Resumo
Este artigo traz resultados de uma pesquisa envolvendo um estudo sobre normas linguísticas híbridas em artigos jornalísticos do New York Times, traduzidos, para o português, e veiculados no site UOL. Segundo Faraco (2008) e Bagno (2012), há uma diferença entre a norma padrão e a norma culta, sendo a primeira aquela que reúne regras que prescrevem formas linguísticas a serem seguidas de acordo com um modelo idealizado de língua, mas difícil de ser seguido pela maioria dos usuários; e a segunda, aquela que reúne o conjunto de formas linguísticas que são, de fato, empregadas por muitos escreventes, sendo, portanto, mais acessíveis intuitivamente, embora não aceitas pela tradição gramatical conservadora representada pela norma padrão, comumente divulgada em compêndios gramaticais e manuais de estilo. Pretende-se avaliar se seria possível afirmar que textos jornalísticos traduzidos do inglês, semelhante ao que já comprovadamente ocorre com textos jornalísticos originalmente escritos em português, são igualmente permeáveis a formas linguísticas não abonadas pela norma padrão.
Palavras-chave
Tradução; Textos jornalísticos; Normas linguísticas híbridas
Abstract
This article presents results from a study on hybrid linguistic norms in translated articles from New York Times made available on UOL website. According to Faraco (2008) and Bagno (2012), there is a difference between norma padrão (a prescriptive norm, but not based on usage) and norma culta (an alternative, usage-based norm). The first one combines normative rules that determine correct linguistic forms, but generally hard to follow by most users, while the second one brings together a set of linguistic forms frequently employed by users, because they are more intuitively accessible, although not subscribed by the conservative standard norm (norma padrão) commonly taught in grammar books and in writing style manuals. The research was meant to verify if journalistic texts translated from English have been as permeable to linguistic forms not subscribed by the prescriptive standard norm, as the ones originally written in Portuguese have proven to be.
Keywords
Translation; Journalistic texts; Hybrid linguistic norms
1. Introdução
O objetivo deste artigo é analisar como se estabelece a relação entre norma culta e norma padrão, tal como as definem Faraco (2008)Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105. e Bagno (B)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009., na tradução de textos que, por um lado, não são literários, mas, também, por outro lado, não são técnicos ou científicos, como é o caso dos textos jornalísticos. Nesse sentido, busca-se identificar quais ocorrências linguísticas tipicamente associadas à norma culta, mas geralmente não abonadas pela tradição gramatical conservadora representada pela norma padrão, são empregadas nos artigos traduzidos do jornal New York Times no site UOL.
Em vista da análise dos resultados obtidos, pretende-se averiguar se seria possível afirmar que textos jornalísticos traduzidos do inglês, semelhante ao que já comprovadamente ocorre com textos jornalísticos originalmente escritos em português, são igualmente permeáveis a formas linguísticas não abonadas pela tradição gramatical conservadora. A relevância deste projeto se observa na possibilidade de o texto traduzido ser submetido a um processo normativo de revisão mais sistemático e rigoroso, pelo fato de ser derivado de um texto estrangeiro. É de grande utilidade, ainda, para os tradutores em formação, observar como textos formais podem dar espaço, sem perdas, para estruturas híbridas que, embora não prescritas pelo aparato normativo, são consagradas pelo uso frequente por usuários altamente letrados do português brasileiro.
2. Norma padrão
A concepção de uma norma padrão surge pela primeira vez como reflexo da unificação política dos Estados Centrais Modernos que se constituíam na Europa após o período feudal. Com o objetivo de atenuar a diversidade linguística regional e social dos cidadãos, apagaram-se as marcas dialetais mais perceptíveis ao ser traçado um padrão de língua por meio da elaboração de instrumentos normativos, como as gramáticas e os dicionários. Assim, a norma padrão se trata menos de uma variedade da língua, e mais de um abstrato construto histórico-social e cultural usado como referência para que se promova um processo de uniformização da língua. Em seu artigo Norma linguística, hibridismo e tradução, Bagno (2012)______. (B). Norma linguística, hibridismo & tradução. Traduzires, v. 1, n. 1, (2012)1: 9-32. esclarece:
Outra distinção importante é a que retira a norma-padrão do universo de variedades linguísticas reais do português brasileiro. A norma-padrão não é um modo de falar: como o próprio termo padrão implica, trata-se de um modelo de língua, um ideal a ser alcançado, um construto sociocultural que não corresponde de fato a nenhuma das muitas variedades sociolinguísticas existentes em território brasileiro. Por ser uma forma ideal, no sentido platônico do termo, a norma-padrão não pertence ao mundo dos fenômenos, mas exclusivamente ao mundo das ideias, sendo, portanto, um ser de razão.
