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ENTREVISTA COM MATHIEU DOSSE

APRESENTAÇÃO

TRADUTORES DE LUIZ RUFFATO EM FRANCÊS, ITALIANO E ALEMÃO

O conjunto das três entrevistas que seguem aborda a mesma temática, isto é, aspectos de tradução/adaptação em geral e da tradução do romance Estive em Lisboa e lembrei de você de Luiz Ruffato em particular. O romance de Ruffato foi escrito em 2009, editado em Portugal (Quetzal, 2010) e traduzido para diferentes línguas, como italiano (La Nuova Frontiera, 2011), espanhol (Eterna Cadencia, 2011), francês (Chandeigne, 2015), alemão (Assoziation A, 2016) e, nos próximos meses será publicado em finlandês (Into). O livro foi adaptado para o cinema em 2015, pelo cineasta português José Barahona, sendo exibido em festivais nacionais e internacionais. As entrevistas abaixo foram feitas com os tradutores Gian Luigi De Rosa, Mathieu Dosse e Michael Kegler em 2016. Gian Luigi De Rosa (Itália/1969--) possui doutorado em “Culture e Istituzioni dei paesi di lingue iberiche in età moderna e contemporanea” e é professor de português na Universidade do Salento, em Lecce. É autor de livros e ensaios sobre língua e linguística portuguesa, literatura portuguesa e brasileira e tradução audiovisual e intersemiótica. É também responsável pela elaboração das legendas em italiano do filme Estive em Lisboa e lembrei de você. Mathieu Dosse (Brasil/1978--) é formado pela Université Paris 8, onde estudou Teoria da Tradução. Traduziu para o francês Graciliano Ramos, Luiz Ruffato e João Guimarães Rosa. Michael Kegler (Alemanha/1967--) estudou literatura brasileira e portuguesa na universidade de Frank-furt, sem concluir o curso. Trabalhou como livreiro no Centro do Livro de Língua Portuguesa, antes de se tornar tradutor literário. Traduziu para o alemão José Eduardo Agualusa, Moacyr Scliar, Luiz Ruffato, entre outros autores. Em julho de 2016, junto com Ruffato, recebeu o prêmio literário Hermann Hesse na Alemanha, pela qualidade da obra publicada em conjunto com a sua tradução.

ENTREVISTA COM MATHIEU DOSSE

Cadernos de Tradução (CT): Você concorda com a ideia de que todo tradutor é um adaptador e vice-versa? Se concorda, quais os argumentos que utilizaria para suportar essa opinião no caso concreto da sua tradução de Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato?

Mathieu Dosse (MD): Não diria, de uma forma geral, que o tradutor é um adaptador. Adaptar, se lembramos da raiz latina da palavra, quer dizer ajustar, ou seja, “fazer caber” num certo lugar. Isso dá a impressão de que teríamos que modificar o texto para encaixá-lo na cultura que o recebe. É uma concepção da tradução que tem seus defensores mas acho que não é esse o bom caminho. A tradução/adaptação, ao meu ver, procura fazer com que o texto traduzido não se pareça com uma tradução, que ele se adapte à cultura no qual é feito, que ele apague suas marcas de tradução. Para mim, uma boa tradução tem que ser próxima, o máximo possível, do ritmo do texto original, mesmo se isso quer dizer estender, esticar um pouco a língua para a qual se traduz. Mas é verdade que, no caso específico do Estive em Lisboa, existe uma parte de adaptação, já que a transformação do português brasileiro em português europeu pede, quando passada para o francês, uma transformação radical.

C.T.: Como surgiu a possibilidade de traduzir Luiz Ruffato e qual a importância da tradução de Estive em Lisboa e lembrei de você na França?

M.D.: Foi a editora Chandeigne que me propôs esse trabalho. Já existem outras traduções de textos do Luiz Ruffato, mas esse não tinha sido traduzido. Ainda é cedo para dizer qual é a importância desse livro aqui na França. Vamos ver com o tempo.

C.T.: Por que traduzir literatura brasileira?

M.D: O Brasil tem uma literatura de qualidade e está começando a ser reconhecido aqui na França. Os autores portugueses (Lobo Antunes, Pessoa, Saramago...) são mais conhecidos do que os brasileiros, mas isso pode mudar com o tempo.

