RESUMO
A noção metafísica de Deus como fundamento do ser, sumo princípio de ordem e harmonia, vetor da confluência entre filosofia grega e cristianismo como padrão cultural do Ocidente, entra em crise no século XIX, conjuntamente com a disrupção da ordem social tradicional e da “imagem do mundo” onto-teológica, sob os golpes da ciência e da crítica filosófica. Deus é morto, anuncia o filósofo, e a religião parece dissolver-se inexoravelmente no caminho da secularização. Deus, todavia, não se extingue: regressa poderosamente na figura antimetafísica de um Deus histórico, que se manifesta ao homem na contingência, como princípio de desordem e desajuste, trauma e estranhamento. Vários autores (nomeadamente J. Ashbery, F. Dostoiévski, P. Pasolini, T. Mendonça) são convocados para reconstruir esta imagem de Deus como “o grande desorganizador”, mas também o possível naufrágio deste embate com o transcendente, que implode no ‘silêncio, na não recepção por parte do homem-massa contemporâneo. O fracasso do sagrado, e a sua eventual banalização como recalque e espetacularização, são transcritos como experiência cómica por artistas como F. Kafka, S. Beckett, F. Fellini, J.-L. Godard.
PALAVRAS-CHAVE
Ashbery; Dostoiévski; Pasolini; Mendonça; Sagrado
ABSTRACT
The metaphysical notion of God as the foundation of being, and as the supreme principle of order and harmony (which was an aspect that brought together Greek philosophy and Christianity, and set a cultural standard in the Western civilization) underwent a crisis in the 19th century, together with the disruption of the traditional social order and the onto-theological “image of the world” under the blows of science and philosophical criticism. God is dead, announced the philosopher, and religion seemed to inexorably dissolve on the road to secularisation. God, however, was not extinguished: he has returned powerfully in the anti-metaphysical figure of a historical God, who manifests himself to man in contingency, as a principle of disorder and disarray, trauma and estrangement. Various authors (namely J. Ashbery, F. Dostoyevsky, P. Pasolini, T. Mendonça) are called upon to illustrate this image of God as "the great disorganiser", but also the possible fiasco of this clash with the transcendent, which implodes in “silence”, in the non-reception by the contemporary mass-man. The failure of the sacred, and its eventual banalization through repression and spectacularisation, are represented in a comic register by artists such as F. Kafka, S. Beckett, F. Fellini, J.-L. Godard.
KEYWORDS
Ashbery; Dostoyevsky; Mendonça; Pasolini; Sacred
- És Tu? És Tu?
- Não respondas, cala-Te.
- Por que vieste incomodar-nos? É que vieste incomodar-nos e Tu próprio sabê-lo muito bem. Sabes o que Te vai acontecer amanhã? Não sei quem és nem quero saber: que sejas Tu mesmo ou apenas uma aparência d’Ele, amanhã mesmo condeno-Te e queimo-Te na fogueira como ao pior dos hereges.
- Porque vieste cá estorvar, então?
- Para que vieste, então, agora, incomodar-nos?
F. Dostoiévski, A Lenda do Grande Inquisidor (Os Irmãos Karamázov)
Introdução
Deus há de encontrar o padrão e parti-lo”, diz John Ashbery em “Anticipated Stranger” (“Estrangeiro antecipado”, ASHBERY 2007ASHBERY, J. A Worldly Country. New York: Ecco Press (HarperCollins), 2007., p. 60), poema sobre a experiência da dor, a sua inefabilidade (ou melhor, a insipiência de toda a sua expressão), e o seu poder de revelação:
the bruise will stop by later.
For now, the pain pauses in its round,
notes the time of day, the patient’s temperature,
leaves a memo for the surrogate: What the hell
did you think you were doing? I mean . . .
Oh well, less said the better, they all say.
I’ll post this at the desk.
God will find the pattern and break it.1 1 “a nódoa negra mais tarde passará. / Por enquanto, a dor faz uma pausa na sua ronda, / anota a hora do dia, a temperatura do paciente, / deixa um memorando para o substituto: Mas que raio / pensavas estares a fazer? Quero dizer... / Enfim, menos dito melhor, como se diz. / Vou afixar isto na secretária. / Deus há de encontrar o padrão e parti-lo.” (m.tr.)
