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Tradução da bíblia: desafio antigo e novo

Bible Translation: a Challenge Both Old and New

A dificuldade do trabalho de tradução da Bíblia transparece já em épocas anteriores à era cristã. Na segunda metade do século II a.C., o prólogo do livro do Sirácida (Eclesiástico) narra o grande esforço que fez o autor para traduzir este livro do hebraico para o grego, como isto lhe exigiu tempo, ciência e dedicação. Simultaneamente, como que antevendo possíveis críticas ao seu trabalho, o autor faz questão de mencionar a dificuldade da língua grega em expressar todas as nuances do texto hebraico; não só a sua tradução mas também outros trabalhos então existentes, que seriam, no caso, o que chamamos de Septuaginta.

Se todo trabalho de tradução carrega em si grande complexidade, essa questão reveste uma especial dificuldade em se tratando de textos antigos, distantes linguística e culturalmente do tradutor. Não só pelas particularidades da língua original, por vezes com termos raros ou mesmo únicos, mas também e de modo relevante pelo mundo conceitual que está por trás do texto, a cultura, o modo de pensar, as concepções e mentalidades. Pois uma tradução não é simples correspondência de termos, expressões, sintaxe, mas nela sempre estão envolvidas questões de semântica; trata-se de apresentar, num outro sistema linguístico, o que o texto a ser traduzido expressa. Por esse motivo, mesmo nas traduções mais literais, sempre entra em jogo a compreensão do tradutor, sua interpretação e, com isso, sua cultura e seu momento histórico. Entra em jogo, ainda, a concepção que o tradutor tem de sua função, o grau de liberdade que ele concebe na expressão da língua para a qual ele traduz e os destinatários que tem em vista.

A necessidade de aproximação do “mundo do texto” foi particularmente sentida, já nos primeiros séculos cristãos, por Jerônimo, na sua busca da “veritas hebraica”, que tinha em mira não somente traduzir de modo bem aderente ao texto hebraico, mas expressar, dentro do horizonte da cultura e da religião judaicas, os conceitos que estavam por trás dos termos. Tal modo de proceder demonstra uma sensibilidade singular naquela época.

Por outro lado, para além da questão da obscuridade de palavras e expressões do texto bíblico, diante da qual por vezes toda tentativa de compreensão parece sem sucesso, encontra-se a questão de qual texto traduzir. Isso porque não existe “o” texto do Antigo ou Novo Testamento, mas a Escritura nos chegou às mãos numa pluriformidade textual devida não só às variantes existentes nas cópias manuscritas mas também à forma própria dos livros em seu conjunto (deslocamento de capítulos, frases, supressões ou acréscimos, entre outros). Traduzir implica, assim, também uma abordagem de crítica textual. Mas esta, por sua vez, levanta a questão da crítica redacional. Pois nem sempre é claro se a questão envolvida é a da cópia de manuscritos, se houve um erro consciente ou inconsciente, uma correção ou um deslize do copista. Ou se por trás de uma variante textual está, de fato, uma mudança na redação do próprio texto mais primitivo, anterior à etapa da transmissão do texto escrito (chamado impropriamente de “texto final”).

Também a questão das variantes textuais foi percebida por Jerônimo, que em seus comentários aos livros bíblicos se reporta principalmente à tradução da Setenta, embora mencione igualmente outras versões gregas antigas (Áquila, Teodocião, Símaco), conhecidas por ele provavelmente através da Héxapla, a grande obra de Orígenes que comparava as principais formas de texto então conhecidas. Em seus comentários, Jerônimo traduz o texto grego da Setenta logo abaixo do texto hebraico. E, mesmo tomando como referência este último, não poucas vezes explana o sentido da versão grega.

Com o desdobramento da língua latina em diversos idiomas e o anúncio do evangelho para culturas cada vez mais numerosas, surgiu a necessidade de tradução da Escritura. Basta observar alguns exemplos mais significativos, como a tradução para a língua eslava feita pelos irmãos Cirilo e Metódio no século IX, trabalho que os levou igualmente a desenvolver um alfabeto novo, mais fácil para o povo. Esse dado pode ser considerado, de certa forma, como paradigmático: de fato, junto com a tradução da Bíblia não raro caminha o favorecimento da cultura.