C.T.: Para a tradução deste livro, houve alguma pesquisa não apenas sobre o contexto social brasileiro e português, mas igualmente sobre a cultura mineira e o “mineirês”?

M.D: Não senti necessidade. Mas a Internet foi bem útil para algumas expressões africanas e portuguesas, ou até mesmo brasileiras de vez em quando.

C.T.: Você chegou a conhecer Minas Gerais? E Lisboa?

M.D: Conheço Minas (Cordisburgo, onde nasceu Guimarães Rosa) e fui uma vez em Lisboa quando era bem jovem.

C.T.: Como é seu envolvimento com autor e obra antes de traduzir?

M.D.: Conhecia sua obra mas nunca tinha encontrado o autor.

C.T: Como reproduzir, na medida do possível, a singularidade estilística do texto de partida e, ao mesmo tempo, tentar torná-lo “compreensível” para o leitor francófono? Existiram obstáculos e, se sim, quais as alternativas encontradas?

M.D: As expressões brasileiras não foram difíceis de traduzir. Mas essa transformação do português brasileiro em português europeu, as palavras em negrito, me obrigaram a encontrar um método novo. Como fazer que o leitor sinta essa diferença entre as duas “línguas”? Serginho se sente um pouco “estranho” em Lisboa, e o leitor brasileiro estranha essas palavras que ele não conhece, ou que lhe soam arcaicas ou literárias. Quando o Serginho francês chega em Portugal, ele começa a usar palavras que soam diferentes para o leitor: regionalismos (como palavras usadas no Québec ou na Bélgica), arcaísmos, ou palavras e expressões um pouco raras, antigas, um pouco estranhas em francês. Também deixei algumas palavras simplesmente em português, traduzindo em seguida, no próprio texto, para que o leitor francês se sinta, ele também, um pouco estrangeiro. As vezes, quando a expressão portuguesa é engraçada (“chapéu de chuva”) eu traduzi literalmente (“chapeau à pluie” em vez de “parapluie”). Não sei como fizeram os outros tradutores deste livro, fiquei curioso em saber... Também é engraçado pensar que quando o livro foi publicado em Portugal, eles “adaptaram” o título (Estive em Lisboa e lembrei-me de ti) e suprimiram os negritos das palavras... Ou seja, o livro ficou totalmente outro. Mas é verdade que o leitor português deve ter uma leitura bem diferente do texto: para ele, é a primeira parte do livro, que se passa em Minas, que é estranha, e não a segunda! Seria interessante, a meu ver, fazer um estudo comparativo de recepção: a portuguesa e a brasileira. Como esse livro foi recebido em Portugal?

C.T: Muitas vezes os tradutores especializam-se num autor ou gênero literário. A tradução de poesia, como a segunda epígrafe da obra, um poema de Miguel Torga, foi um desafio?

M.D: Não particularmente. Não tentei reproduzir a rima, mas mantive mais ou menos o ritmo do original.

C.T.: Houve algum trecho “intraduzível” ? Se sim, quais estratégias tradutórias que utilizou?

M.D: Usei no total seis notas (que foram inseridas no final do livro): “revolução de 1964”, “jogo do bicho”, “jogo de búzios”, “retornados” e duas frases africanas.

C.T: Particularmente no último ano, a Europa tem recebido muitos imigrantes e refugiados. Você considera que o livro de Ruffato e o seu conteúdo e mensagens, publicado há quase sete anos, continuam atuais?

M.D: Sim, continuam atuais, mas a diferença é que o nível de desemprego aumentou mais ainda e que a Europa tem vivido uma crise imensa (a Grécia em particular, mas também Espanha e Portugal). Na época em que o livro foi publicado no Brasil, a Europa ainda parecia um eldorado para os sul-americanos (como lemos na primeira parte do livro); agora não mais. A maioria dos trabalhadores imigrantes da Espanha voltou para seus países. Imagino que em Portugal ocorreu a mesma coisa. Mas quanto a esses refugiados recentes (do médio oriente), isso ainda é um outro problema, pois eles não vêm à procura de trabalho, mas para fugir da guerra.

C.T: Em entrevista ao Jornal Deutsche Welle, na ocasião do lançamento da tradução alemã, Ruffato afirmou que sua obra é “melhor recebida” no exterior do que no Brasil. A que você acha que isso se deve?

