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O TRADUTOR (E O) DICIONARISTA

THE TRANSLATOR (AND THE) LEXICOGRAPHER

Resumo

A tradução faz interagir dois universos linguísticos, a língua de partida e a língua de chegada. Na tradução de línguas mortas, como o latim e o grego antigo, o uso de dicionários é imprescindível. Por outro lado, essa interação muitas vezes beneficia a língua de chegada, que incorpora novas palavras. Nesta abordagem, que se restringe à tradução de textos gregos para a língua portuguesa, considera-se o dicionário sob dois aspectos: (I) sendo ele um guia de uso - e de recepção, sobretudo para as línguas mortas -, dicionários de grego se enriquecem de termos e significados à medida que novos textos são encontrados; (II) a riqueza de sentidos de certas palavras gregas estimula o tradutor a transliterá-las e, quando se tornam familiares, elas são dicionarizadas. Tudo isso é possível porque o acervo lexical das línguas é aberto, afirmação válida mesmo para línguas mortas.

Palavras-chaves:
Tradução; Dicionário; Grego antigo; Acervo lexical; Lexicografia

Abstract

Translation makes the interaction between two linguistic worlds, the source language and the target language. The use of dictionaries is indispensable for translating dead languages, such as latin and ancien greek. On the other hand, this interaction often benefits the target language, which incorporates new words. This approach focuses translations of greek texts into portuguese language. We consider dictionaries on two aspects: (I) as it is a guide to speak a language - and to its reception, especially in relation to dead languages -, in ancient greek dictionaries words and meanings are added whenever new texts are discovered; (II) the meanings’ richness of some greek words encourages translators to transliterate them, and when they become usual, they can be included in a dictionary. This is possible because languages’ lexicon is open. This statement is valid even if for a dead language.

Keywords:
Translation; Dictionary; Ancient Greek; Lexicon; Lexicography

1. Introdução

Este estudo alinhava observações sobre tradução de textos gregos para o português e sua contribuição para a lexicografia do grego antigo e também da língua portuguesa. Dividido em duas partes, aborda, na primeira, aspectos da variação diastrática, ou seja, dos registros - informação em geral difusa nos dicionários -, para, em seguida, tratar do acervo lexical do grego antigo como corpus aberto e passível, portanto, de inclusão de novas palavras e novas acepções de palavras conhecidas, à medida que são descobertos textos e inscrições. A segunda parte considera a contribuição das traduções para o acervo lexical do português e para a elaboração de dicionários de língua. Segundo Borba (2003BORBA, F. S. Organização de dicionários. Uma introdução à lexicografia. São Paulo: Ed UNESP, 2003., p. 15-16), tais dicionários devem ser “guias de uso” e não “um simples repositório ou acervo de palavras”.

A tradução faz interagir dois universos linguísticos, a língua de partida e a de chegada. Na prática da tradução de línguas não mais usadas por falantes nativos como o latim e o grego antigo, dicionários são o único recurso disponível para a delimitação de significados de uma palavra em contexto.

2. Registros

Os dicionários de grego antigo descrevem palavras documentadas em corpus escrito que abrange um imenso arco temporal, desde os textos de HomeroHOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. 4. ed. São Paulo: Arx, 2003. 2 v. (Edição bilíngue), provavelmente do séc. IX-VIII a.C., até os do século VI d.C. Essa amplitude é um dos desafios enfrentados pelo helenista, haja vista as transformações que uma língua sofre ao longo do tempo. Ademais, o grego expressa uma cultura antiga, permanentemente reconstituída graças ao exame dos textos e da cultura material.

É nesse quadro de investigações que se insere a tradução. Como traduzir um texto grego se nos falta o “sentimento de língua”, ou seja, aquele sentimento que os falantes nativos desenvolvem e que lhes permite apreender intuitivamente o valor das palavras em contexto? Esse conceito vale para qualquer língua que se aprende como segunda língua, mas em relação ao grego antigo ele tem peso maior porque, ao contrário das línguas modernas, que possibilitam o contato com falantes nativos e a imersão nas culturas que elas expressam, o estudo do grego apenas disponibiliza, para orientar o estudioso, as informações constantes dos dicionários. Esclareço o alcance de tal afirmação com uma experiência pessoal.