A dor, que não pode ser adequadamente dita, fala, porém, profeticamente, ao antecipar a visita do estrangeiro2 2 Um estrangeiro que recebemos como “um intruso”, apesar de ele ser algo que nos define como seres humanos, sem o qual não nos reconhecemos como tais (cf. NANCY, 2000). que nos aguarda a todos, sem que a maioria de nós a saiba, a queira aguardar: que nos apanha sempre impreparados, apesar de ser desde sempre, desde o começo, anunciada.
A dor, como a poesia, tem a voz “amarga”3 3 “Está próximo o grande dia de Iahweh! Ele está próximo, iminente! O clamor do dia de Iahweh é amargo, nele até mesmo o herói grita. Um dia de ira, aquele dia! Dia de angústia e de tribulação, dia de devastação e de destruição, dia de trevas e de escuridão, dia de nuvens e de negrume, 1dia da trombeta e do grito de guerra contra as cidades fortificadas e contra as ameias elevadas.” (Sf 1, 14-16) (Todas as citações bíblicas são tiradas da BÍBLIA SAGRADA). do profeta, que anuncia o ‘partir-se dos padrões’ sobre os quais moldámos as nossas vidas, a sociedade, a história, e reconhece nisto o sentido último do nosso estar no mundo: o gesto por meio do qual Deus irrompe nele e, paradoxalmente, o liberta ao desmenti-lo e derrubá-lo.
Por isso a teologia implícita na obra de um corpo significativo de artistas dos últimos dois séculos é negativa, não no sentido de que é uma teologia apofática (conforme ao lema de que de Deus não se pode dizer nada), mas de que reconhece a relação de Deus com o mundo, a sua presença na história, como a irrupção do grande desorganizador, o grande perturbador, o inassimilável, inaceitável,4 4 O “inaceitável” é a categoria que define a verdadeira arte segundo ASHBERY, 1968. que desconcerta e desregula,5 5 “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada. Com efeito, vim contrapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora à sua sogra. Em suma: os inimigos do homem serão os seus próprios familiares.” (Mt 10, 34-36). desmascara as falsas aparências, os simulacros (os ídolos), a quiete da alegada autossuficiência humana (ética, cognitiva, simbólica) para falsificar todas as certezas, os dogmas, o status quo.
Para estes artistas, se um Deus for ‘concebível’ pelo homem contemporâneo, Ele não é o deus platónico da harmonia,6 6 Que, como afirmado no Timeu (28C ss), sendo bom e livre de inveja, quis que o mundo fosse bom e belo, que “tudo fosse o mais semelhante a si possível, e por isso produziu-o a partir do arquétipo da própria perfeição eterna — imutável e inalterável –” (29 D-E). “Na verdade, o deus quis que todas as coisas fossem boas e que, no que estivesse à medida do seu poder não existisse nada imperfeito. Deste modo, pegando em tudo quanto havia de visível, que não estava em repouso, mas se movia irregular e desordenadamente, da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que esta é sem dúvida melhor do que aquela.” (30 A -B) “As leis que regem são por isso a analogia (a semelhança) e a proporção (o mais perfeito dos elos entre a pluralidade dos elementos combinados pelo demiurgo na unidade do cosmo”. (31C) Esta cosmogonia platônica da intrínseca bondade do universo criado, fundada nos princípios de harmonia, proporção e analogia, será integrada (principalmente pela mediação da tradução e do comentário do Timeu, de autoria de Calcídio) na cosmogonia bíblica, instaurando-se, ao longo da Idade Média, como padrão filosófico da teologia criacionista cristã. da beleza do mundo, da conformidade, da afirmação, mas o deus do sublime, da dissonância, do desconforto, da negação da ordem das coisas passadas em nome da novidade apocalíptica (Ap 21, 5) que derruba a condição ‘natural’, o curso ordinário da vida, as convenções do dia a dia, num antagonismo irredutível.7 7 “O que está sentado no trono declarou então: «Eis que eu faço novas todas as coisas»”. O mandamento modernista de Make it new8 8 O aforismo, slogan da vanguarda novecentista, foi lançado por Ezra Pound, que o tirou de uma antiga crónica chinesa e o aproveitou como título de uma recolha de ensaios publicada em 