Na Europa medieval, algumas traduções vernáculas são conhecidas. À guisa de exemplo, em alemão, o evangelho de “Mateus de Mondseer” (do ano 748), a “Harmonia dos Evangelhos” (830) e, antes de 1022, várias traduções dos Salmos e cânticos bíblicos. Dessa época contam-se 817 manuscritos em alemão, dos quais 43 são Bíblias inteiras. Em francês medieval são conhecidas muitas traduções parciais, sobretudo a partir do século XIII. Com o advento da imprensa, entre 1466 e 1522 há 14 edições impressas em alemão e 4 em holandês. Em francês, a primeira Bíblia impressa data de 1477-78.

Nesse contexto, coloca-se a tradução para o alemão feita por Lutero. Embora haurindo de tradições linguísticas anteriores, marcou época por sua difusão e particularmente por ter sido um fator importante na construção de uma língua alemã comum. Afastando-se de uma linguagem de índole mais literária, que em parte mesclava alemão e latim, utilizou uma forma linguística que, sendo mais direta, atingia amplamente as camadas populares. Com o auxílio inicial dos revisores das casas editoriais, seja a ortografia e a ordem das palavras na frase seja seu estilo acabaram por impor-se. Confirma-se, com isso, a importância, em geral, das traduções bíblicas como fator de formação cultural.

Em época recente, a valorização das línguas vernáculas foi particularmente sentida, pela Igreja Católica, no Concílio Vaticano II, que de modo especial em seus documentos sobre a Revelação e a Liturgia apontou para a importância e necessidade de se cuidar que a Escritura fosse acessível em diferentes idiomas. No Brasil contam-se edições da Bíblia já na segunda metade do século XVIII, mas a partir de traduções vindas de Portugal ou da Vulgata latina. Em âmbito católico, as traduções diretamente das línguas originais tiveram início em 1951, com os trabalhos da Liga de Estudos Bíblicos, os quais, posteriormente revistos, deram origem à “Bíblia, Mensagem de Deus”, editada pelas Edições Loyola em 1983. Também a partir das línguas originais, em 1982, surgiu a “Bíblia Sagrada” da Editora Vozes. Na mesma linha, mas com referência à Neo-Vulgata, veio à luz a primeira edição da Bíblia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 2001, a qual, em 2018, deu lugar a uma nova tradução. É o texto oficial para uso na liturgia, catequese e documentos eclesiásticos.

Ao lado dessas traduções, têm surgido em nosso meio, nas últimas décadas, diversas edições que, com o escopo de atingir grupos específicos de leitores, buscam uma expressão linguística mais popular. A Escritura deve ser compreensível em diferentes contextos e situações, e isso implica sempre um processo de inculturação. Em que medida tais empreendimentos são bem sucedidos dependerá de vários fatores. Se é certamente necessário que o texto bíblico seja inteligível a todos, no entanto, ao menos de início três elementos parecem dever ser considerados. Primeiramente, um dado que é claro para quem toma contato com os textos bíblicos nas línguas originais: em geral não é utilizada uma linguagem banal. O estudioso fica não poucas vezes surpreendido com o alto nível linguístico dos textos, a escolha até sofisticada de palavras, a utilização de recursos estilísticos elegantes, meios para mais bem expressar os conceitos envolvidos. Em segundo lugar, os textos bíblicos, em grande parte, têm uma dificuldade intrínseca, que não é eliminada pela simples tradução numa linguagem mais acessível. A paráfrase pode ser um modo de limitar o sentido de um texto e, assim, de impedir ao leitor o acesso a toda a riqueza de significado que o texto bíblico lhe poderia sugerir. Nessa mesma direção coloca-se um terceiro elemento: a questão da fidelidade ao que o texto quer comunicar, o que supõe um minucioso trabalho exegético. Estas considerações podem bastar para indicar o grande desafio que é não só traduzir um texto, mas expressá-lo em linguagem mais franca e atualizada.

Enfim, mesmo com essas dificuldades, o trabalho de tradução para as línguas vernáculas é essencial para o anúncio e a vivência da fé, e precisa continuar em cada novo tempo, para poder atender às demandas de seus contextos e situações. Para que assim a riqueza da Palavra de Deus expressa na Escritura possa atingir e lançar luz a todas as gerações.

Referências

  • FERRARIS, M. Storia dell’ermeneutica Milano: Bompiani, 1992.
  • PARMENTIER, E. A Escritura viva: interpretações cristãs da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2009.
  • PELLETIER, A.-M. D’âge en âge les Écritures La Bible et l’herméneutique contemporaine. Bruxelles: Lessius, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2020
  • Aceito
    02 Abr 2020
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