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CHARLES WIENER: UMA RELAÇÃO ENTRE TRADUÇÃO E RELATO DE VIAGEM

CHARLES WIENER: A RELATIONSHIP BETWEEN TRANSLATION AND TRAVEL WRITING

Resumo

Trata-se de uma análise de um capítulo da obra Amazone et Cordillère, do viajante Charles Wiener, publicada originalmente na revista francesa Journal de Voyage, na segunda metade do século XIX. Para tanto, parti da relação entre tradução e relato de viagem e como essa relação afeta a língua e a cultura dos viajantes (Cronin 2000). Para analisar Amazone et Cordillère baseei-me no paradigma da descrição efetuada pela tradução etnográfica, isto é, no esforço de transformar o olhar do viajante em escrita (Laplantine 1996) e na sua relação com a tradução interlingual (Jakobson 2011). Quanto as estratégias de tradução utilizadas pelo autor-viajante, segui o conceito de Culture-specific Items desenvolvido por Franco Aixelá (1996). Ao final, pude concluir que dentre as estratégias de tradução, as mais utilizadas são: a repetição, a explicação intratextual e a explicação extratextual.

Palavras-chave
Tradução Etnográfica; Charles Wiener; Amazonas

Abstract

This texte is an analysis of a chapter of the book Amazone et Cordillère, by the traveler Charles Wiener, originally published in the French magazine Journal de Voyage, in the second half of the 19th century. To do so, I started with the relationship between translation and travel writing and how this relationship affects the language and culture of travelers (Cronin, 2000). To analyze Amazone et Cordillère, I based myself on the paradigm of description developed by ethnographic translation, that is, on the effort to transform the traveler’s gaze into writing (Laplantine, 1996) and on its relationship with interlingual translation (Jakobson 2011). As for the translation strategies used by the traveling-author, I followed the concept of Culture-specific Items developed by Franco Aixelá (1996). This analysis shows that among the translation strategies, the most used are: repetition, intratextual explanation and extratextual explanation.

Keywords
Ethnographic Translation; Charles Wiener; Amazonas

Inicialmente, gostaríamos de ressaltar que o texto que traduzimos foi abordado do ponto de vista da relação entre tradução e relato de viagem e como essa relação afeta a língua e a cultura dos viajantes (Cronin, 2000Cronin, Michael. Across the lines: travel, language, translation. Irlanda: Cork University Press, 2000.), somando-se assim as pesquisas que vimos realizando com textos de naturalistas-viajantes da segunda metade do século XIX, tais como os franceses Charles Expilly e Paul Walle.

Hoje, Charles Wiener é praticamente desconhecido, no entanto, dentre os viajantes que percorreram o Peru, na segunda metade do século XIX, ele é, segundo Pascal Riviale (2000)Riviale, Pascal. Los viajeros franceses en busca del Perú Antiguo (1821-1914). Peru: Institut français d’études andines, Fondo Editorial de la Pontífica Universidad Católica del Perú, 2000., um dos que mais aparece nas antologias de viagem.

Charles Wiener era considerado arqueólogo, geógrafo e, acima de tudo, diplomata. Sua fama deve-se, sobretudo, a grande quantidade de objetos (cerca de 4 mil) que trouxe do Peru e da Bolívia – bastante proveitosa aos museus franceses –, e a publicação pela Editora Hachette, em 1880, de Pérou et Bolivie, relato de viagem lindamente ilustrado.

Austríaco de nascimento, abandona sua terra natal ainda muito jovem e adota cidadania francesa. Torna-se professor de alemão em um liceu parisiense e, em 1875, é um dos primeiros a beneficiar de uma missão científica acordada pela Comissão das Viagens do Ministério da Instrução Pública da França.

Ainda de acordo com Riviale (2000, p. 103)Riviale, Pascal. Los viajeros franceses en busca del Perú Antiguo (1821-1914). Peru: Institut français d’études andines, Fondo Editorial de la Pontífica Universidad Católica del Perú, 2000., a solicitação de Wiener foi encaminhada dia 18 de junho de 1875, a Comissão deu seu aval em 30 de junho e a resolução foi publicada em 9 de julho do mesmo ano:

Artículo 1

Se encarga al señor Charles Wiener, profesor de alemán em el Liceo Fontanes, una misión al Perú y Bolivia, para investigaciones relativas a la etnografía y arqueología americana.