1934. Sobre a história cultural da noção de novidade, e o seu papel diversificado, mas sempre essencial no modernismo, não apenas artístico, cf. BROOKER, 2010 e NORTH, 2013. aplica à estética o gestus teológico de interpretação revisionista do criacionismo à luz de um redencionismo inconformado com a lei eternista do inalterável que preside à visão metafísica da natureza (cujas formas, cujas leis, são universais e imutáveis).9 9 Na sua obra seminal Teologia política, de 1922, Carl Schmitt formula a tese tão controversa quão influente de que toda a teoria jurídica e política da modernidade, nomeadamente o direito constitucional do Estado, se produz como reconfiguração secularizada de noções teológicas do cristianismo. Walter Benjamin retomará esta ideia para a generalizar ao horizonte cultural da modernidade, com a célebre imagem do “anão corcunda” escondido por baixo de um tabuleiro de xadrez, que controla os movimentos de um autómato e lhe permite ganhar os jogos contra os adversários de carne e osso. Na tese de abertura do seu ensaio “Sobre o conceito da história”, Benjamin observa: “A vitória está sempre reservada ao boneco a que se chama «materialismo histórico». Pode desafiar qualquer um se tiver ao seu serviço a teologia que, como se sabe, hoje é pequena e feia e, assim como assim, não pode aparecer à luz do dia.” (BENJAMIN, 1942, p. 9). Nesta perspectiva, a modernidade não se despede da teologia, do cristianismo, pelo contrário continua a pensar nela, assimilando os seus conteúdos normativos e conceptuais, simplesmente cortando (mais ou menos autoconscientemente) o elo da crença. A permanência da teologia cristã como ‘grande código’ da cultura ocidental é uma chave crítico-hermenêutica aplicada à contemporaneidade por pensadores como Giorgio Agamben e Slavoj Žižek, leitores sofisticados de C. Schmitt e W. Benjamin (cf., exemplarmente ŽIŽEK, 2003. Para um ensaio da aplicação deste paradigma “arqueológico” à criação artística, e do seu potencial crítico-diagnóstico em relação aos processos da produção artística na idade da “religião do capitalismo”, cf. AGAMBEN, 2017). A história choca com esta visão ao ponto de se apropriar dela e repensar a substância mesma do ser como mudança (numa perspectiva ‘transicionista’ – não propriamente evolucionista! — que encontra em Heráclito a sua referência originária e se declina, hoje, na ontologia da instabilidade configurada na física quântica, cf. ROVELLI, 2014ROVELLI, C. Sette brevi lezioni di fisica. Milano: Adelphi, 2014. e 2020ROVELLI, C. Helgoland. Milano: Adelphi, 2020.). Nada pode ficar como é, e se um Deus houver, ele só pode estar do lado do devir. A dinâmica incarnacionista do cristianismo é intrinsecamente redentora, isto é, emancipadora: autocompreende-se a partir da insatisfação com o que é. Deus pode ter criado o mundo bom e belo, mas aquilo com que nos deparamos é desfigurado pelo pecado: a natureza é ferida pelo mal e deve ser sarada.
1 O Deus Criador e o Deus redentor. O Deus da natureza e o Deus da história
Na manifestação deste Deus turbulento, estrangeiro que surpreende e alarma como um ladrão que vem de noite,10 10 “No tocante ao tempo e o prazo, meus irmãos, é escusado escrever-vos, porque vós sabeis, perfeitamente, que o Dia do Senhor virá como ladrão noturno. Quando as pessoas disserem: paz e segurança!, então, lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores sobre a mulher grávida; e não poderão escapar.” (I Ts 5, 1-3). “Lembra-te, portanto, de como recebeste e ouviste, observa-o, e converte-te! Caso não vigies, virei como um ladrão, sem que saibas em que hora venho te surpreender. “(Ap 3, 3) que é “escândalo e loucura”11 11 “Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca da sabedoria, nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios.” (1 Cor 1, 22-23) para a crença tradicional e a razão civilizacional, emerge e impõe-se um polo da tensão intrínseca à autorrevelação bíblica de Deus, atravessada por um dualismo subtil entre o Deus da criação e o Deus da redenção, o Deus da natureza e o Deus da história.