M.D: Não saberia dizer... Talvez a crítica que ele faz do Brasil seja percebida com um olhar mais distante aqui? Ou talvez, simplesmente, os leitores europeus sejam mais “de esquerda” do que os brasileiros? Só hipóteses...

C.T: Ser tradutor mudou, de algum modo, seu olhar enquanto leitor?

M.D: Sim, com certeza leio a literatura traduzida com um olhar mais crítico, presto mais atenção aos detalhes, às palavras.

ENTREVISTA COM GIAN LUIGI DE ROSA

Cadernos de Tradução (CT): Você concorda com a ideia de que todo tradutor é um adaptador e vice-versa? Se concorda, quais os argumentos que utilizaria para suportar essa opinião no caso concreto da sua tradução de Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato?

Gian Luigi De Rosa (GLR): O tradutor é um adaptador que se transforma também em uma espécie de novo autor, porque ele deve dar uma nova voz àquilo que está traduzindo. Não é simplesmente uma “transposição” de signos verbais, mas é a passagem de uma língua-cultura para outra língua-cultura e nem sempre é fácil encaixar os detalhes.

C.T: Como surgiu a possibilidade de traduzir Luiz Ruffato e qual a importância da tradução de Estive em Lisboa e lembrei de você na Itália?

G.L.R: La Nuova Frontiera é uma editora italiana que até alguns anos atrás estava muito interessada na nova safra literária brasileira e em difundir a literatura brasileira, por isso cuidava, e continua cuidando, das obras que pretende traduzir a ponto de dividir os tradutores conforme as competências específicas nas variedades da língua portuguesa. Difícil, por exemplo, que ofereçam um autor português a um brasilianista. Foi assim que aconteceu que me propuseram traduzir Luiz Ruffato, um autor que eu adorava ler e que adorei traduzir.

C.T: Por que traduzir literatura brasileira?

G.L.R: Hoje em dia é difícil responder a uma pergunta tão específica. Não existem fronteiras tão rígidas e a literatura tem fronteiras líquidas e fica até difícil reconhecer os autores como “nacionais”. O caso de Paulo Coelho pode ser explicativo, ele vendeu muitos livros, mas ninguém considerou Paulo Coelho como escritor brasileiro, mas apenas como escritor.

C.T: Para a tradução deste livro, houve alguma pesquisa não apenas sobre o contexto social brasileiro e português, mas igualmente sobre a cultura mineira e o “mineirês”?

G.L.R: Desse ponto de vista, posso dizer que já tinha conhecimento das características sociolinguísticas do português falado em Minas e das variedades populares do português, portanto não tive muitos problemas. Além disso, respondendo também à pergunta sucessiva, conheci o interior de Minas Gerais e passei por muitas das cidades de que se fala no romance (Muriaé etc.).

C.T: Você chegou a conhecer Minas Gerais? E Lisboa?

G.L.R: Lisboa conheço desde 1992 e já fui lá muitas vezes.

C.T: Como é seu envolvimento com autor e obra antes de traduzir?

G.L.R: Através da leitura e, às vezes, há o contato com o autor para resolver questões linguísticas. Com o Luiz Ruffato eu não tive contato antes de fazer a tradução, apenas depois, quando houve o lançamento do livro, nós nos conhecemos em Roma. Eu já conhecia a sua obra antes de o traduzir e adorei a possibilidade de traduzir o Estive em Lisboa…. Depois do sucesso desse livro, eu me tornei o tradutor oficial de Ruffato na Itália.

C.T: Como reproduzir, na medida do possível, a singularidade estilística do texto de partida e, ao mesmo tempo, tentar tornar o texto “compreensível” para o leitor de língua italiana? Existiram obstáculos e, se sim, quais as alternativas encontradas?