A tradução de textos de Luciano de Samósata (séc. II d.C.) me ensinou a importância de se considerar os registros. Em sua resenha à minha tradução dos Diálogos dos mortos (1966LUCIANO. Diálogo dos mortos. Tradução de Maria Celeste Consolin Dezotti. São Paulo: Hucitec , 1966.), Luiz Rufato (1996SCHÄDLICH, H. J. Donne-lui la parole. Vie et mort du poéte Esope. Tradução do alemão por Bernard Kreiss. Nîmes: Jacqueline Chambon, 2002., p. 6) observa:

A reparar, apenas um excesso de coloquialismo da tradução. Na introdução, a tradutora avisa que, para manter o tom que caracteriza Luciano, adotou algumas soluções que ‘ferem as regras da norma culta’. Nada demais. Só que, para isso, em alguns momentos, parece que há uma ultrapassagem e esbarra-se no mau gosto. Dois exemplos colhidos ao acaso: “pegadinha” (no sentido de armadilha), na página 51, e “putinha”, na página 179.

Reproduzo as duas passagens citadas para esclarecer o comentário. A primeira ocorre no Diálogo 1 (§2), em que o filósofo Diógenes conversa, no Hades, com um morto que está prestes a voltar ao mundo dos vivos, e o incumbe de levar recados para os filósofos: “Recomende-lhes que parem de uma vez de dizer baboseiras, de divergir a respeito de tudo, de arranjar chifres uns para os outros, de inventar crocodilos e de ensinar a mente a propor semelhantes pegadinhas” (grifo meu).

“Pegadinhas” traduz o plural neutro apora, com o qual Diógenes se refere aos sofismas apreciados pelos filósofos da época, como este sofisma dos chifres: “O que a gente não perdeu, a gente tem. Você não perdeu seus chifres. Logo, você os tem”. Ou o do crocodilo: “Você tem um filho? Pois bem. Suponha que um crocodilo o encontre perdido nas margens do Nilo e o agarre. A seguir, ele promete devolvê-lo desde que você adivinhe se ele tem intenção de devolver a criança ou não. Que alternativa você escolheria?” Trata-se de “armadilhas”, popularmente denominadas “pegadinhas”. Para o resenhista, portanto, a solução, dado o coloquialismo, destoava do conjunto.

A outra referência está no Diálogo 27 (§7), em que Diógenes censura um morto que chega ao hades maldizendo a cortesã responsável por sua morte: “[...] você, que jamais temeu os inimigos e lutava intrepidamente à frente dos outros, foi deixar-se agarrar pela primeira putinha que lhe apareceu com choros e queixumes fingidos!” (grifo meu).

“Putinha” foi a tradução que dei para paidiskarion, diminutivo de paidiske, “mocinha”, mas que também significa “prostituta”. Ao ler a resenha, reconheci de imediato o erro de ter optado por um vulgarismo, não condizente com a escolha de Luciano.

A partir daí, comecei a atentar na variedade de registros usada por Luciano. Sua prosa é recheada de palavras poéticas, de arcaísmos e de ocorrências únicas (os hápax), particularidades que só podemos avaliar recorrendo às abonações trazidas pelos dicionários. Cito alguns exemplos do Caronte, cuja tradução estou finalizando. Nesse diálogo, o barqueiro Caronte sobe ao mundo dos vivos buscando entender por que os mortos chegavam em prantos ao hades. E, para visitar essa terra desconhecida, pede a Hermes que seja seu guia. De início Hermes se recusa a acompanhá-lo, dizendo:

Não tenho tempo, barqueiro; pois estou de saída para fazer uma entrega a Zeus lá em cima, da parte dos humanos. Ele é irascível e meu medo é que, se eu me atrasar, ele permita que eu seja inteirinho vosso, entregando-me à escuridão, ou então, que ele faça o que fez recentemente a Hefesto: colher-me pelo pé e lançar também a mim para fora do divino umbral, de modo que também eu provoque riso, servindo vinho a manquitolar. (LUCIANO, 1974LUCIANO. Caron. In: Luciani. Opera, II. by M.D.MacLeod. Oxford: Oxford Classical Texts, 1974., p. 1; tradução e grifos meus)

Os termos grifados na tradução acima correspondem no original a palavras de uso poético. O primeiro traduz tetagon, particípio aoristo de um verbo conhecido apenas nessa forma e só em duas ocorrências da Ilíada (1.591; 15.23)HOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. 4. ed. São Paulo: Arx, 2003. 2 v. (Edição bilíngue). Portanto, além de poética, é forma rara e arcaica. O segundo, divino, traduz o adjetivo thespesios (divino, maravilhoso), usado quase que exclusivamente em poesia, e os raros empregos registrados em prosadores constituem sem dúvida citação, criando o mesmo efeito surpresa verificado em Luciano. O último, umbral, traduz belos (soleira), que só ocorre uma vez em Homero, sendo retomada mais tarde por Ésquilo e Quinto de Esmirna. Novamente temos aí um arcaísmo poético e raro.