O deus criador, meta-histórico responsável da origem do universo (que se retira dele, deixando à natureza a ordem suprema do seu autogoverno e ao homem a desordem da sua liberdade), é um Deus da beleza, do equilíbrio e da paz, um Deus contemplativo que se alegra na própria perfeição e na bondade da própria criação. É esta a imagem onto-teológica de Deus que, vindo a confluir na ideia platónica do “demiurgo”, domina toda a metafísica da Idade Média, e se mantém ao leme na viragem consciencialista e cientista da modernidade, na metáfora do supremo relojeiro, ícone antropomórfico do deísmo racionalista que preside à revolução científica da cultura ocidental a partir do século XVII. O ser supremo do deísmo é um Deus que regula e se manifesta nesta regulação universal como o princípio último da ordem estética, ética e cognitiva: o belo é forma, medida, proporção, assim como o bom é norma e a verdade é lei.
No entanto, esta imagem – eternista, reguladora e harmonizadora — acolhe, como realçado, apenas uma face do Deus bíblico, porque nas Escrituras, ao lado do Deus ordenado e ordenador (“Mas tudo dispuseste com medida, número e peso”, Sab 11, 20) vem ao encontro do homem um Deus que desestabiliza a história, entra em conflito com ela, intervém nela como um princípio de desconstrução, de ruptura dos equilíbrios imanentes, revelados por Ele como ilusórios, errados, injustos. Se o Deus da criação olhou para aquilo que acabava de fazer e via “que era muito bom”,12 12 “Deus viu que isso era bom”: é a fórmula de aprovação divina do fruto da própria ação criadora reiterada por bem seis vezes no primeiro livro do Genesis (1: 4, 10, 12, 18, 21, 25), ao longo das suas várias etapas diárias, e relançada no fim do sexto dia numa hipérbole que resume euforicamente o conjunto numa avaliação incondicionalmente positiva: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (31). O artista é o primeiro crítico da própria obra e Deus distancia-se contemplativamente, como espetador, do próprio papel de autor (primeiro faz, depois olha para a própria obra), para formular um juízo que se torna normativo para a criatura: a criação é uma coisa muito boa, belíssima (o hebraico: טוֹב |towb, é traduzido ‘καλόν’ pelos Setenta, — ‘valde – bonum’ pela Vulgata). o Deus da redenção (da Aliança) olha para aquilo que o homem está a fazer, para aquilo que se passa no mundo, e vê que é muito mau, tão mau que Ele resolve acabar com esse estado de coisas se não com o homem em si, intervindo para mudar radicalmente a situação.13 13 A avaliação positiva de Génesis 1 reverte-se em Génesis 6, quando Deus olha para a história, para a ação do homem: da aprovação, Ele passa para uma condenação que é dolorosa decepção: “Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração. Iahweh arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e afligiu-se o seu coração” (Gn 6, 5-6).
Por outras palavras, se o Deus da criação é um relojeiro que constrói o universo como uma máquina perfeita, o Deus da redenção quebra ou reajusta a máquina da história humana ao revelar que ela é um relógio fora de controle, que dá as horas erradas e deve ser parado para ser reparado. À pacífica ausência ou ao discreto cuidado providencial do Deus da harmonia cósmica14 14 Ao contrário do Deus impessoal do deísmo, o criador bíblico não se ausenta radicalmente da criação: ele continua a preocupar-se ativamente com ela, a sustentá-la como um Deus da Providência (Sab 11, 24-26), mas governa-a indiretamente, através das ‘causas segundas’, respeitando as leis naturais que Ele mesmo instituiu. entrelaça-se a presença robustamente interventista do Deus da dissonância e da contradição, um Deus que participa diretamente na história do homem como interlocutor, iniciador de uma aliança (reiterada em etapas de crescente intimidade) que se posiciona na experiência como fator direto de crítica, conflito, inovação. O Deus separado e distante, objeto de pura contemplação e adoração, está na Bíblia ao lado do Deus unido irreversivelmente ao homem na aliança da Lei e, no final, na carne do seu Filho incarnado, vindo na terra a trazer divisão, desassossego, mudança radical.
