Acessibilidade / Reportar erro

Brouillons d’un Baiser. Premiers pas vers Finnegans Wake

JOYCE, James. . Brouillons d’un Baiser. Premiers pas vers Finnegans Wake . Paris: Gallimard, 2014. 144 p.

A recente descoberta de páginas desaparecidas de rascunhos de Finnegans Wake fez aparecer uma edição que trouxe consigo a promessa de reestabelecer o elo perdido entre Ulysses e Finnegans Wake. Com a autorização da publicação concedida pela Biblioteca Nacional da Irlanda, a edição foi reunida e apresentada pelo crítico literário Daniel Ferrer e prefaciada pela escritora Marie Darrieussecq, que também foi convidada a realizar a tradução dos textos. Assim, trata-se de uma edição com alguns manuscritos inéditos (A, D, e a metade do manuscrito B) e outros reeditados (C, E, e a outra metade do manuscrito B), apresentados na língua original e em tradução para a língua francesa.

A longa e detalhada introdução, que ocupa quase um terço da edição, propõe a construção de um panorama bastante amplo e detalhado do contexto inicial de escrita de Finnegans Wake. Os primeiros pontos destacados por Ferrer se referem ao período pós Ulysses. Em seguida, discute sobre a ideia inicial de James Joyce (1882-1941) para composição de seu último romance, que se baseava na lenda de Tristão e Isolda; traz detalhes sobre os procedimentos linguísticos utilizados, e por fim, discute sobre o que fez a escrita da obra deslanchar. A introdução intitulada: Par où (re)commencer, ou de Tristan à Finnegan (Por onde recomeçar, ou de Tristão a Finnegan) é dividida em dez seções. Nelas são trazidos aspectos cruciais para o entendimento da trajetória joyceana na composição dos textos que posteriormente fariam parte, ainda que de maneira quase irreconhecível, de Finnegans Wake.

Os cinco manuscritos presentes nessa edição ainda não contam com a mesma abundância de manipulações linguísticas que encontramos na versão final de Finnegans Wake, tampouco a mesma multiplicidade de planos narrativos que Joyce almejava para seu último romance. No primeiro manuscrito, A) [Portrait of Isolde], são apresentados alguns traços do comportamento de Isolda. Características de sua personalidade e hábitos corriqueiros, como, por exemplo, o costume de deixar seus objetos sempre no mesmo lugar, sua maneira de limpar a chaminé ou fazer suas preces, entre outras atividades, preenchem as seis páginas do manuscrito. Por meio da transcrição da prece de Isolda, Joyce já apresenta os primeiros sinais da forma de escrita que adotaria para compor grande parte de Finnegans Wake. A valorização da representação da oralidade na escrita, bem como a busca pela multiplicidade de sentidos através do uso de um vocabulário não dicionarizado, abriria espaço para um processo de criação singular.

O segundo manuscrito, B) [Tristan & Isolde], traz algumas informações sobre a frágil saúde de Tristão. São mencionados problemas como indigestão, hemorroidas e seus hábitos preventivos de algumas doenças. Sua palidez febril enquanto indica as ações em alto mar e sua contemplação dos santos fantasmas dos seus amores da época da escola também são narradas. De acordo com as notas disponibilizadas por Ferrer, o trecho desse manuscrito que cita Isolda foi ditado por Joyce e redigido por Nora Barnacle, esposa de Joyce, em decorrência dos problemas de visão do escritor irlandês.

Ainda no mesmo manuscrito, um jantar é descrito em detalhes. Entre trocadilhos e jogos de palavras, nomes de comidas se misturam com outras discussões; ficamos sabendo da inquirição de Tristão sobre questões íntimas de Isolda; ele gostaria de saber se ela já tinha se aventurado em alguma “fornicação clandestina”. A resposta é veementemente negativa: “No plunderer has ever wandered, has ever beheld the hundred wonders of my underlands” (JOYCE, 2014JOYCE, James. Brouillons d’un Baiser. Premiers pas vers Finnegans Wake. Paris: Gallimard, 2014. 144 p., p. 74). Tomado por um grande enlevo pela resposta, Tristão recita um poema ao ouvido de Isolda.