(Bagno (B______. (B). Norma linguística, hibridismo & tradução. Traduzires, v. 1, n. 1, (2012)1: 9-32.) 25).
Consequentemente, por ter objetivo normativo, regulamentador, coercitivo, prescritivo, na expressão norma padrão, norma assume o sentido de normativo, e não o sentido de normal, comum, frequente.
No Brasil, a codificação da norma padrão na segunda metade do século XIX, diferentemente do processo padronizador ocorrido nos países europeus, não se norteou pela norma culta brasileira – que será conceituada e discutida mais à frente – mas, sim, pelo modelo português de escrita característico de alguns escritores do romantismo (Faraco 78Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105.). Quem detém o controle desse processo de codificação da norma padrão é um grupo muito restrito de pessoas, a elite altamente letrada e conservadora, que não soube apreciar o caráter mestiço e multirracial do país, e que idealizava o conceito de viver num país branco e europeu, conforme explica Faraco (79)Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105..
A medida de codificar uma norma padrão não teve como objetivo principal, no Brasil pós-colonial, atenuar uma vasta e profunda dialetação, uma vez que as línguas e os dialetos falados antes da colonização – e da imposição da língua dos colonizadores – eram muito mais ricos em diversidade. Diferentemente da situação política da Europa, a elaboração da norma padrão brasileira se deu num momento em que o país já havia se unificado como Estado, ou seja, após o processo de independência. Dessa maneira, o objetivo primordial do projeto da norma padrão era, na verdade, suprimir as variedades do português popular, começando pelas rurais, depois as rurbanas, e, mais tarde, a própria norma culta.
No entanto, os usos e formas linguísticas classificados como ideais, ou seja, idealizados na norma padrão, são complexos e artificiais, e pouco têm a ver com as variedades que soam naturais aos ouvidos do falante nativo do português brasileiro. “Por ser um construto sociocultural e nunca uma variedade linguística real, a norma-padrão é reconhecida pelos falantes, mas nunca totalmente conhecida por eles” (Bagno (B)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009. 26). Portanto, como expõe Bagno (B)______. (B). Norma linguística, hibridismo & tradução. Traduzires, v. 1, n. 1, (2012)1: 9-32., a estrutura imposta pela norma padrão é contraintuitiva, vai contra a intuição linguística do falante, a ponto de haver um grande estranhamento por parte do interlocutor – que conhece a gramática real de sua língua com base empírica, sabe como ela funciona na comunicação prática naquele idioma – quando esse falante enuncia com o emprego dessa norma, salvo em contextos específicos, geralmente em meio profissional ou acadêmico, nos quais se exige, por convenção social, linguagem formal.
3. Norma culta
De acordo com Faraco (2008)Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105., o melhor modelo até o momento proposto para descrever e caracterizar as variedades linguísticas faladas no português do Brasil foi postulado por Stella Maris Bortoni-Ricardo (2005 apud Faraco 44) e envolve três aspectos: o rural-urbano, o de oralidade-letramento e o da monitoração estilística. Nesse sentido, pode-se classificar a norma culta como a variedade de uso corrente, comum, entre falantes que vivem em meio urbano, com escolaridade superior completa em situações relativamente mais monitoradas.
Existe uma forte influência das variedades linguísticas hegemônicas na mídia, que são de uso comum pela parte da população que vive no meio urbano, de classe social média-alta, que, por isso, pode garantir para si bons níveis de escolaridade, tendo, no mínimo, ensino médio completo, e acesso à cultura escrita. Esse tipo de variedade está num cruzamento entre o aspecto urbano e o aspecto do letramento. Essa variedade é designada por Dino Preti (1997) como linguagem urbana comum. O terceiro aspecto, de monitoramento, varia de menor a maior grau, sendo dois exemplos práticos dessa variação a linguagem “mais descontraída” e menos monitorada dos programas de humor e telenovelas, e a linguagem “mais séria” e monitorada de noticiários (Faraco 44-45Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105.).