Este Deus desconfortável e desconcertante, antagônico e sofredor (“afligiu-se o seu coração”), entra na arte da modernidade precisamente no momento em que o Deus deísta da harmonia está em declínio na filosofia, seja porque é varrido como um adorno metafísico inútil pelo materialismo científico, seja porque é visto como incompatível com a autoconsciência, crescentemente trágica, do homem ocidental (Nietzsche). À sentença nietzschiana15 15 Cf. §§108, 125, 343 d’A Gaia Ciência: “O maior acontecimento recente — o fato de que «Deus está morto», de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito. — já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida; para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular; mais desconfiado, mais estranho, «mais velho»” (NIETZSCHE 1882, p. 233). e cientista da morte de Deus, a literatura responde recuperando a centralidade da experiência da dor como condição de sentido, condição em que volta a impor-se – “tremenda”, inesperada e inexplicável — uma dimensão de transcendência, de encontro com a alteridade, que ao desinstalar o homem de todos os seus próprios códigos racionais e ideológicos, da sua própria inércia emocional, dos ídolos das convenções sociais, abre uma possibilidade efetiva de regeneração.
Muito antes de Nietzsche, Kant tinha observado — com a radicalidade seráfica do filósofo, que confecciona intuições terríveis na neutralidade olímpica do conceito — que o deus do deísmo é um Deus morto, um Deus que ‘não tem interesse’ para o homem vivo, envolvido na dialética trágica da liberdade e da escolha moral:
Como estamos acostumados a entender, pelo conceito de Deus, não apenas uma natureza eterna, actuando cegamente, como raiz das coisas, mas um Ser supremo, que deve ser o (A 633 B 661) criador das coisas pela inteligência e a liberdade, e só este conceito nos interessa, poderíamos em rigor negar ao deísta toda a crença em Deus e deixar-lhe apenas a afirmação de um ser originário ou de uma causa suprema. No entanto, como ninguém deve ser acusado de pretender negar inteiramente alguma coisa, só por não se atrever a afirmá-la, é mais justo e indulgente dizer que o deísta crê num Deus, ao passo que o teísta crê num Deus vivo (summa intelligentia).16 16 KANT 1781| 1787, p. 526.
O homem da liberdade, o homem que tomou o caminho da autodeterminação, da fundação da lei moral na consciência e não na convenção social, não sabe o que fazer com um ‘Deus morto’, mas o que ele descobre à sua custa é que o encontro com o ‘Deus vivo’ é “terrível”, consumido no sinal da contradição e do sofrimento: “Quão terrível é cair nas mãos do Deus vivo! “, escreve o autor da Carta aos Hebreus (10, 31), citado por DostoiévskiDOSTOIÉVSKI, F. – IK. Os Irmãos Karamázov. 11. ed. Lisboa: Editorial Presença (2002), 2021. 2 vols. n’Os Irmãos Karamázov (IK, v. 1, p. 384). O Deus da história é um Deus que, como diz o Gênesis, “se aflige” no seu coração pelo homem e do homem, pelo mal causado e sofrido pelo homem, e é neste sofrimento, através do seu próprio sofrimento, que o homem entra numa relação com Ele, reconhece o Seu rosto, faz experiência dEle, numa aproximação que é, à partida, uma forma de morte a tudo o que somos, ao status quo, à ordem existencial em vigor.17 17 A evocação desta experiência torna-se mandamento no trecho evangélico escolhido por Dostoiévski como epígrafe d’Os Irmãos Karamázov: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto” (Jo 12, 24). Por outro lado, a descrição do encontro com Deus como uma catástrofe existencial, é um aspecto central do profeta Jeremias, citado por Pasolini nos seus “Anexos” a Teorema (PASOLINI, 1968, p. 1060). Ser “seduzido” por Deus, deixar que Ele se apodere de nós, é entrar numa rua da amargura, em rota de colisão com o mundo, a sociedade, os outros homens: “Tu me seduziste, Iahweh, e eu me deixei seduzir; tu te tornaste forte demais para mim, tu me dominaste. Sirvo de escárnio todo o dia, todos zombam de mim. [...] Eu ouvi a calúnia de muitos: “Terror de todos os lados! Denunciai! Denunciemo-lo!” Todo aquele que estava em paz comigo aguarda a minha queda: «Talvez ele se deixe seduzir! Nós o dominaremos e nos vingaremos dele!»” (Jr 20, 7, 10). Este homem que se ‘embate’ com o sofrimento de Deus é um ser pregado à cruz pelo mal feito — do qual se torna dolorosamente consciente -; pelo mal sofrido (uma desgraça, uma doença, um luto, uma injustiça); pelo mal compadecido (do sofrimento dos outros, que sai do recinto da separação, para se tornar nosso na partilha da compaixão).