Artículo 2

El señor Ch. Wiener recibirá para la misión, que deberá durar 14 meses, una subvención de 14 000 francos, de los cuales 7 000 corresponderán al ejercício de 1875 y 7 000 al ejercício de 1876.

(Riviale, 2000Riviale, Pascal. Los viajeros franceses en busca del Perú Antiguo (1821-1914). Peru: Institut français d’études andines, Fondo Editorial de la Pontífica Universidad Católica del Perú, 2000., p. 103)

A rapidez de tal decisão surpreende, pois, a quantia dedicada a ela é relativamente grande. Théodore Ber (arqueólogo francês), que foi encarregado, no mesmo dia, de missão idêntica a de seu confrade, recebeu apenas mil francos. Alguns estudiosos, como Riviale e Verneau, dizem que tal fato se deve as relações de Wiener com pessoas importantes, como por exemplo, o senador L. Angrand:

Devido a um desvio na rota, a primeira parada de Charles Wiener rumo ao Peru é Santa Catarina, no Brasil, onde estudará os índios Sambaquis. Daí segue para o Peru, aonde chega no final de 1876.

Percorreu, durante sua missão, cerca de 15 mil quilômetros, atravessando dezenas de cordilheiras. Wiener traz consigo, quando de seu retorno à França, perto de 4 mil objetos etnográficos e arqueológicos, conforme mencionado acima. Ao longo de sua missão, revelou lugares até então desconhecidos e contribuiu para um melhor conhecimento de outros, ainda pouco explorados.

Assim como Alcide d’Orbigny – naturalista, realizou viagens científicas à América do Sul e publicou, nos anos de 1840, Voyage dans l’Amérique méridionale –, era grande admirador da civilização inca e pela defesa e reabilitação dos índios contra o europeu. Após sua primeira missão (Riviale, 2000Riviale, Pascal. Los viajeros franceses en busca del Perú Antiguo (1821-1914). Peru: Institut français d’études andines, Fondo Editorial de la Pontífica Universidad Católica del Perú, 2000., p. 106), que dura 21 meses, dos quais 15 ou 16 passou no Peru, Wiener retorna à França, em agosto de 1877, e passa a publicar suas aventuras e descobertas em periódicos como o Le Siècle, Le Tour du Monde etc. e em volume, como Pérou et Bolivie (1880).

Em necrologia escrita por R. Verneau e publicada pela Société des Américanistes de Paris, em 1919, o autor traz a público a polêmica gerada pela obra Pérou et Bolivie, pois continha muitos equívocos. Charles Wiener fez uso, na elaboração de seu livro, de material coletado por outros etnógrafos, omitindo seus nomes; os locais de origem dos objetos eram, no geral, erroneamente indicados e a análise do material era pouco cuidadosa e superficial. Já no século XX, ao documentar-se para escrever Le temple du Soleil, Hergé foi induzido a erro pela documentação consultada1 1 Hergé, autor do quadrinho Tintin, conhecido por seu cuidado histórico, ao escrever Le temple du soleil, usa como uma de suas fontes, a obra de Charles Wiener (1880). Cf. « Le temple du soleil : Hergé induit en erreur par sa documentation » Tintinomania. 1 mar 2022 <https://tintinomania.com/tintin-temple-chulpa>. , da qual fazia parte a obra supracitada.

O capítulo que ora traduzimos de Amazone et Cordillères2 2 Disponível na biblioteca digital da BNF, Gallica. <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb32878283g/date.r=Le+Tour+du+monde+(Paris+1860).langFR> foi extraído do periódico semanal francês, Le Tour du Monde. Este foi criado em 1860, por Édouard Charton, para um leitorado popular e se consagrava à publicação ilustrada (gravuras em branco e preto) dos relatos de viagens de exploração do século XIX.

La presse périodique illustrée est néé en France sous la monarchie de Juillet à l’imitation des “magazines” anglais, le Penny Magazine crées en 1832 et l’Illustrated News en 1842. Jusque là, seules paraissaient des revues savantes à l’usage d’un public instruit et des publications élémentaires destinées au peuple. Les “magazines”, publiés par livraisons hebdomadaires à un prix modique, parce qu’ils se proposent d’instruire “tout le monde” grâce aux gravures qui accompagnent les articles, comblent un vide editorial et connaissent un succès immédiat et durable.

