit de voyage: l’entrée en littérature. Études littéraires, 1987, v. 20, n. 1, p. 45-61. Disponível em: http://www.erudit.org/revue/etudlitt/1987/v20/n1/500787ar.html?vue=resume. Acesso em: 15 dez 2016.
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).

Assim, o escritor-viajante não se limita mais, a partir de meados do século XIX, a descrever sua experiência visual, etnográfica: “eu estive ali”, “eu vi com meus próprios olhos”, expressões que ajudam a legitimar o relato. Segundo Uriarte (2007)URIARTE, C. G. El viaje y su narración. Sobre actitudes e implicaciones del viajeto-escritor. In : LAFARGA, F.; MÉNDEZ, P; SAURA, A. (orgs.). Literatura de viajes y traducción. Granada: Comares, 2007. p. 201-214., exatidão, fidelidade, transparência, utilidade, simplicidade são alguns dos topoi que caracterizam o gênero viático ainda no século XIX, quando o narrador e, em particular, a expressão de suas emoções passam a ocupar o primeiro plano, tirando a literatura de viagem de sua função epistemológica tradicional. Será apenas no século XX, a partir dos estudos de Geoffroy Atkison, que se reconhecerá a pluralidade de funções dessa modalidade discursiva, pois, como já apontou Machado e Pageaux (2001)MACHADO, A. M.; PAGEAUX, D.-H. Da literatura comparada à teoria da literatura. 2ª ed. rev. e aum., Lisboa: Editorial Presença, 2001., os relatos se inscrevem num momento preciso da história cultural de um país sob a ótica de um sujeito viageiro.

Ainda de acordo com Uriarte (2007)URIARTE, C. G. El viaje y su narración. Sobre actitudes e implicaciones del viajeto-escritor. In : LAFARGA, F.; MÉNDEZ, P; SAURA, A. (orgs.). Literatura de viajes y traducción. Granada: Comares, 2007. p. 201-214., o olhar do viajante não é de modo algum inocente, estando contaminado por todo tipo de influências culturais e pessoais, além da influência, certeira, daquele leitor imaginado pelo autor, o leitor ideal. Daí as frequentes comparações registradas pelo escritor-viajante entre o país de origem e o visitado e o apelo a outros referenciais culturais que esse público possa ter. Vale dizer que esse leitor ideal, assim como seu referencial cultural não são os mesmos quando a obra é traduzida para outra língua-cultura. Esta questão será abordada mais adiante.

O relato de viagem, portanto, é um gênero versátil que parte da premissa da reescritura, da reformulação de uma experiência individual que, ao ser publicado, transcende a esfera do privado e se integra à esfera pública. Desde o início do relato, é firmado uma espécie de contrato de cumplicidade entre o escritor-viajante e o leitor já nas páginas iniciais do relato, no caso de Expilly, com suas Senhoras e Madames, de aquém e além mar.

1.1 Relato de viagem e tradução

De acordo com Jean-François Joly (apud MONREAL, 1995, p. 64), traduzir seria como realizar uma fantástica viagem de exploração ao universo do conhecimento, de descobrimento do Outro. Nesse sentido, há uma intrínseca relação entre viagem e tradução. Laplantine, em seu livro La description ethnographique, nos fala sobre a dificuldade de se transformar o visto, o observado, por meio da linguagem, em conhecimento.

L’indissociabilité de la construction d’un savoir (anthropologie) à partir du voir et d’une écriture du voir (ethnographie) n’a rien d’une donnée immédiate ou d’une expérience transparente. C’est une entreprise au contraire extrêmement problématique qui suppose que nous soyons capables d’établir des relations entre ce qui est généralement tenu pour séparé : la vision, le regard, la mémoire, l’image et l’imaginaire, le sens, la forme, le langage. (LAPLANTINE, 1996LAPLANTINE, F. La description ethnographique. Paris: Armand Colin, 1996., p. 10-11)

Os relatos da segunda metade do século XIX, dentre estes, Le Brésil tel qu’il est, oscilam entre realidade e a ficção. Acrescenta em suas páginas certo número necessário de fatos reais: detalhes, datas, lugares, personagens concretos, palavras e/ou expressões na língua do país visitado. Além de boa dose de quimera: contos, causos, lendas, etc., responsável pelo elemento emocional e surpreendente da obra.