2 A visita do estrangeiro
Um dos lugares literários supremos deste regresso de Deus ao coração da experiência humana através da porta do sofrimento, do trauma do mal e da desordem, que se consome na arte do século XIX, justamente quando o pensamento filosófico proclama a sua extinção,18 18 Para uma reconstrução histórico-filosófica e literária desta “morte” (metafórica porque um deus que morre nunca existiu), focada sobretudo no horizonte anglo-saxónico, cf. HARRINGTON, 1983, que retoma como título do seu livro uma imagem criada por Nietzsche (no § 125 d’A gaia ciência) e desenvolvida poeticamente no homônimo poema de Thomas Hardy (escrito entre 1908 e 1910), do qual Harrington tira as suas duas perguntas centrais: como interpretar o facto de que: “Whatever conclusion the metaphysician draws, however, religion goes on” (p. 336), e como preencher o vazio deixado por este desaparecimento? (XIII. Some in the background then I saw, / Sweet women, youths, men, all incredulous, / Who chimed as one: ‘This is figure is of straw, / This requiem mockery! Still he lives to us!’ // XIV. I could not prop their faith: and yet / Many I had known: with all I sympathized; /And though struck speechless, I did not forget / That what was mourned for, I, too, once had prized. // XV. Still, how to bear such loss I deemed / The insistent question for each animate mind”, “God’s Funeral”, HARDY, p. 307-309). Se o “theism of fools” se tornou cognitivamente impraticável, como não liquidar o potencial emancipador da dignidade humana associado à fé cristã? Que esta pergunta atravesse, atormente e dinamize uma parte importante da literatura dos séculos XIX e XX, como evidenciado por Harrington, é objeto fundamental de investigação tanto por parte de críticos literários (para a relação entre questão religiosa e modernismo, cf. LEWIS, 2006; para uma perspectiva histórica mais abrangente, cf. BLOOM, 1989) como de teólogos (essenciais as contribuições sobre a literatura contemporânea da ‘escola de Tubinga’ (cf. KÜNG, H. & JENS, W. 1985; KÜNG, H. | JENS, W. | KUSCHEL, K.-J. 1986; KÜNG, H. & JENS, W. 1989; KUSCHEL, K.-J. 1997; KUSCHEL, K.-J. 2018). é a obra de Fiodor Dostoiévski.19 19 A discussão sobre a questão religiosa em Dostoiévski é imensa, coextensiva ao estudo crítico da sua obra em geral. Assinalam-se apenas como contribuições incontornáveis: SHESTOV 1903 (que assimila Dostoiévski e Nietzsche numa perspectiva trágica radicalmente niilista), o existencialista eslavófilo BERDIAEV, 1921 |1934, GUARDINI, 1933 (com uma discussão angustiada d’Os Irmãos Karamazov) e STEINER, 1959 (que enfatiza a dimensão mística, desorganizadora e libertária da religião de Dostoiévski contra o cristianismo moralista e ‘autoritário’ de Tolstói). Em particular na página famosa da Lenda do Santo Inquisidor20 20 IK, Vol. I, Segunda Parte, Livro V, Caps 4. (“Revolta”) e 5 (“A Lenda do grande Inquisidor”), p. 302ss. este autor condensa iconicamente a teologia trágica que percorre toda a sua escrita, retratando Cristo como o visitante inesperado, o estrangeiro que, paradoxalmente, insuportavelmente, traz confusão e transtorno, ameaça a ordem estabelecida e o equilíbrio de poder. Jesus, o fundador do cristianismo, opõe-se frontalmente a um cristianismo histórico inspirado por uma lógica de domínio político, manipulação da liberdade de consciência (“sedução”) e por um princípio de harmonia eudemonista, que justifica o sofrimento em prol de um abstrato equilíbrio metafísico. Este é o cerne da “Revolta” de Ivan Karamázov (IK, Livro 5, Cap. 4, p. 302).21 21 “Se toda a gente tem de sofrer para comprar ao preço do sofrimento a harmonia eterna, o que têm as crianças a ver com isso, és capaz de me dizer?” (IK, p. 310). O sofrimento, em particular o dos inocentes — das crianças -, não é ‘justificável’ metafisicamente, é um escândalo não sanável, e Jesus vem incarnar-se neste sofrimento, fazê-lo próprio, como única forma de o resgatar. A teodiceia antimetafísica de Dostoiévski reconhece na evangélica assunção da cruz dos outros a única resposta válida ao mistério do mal, formulada como uma atitude, e não como um argumento. Esta resposta, no entanto, é tão árdua em termos pessoais que o homem escolhe sistematicamente contorná-la, eventualmente autojustificando-se atrás de uma série de dispositivos ideológicos que se encontram reunidos no discurso grandioso do Inquisidor.