(Aurenche, 2021Aurenche, Marie-Laure. “L’invention des magazines illustrés au XIXe siècle, d’après la Correspondance générale d’Édouard Charton (1824-1890)�. La lettre et la presse: poétique de l’intime et culture médiatique. 14/09/2021. M�dias 19. Disponível em: https://www.medias19.org/publications/la-lettre-et-la-presse-poetique-de-lintime-et-culture-mediatique/linvention-des-magazines-illustres-au-xixe-siecle-dapres-la-correspondance-generale-dedouard-charton-1824-1890 Acesso em 01 mar 2022.
https://www.medias19.org/publications/la...
, p. 01)

Em outubro de 1879, Wiener é nomeado vice-cônsul da França em Guayaquil, no Equador; e, desde então, nunca mais abandonou suas funções diplomáticas. A partir desse momento, não trouxe muitas contribuições científicas de qualidade, com exceção dos resultados de sua exploração do rio Napo. Pouco após sua chegada no Equador, vai a Quito dar início à missão especial que o havia encarregado o ministro dos Negócios Estrangeiros, a saber: encontrar uma via comercial rápida entre o Equador e a bacia do Amazonas.

Parece que suas explorações lhe serviram mais como trampolim para a carreira diplomática e certo status social que para destacar-se como cientista-naturalista ou arqueólogo.

Para esta coletânea de textos traduzidos sobre a Amazônia, escolhemos traduzir o terceiro de cinco fascículos de Amazone et Cordillères (1883-1884), o qual discorre, em forma de diário, sobre regiões desconhecidas pelos europeus durante sua travessia da Cordilheira em direção ao Pacífico, incluindo nela dificuldades de transporte, vias de comunicação, alimentação, problemas com autoridades locais, anedotas e curiosidades. Charles Wiener chega a fazer um levantamento estatístico das suas observações (370).

Il y a beau jour que l’Amérique a été découverte, que de courageux voyageurs l’ont parcourue, que des hommes tenaces l’ont colonisée, que des négociants l’ont exploitée, que des observations l’ont décrite.

En réunissant les notes que j’ai prises durant mon dernier séjour dans l’Équateur américain, je me suis occupé surtout de régions incomplètement connues, et de zones considérables, dans lesquelles, chose étrange, l’Européen ne s’était jamais montré.

La France industrielle et commerciale cherche des marchés nouveaux.

Trente-trois mois d’explorations et d’études me permettent aujourd’hui de signaler un débouché qui, dans un avenir prochain, pourrait acquérir une importance capitale.

(Wiener, 1883Wiener, Charles. Amazones et Cordillères. Le Tour du Monde. 1883-1884. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb32878283g/date.r=Le+Tour+du+monde+(Paris+1860).langFR. Acesso em 02 mar 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb3287...
, p. 209)

Num primeiro momento, interessa-nos o relato escrito em francês, aquele que foi construído enquanto texto fonte (Sturge, 2007Sturge, Kate. Representing Others. Translation, Ethnography and the Museum. London, New York: Routledge, 2007., cap. 2)3 3 Cf. “To begin with the construction of the source text, Asad notes that although the anthropologist in the field tries to learn to live a different life and think inside the different discourse, when he or she gets home it’s time to write a translation ‘addressed to a very specific audience, which is waiting to read about another mode of life and manipulate the text it reads according to established rules, not to learn to live a new mode of life’. In other words, life has to be put into textual form…” (Sturge, 2007, cap 2) , pois trata-se de um gênero que parte do princípio da reescrita, da reformulação de uma experiência individual que visa o coletivo. Desde o início o viajante assina um contrato de cumplicidade com seu leitorado. Como afirma Cronin (36) “... one of the primary tasks of the travel writers is to demonstrate how much translation has to be done, if only to justify their narrative role as interpreter of the scenes they witness”. O viajante deve, assim, tratar com outras línguas, diferentes da sua, e isso tem implicações sobre a capacidade de interpretação da realidade que lhe é estrangeira.

… That means that both the ethnographer’s and the translator’s translation are not merely a matter of matching sentences in abstract. Nothing has meaning in isolation and any cultural event is produced in context, and the context may be determined by some external facts….