O terceiro manuscrito, C) [Tristan & Isolde, the kiss], relata o momento do envolvimento sexual de Tristão e Isolda. Sob a beleza do crepúsculo e o mar especialmente bonito, aquele barco testemunharia um dos adultérios mais famosos da história da literatura ocidental. Joyce fornece os elementos rítmicos que indicam o momento da consumação do ato sexual e em seguida o gozo de Tristão: “Her role was to roll on the darkblue ocean roll that rolled on the round the round roll Robert Roly rolled round. She gazed while from an altitude of 1yard 11 ½ in. His deepsea peepers gazed O gazed O dazedcrazedgazed into darkblue rolling ocean orbs (JOYCE, 2014, p. 82). Após o envolvimento sexual que é mencionado por Joyce como “shiveryshaky quiveryquaky mixumgatherum yumyumyum”(JOYCE, 2014, p. 86), o manuscrito chega ao fim com as palavras de Isolda sobre a gratificante experiência que acabava de ter e a alegria de ter conhecido Tristão.

O penúltimo manuscrito, D) [The Four Old Men and the Kiss of Tristan & Isolde], tem início com a descrição dos pássaros que zombam do rei Marcos, marido de Isolda, pois teriam observado o envolvimento de Tristão e Isolda. Os pássaros cantam e a letra é apresentada da seguinte forma: “Three caws for Mister Mark / Sure he hasnt got much of a bark / And sure any he has is all beside the mark…” (JOYCE, 2014, p. 90), É interessante notar que este trecho foi modificado em sua versão final, assim como muitos outros, e incluído no início do capítulo quatro do livro II de Finnegans Wake. A modificação consistiu na troca da palavra “caws” pela palavra “quarks”, criação joyceana que posteriormente foi tomada emprestada pelo físico Murray Gell-Mann para designar a suposta partícula elementar da matéria.

Ainda no mesmo manuscrito, as quatro ondas de Erin, local situado na costa da Irlanda, famoso pelo forte barulho das ondas, também testemunharam a consumação do ato sexual, da mesma forma que haviam presenciado outros momentos históricos que também são citados. A menção dos momentos históricos é frequentemente retrabalhada por meio de trocadinhos, de maneira que se possa entender mais de uma referência ao mesmo tempo. Em relação aos manuscritos já citados, esse é o que apresenta maior manipulação linguística. Depois da inclusão de outros temas e referências, Joyce se volta mais uma vez para as quatro ondas de Erin, e então é a vez de apresentar o canto das ondas, que se divide “in-four-part Palestrian melody” (JOYCE, 2014, p.96).

O último manuscrito, E) [Mamalujo], formado pela combinação das duas primeiras letras do nome dos quatro evangelistas, é estruturado em vários planos narrativos. Aos nomes dos evangelistas é acrescentado um sobrenome que faz referência a alguma figura histórica. Os anciões, Matt Gregory, Marcus Lyons, Luke Tarpey, e Johnny MacDougall, que se metamorfoseiam na versão final da obra, assim como as quatro ondas de Erin e os pássaros, presenciam o que acontece no barco. Temos a descrição de como todos aguçam os ouvidos e os olhos no momento da relação sexual do casal: “(...) they were spraining their ears listening and listening to all the kissening with their eyes glistening all the four when he was kiddling & cuddling his colleen the colleen bawn cuddling her and kissing her with his pogue like arrah na Pogue (...)”, o texto segue o fluxo rítmico e dispensa o uso de pontuação. Uma série de palavras e frases são repetidas, geralmente levemente reconfiguradas, trazendo novos efeitos sonoros. A presença de outros idiomas, jogos de palavras, referências e musicalidade é ainda mais marcante nesse último manuscrito.

Além dos aspectos ressaltados ao longo da apresentação da obra, vale acrescentar que essa edição traz uma rica colaboração tanto para os Estudos Literários como para os Estudos da Tradução, principalmente aqueles relacionados à crítica genética da obra de Joyce. Além disso, a edição possibilita o acesso ao germe do que se tornaria o romance mais desafiador da literatura ocidental.

Reference

  • JOYCE, James. Brouillons d’un Baiser. Premiers pas vers Finnegans Wake Paris: Gallimard, 2014. 144 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2017
  • Aceito
    24 Abr 2018
Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Bloco B- 405, CEP: 88040-900, Florianópolis, SC, Brasil, Tel.: (48) 37219455 / (48) 3721-9819 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ilha@cce.ufsc.br