G.L.R: Quanto ao traduzir Luiz Ruffato, não é apenas um problema estilístico, é também uma “questão linguística”, sendo que, como ele mesmo diz, ele utiliza o “mineirês”. Isso se lê já no título com a supressão do clítico no verbo pronominal “lembrar-se”, que é uma característica da variedade mineira da língua portuguesa, do português brasileiro. Ele (Ruffato) tenta reproduzir a fala mineira, a sua intenção é de criar diálogos como se escutássemos alguém falar. Então, o desafio maior foi reproduzir uma escrita que, também em italiano, desse ao leitor a percepção de pensar que aquilo que está lendo é reprodução de alguém que está falando, de alguém que está contando uma história. Essa oralidade é preponderante e você a encontra em cada página do romance. O problema é tentar reproduzir tudo isso numa outra língua, numa outra cultura. É como se fosse um conto escrito para ser lido. Tudo isso acontece, de uma certa forma, também na transposição fílmica porque, em termos de personagem, é o Serginho que conta (uma história, sua história). Não tem uma voz narrando, é o Serginho, narrador intradiegético, que conta e essa estratégia foi mantida também no filme. Em relação a tornar “compreensível” o texto de partida para o leitor italiano, por razões editoriais, a editora não permitiu o uso de registro muito coloquial, menos padronizado, que seria correspondente de uma certa forma àquilo que era o texto original. Eu tive que oscilar entre um registro coloquial, como a maioria das vezes, e uma estratégia normatizadora do texto. A única coisa que eu consegui, de vez em quando, além dos diálogos, foi manter um registro informal, sem problemas. O problema maior eu encontrei na narração que, muitas vezes, mantém um coloquialismo que não existe em outros textos mais padronizados. De uma certa forma, a editora solicita ao tradutor para não utilizar muito frequentemente um registro informal.

C.T: Pode dar algum exemplo de algo “difícil” de traduzir nesta obra?

G.L.R: Sim, começando pelo título, em italiano temos expressões correspondentes, equivalentes. Estive em Lisboa e lembrei de você em italiano existe A Lisbonna andai a te pensai, mas com esse título, o Ruffato não teria vendido nenhum livro. A capa do livro na edição italiana é um cartão postal, um pouco vintage, dos anos ‘60, ‘70. O principal problema tradutório foi manter essa ideia da viagem, da saudade, porque “Estive em Lisboa e lembrei de você” remete a saudade e a partida. Não se sabe se (o personagem) vai voltar e por isso funciona a ideia do cartão postal. A ideia foi “lutar” pelo título e depois com o Giorgio de Marchis, diretor da coleção de língua portuguesa, conseguimos chegar a um título que mantém todos os requisitos da saudade, da viagem, mas não tem uma correspondência ao cartão postal, que foi mantido na capa.

C.T: Como você traduziria este título italiano (Sona stato a Lisbonna…) para o português?

G.L.R: Este título é “Estive em Lisboa e pensei em você” que já é um pouco mais romântico. Por isso que foram muitas mulheres que compraram esse livro. A maioria dos leitores na Itália, cerca de 80%, são mulheres.

C.T: Muitas vezes os tradutores especializam-se num autor ou gênero literário. A tradução de poesia, como a da segunda epígrafe da obra, um poema de Miguel Torga, foi um desafio?

G.L.R: É verdade. Num autor, não. Mas, por exemplo, eu tenho preferência de, se for possível, sempre traduzir Ruffato e de não traduzir (mais) outros autores que eu já traduzi, mas que não voltarei a traduzir. Em relação ao gênero literário, eu gosto mais de desafios, de autores como o Ruffato que do ponto de vista linguístico e estilístico mistura gêneros e tipologias textuais. Esse tipo de romance é um desafio, diferente de um romance escrito numa língua padrão, que deixa pouco espaço para a imaginação.

C.T: Já existia tradução para o italiano do poema do Miguel Torga ou você fez uma outra tradução?

G.L.R: Eu utilizei uma tradução oficial e isso é algo interessante, pois se faz parte do imaginário do leitor destinatário, é importante que se mantenha a tradução e não retraduzir, já que existe uma relação com a cultura de chegada. Mesmo que se considere uma tradução “mal feita”, se existe uma tradução oficial e ela é a única, é melhor manter aquilo que já existe no imaginário cultural dos leitores.

C.T: Esta editora é a única na Itália que detém os direitos autorais do Luiz Ruffato?

G.L.R: Não, Luiz Ruffato também foi traduzido e publicado por outra editora. O livro Eles eram muitos cavalos foi um fracasso tanto pela tradução, quanto pela difusão. Quase não houve publicidade no lançamento do livro e depois, nos poucos eventos em que foi promovido, a tradução não foi bem aceita.

C.T: Houve algum trecho “intraduzível” ? Se sim, quais estratégias tradutórias que utilizou?