O texto traz também palavras técnicas da medicina: “Então aquilo é que é o ouro, o brilho que reluz, a palidez (hypokhros) com vermelhidão?”, pergunta Caronte (§ 11). Hypokhros é termo do registro médico, com ocorrências em Hipócrates, Dioscórides e Galeno. Caronte combina-o com erytema (rubor; vermelhidão patológica, inflamação), que também oscila entre o registro técnico e o não técnico. Para se reproduzir na tradução o efeito do termo técnico, uma solução seria traduzir o sintagma por “o amarelado eritema”.

Luciano também cria neologismos que desafiam o tradutor. Um deles é nekrodokheion (§22), “receptáculo de mortos”, para referir-se às sepulturas. O português “necrotério” não é apropriado, pois tem sentido específico. Forjar uma palavra única que dê conta desses sentidos não é fácil...

3. Acervo lexical aberto

É comum supor-se que o conjunto de textos gregos constitui um acervo fechado, por ser composto em uma língua morta. Ressalte-se, porém, que novos textos ainda estão sendo descobertos entre manuscritos armazenados em bibliotecas e coleções pessoais, e também em escavações arqueológicas. Dessa forma, novas palavras se tornam conhecidas, assim como novas acepções de palavras já dicionarizadas. Exemplo desse progresso no conhecimento do léxico do grego antigo é o “Supplement” anexado ao Greek-English Lexicon de Liddell & Scott & Jones a partir da edição de 1968; ele abriga palavras novas, oriundas de inscrições e papiros, e também correções e/ou acréscimos decorrentes do manuseio dos textos por especialistas.

Essa reavaliação de significados de palavras gregas constitui um processo contínuo. Cito exemplos extraídos da primeira tradução em português do Romance de Esopo, feita por Adriane da Silva Duarte (2014), cujo texto grego, a recensão G, provavelmente do séc. II d.C., foi descoberto em Nova York numa biblioteca particular, e publicado por B. E. Perry em 1952PERRY, B. E. Aesopica. Urbana: University of Illinois, 1952. 1 1 Até então a versão popularizada entre nós era a do erudito bizantino Máximo Planudes, graças à tradução francesa de La Fontaine, que manteve a tradição de apresentá-la como preâmbulo de suas próprias fábulas. .

Duarte (2014, p. 197), após informar que no texto predominam “o registro baixo e a expressão vulgar, com forte presença de elementos escatológicos e obscenos”, sendo “o léxico caracterizado por um grande número de palavras ausentes do corpus pregresso”, faz este relato (p. 197-198):

[...] durante a tradução tive que recorrer, regularmente, ao suplemento do Liddell-Scott (dicionário grego-inglês) e, em muitos casos, os verbetes ali anotados traziam como única ocorrência atestada o RE [Romance de Esopo]. Há casos de termos que sequer têm acepção no dicionário, como é o caso da palavra mándrax (RE 68), usada para interpelar pejorativamente Esopo, que traduzi como “catabosta”, por analogia com mándra, estábulo. Outros tradutores, no entanto, a aproximam de mandrágora, planta com propriedades entorpecentes, supondo uma raiz comum.

Para medir-se o esforço da tradutora, veja-se o referido episódio em que a tal palavra ocorre. Narra-se uma cena de banquete, em que Xanto se excede na bebida e Esopo, seu escravo, tenta alertá-lo:

[...] Quando os brindes sucediam-se num tropel e Xanto já estava meio alto, começaram a propor problemas e soluções, como é norma entre eruditos. Uma disputa surgiu na proposição dos problemas e Xanto começou a discutir com eles, não como se faz no simpósio, mas numa sala de aula. Ao perceber que acabaria em briga, Esopo disse: ‘Quando Dioniso inventou o vinho, preparou três taças e mostrou aos homens como deviam fazer uso da bebida. A primeira taça era a do prazer; a segunda, a da alegria; a terceira, a do torpor. Por isso, senhor, bebendo a taça do prazer e a da alegria, deixe a do torpor para os jovens. Você deu mostras de seu talento nas salas de aula.’ E Xanto, agora bêbado, disse: ‘Silêncio, catabosta! Você é o conselheiro de Hades!’. Esopo: ‘Espere só e chegará ao Hades.’ (DUARTE, 2017DUARTE, A. S. Romance de Esopo. In: MALTA, A. Esopo. Fábulas, seguidas do Romance de Esopo. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 183-274., p. 240-241)