A norma culta brasileira falada é muito semelhante aos estilos mais monitorados da linguagem urbana comum, como mostra Preti com os dados do Projeto NURC, para surpresa dos estudiosos que acreditavam que essa norma se assemelhava à tradicional norma padrão.
Essa constatação empírica causou surpresa em alguns estudiosos dos dados do NURC. Imaginavam eles que os falantes cultos, nas situações de fala mais monitoradas, tinham uma variedade bem distinta da linguagem urbana comum, ou seja, acreditavam eles que, na norma culta falada, os falantes seguiam estritamente, por exemplo, os preceitos da tradição gramatical normativa.
(Faraco 46Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105.).
E é essa norma, a norma culta falada, que exerce uma grande influência no modo como os jornalistas brasileiros vêm redigindo seus textos em língua portuguesa, como um modo de garantir uma maior fluidez à leitura do texto, chamar atenção para o fato noticiado, e não para a forma estrutural do texto que o narra; e, consequentemente, aproximar-se do leitor e abranger um número maior de leitores com uma linguagem mais compreensível.
4. Hibridismo de normas: norma padrão e norma culta
O que ocasiona o emprego da norma híbrida, de acordo com Marcos Bagno (B)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009., é uma zona de tensão na qual se encontram todos os falantes, e principalmente os falantes cultos, no momento de uma produção escrita. São pressionados, por um lado, pelo desconhecimento integral do aparato normativo, ou seja, a compreensível grande dificuldade de dominar todas as regras e prescrições minuciosas da norma padrão, e, por outro, pela fortíssima intuição linguística, que faz com que as produções linguísticas do falante do português brasileiro tendam a se aproximar muito mais da norma culta falada do que da norma padrão. Os trechos a seguir foram selecionados e analisados por Bagno (B)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009. e retratam o emprego da norma híbrida em textos publicados em jornais brasileiros e redigidos por falantes cultos:
(1) As falhas operacionais na ocupação do Complexo do Alemão derivaram da falta de conhecimento do fenômeno e isso não significa acordo com o crime organizado. O diversionismo em curso só aproveita ao crime organizado. Ele quebra a confiança dos cidadãos nas forças do Estado. Durante anos assistiu-se, nas correlações entre associações criminosas e membros escravizados da comunidade, um vínculo de solidariedade constituído pelo medo. E tal vínculo acabou de ser desfeito com as retomadas.
(Maiero Vitch 31 apud Bagno 27, grifos Marcos Bagno).1 1 Maierovitch, W. F., Carta Capital, no 625, 8/12/2010, p. 31.
Nesse trecho, consta uma construção de sintaxe clássica: “aproveita ao crime organizado”. Mas, adiante no mesmo trecho, consta uma construção fortemente condenada pela tradição gramatical normativa – “assistiu-se um vínculo de solidariedade” – na qual o verbo assistir, de acordo com a prescrição da norma padrão, deveria ser regido pela preposição a, por ter sentido de observar, presenciar, testemunhar. Sendo assim, a forma correta de acordo com os preceitos da norma padrão seria “assistiu-se a um vínculo de solidariedade”. Ainda, a construção “assistiu-se” precedida de “durante anos”, advérbio temporal, é também condenada pela prescrição normativa, uma vez que o advérbio exerce uma força atrativa na partícula pronominal, fazendo com que a construção correta de acordo com a norma padrão seja “durante anos se assistiu”. Vale lembrar que o redator desse trecho é, como ressalva Bagno, um jurista renomado, desembargador do Tribunal de Justiça e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais: um falante altamente letrado.
5. Metodologia da pesquisa
Com o objetivo de analisar como se estabelece a relação entre norma padrão e norma culta, tal como são definidas por Faraco (2008)Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105. e Bagno (B)______. (B). Norma linguística, hibridismo & tradução. Traduzires, v. 1, n. 1, (2012)1: 9-32., na tradução de textos jornalísticos, usou-se o sistema de pesquisa eletrônica da Folha Online para a busca de alguns hibridismos altamente condenados pela tradição normativa selecionados e apresentados por Bagno (A).
O corpus linguístico da pesquisa delimitou-se à variada seção de textos traduzidos do inglês, da plataforma eletrônica do jornal estadunidense The New York Times, para o português brasileiro, disponibilizados na plataforma UOL da Folha de S. Paulo.