G.L.R: Não considero nada intraduzível. Eu posso sempre adotar uma estratégia tradutória até mesmo na marcação sociolinguística, se pode traduzir passando para outro elemento da frase, do texto. Por isso, não encontrei trechos intraduzíveis.

C.T: Particularmente no último ano, a Europa tem recebido muitos imigrantes e refugiados. Você considera que o livro de Ruffato e o seu conteúdo, publicado há quase sete anos, continuam atuais?

G.L.R: Mais do que atual, sobretudo na Itália, em que refugiados chegam todos os dias. Naturalmente bem diferente do Serginho, já que o Serginho veio (para Lisboa) para ficar. Normalmente os refugiados que chegam à Itália acham que a Itália é uma terra de passagem, não chegam pensando que vão ficar, mas que vão embora. A temática do livro é muito atual, embora seja culturalmente diferente. Existiu um momento em que o fluxo de emigração da América Latina também ia para a Itália, mas agora, quase que exclusivamente vem das áreas em guerra, do Oriente Médio, Palestina, Síria.

C.T: Em entrevista ao jornal Deutsche Welle, na ocasião do lançamento da tradução alemã de Estive em Lisboa e lembrei de você, Ruffato afirmou que sua obra é “melhor recebida” no exterior do que no Brasil. A que você acha que isso se deve?

G.L.R: Sim, isso eu vi. Também na Alemanha, França, Itália. O Luiz Ruffato é um grande autor como tantos autores na literatura brasileira contemporânea, mas o reconhecimento no Brasil é relativo. Claro, no mundo acadêmico, a Academia considera o Ruffato um grande escritor, mas a opinião pública sobretudo depois do que ele expôs na Feira do Livro de Frankfurt, piorou a situação em relação às pessoas, ao Governo e tudo aquilo que tem a ver com ele fora do país. Por exemplo, depois das críticas na Feira do Livro, nós não tivemos mais possibilidade de lançar livros do Ruffato na Embaixada Brasileira. O nome de Luiz Ruffato está na blacklist das Embaixadas Brasileiras no exterior porque se tem medo que ele possa falar alguma coisa contra o governo, mas ele não falou nada contra o governo. Ele denunciou algumas situações e deu opções e alternativas para resolver essas situações. Não foi uma crítica destrutiva, ele queria dar uma saída e ele estava certo. Se tivessem escutado as alternativas (dadas por Ruffato), a situação (social, política, econômica) talvez não estivesse assim como a questão do impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Acho que o Ruffato estava certo. Foi uma cassandra.

C.T: Ser tradutor mudou, de algum modo, seu olhar enquanto leitor?

G.L.R: Claro. Aliás, eu quis mudar a minha percepção. Eu comecei a trabalhar com tradução audiovisual antes de ser tradutor. Mas quando você trabalha com tradução sem ser tradutor, é fácil que você caia em lugares comuns das críticas da tradução, onde tudo é mal traduzido. Então, é preciso enfrentar e se desafiar num processo tradutório. Quando se começa a traduzir, entende-se quais são os problemas, quais são as questões centrais e as periféricas. Outras questões que antes pareciam ser o centro do mundo e da prática tradutória que, na verdade, não são. Para falar de tradução e teoria, é bom que antes disso, faça também prática mesmo que for como amador para se confrontar no seu trabalho (com desafios) e ver o que acontece. Parece fácil criticar traduções ao invés de reconhecer os limites que o tradutor tem em relação a um determinado texto. Falar de tradução é bom, mas seria melhor ainda falar tendo consciência do processo prático.

C.T: Sendo linguista e tradutor, você consegue ler um livro prazerosamente, quer dizer, sem analisá-lo todo o tempo?

G.L.R: Consigo. Às vezes acontece de analisar um livro que estou lendo, mas também no cinema. Você acaba levando o trabalho de linguista e tradutor a todo lugar, se torna quase uma condenação.

ENTREVISTA COM MICHAEL KEGLER

Cadernos de Tradução (CT): Você concorda com a ideia de que todo tradutor é um adaptador e vice-versa? Se concorda, quais os argumentos que utilizaria para suportar essa opinião no caso concreto da sua tradução de Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato?