A tradutora informa que a palavra mándrax não está dicionarizada. De fato, apesar de as Vitae Aesopi editadas por Perry (1952PERRY, B. E. Aesopica. Urbana: University of Illinois, 1952.) constarem da lista de novos textos abrigados no Supplement do Greek-English Lexicon, aquela palavra não está inserida na listagem, possivelmente devido à dificuldade de se propor um sentido para ela, visto tratar-se de ocorrência única. Outros tradutores deram soluções diferentes para esse desafio, mas todas insatisfatórias: Jouanno (2006LIDDELL, H.G.; SCOTT, R.; JONES, H.S. Greek-English Lexicon. With a Supplement. Oxford: Clarendon Press, 1973., p. 108) traduz mándrax por “sous-homme”; Lloyd Daly (1961DALY, L. Aesop without morals. New York; London: Thomas Yoseloff, 1961, p. 64) opta por “swineherd” (porcariço), palavra old segundo o Longman (2005LONGMAN. Dictionary of Contemporary English. 4. ed. Harlow: Longman, 2005., p. 1681). Vale notar, ainda, que outra alternativa é desviar-se do problema omitindo a passagem, como faz Hans Joachim Schädlich (2002STEVENSON, R. L. A ilha do tesouro. Tradução de Alsácia Fontes Machado. São Paulo: Círculo do Livro, [1973]., p. 54): “Xanthos, ivre come il était, incendia Ésope: ‘Mais toi, tu ne te tais pas, misérable conseiller de Hadès”.

Esses exemplos mostram que a tradução pode contribuir para o conhecimento do léxico de uma língua e, consequentemente, para o aperfeiçoamento dos dicionários. Sem dúvida, a solução de Duarte em algum momento deverá ser incorporada em um dicionário grego-português.

A tradução também contribui para aumentar nosso conhecimento sobre os significados de palavras já dicionarizadas. Cito uma passagem narrada no §76 do Romance de Esopo. Durante a ausência do patrão, Esopo aceita fazer sexo com a esposa dele, sob a promessa de receber um manto como paga por dez orgasmos seguidos; como o décimo foi mal sucedido, a mulher não lhe entrega o manto. Sentindo-se injustiçado, Esopo decide, assim que Xanto retorna, submeter o caso ao julgamento do patrão; narra-lhe então o adultério, mas de forma obscura, cifrando-o em alegoria:

“Senhor, minha dona, durante um passeio comigo, viu uma ameixeira carregada de frutos. Contemplando um galho cheio, teve vontade e disse: ‘Se você conseguir dez ameixas para mim arremessando uma única pedra, dou-lhe o tecido para um manto!’ Arremessando direto no alvo uma única pedra, trouxe para ela dez, mas uma elas, por azar, caiu num monte de estrume e agora ela não quer me dar o tecido.” Ela ouviu e disse para o marido: ‘Admito ter recebido nove, mas não ponho na conta a que foi para o estrume. Que ele arremesse de novo e faça cair uma ameixa para mim, e que, assim, receba o manto.’ Esopo disse: ‘O fruto de minha árvore não é mais abundante.’ [Xanto decidiu que o tecido fosse dado a Esopo e disse a ele:] ‘Já que eu também estou exausto, até que chegue a hora da refeição, venha lá fora comigo e vamos nos mexer um pouco e, você, colher as ameixas restantes e trazê-las para a sua dona, para receber em troca o manto...’ [E ela disse: ‘Faça isso, senhor, e, seguindo suas ordens, eu lhe darei o manto.’] (DUARTE, 2017DUARTE, A. S. Romance de Esopo. In: MALTA, A. Esopo. Fábulas, seguidas do Romance de Esopo. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 183-274., p. 244-245)2 2 A citação reproduz o uso de aspas duplas e aspas simples usada pela tradutora: a primeira delimita discursos diretos reproduzidos pelo narrador; a segunda, discurso direto citado pela personagem Esopo.