6. Resultados: o hibridismo na tradução jornalística
6.1 AGRADAR
Agradar, como verbo transitivo indireto, exige preposição a, de acordo com a Gramática Normativa, e assume sentido de “deixar alguém contente, satisfeito”. O uso correto é como em “A notícia não agradou ao povo”, “A notícia não lhe agradou” (Bechara 423Bechara, E. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.). No entanto, como verbo de transitividade direta, agradar quer dizer “fazer carinho, afago em alguém”. Essa distinção, contudo, não é natural para a intuição linguística do falante do português brasileiro, que passa a usar esse verbo cada vez mais com objeto não preposicionado, como transitivo direto. Agradar é um dos verbos cuja regência vem passando por um processo de alteração, e é um dos alvos de crítica assídua por parte dos puristas da língua. Entretanto, adicionar partícula preposicional a seu objeto não é uma construção natural nem mesmo para falantes altamente letrados cujo ofício exige linguagem rigorosamente monitorada, como os tradutores de notícias do jornal Folha de São Paulo:
6.2 ALTERNATIVA
Baseando-se na etimologia das palavras para prescrever o que é correto na língua, os puristas acusam e condenam o suposto pleonasmo que é falar, ou “pior”, escrever, outra alternativa, uma vez que a palavra alternativa é constituída pelo elemento alter-, do latim, que já traria o sentido de “outro”. Segundo Bagno (2009, p. 77)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009., o significado de alternativa modificou-se com o tempo, de “uma de duas ou mais possibilidades pelas quais se pode optar” para um sentido mais genérico, de “opção”. Assim é naturalmente feita a construção com a palavra alternativa: precedida da palavra “outra”, o que pode ser observado nos textos traduzidos:
6.3 ATRAVÉS DE
Embora seja muito mais frequente e até mesmo amplamente abonado pelos dicionários, o uso de através de com sentido de “por meio de”, “mediante”, é insistentemente condenado pelos puristas, que afirmam que essa locução somente pode ser usada quando remete à ideia de “atravessar”, de “passar de um lado para o outro”. Desse modo, não há problema em “olhar através da janela”, “passar através da porta”, mas jamais se pode “prosperar através de esforço”, “aprender através de livros” ou “enviar algo através de alguém”, já que essas situações não abrangem a noção de “atravessar”. O prescrito, para esses casos, é por meio de mediante, etc. (Bagno (A)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009. 84). O sentido de “atravessar” deixou de ser, por conseguinte, o único que através de implica, e foi, em termos de frequência de uso, ultrapassado pelo sentido de “instrumento para se realizar uma tarefa; recurso para se conseguir algo”. Nas ocorrências do uso híbrido dessa locução em traduções de textos jornalísticos, observou-se que a maioria corresponde a construções com through. Um dos resultados, porém, foi em correspondência à construção com by, no sentido de “by means of”:
6.4 IMPLICAR
De acordo com Neves (422 apud Anjos et al. 31), é possível que a semelhança semântica com o verbo resultar acarrete a tão frequente ocorrência híbrida do verbo implicar como transitivo indireto, cujo complemento é precedido por em. Já na metade do século passado, Rocha Lima (524 apud Anjos et al. 31) observara que estava “ganhando foros de cidade na língua culta a sintaxe implicar em”. O verbo implicar tem acepções diversas que requerem regências distintas. São exemplos: implicar com, com sentido de “provocar, amolar – alguém –”; implicar(-se) em, com sentido de “envolver – a si mesmo ou alguém – em algo” ou “comprometer-se”; implicar como verbo intransitivo, com sentido de “achar ruim, ficar contrariado”.2 2 Acepções extraídas do dicionário on-line Caldas Aulete. Acesso em 27/07/2017. No entanto, com o sentido de “pressupor; acarretar, provocar – algo –”, implicar é, segundo o prescrito pelos instrumentos normativos, verbo transitivo direto (Anjos et al.31Anjos, M. et al. Regência verbal: norma e uso. Teresina: EDUFPI, 2014.). O uso prescrito pela norma padrão, entretanto, não é natural para os falantes cultos brasileiros, conforme é mostrado nas nos exemplos abaixo:
6.5 OBEDECER
No sentido de “sujeitar-se, submeter-se”, a norma padrão prescreve que obedecer e desobedecer são verbos transitivos indiretos, cujo complemento é iniciado pela preposição a. O emprego na norma culta, contudo, é de complemento não preposicionado, como verbo transitivo direto: obedecer algo/alguém (Anjos et al. 27Anjos, M. et al. Regência verbal: norma e uso. Teresina: EDUFPI, 2014.).