Michael Kegler (MK): Não sei se concordo. Acho que não. Pelo menos não no que diz respeito ao objetivo da tradução. Em contrário do realizador de um filme, por exemplo, não procuro transformar o livro numa outra obra de arte, mas sim, transportar o livro para um outro idioma - e só. O desafio é conseguir limitar as perdas ao inevitável. Obviamente, o resultado é sempre uma versão - adaptação ao idioma, ao contexto, ao imaginário do tradutor e do leitor. Mas isso não é o objetivo da tradução.

C.T: Como surgiu a possibilidade de traduzir Luiz Ruffato e qual a importância da tradução de Estive em Lisboa e lembrei de você na Alemanha?

M.K: A possibilidade de traduzir Luiz Ruffato surgiu da maneira mais banal. Fui contatado pela editora e me propuseram a tradução de Eles eram muitos cavalos, em 2011/2012 A esta tradução, publicada em 2012, seguiram-se outras, dentro do projeto editorial de publicar toda a pentalogia “Inferno provisório” na Alemanha. E assim também traduzi o Estive em Lisboa e lembrei de você. A importância deste livro dentro do conjunto das obras de Luiz Ruffato é - tecnicamente - de ser um livro “diferente”, menos fragmentado, mais tradicional. O livro é mais “palpável” para o leitor, por ter início, meio e fim, da forma quase tradicional.

C.T: Por que traduzir literatura brasileira?

M.K: Não traduzo literatura brasileira. Traduzo livros escritos em português por autores brasileiros, portugueses ou africanos. Traduzo literatura escrita em língua portuguesa, porque o português é o único idioma que leio suficientemente bem para poder traduzi-lo. Por isso também tenho um interesse especial por aquilo que se escreve nos países de língua portuguesa. Interesses até biográficos. Mas não acredito em literaturas “nacionais”.

C.T: Para a tradução deste livro, houve alguma pesquisa não apenas sobre o contexto social brasileiro e português, mas igualmente sobre a cultura mineira e o “mineirês”?

M.K: Sim, existe uma pesquisa até corporal e biográfica. Vivi em Minas Gerais, fui alfabetizado em português, em Minas Gerais e sei falar “mineirês”. A cultura “mineira” não me é estranha, embora haja ainda certas diferenças entre Congonhas do Campo, o município em que cresci, e Cataguases, a 200 quilômetros de distância. O resto é texto. Tudo o que se precisa saber para traduzir está no próprio texto. Conhecer os contextos simplesmente ajuda no acesso.

C.T: Você chegou a conhecer Minas Gerais? E Lisboa?

M.K: Cresci perto de Congonhas do Campo. Ainda hoje tenho amigos lá. Conheço Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana etc. Não conheço a Zona da Mata. Em Lisboa só tenho amigos. Nunca vivi lá. Mas obviamente, passei lá várias vezes como turista.

C.T: Como é seu envolvimento com autor e obra antes de traduzir?

M.K: No caso do Luiz Ruffato, só conheci o autor quando comecei a traduzir o primeiro livro. Trocamos e-mails. Depois, fomos apresentar o livro em várias cidades alemãs, na Áustria e na Suíça. Viajamos muito desde então. Cada livro lançado na Alemanha foi acompanhado de uma viagem de lançamentos. Entre as viagens trocamos e-mails. Posso dizer que entretanto ficamos amigos. Há outros autores que conheci antes de traduzir os seus livros, ou outros de que sou amigo, mas nunca traduzi livro algum. O que se pode dizer sobre a tradução é que o contato com o autor ou a autora pode ajudar no processo de tradução.

C.T: Como reproduzir, na medida do possível, a singularidade estilística do texto de partida e, ao mesmo tempo, tentar tornar o texto “compreensível” para o leitor de língua alemã? Existiram obstáculos e, se sim, quais as alternativas encontradas?

M.K: Pois é. É isso que tento fazer. O obstáculo é a diferença entre as línguas, as suas sintáticas, suas melodias diferentes. Mas encontram-se soluções. E há muitos truques. Cada “obstáculo” é vencido de outra forma. Às vezes encontram-se soluções felizes, outras vezes não tanto. O objetivo é não fazer soar estranho o que na língua original não o é, e ao mesmo tempo não simplificar o texto. Por outro lado, me permito de conservar as estranhezas que o autor reproduz no seu próprio texto, e não explicá-las ao leitor de língua alemã. Não gosto de notas de rodapé. O texto precisa funcionar por si mesmo.