(Valero-Garcés, 1995Valero-Garcés, Carmen. “Modes of translating culture: ethnography and translation”. Meta. 40(4), p. 556-563, 1995. DOI: https://doi.org/10.7202/002805ar.
https://doi.org/10.7202/002805ar...
, p. 558)

Para analisarmos Amazone et Cordillère basear-nos-emos, portanto, no paradigma da descrição efetuada pela tradução etnográfica, isto é, no esforço de transformar o olhar do viajante em escrita (Laplantine, 1996Laplantine, F. La description ethnographique. Paris: Armand Colin, 1996.) e na sua relação com a tradução interlingual (Jakobson, 2011Jakobson, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2011.), pois a realidade que está acontecendo em uma língua estrangeira está sendo transmitida ao leitor na linguagem da narrativa de viagem, no entanto, há sempre a presença de certa estrangeirização (Venuti, 2002Venuti, Lawrence. Escândalos da Tradução. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Esquerda e Valéria Biondo. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2002., p. 164), que pode aparecer no relato de maneira discreta ou destacada. “The reader is translated into a foreign climate through the untranslated” (Cronin, 2000Cronin, Michael. Across the lines: travel, language, translation. Irlanda: Cork University Press, 2000., p. 41). Ou, como sintetiza Valero-Garcés:

… Neither we can talk of ethnographic writing as a mirror that reflects other cultures as they really were, and nor can we talk of a translated text as the unique possible translation. Culture is not an object to be described, neither is it a unified corpus of symbols and meanings that can be interpreted. Culture is contested, temporal and emergent. The same applies to translation…

(Valero-Garcés, 1995Valero-Garcés, Carmen. “Modes of translating culture: ethnography and translation”. Meta. 40(4), p. 556-563, 1995. DOI: https://doi.org/10.7202/002805ar.
https://doi.org/10.7202/002805ar...
, p. 561)

A confluência entre a etnografia e a tradução é, sem dúvida, trazida à lume, no campo dos estudos da tradução, pelo artigo pioneiro de Nida (1945, p. 194-208)Nida, Eugene. Linguistics and Ethnology in Translation Problems, Word 1, p. 194-208, 1945. “Linguistics and Ethnology in Translation Problems”. Como mostra o título de seu artigo, o tratutólogo bíblico define elementos culturais como um problema de tradução. No entanto, de acordo com Sturge (2007)Sturge, Kate. Representing Others. Translation, Ethnography and the Museum. London, New York: Routledge, 2007., o conceito de etnografia enquanto tradução da cultura foi descrito pelo antropólogo Malinowski, em 1935.

Diversos autores contemporâneos, ligados aos Estudos da Tradução, compartilham da concepção de elementos culturais como gerador de conflito entre o texto-cultura origem e o texto-cultura chegada. Dentre estes (Nord, Nedergaard-Larsen, Molína etc.), optamos por adotar a ótica de Franco Aixelá (1996)Franco Aixelá, Javier. Cultural-Specif Items in translation. In: Alvar�s Rodr�guez, Rom�n; VIDAL, M. Carmen-Africa. Translation, power and subversion. Philadelphia, Multilingual Matters LTD, 1996, p. 52-78., que os denomina Culture-specific Items (CSI).

Segundo esse autor, é possível distinguir duas categorias básicas do ponto de vista do tradutor: nomes próprios e expressões comuns (por falta de um termo melhor para abranger o mundo de objetos, instituições, hábitos e opiniões, restritos a cada cultura e que não podem ser incluídos no campo dos nomes próprios).

Limitar-nos-emos aqui ao estudo das expressões comuns, uma vez que os nomes próprios, principalmente os de cidades, vilarejos e rios são mutáveis, como afirma o próprio Charles Wiener e foram mantidos na língua indígena ou espanhola, ao longo da obra:

Qu’on ne m’accuse point de changer des noms géographiques existants. Cette région est vierge. Il n’y a passé ni blanc ni Indien.

Quant aux noms quichuas qu’on cite si souvent dans ce parcours, leur origine n’est pas difficile à établir. Ainsi mon pilote a remonté le rio Morona. Lorsqu’un site rappelait quelque site connu d’un autre fleuve, il lui donnait le même nom. Quand l’eau d’un affluent était noire, on appelait ruisseau : Yana-Yacu (eau noire). Quand il y avait du gravier dans le lit, Rumi-Yacu (eau pierreuse) […]

Et qui sont les maîtres du lieu ? Aujourd’hui les Iwaros, hier c’étaient les Huambizas, demain ce seront des Cocamas ou de blancs.