De acordo com a gramática de Cunha e Cintra (546)Cintra, L.; Cunha, C. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 302., a transitividade de obedecer na norma culta seria correspondente ao “antigo regime TRANSITIVO DIRETO do verbo”, observável em textos de escritores do século passado, como no trecho: “Meu tio Campelo ordenou-me e eu o obedeço”.3 3 Alencar, J. O sertanejo. 1875. Luft (200) comenta, no verbete do dicionário, que no português antigo e clássico também ocorre desobedecer alguém/algo “(desobedecê-lo [...]), sintaxe que continua na linguagem familiar e popular”.
É a essa regência que tendem os usos cultos do verbo obedecer. Anjos et al. (28), com base na análise de suas fontes – Guia de usos do português, Dicionário de usos do português brasileiro e corpus selecionado – conclui que o uso culto persiste e torna-se cada vez mais presente na língua escrita culta muito monitorada. Os textos traduzidos abaixo comprovam essa frequência:
6.6 REGÊNCIAS DIFERENTES
Segundo Bechara (569-570 apud Bagno (A))Bechara, E. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004., não se deve fazer construção com dois “termos de regência de natureza diferente”, ou seja, não se deve dizer “entrei e saí de casa”, mas, sim, “entrei em casa e dela saí (ou equivalente)”, considerando que entrar tem complemento preposicionado por em, enquanto sair, por de. Os excertos abaixo, no entanto, demonstram a frequência de construções de mesmo complemento com regências diferentes:
6.7 SE (SUJEITO DE INFINITIVO)
O Manual de redação e estilo de O Estado de S. Paulo prescreve:
- Não se usa o pronome se:
-
Em expressões como difícil de, fácil de, bom de, ruim de, passível de, duro de, agradável de etc., que já têm valor passivo (difícil de ser feito, fácil de ser entendido): fácil de entender, difíceis de vender, bom de fazer, ruim de tomar, passível de errar, duro de roer, agradável de recordar.
-
Quando o conjunto pronome mais infinitivo equivale a um adjetivo (é de admirar = é admirável): Foi de espantar (espantosa) tamanha ousadia. / Eram de esperar (esperadas) melhores relações entre os dois países. [...] / Serão de temer novos retrocessos. [...] Igualmente: de notar, de impressionar, de compreender, de tolerar, de acreditar. No negativo, usa-se a mesma forma [...]
-
Quando não tem função alguma na oração: É preciso pensar (e não “pensar-se”) nisso. [...] / Esta é uma forma de fortalecer o partido.
Bagno ((A) 296)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009. contra-argumenta que não existe “valor passivo” algum nas expressões mencionadas no item 1, formadas por um adjetivo seguido da preposição de e do pronome se. Segundo o autor, é mais uma tentativa de instaurar um mito gramatical. Citando a gramática de Cunha & Cintra (475)Cintra, L.; Cunha, C. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 302., complementa que, para diversos filólogos e linguistas, “o infinitivo não apresenta em tais construções o sentido passivo, que costumam atribuir-lhe os gramáticos”. Bagno cita, ainda, a gramática de Bechara (222, nota 1)Bechara, E. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.: “não se pode falar em voz passiva diante de linguagem do tipo osso duro de roer”. Assim, quem diz ou escreve “lugar bom de se morar” não cogita, em momento algum, que poderia ter dito ou escrito “lugar bom de ser morado”, dada a não naturalidade desse uso na língua portuguesa. De acordo com o linguista, trata-se de uma construção na voz ativa em que o se é um pronome-sujeito, sujeito de um infinitivo verbal.
Para explicar o uso de se como pronome-sujeito indeterminado, Bagno ((A) 301)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009. lembra o caso particular dos infinitivos pessoais, tais como cantares, cantarmos. Segundo o autor, se é permitido dizer “É hora de NÓS FAZERMOS o inventário”, também é dizer “É hora de SE [= a gente] FAZER o inventário”, e quando se diz “para nós entendermos”, também é possível dizer “para se entender”. Os trechos traduzidos apontam para a norma, de fato, baseada no uso:
6.8 VISAR
O uso do verbo visar na norma culta é incansavelmente condenado pelos puristas, que afirmam que, na acepção de “ter em vista, ter por objetivo”, “pretender”, só pode ser empregado com complemento preposicionado por a, como em “a operação visava ao controle do território inimigo” ou “a medida do governo visa a corrigir as imperfeições do sistema cambial” (Bagno (A)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009.312).