C.T: Muitas vezes os tradutores especializam-se num autor ou gênero literário. A tradução de poesia, como a segunda epígrafe da obra, um poema de Miguel Torga, foi um desafio?

M.K: Cada tradução é um desafio, seja ela de prosa ou de poesia. O desafio neste caso foi, procurar se já não existia uma tradução deste poema de Torga (não encontrei), e depois, de resolver isso sem poder perguntar o autor, pois o Torga já não vive.

C.T: Houve algum trecho “intraduzível” ? Se sim, quais estratégias tradutórias que utilizou?

M.K: Não, já não encontro trechos intraduzíveis, visto que “tradução” é um termo bastante flexível. Nos textos de Luiz Ruffato tudo é traduzível, porque o próprio texto já é de certa forma a tradução de um contexto social que a grande maioria de seus leitores desconhecem. No caso do “Estive em Lisboa ...” até deixei palavras sem tradução, por exemplo termos portugueses (de Portugal), como “elétrico”, “autocarro”, “adeusinho”, que simplesmente deixei assim, para traduzir o estranhamento do protagonista.

C.T: Particularmente no último ano, a Europa tem recebido muitos imigrantes e refugiados. Você considera que o livro de Ruffato e o seu conteúdo, publicado há quase sete anos, continuam atuais?

M.K: O emigrante de Estive em Lisboa e lembrei de você não tem muito a ver com as pessoas que estão a chegar à Europa atualmente. Esses são, em sua grande maioria refugiados, cuja migração é, pelo menos teoricamente, temporária, ou seja incentivada por crises ou guerras em seus países. Estes refugiados são recebidos colectivamente e de uma forma mais ou menos legalizada ou organizada. Os emigrantes, que como Serginho, chegam de forma individual, desorganizada, procuram melhorar a sua vida, trabalhar, sobreviver num país estrangeiro, ganhar melhor do que no seu país de origem, e na melhor das hipóteses, voltar para casa, também são em princípio, temporários, mas são logo não legalizados, sem direito à assistência social nem a caridades por parte da sociedade civil. Infelizmente, os termos “refugiado” e “imigrante” são sistematicamente confundidos no discurso político. Serginho - como a grande maioria das pessoas não legalizadas por serem “migrantes de trabalho”, sem documentos - vive numa situação ainda mais precária do que os refugiados pelo menos protegidos por estatutos internacionais. Ele é uma “não-pessoa”, tal como, num outro escalão, e em nível histórico, os protagonistas dos outros livros de Luiz Ruffato - os despercebidos, desindividualziados da história.

C.T: Em entrevista ao Jornal Deutsche Welle, na ocasião do lançamento da tradução alemã de Estive em Lisboa e lembrei de você, Ruffato afirmou que sua obra é “melhor recebida” no exterior do que no Brasil. A que você acha que isso se deve?

M.K: Não tenho dados concretos e objetivos sobre a recepção da obra no Brasil. Da Alemanha sei que o autor é bastante querido por aqueles leitores e os jornalistas que o conhecem, e pelos poucos que compram os seus livros. Mas objetivamente, qualquer escritor brasileiro é quase que absolutamente desconhecido entre os 82 milhões de habitantes da Alemanha e os tantos outros, da Suíça ou da Áustria. Não tenho dúvida que dos 250 milhões de brasileiros, também só uma minoria absoluta sabe quem é Luiz Ruffato, menos ainda leram os seus livros. Por isso diria que o escritor (como a grande maioria dos escritores nacionais e internacionais) continua um grande desconhecido, seja no seu país de origem, seja no exterior.

C.T: Ser tradutor mudou, de algum modo, seu olhar enquanto leitor?

M.K: Não sei. Obviamente, hoje em dia leio muito mais com os olhos de profissional, o que é terrível. Ao ler penso inevitavelmente como é que eu traduziria uma determinada frase ou (o que é pior) se o livro poderia ser interessante para o “mercado” de língua alemã. Também já não consigo ler uma tradução, sem automaticamente refletir como seria uma determinada frase no original. Me tornei leitor profissional, e já raramente leio por simples prazer. Por outro lado, gosto do que faço. Por isso, o meu trabalho me dá o prazer que antigamente a simples leitura me dava.

  • Publicado em setembro de 2017

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2017
  • Aceito
    24 Jul 2017
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