Esse episódio deixa clara a equivalência entre “ameixeira” (kokkymelean) e Esopo, entre “galho cheio” (kladon plere ) e membro viril entumecido, entre “uma única pedra” (eni lithoi) e ato sexual ininterrupto. Contudo Xanto não percebe tais equivalências. Seu entendimento falha por não atentar na frase em que o escravo se identifica com o fruto quando diz “o fruto de minha árvore não é mais abundante”. Está aí, claramente, o índice conotativo da fala de Esopo. Embora os dicionários não registrem, a metáfora sexual da ameixa transparece na composição de seu nome em grego, kokkymelon ou kokkygos melon “maçã do cuco”. Segundo Sousa e Silva (1989ARISTÓFANES. As aves. Tradução e notas de Maria de Fátima Sousa e Silva. Lisboa: Edições 70, 1989., p. 96-97), Aristófanes em Aves (v. 504) refere-se ao cuco em contexto conotativo, exortando à prática de sexo. A ideia de que o canto do cuco era visto como estímulo sexual, pois faria o “cuco” (= órgão sexual masculino) excitado sair para a planície (= órgão sexual feminino), está documentada pelo escoliasta de Aristófanes (DUBNER, 1843DUBNER, F. Scholia graeca in Aristophanem. Paris: Didot, 1843.). Ademais, a palavra klados (galho) possivelmente também já tivesse valor metafórico sexual na época. Aceitando-se que o texto do Romance de Esopo seja do século II d.C., vale considerar o bilinguismo vigente - e notável, segundo Jouanno (2006LIDDELL, H.G.; SCOTT, R.; JONES, H.S. Greek-English Lexicon. With a Supplement. Oxford: Clarendon Press, 1973., p. 16), em várias ocorrências de latinismos na obra - e supor-se que essa palavra grega poderia carrear o valor sexual do latim “ramus”, uma das metáforas botânicas para o órgão sexual masculino3 3 A conotação sexual de “ramus” permanece em nossa palavra “rameira”. , segundo J. N. Adams (1982ADAMS, J. N. The Latim sexual vocabulary. London: Duckworth, 1982., p. 28 e 77).

Vale deduzir que essas conotações sexuais já circulavam na época da composição do romance; do contrário, o relato de Esopo seria altamente cifrado, com interpretação limitada a ele próprio e à esposa de Xanto. Se assim fosse, o ridículo a que o filósofo estaria submetido não faria sentido, visto que se exigiria dele uma compreensão acima de sua capacidade, devido ao elevado grau de arbitrariedade do componente alegórico. Faz mais sentido supor-se que Esopo estaria manipulando registros obscenos conhecidos das camadas baixas da população. A partir daí, pode-se afirmar que a ridícula ingenuidade de Xanto advém de seu desconhecimento de sentidos figurados e obscenos de palavras corriqueiras, fato que se coaduna com o romance como um todo, que debocha do filósofo e de sua cultura letrada inútil. A fala da esposa que encerra o episódio mantém o duplo sentido das palavras, fazendo aumentar a comicidade da situação, aos olhos do par adúltero e também do leitor. Portanto, essas conotações sexuais de klados e de kokkymelon merecem registro em dicionários.

4. Empréstimos

Segundo Borba (2003BORBA, F. S. Organização de dicionários. Uma introdução à lexicografia. São Paulo: Ed UNESP, 2003., p. 121), um estrangeirismo está aclimatado quando veste a roupagem gráfica da língua receptora; no nosso caso, quando ele é aportuguesado.

Traduções do grego para o português respondem por um significativo conjunto de palavras recentemente aclimatadas. Um exemplo é , geralmente transliterada hybris, e incorporada na primeira edição do Houaiss (2001HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001., p. 1554) como “húbris”. Contudo, parece haver resistência ao uso da forma dicionarizada, conforme sugere o texto de Oded Grajew (2017HESÍODO. Teogonia. Tradução e estudo de Torrano JAA. São Paulo: Roswitha Kempf, 1984.), que preferiu a transliteração:

Na louca corrida sem limites pelo crescimento e enriquecimento, a humanidade comete o crime da desmedida, chamada de “hybris” pelos gregos. [...] Em nossa hybris ou desmedida, destruímos o meio ambiente e colocamos em risco a vida humana no planeta.