A primeira tradução realizada seria, portanto, segundo Laplantine, a transposição do olhar do viajante em linguagem,

... mais un souci tout particulier de vigilance à l’égard du langage, puisqu’il s’agit de faire voir avec des mots, lesquels ne peuvent être interchangeables, tout particulièrement lorsque l’on se fixe pour objectif de rendre compte de la manière la plus minutieuse de la spécificité des situations, chaque fois inédites, à laquelle on est confronté. (1996, p. 10)

Neste caso, quais foram os recursos utilizados, da visão, do olhar, da memória, da imagem, do imaginário, do sentido, da forma e da linguagem, por Charles Expilly, para transpor o que viu em terras brasileiras? Para analisar suas estratégias embasei-me não apenas na ideia de transposição supra citada de Laplantine, mas no conceito de culturema e, mais especificamente, no de palavras culturalmente marcadas/itens culturais-específicos, desenvolvido por Javier Franco Aixelá.

Após explanação sobre as diferentes denominações que recebeu, em tradutologia, o conceito de culturema, Soto Almela (2014)SOTO ALMELA, J. Referencias culturales en el ámbito de la flora: estrategias traslativas en folletos turísticos dela región de Murcia (España). Cadernos de Tradução. 2014, v. 2, n. 34, p. 142-166. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2014v2n34p142. Acesso em: 13 dez 2016.
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conclui que os culturemas são termos de índole cultural, pertencentes a diferentes âmbitos de uma mesma cultura, conhecidos e compartilhados por todos os membros de uma dada sociedade que, ao serem transferidos à outra cultura, podem dar lugar a problemas tradutológicos, o que se supõe uma “adaptação” linguística por parte do tradutor que utilizará de estratégias variadas (explicação, descrição, notas de rodapé, etc.) para que sejam bem acolhidos na língua de chegada.

Para Aixelá, “Os itens culturais-específicos são geralmente expressados em um texto por meio de objetos e sistemas de classificação e medida, cujos usos estão restritos à cultura fonte, ou por meio da transcrição de opiniões e descrição de hábitos igualmente desconhecidos na cultura alvo”. (2013, p. 190). Ainda segundo o autor, um item cultural-específico não existiria por si só, mas sim como resultado de um conflito originário no momento da transposição de qualquer tipo de referência linguisticamente representada de uma língua fonte à uma língua alvo, seja por questões ideológicas, uso, frequência, inexistência, etc.

2. Análise do processo tradutório: estudo de caso

Seguindo esses pressupostos, de Aixelá e de Soto Almela, ao iniciar a análise da obra Le Brésil... de Expilly, a primeira palavra culturalmente marcada (HATJE-FAGGION, 2001) que nos chama a atenção é Senhor.

Os leitores idealizados dos dois lados do Atlântico por Charles Expilly também são rigorosamente nomeados a depender do contexto em que se veem inseridos: senhor(a) e Monsieur e Madame.

Logo no início do livro, ao reportar sua chegada ao Rio de Janeiro e seu primeiro almoço no restaurante do Hotel Lafourcade, Charles presencia uma discussão entre um alemão e um brasileiro sobre um recente acontecimento que abalara a cidade: o assassinato de um senhor e a morte do escravo Jesuíno. Nesta ocasião, quando um brasileiro dirige a palavra aos estrangeiros presentes, esse os chama de Messieurs, assim como o alemão ao se reportar ao mesmo grupo de homens. Quando o alemão se dirige a um brasileiro, usa senhor:

La dernière phrase venait d’être proférée, et nous frémissions encore d’indignation lorsque le Brésilien, qui ne cessait depuis un gros quart d’heure de se démener sur sa chaise, se leva brusquement et, s’élançant vers notre table:

_ Senhores, s’écria-t-il, tout cela est faux, archifaux! Cette histoire n’est qu’un conte infâme, inventé par les abolicionistes et les ennemis du Brésil. L’Allemand essaya de calmer cette fureur patriotique, mais sans y parvenir. Se tournant alors vers nous:

_ Messieurs, dit-il, avec flegme tout germanique, vous ignorez absolument ce pays, n’est-il pas vrai?