Qui oserait dire combien de noms un seul de ces points, en apparence vierge, a porté dans la suite des temps ?

Qui oserait affirmer un nom primitif ?

Ces sortes de vocabulaire géographique n’ont qu’une valeur relative, et vouloir fonder sur eux une théorie de migration est chose bien hasardeuse.

(Wiener, 1883-1884Wiener, Charles. Amazones et Cordillères. Le Tour du Monde. 1883-1884. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb32878283g/date.r=Le+Tour+du+monde+(Paris+1860).langFR. Acesso em 02 mar 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb3287...
, p. 351)

Ainda fazendo uso da teoria de Franco Aixelá (1996)Franco Aixelá, Javier. Cultural-Specif Items in translation. In: Alvar�s Rodr�guez, Rom�n; VIDAL, M. Carmen-Africa. Translation, power and subversion. Philadelphia, Multilingual Matters LTD, 1996, p. 52-78., serão utilizadas as nomenclaturas apresentadas por esse autor para classificação das estratégias de tradução utilizadas na manipulação de CSI. Faz-se necessário destacar que sua utilização não é categórica, ou seja, o tradutor, de acordo com seu estilo de escrita, pode mesclar duas ou mais estratégias para trabalhar com o mesmo CSI.

  1. Repetição: uso do CSI tal qual ele é apresentado no texto fonte (“brownie” (in) > “brownie” (pt));

  2. Adaptação ortográfica: uso de transcrição e transliteração para registrar o CSI no texto alvo (“tweet” > “tuíte”);

  3. Tradução linguística (não-cultural): uso de uma tradução literal, ainda mantendo o pertencimento ao sistema cultural do texto fonte (“dollar” > “dólar”);

  4. Explicação extratextual: adição ao texto fonte inserida a parte do texto principal (notas de rodapé, notas de fim de livros, comentários entre parênteses etc.);

  5. Explicação intratextual: adições ao texto fonte inseridas diretamente ao texto principal (“the Golden Gate” > “a ponte Golden Gate”).

  6. As técnicas de natureza substitutiva, a seis:

  7. Sinônimos: uso de sinônimo ou referência paralela para evitar a repetição do CSI no decorrer do texto (“cheesecake”, “torta”, “sobremesa”, “doce”);

  8. Universalização limitada: substituição do CSI por uma referência da língua fonte mais próxima do conhecimento do leitor da cultura alvo (“grand” > “mil dólares”);

  9. Universalização absoluta: substituição do CSI por uma referência da língua alvo, apagando qualquer conotação da cultura fonte (“mind-blowing” > “surpreendente”);

  10. Naturalização: registro do CSI como próprio da língua alvo (nomes próprios: “Peter” > “Pedro”);

  11. Eliminação: apagamento do CSI no texto alvo (“He ate a cookie dough ice cream” > “Ele tomou um sorvete”);

  12. Criação autônoma: adição de referências culturais que podem vir a ser interessantes para o leitor (tradução de títulos de filmes).

No quadro 1, discriminamos as passagens do texto onde encontramos CSI, o número da página, seguidas das estratégias de tradução pelo autor-viajante.

Quadro 1
Técnicas de tradução das expressões comuns

Das estratégias de tradução elencadas acima, as mais utilizadas são: a repetição (com ou sem destaque no texto), com 26 ocorrências; a explicação intratextual, com dez ocorrências; e, por último, a explicação extratextual, com cinco ocorrências.

No momento de traduzir o relato para a língua portuguesa, procuramos manter a estrangerização do original por meio do binômio explicação extratextual e repetição de termos/expressões (com ou sem destaque, como no original), como, por exemplo: “No entanto, o tambo [pousada] fora invadido por milhões de formigas negras de cerca de três milímetros. Os índios as chamam de citaracui [taoka].” (Wiener, 1883-1884, p. 375). Optamos por colocar entre colchetes um equivalente em português para manter a fluidez e o efeito exótico do termo/expressão no texto.