No entanto, também recorrem à transliteração tradutores de obras modernas, ficcionais ou não, como exemplificam as traduções para o português de A ilha do tesouro de Stevenson. Na tradução de A. F. Machado (1973STEVENSON, R. L. A ilha do tesouro. Tradução de Duda Machado. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997., p. 49) a palavra squire, que descreve a condição social do Sr. Trelawney, é traduzida por “fidalgo”, enquanto na tradução de Duda Machado (1997STEVENSON, R. L. A ilha do tesouro. Tradução de Duda Machado. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997., p. 48), mantém-se a palavra inglesa em itálico, mas sem nenhuma nota explicativa, o que limita o entendimento do leitor. Segundo o Longman (2005LONGMAN. Dictionary of Contemporary English. 4. ed. Harlow: Longman, 2005., p. 1607), squire designava na Inglaterra o proprietário da maior parte das terras ao redor de uma cidade. “Fidalgo” não é necessariamente um proprietário de terras. Nota-se que o segundo tradutor preferiu manter a palavra inglesa transliterada, recusado-se tanto em adotar a primeira solução (“fidalgo”), por imprecisa, como em traduzir por “grande proprietário de terras”, solução inviável para os contextos em que squire ocorre.

Transliterar palavras da língua de origem nas traduções é prática rotineira, certamente para preservar significados condensados em palavras de difícil tradução em língua moderna. Palavras transliteradas em geral vêm seguidas de notas explicativas. E quando adquirem certa frequência de uso, são aclimatadas e, depois, dicionarizadas.

O jornal é um disseminador importante de novas palavras. Mário Sérgio Conti (2017CONTI, M. S. Peripécias da hegemonia. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jul. 2017. Folha Ilustrada, Caderno C, p. 10.) comentou na Folha de São Paulo um livro de Perry Anderson recém-publicado na Inglaterra chamado The H-World. Esse H do título é a letra inicial da palavra grega hegemon, assim transliterada no livro. Conti usa esse conceito grego para explicar por que o presidente Temer se mantém no poder, apesar das denúncias que o cercam: “Porque ele é um hegemon (sic; sem itálico ou aspas), palavra que nem o Aurélio nem o Houaiss registram” (p. 10) . E depois de informar que o livro citado explora o significado de hegemon (= líder) e de hegemonia, Conti acrescenta: “Criado por Aristóteles, o conceito cada vez mais se aplica ao mundo atual” (p. 10). Tem-se aí uma palavra grega com grande probabilidade de aclimatar-se; se o livro de Anderson for traduzido para o português, já será meio caminho andado para isso.

Enquanto as palavras transliteradas não são dicionarizadas, os tradutores da área de estudos clássicos costumam listá-las em glossários oferecidos como apêndices no final dos volumes.

Destaco o glossário anexado à tradução das Bacas de EurípidesEURÍPIDES. Bacas. Tradução de Torrano JAA. São Paulo: Hucitec, 1995., feita por JAA Torrano (1995FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975., p. 129), no qual aparecem termos do campo semântico do dionisismo tais como

  • Baca(s):  “cultora(s) de Baco”;
  • Baqueia:  festa e furor báquico;
  • Baqueuma:  festas ou mistérios de Baco; nébrida: “pele de corça”
  • tíaso:  “confraria celebradora de ritos cultuais de Dioniso”.

Entre eles há alguns já dicionarizados à época pelo Novo Dicionário de Aurélio B. de H. Ferreira, de 1975GRAJEW, O. Neymar, a desmedida. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 ago. 2017, Caderno A, p. 3.:

  • báquico:  “o que concerne a Baco” (cf. FERREIRAGRAJEW, O. Neymar, a desmedida. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 ago. 2017, Caderno A, p. 3., p. 183);
  • evoé:  “grito festivo com que se invocava Baco nas orgias” (cf. FERREIRAGRAJEW, O. Neymar, a desmedida. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 ago. 2017, Caderno A, p. 3., p. 594)
  • tirso:  “bastão entrelaçado com heras e pâmpanos [...].” (cf. FERREIRAGRAJEW, O. Neymar, a desmedida. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 ago. 2017, Caderno A, p. 3., p. 1382)

Vale notar que às vezes algumas dessas palavras constam do dicionário, mas com uma definição que não considera o significado específico delas em dado contexto grego. Veja-se a palavra nébrida, que ainda não estava dicionarizada quando Torrano publicou sua tradução, mas foi acolhida mais tarde pelo Houaiss (2005HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.) na forma “nébride” e definida erroneamente como “pele de gamo usada como veste pelas sacerdotisas do culto de Baco” [grifo meu]: a nébride era usada pelas bacantes, sacerdotisas ou não. Essa imprecisão acaba por justificar sua presença no glossário.

Outras palavras que apresentam definições imprecisas nos dicionários são “mênade” e “bacante”. O Novo Dicionário do Aurélio de 1975FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. (p. 910) apresenta “mênade” como sinônimo de “bacante”, para a qual oferece duas acepções (p. 172): “1. sacerdotisa de Baco; mênade; tíade. [grifo meu]; 2. mulher dissoluta, devassa, libertina”.