(1862, p. 33)

Ao contar um causo, de um brasileiro que adoecera em Paris e que fora tratado e curado por um médico francês que visitara o Brasil, ele faz a mesma distinção.

_ Cet appartement, dit-il [o médico], est imprégné d’odeurs désagréables au senhor. Cette chambre à coucher sent trop bon....”

“... après l’avoir remplacé [o penico] par un autre qui sera blanc et propre, vous le mettrez intact au sous le lit du senhor.

(1862, p. 66)

Essa distinção acontece por uma questão cultural, pois senhor e senhora eram, nesta época no Brasil, donos de escravos. Esses pronomes de tratamento aparecem ao longo da obra sem nenhuma marca tipográfica. Mantivemos (CAMARGO, 2016______. Apresentação. In: EXPILLY, C. O Brasil tal qual ele é. Trad. Katia Aily F. de Camargo. Jundiaí, SP: Paco, 2016.) essa distinção em tradução para o português e optamos por explicar essa diferença em nota de rodapé, logo no momento de sua primeira ocorrência.

O léxico ligado a nomes próprios e espaços geográficos aparece marcado tipograficamente, como toda palavra ou expressão em língua portuguesa; no entanto, o autor procura mantê-los tal e qual o original:

Nomes próprios: Jesuino, Théodora, Paulina Neiva, Affonso Navarro, Narcizo do Bento, Manuel, Paolino de Souza, Moura, Antonio Machado Jose Correa;

Nomes de cidades: Rio de Janeiro, Rio-Grande do Sul, Pernambuco, Bahia, Minas-geraês [sic], Porto-Alegre, Petropolis, Pernambuco;

Nomes de logradouros: rue do Hospício, du Rosario, Nova San Diego, San Christovaô, do Ouvidor, da Alfandega, San Pedro, do Lavradio, du Sabaô, da Alfandega, da Quitanda, largo do Paço, largo do Rocio, etc.

Na tradução para o português, mantivemos todas as marcas tipográficas do autor, assim como a grafia no português antigo na primeira ocorrência. Nas ocorrências posteriores foi feita a atualização ortográfica (rua do Sabaô – Rua do Sabão), assim como foi acrescentado em nota de rodapé as referências atuais dos logradouros.

Como já mencionado anteriormente, o relato é composto não apenas daquilo que foi visto, mas também daquilo que foi lido, da memória, etc.. Abundam, em Expilly, referências a publicações de viajantes franceses e estrangeiros sobre o Brasil. Assim, quando um viajante de renome já descreveu uma paisagem, um costume – Fedinand Denis, por exemplo –, o léxico em língua portuguesa é simplesmente incorporado, naturalizado, sem receber destaque, tradução ou descrição por parte do escritor viajante. Na enumeração que segue, apenas o coupilho (cupim) mereceu uma nota de rodapé.

… Nécessairement pour eux, le Brésil n’est pas la patrie des barates, des cankerlats, des surucucus, des chiques, des araignées noires, des scorpions, des mille-pieds, des crapauds cornus, des fourmis voyageuses, et de ces terribles coupilhos (1), qui s’attachent à tout…

(1) Coupilho, fourmi blanche, une des plaies de ce pays. J’ai eu deux malles de livres traversés en tous sens par ces rongeurs impitoyables. Une nuit suffit pour avoir raison d’une bibliothèque.