A repetição é uma estratégia de tradução bastante comum entre os viajantes-naturalistas. Nos relatos de Charles Expilly e Paul Walle a encontramos, no entanto, quase sempre em itálico e, raríssimas vezes, sem explicação alguma, seja ela implícita ou explícita (Camargo, 2017Camargo, Katia Aily F de. Relatos de viagem e a tradução de palavras culturalmente marcadas: um estudo de caso. Cadernos de Tradução. 37 (2), p. 159-176, 2017. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p159.
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v3...
e 2018Camargo, Katia Aily F de. “O estudo de marcas culturais no relato de viagem de Au Pays de l’Or Noir”. Revista da Anpoll. 1.(44), p. 207-219, 2018. DOI: https://doi.org/10.18309/anp.v1i44.1158.
https://doi.org/10.18309/anp.v1i44.1158...
). Valero-Garcés comenta esse procedimento da repetição, devido a dificuldade de Evans-Pritchard, em The Nuer, de encontrar um equivalente adequado em inglês para o termo nuer:

It is difficult to find an English word that adequately describes the social position of diel in a tribe. We have called them aristocrats, but do not wish to imply that Nuer regard them as of superior rank, for, as we have emphatically declared, the idea of a man lording it over others is repugnant to them.

([Evans-Pritchard] Valero-Garcés, 1995Valero-Garcés, Carmen. “Modes of translating culture: ethnography and translation”. Meta. 40(4), p. 556-563, 1995. DOI: https://doi.org/10.7202/002805ar.
https://doi.org/10.7202/002805ar...
, p. 560)

No que diz respeito aos CSIs encontrados em francês, optamos, assim como Wiener, pela utilização da dupla estratégia de repetição e explicação extratextual, conforme quadro 2.

Quadro 2
ICE francês-português.

Dessa forma, percebemos que em ambas as traduções (1. discurso construído em formato texto e 2. texto fonte em francês para o português) procurou-se manter certa estrangeirização (Venuti, 2002Venuti, Lawrence. Escândalos da Tradução. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Esquerda e Valéria Biondo. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2002., p. 166-167). A falta de destaques em termos como “rancho”, “arriero”, “tienda” etc. denotam assimilação, enriquecimento de sua língua e cultura.

Esses pontos nos levam ao cerne da questão identitária (língua/ cultura) e da relação do viajante com a língua materna. De acordo Michael Cronin (2019, cap. 21)Cronin, Michael. Across the lines: travel, language, translation. Irlanda: Cork University Press, 2000. “...Lexical exoticism [...] or the invocation of translation as intertextual presence in the form of phrase book [...] are strategies for highlighting the interlingual dimension to travel...” e “...travel writing between languages or travel writing in translation can occupy an important place in the shaping of emerging national and cultural identities...”

Gostaríamos de finalizar essa nota com uma frase de Cronin (2000, p. 92)Cronin, Michael. Across the lines: travel, language, translation. Irlanda: Cork University Press, 2000.: “Travel, in its most progressive form, carries the ethical project of translation to the cultural and spiritual level as it seeks to engage fully with other cultures”.

  • 1
    Hergé, autor do quadrinho Tintin, conhecido por seu cuidado histórico, ao escrever Le temple du soleil, usa como uma de suas fontes, a obra de Charles Wiener (1880). Cf. « Le temple du soleil : Hergé induit en erreur par sa documentation » Tintinomania. 1 mar 2022 <https://tintinomania.com/tintin-temple-chulpa>.
  • 2
  • 3
    Cf. “To begin with the construction of the source text, Asad notes that although the anthropologist in the field tries to learn to live a different life and think inside the different discourse, when he or she gets home it’s time to write a translation ‘addressed to a very specific audience, which is waiting to read about another mode of life and manipulate the text it reads according to established rules, not to learn to live a new mode of life’. In other words, life has to be put into textual form…” (Sturge, 2007Sturge, Kate. Representing Others. Translation, Ethnography and the Museum. London, New York: Routledge, 2007., cap 2)

Referências

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  • Camargo, Katia Aily F de. “O estudo de marcas culturais no relato de viagem de Au Pays de l’Or Noir”. Revista da Anpoll 1.(44), p. 207-219, 2018. DOI: https://doi.org/10.18309/anp.v1i44.1158.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    27 Set 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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