Encontram-se, no dicionário Aurélio Século XXI (apudBagno (A) 313)Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009., trechos para exemplificar a acepção 4 do verbo visar: “ter por fim ou objetivo; ter em vista; mirar a”. Dois deles são: “Visando estimular a vaidade do seu aliado”4 4 (Antônio Sales, Aves de Arribação, p. 214) , e “Não visa [o Manual de estilo]... fabricar escritores”.5 5 (José Oiticica, Manual de Estilo, p. 8) Para o dicionarista, “os exemplos [...] poderiam facilmente ser multiplicados. Não há razão, pois, para condenar esta regência” e admitir somente a construção como transitivo indireto com preposição a, como o fazem aqueles que disseminam o preconceito linguístico.
Nas traduções do UOL/Folha de S. Paulo, a construção como verbo transitivo direto também é comum, derivando de diferentes correspondentes do texto original:
7. Considerações finais
Apesar da possibilidade de a tradução ser submetida a um processo normativo de revisão mais sistemático e rigoroso – dado que deriva de um texto estrangeiro – textos jornalísticos traduzidos do inglês, semelhante ao que já comprovadamente ocorre com aqueles escritos originalmente em português, são igualmente permeáveis a formas linguísticas não abonadas pela tradição gramatical normativa. Os artigos traduzidos são, assim, mais uma expressão do hibridismo entre norma padrão e norma culta em textos escritos por falantes cultos. Ainda, a descrição das formas cultas em certas gramáticas e dicionários desqualifica sua condenação pelos puristas da língua.
A norma padrão distancia-se mais que razoavelmente dos usos reais no português brasileiro, parcialmente por se basear na linguagem literária do português europeu do século passado. Dado seu elevado grau de abstração, nem mesmo os tradutores da Folha de S. Paulo, profissionais de uma instituição midiática que reforça o preconceito linguístico e prescreve em manuais de redação o que é correto na língua escrita, têm pleno domínio sobre a norma padrão na alta monitoração de seus textos; o que, junto do ponto de vista descritivo presente em um considerável número de gramáticas e dicionários renomados, consagra variadas formas cultas e desqualifica o argumento segregacionista do pedantismo embasado em preconceito linguístico.
Além disso, é notável que as formas linguísticas da norma culta, intuitivamente consagradas pelo uso, acabam se tornando paradigmas que se firmam como referência de tradução para termos e estruturas variados da língua estrangeira. É o que se pode observar, com o exemplo de “agradar”6 6 O mesmo ocorre com os outros termos analisados na pesquisa, mas que, pormotivo de limitação de espaço, não puderam ser exibidos neste trabalho. , no quadro abaixo, extraído desta pesquisa:
Os resultados observados na pesquisa apontam para uma questão fundamental: a necessidade de que os tradutores (em formação) tenham consciência da importância de se conhecerem as diferentes formas de expressão da língua portuguesa formal escrita que são, de fato, não somente alternativas válidas, mas também amplamente consagradas pelo uso, a despeito das prescrições da norma padrão.
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1
Maierovitch, W. F., Carta Capital, no 625, 8/12/2010, p. 31.
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2
Acepções extraídas do dicionário on-line Caldas Aulete. Acesso em 27/07/2017.
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3
Alencar, J. O sertanejo. 1875.
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4
(Antônio Sales, Aves de Arribação, p. 214)
-
5
(José Oiticica, Manual de Estilo, p. 8)
-
6
O mesmo ocorre com os outros termos analisados na pesquisa, mas que, pormotivo de limitação de espaço, não puderam ser exibidos neste trabalho.
Referências
- Anjos, M. et al. Regência verbal: norma e uso Teresina: EDUFPI, 2014.
- Bagno, M. (A). Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009.
- ______. (B). Norma linguística, hibridismo & tradução. Traduzires, v. 1, n. 1, (2012)1: 9-32.
- Bechara, E. Moderna gramática portuguesa 37 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
- Cintra, L.; Cunha, C. Nova gramática do português contemporâneo Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 302.
- Faraco, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós São Paulo: Parábola, 2008. p. 22-105.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 2019 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019
Histórico
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Recebido
10 Jun 2019 -
Aceito
08 Ago 2019