(1862, p. VI)

Outro recurso bastante utilizado pelo escritor-viajante é o de deixar diálogos (apontados pelo uso do travessão) e leis em francês e português. Segundo Expilly (1862, p. 109)EXPILLY, C. Le Brésil tel qu’il est. Paris-Leipzig: Jung-Treuttel, 1862., essa estratégia impede que lhe acusem de inimigo do Brasil, de carregar nas cores de seus quadros, além de dar maior credibilidade ao seu relato. É interessante perceber que na primeira ocorrência, o autor faz uma espécie de reformulação e, nas segunda e terceira, uma tradução literal.

[Ao contar o que aconteceu com Correa, que arruinou amigos e fregueses]

Il pense lui-même que ce n’est pas là une compensation suffisante, puisqu’en terminant l’aveu de son crime, il désespère de son pardon et se désole de partir pour l’enfer :

Vou para o inferno; não posso ter perdaô por tantas culpas.

Le journaliste qui raconte la fin misérable du marchand partage, du reste, cette opinion; il nous apprend que Machado Correa cachait sous une figure de saint au cœur de démon:

Com rosto de santo o coraçaô de demonio.

A sa mort, Correa devait 60 et tant de contos, soit 200,000 fr.

(1862, p. 91)

Ou ainda :

… L’urgence en a été proclamée par le ministre de l’Empire, M. Luiz Pedreira de Couto Ferraz, lorsqu’il a demandé qu’on arrêtât fin un système sérieux et permanent, pour l’enlèvement des matières infectées qui, accumulées et séjournant dans les maisons particulières et sur divers points du centre de la cité, contiendront toujours le germe de graves épidémies.

… accumuladas et demoradas nas casas particulares, e em diversos pontos do centro da populaçaô, seraô sempre germens de graves epidemias.

Nous citons textuellement la phrase de M. Ferraz dans son Relatorio de 1855...

(1862, p. 108)

As principais estratégias utilizadas ao longo do texto são: explicação entre vírgulas ou entre parêntesis; equivalente ou tradução literal para a língua francesa presente no corpo do texto; uso de notas de rodapé; uso de termos científicos. Uma amostragem dessas estratégias, retiradas das 120 primeiras páginas da obra, pode ser observada na Tabela 1 que segue:

Tabela 1
Ocorrências

Ao traduzir O Brasil tal qual ele é, procurei manter o texto de Charles Expilly o mais próximo possível do original, assim, mantive os destaques do autor, suas notas de rodapé, as palavras e explicações que utiliza em língua portuguesa, a grafia por ele empregada. O leitor encontrará a grafia do português antigo, às vezes com erros tipográficos, que encontrei no original. Na primeira ocorrência de uma dessas palavras e/ou expressões ela está tal e qual o original, em seguida, por uma questão de fluidez textual, optei pela atualização ortográfica. O texto foi anotado, mesmo sabendo que isso deixa marcas indeléveis do tradutor, para facilitar a leitura e também para incitar a curiosidade de leitores e pesquisadores.

Conclusão

O processo tradutório do relato de viagem é, como vimos, uma via de mão dupla, pois parte-se da necessidade de, primeiramente, identificar e compreender as estratégias de transposição da realidade observada em linguagem para o texto original, para, em seguida, criar novas estratégias de tradução para o texto de chegada que deem conta desse exotismo criado no texto original pela inserção de palavras culturalmente marcadas em língua portuguesa, além de outras criadas pelo choque cultural imposto pelo momento histórico.

A primeira questão, do exotismo da língua, acreditamos ter resolvido ao deixar as marcas tipográficas e a primeira ocorrência no português antigo. Já as demais palavras, como por exemplo M. Domange (responsável pela modernização das fossas sépticas na França) que aparece ao tratar da questão dos resíduos no Rio de Janeiro; ou quando compara o Campo da Aclamação ao Mont-Faucon (local onde condenados eram enforcados e eram deixados ali até apodrecerem), optamos por explicações e notas do tradutor.

A versatilidade do gênero relato de viagem e a tradução do mesmo para uma língua-cultura que muitas vezes é a do próprio tradutor traz grandes desafios, os quais procurei enfrentar apoiando-me nos conceitos de item cultural-específico e culturema.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2016
  • Aceito
    24 Mar 2017
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