Posteriormente, o Houaiss (2005HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.) manterá essas duas acepções em “bacante” (p. 370), mas acrescentará uma novidade no verbete “mênade” (p. 1891, grifo meu): “1. ninfa campestre que participava das festas de Baco; bacante.; 2. mulher que se deixa levar por suas paixões, por seu temperamento, que é arrebatada, impetuosa”.

As imprecisões desses verbetes confundem um desavisado leitor da tragédia de Eurípides. Na verdade, as mênades, ou bacantes, não eram nem sacerdotisas, nem ninfas; eram as devotas de Dioniso, as seguidoras de seu culto.

O glossário da tradução dos Hinos Homéricos (RIBEIRO JR., 2010RIBEIRO JR, W. A. (Org.) Hinos Homéricos. Tradução, notas e estudo de Edvanda Bonavina da Rosa et al. São Paulo: Edunesp, 2010., p. 537ss) apresenta as mesmas qualidades e vícios. Tem-se uma lista de palavras transliteradas não dicionarizadas como fórminx (espécie de lira) e mégaron (amplo salão central dos palácios micênicos), ao lado de outras já dicionarizadas a contento, como ambrosia, moira, musa, néctar. Mas há aquelas insuficientemente definidas; um bom exemplo é aqueu, para a qual o Houaiss (2005HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001., p. 267) apresenta duas acepções: “1. relativo aos aqueus, um dos quatro ramos do povo grego antigo, ou indivíduo dos aqueus; 2. relativo à Acaia (antiga Grécia), ou o seu natural ou habitante”. Contudo, nenhuma delas contempla o sentido que ela tem na poesia homérica, informado pelo glossário: “um dos nomes coletivos utilizados por Homero para referir-se aos gregos” (RIBEIRO JR., 2010RIBEIRO JR, W. A. (Org.) Hinos Homéricos. Tradução, notas e estudo de Edvanda Bonavina da Rosa et al. São Paulo: Edunesp, 2010., p. 538).

5. Neologismos e regionalismos

Traduções favorecem os neologismos, que, se bem construídos, merecem aplausos. Destaco o primeiro neologismo que vi numa tradução do grego: o verbo hinear, criado por Torrano (1984HESÍODO. Teogonia. Tradução e estudo de Torrano JAA. São Paulo: Roswitha Kempf, 1984., p. 129) para traduzir o grego hymneuo, “entoar um hino” (em louvor de alguém), que ocorre no verso 11 da Teogonia de Hesíodo: “hineando Zeus porta-égide”.

Adotei tal neologismo, economicamente perfeito, na tradução do primeiro verso do Hino a Hermes (“Hineia a Hermes, Musa”), para a mencionada coletânea de Hinos Homéricos. O verbo hymneuo tem emprego formular nos Hinos Homéricos, aparecendo em quase todos eles. Contudo, nem todos os tradutores da coletânea adotaram o referido neologismo; muitos preferiram seguir a tradição e traduzi-lo por “cantar”, solução empobrecedora, pois dilui a informação a respeito do gênero poético, o hino, presente na palavra grega e preservada no neologismo.

Regionalismos também despontam como soluções tradutórias. Em minha tradução das fábulas de Esopo (2014ESOPO. Fábulas completas. Tradução de Maria Celeste Consolin Dezotti. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.), a palavra skoleks da fábula 268 foi traduzida por um regionalismo não dicionarizado. Skoleks é “verme”, podendo ser “minhoca” e também “larva” de inseto ou de matéria em decomposição. Como a fábula situa a cena sob uma figueira, imaginei a situação banal de figos maduros e bichados caídos no chão, e entendi o skoleks personagem da fábula, que inveja o tamanho de uma cobra que estava ali dormindo, como um desses bichos dos figos. Acabei traduzindo skoleks por “bigato”, palavra corriqueira em minha região interiorana paulista para designar o verme que se aloja nas frutas e verduras. Embora de limitada circulação, essa foi a solução mais adequada que encontrei e decidi documentá-la em texto escrito. A surpresa gratificante veio mais tarde, no email de um gentil leitor4 4 TRIGO, F. J. R. Bigato [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <celeste@ fclar.unesp.br> em 30 jan. 2016. , do qual transcrevo abaixo alguns parágrafos:

[...] Suas escolhas lexicais muito me agradaram e, dentre elas, a palavra bigato. Sei que, ao terminar a leitura, buscando mais informações sobre a publicação, achei um vídeo promocional da editora, infelizmente fechada, em que a sra. a comenta brevemente e o “bigato” aparece em sua fala [...]. Sobressaltado, corri ao meu Houaiss (o bom, de 2001JOUANNO, C. Vie d’Ésope. Paris: Les Belles Lettres, 2006.) e, realmente, nada de “bigato”.

Desejei, então, fazer-te um relato sobre o meu contato anterior com esse tão interessante vocábulo.

Nasci e vivo na cidade de São Paulo há 45 anos. Minha infância foi de pouquíssimas viagens, assim, as que fiz ficaram cristalizadas na memória. Em 1980, minha mãe nos levou pela primeira vez a uma cidadezinha do interior, onde pudemos passar uma semana num sítio de um parente de uma amiga dela do trabalho. Nunca tinha visto aquela vida de perto, experimentei e aprendi um monte de coisas, dentre elas a palavra bigato que as crianças de lá me ensinaram quando o conheci dentro das goiabas que comíamos direto do pé.

[...] Depois de bem maduro, aprendi com minha mulher, de pais nordestinos, a palavra tapuru, que está no Houaiss, mas que não é a mesma coisa. Entendo que o bigato é larva de fruta, “comestível”, diferente do tapuru, larva da carne podre, muito mais asqueroso.

Assim, cara profa., penso que usaste o termo mais específico e adequado, pois na fábula havia uma figueira, ele não era uma larva qualquer. [...]

Desculpe-me por importuná-la em seus afazeres, mas a emoção provocada pelas coisas que senti tornou irresistível escrever-te. Em tempo, a “cidadezinha qualquer” de 1980 é Tabatinga, perto de onde leciona.

6. Conclusão

Este estudo ressalta o quanto as traduções contribuem tanto para o conhecimento da língua de partida, como para a ampliação do léxico da língua de chegada. O exame cuidadoso das palavras da língua de partida em contexto pode revelar, sobretudo no tocante às chamadas línguas mortas, aspectos semânticos até então desapercebidos, ao mesmo tempo que nos possibilita recuperar certa vivacidade do uso entre os falantes nativos. Por outro lado, os tradutores, na busca de soluções que transportem para a língua de chegada os efeitos semânticos do original, não hesitam em criar neologismos, transliterar palavras e usar regionalismos, promovendo dessa forma a ampliação do léxico. Tais resultados devem por certo constar dos dicionários dessas línguas em interação.

Nas traduções de textos greco-latinos, glossários se justificam quando esclarecem significados de termos transliterados ou daqueles que, embora já dicionarizados na língua de chegada, carregam uma acepção não contemplada pelos dicionaristas. Contudo, quando repetem palavras suficientemente definidas nos dicionários, prestam um desserviço para a lexicografia. Cabe, portanto, à moderna lexicografia considerar a existência desses glossários e formular critérios para definir o que vale a pena ser incluído na nomenclatura dos dicionários.

Outro aspecto a destacar-se é a necessidade de incluírem-se traduções nos corpora utilizados na elaboração de dicionários. Essa prática permitiria documentar a circulação de um acervo importante de palavras, entre elas neologismos, regionalismos e mesmo arcaísmos ou palavras em desuso, que as soluções tradutórias vivificam.

Lexicografia e tradução integram, portanto, um movimento cíclico: do dicionário para o tradutor e da tradução para o dicionário.

Referências

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  • STEVENSON, R. L. A ilha do tesouro Tradução de Alsácia Fontes Machado. São Paulo: Círculo do Livro, [1973].
  • STEVENSON, R. L. A ilha do tesouro Tradução de Duda Machado. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997.
  • 1
    Até então a versão popularizada entre nós era a do erudito bizantino Máximo Planudes, graças à tradução francesa de La Fontaine, que manteve a tradição de apresentá-la como preâmbulo de suas próprias fábulas.
  • 2
    A citação reproduz o uso de aspas duplas e aspas simples usada pela tradutora: a primeira delimita discursos diretos reproduzidos pelo narrador; a segunda, discurso direto citado pela personagem Esopo.
  • 3
    A conotação sexual de “ramus” permanece em nossa palavra “rameira”.
  • 4
    TRIGO, F. J. R. Bigato [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <celeste@ fclar.unesp.br> em 30 jan. 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2018
  • Aceito
    29 Jun 2018
  • Publicado
    Set 2018
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