O primado da felicidade sobre a liberdade, do gozo sobre a verdade (do pão material sobre o pão celeste, IK, p. 320ss.), é o mecanismo básico de funcionamento material da sociedade, da vida comum dos indivíduos, legitimado por todas as filosofias, ideologias e códigos sociais a que o Inquisidor dá expressão e que dominam a consciência implícita do homem-massa do nosso tempo. É o “padrão” que a simples presença, a ‘visita’, do Sagrado, do Transcendente (“Ele”),22 22 “Ele [...] quis aparecer nem que fosse por um instante diante do povo, do povo sofredor” (IK, p. 315). vem ‘identificar’, tornar visível, e, nisso mesmo, “partir”. O Inquisidor não se engana. Percebe que o Visitador celeste deve ser imediatamente preso e executado como “o pior dos hereges” (p. 317) – neutralizado, apagado -, porque a sua simples presença é uma ameaça para a ordem terrena, para o esquema que visa “organizar a felicidade para as pessoas” (p. 318). A presença do visitador impõe-se como um fator de desorganização, de estorvo (“Porque vieste cá estorvar então?”, Ib.), questionando “o direito” de gerir “a causa” (Ib.) “da felicidade” segundo a lógica da “harmonia”: da justificação do sofrimento dos outros a partir do próprio bem-estar, do próprio pão; da justificação da renúncia à liberdade e à verdade em prol da segurança material; da justificação do primado do poder (a autoridade) sobre a consciência.
Só por aparecer e ser reconhecido,23 23 “Apareceu sorrateiro, devagarinho, sem querer dar nas vistas e... cosa estranha, toda a gente O reconhece” (IK, p. 315). o Sagrado baralha a situação, alarma o poder, e por isso deve ser bloqueado,24 24 Ao ver a multidão em volta do Visitador, o Inquisidor, o velho cardeal, “[a]ponta o dedo em riste e manda que os guardas O prendam... A guarda o leva o prisioneiro para um calabouço apertado, tenebroso e abobadado” (IK, p. 316-317). “condenado”,25 25 “Amanhã mesmo condeno-Te e queimo-Te na fogueira” (IK, p. 317). expulso.26 26 “O velho vai até à porta, abre-a e diz: «Vai-Te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca! » E deixa-O sair para as ruas escuras da cidade. O prisioneiro vai-se embora.” (IK, op. 330). O homem não quer que “o padrão”, a grande mentira, sobre o qual se rege a sua reivindicação de felicidade material, seja “partido”, o sofrimento próprio e dos outros seja acolhido, a liberdade seja cumprida como procura e testemunho – dolorosos e exigentes — da verdade.
A parábola dostoievskiana da aparição do sagrado que visita a terra para a perturbar, manifestação de uma alteridade transcendente, ‘excessiva, que desestabiliza as regras e as convenções, derruba os hábitos e sacode os corações adormecidos na renúncia à liberdade, volta a ter, no século XX, uma extraordinária encarnação artística, no Hóspede misterioso de Teorema,27 27 “Era a ideia da visita de Deus, que todos afeta e domina — uma visita que deixa emergir e torna demonstrável a sacralidade do real. Era a ideia do teorema, precisamente. / A burguesia mudou alguns ideais, o de possuir e preservar: agora quer produzir e consumir. Nisto a sua irrealidade é completa: “convenções horrendas, princípios horrendos, deveres horrendos, democracia horrenda, fascismo horrendo, objetividade horrenda, sorriso horrendo” [citação de Pasolini tirada de CEDERNA, 1968, p. 17, m.n.], foi assim que Pier Paolo pintou aquela burguesia — e num tal horror ele pensou que o milagre poderia desencadear-se, e o teorema realizar-se. / Teria o milagre anulado tanto horror?” (SICILIANO, 1995, p. 408). obra de Pasolini criada ao mesmo tempo na versão de filme e de romance.28 28 O filme sai nas salas em 1968, pouco depois da publicação do texto literário, que não é um simples guião, mas uma obra desenvolvida e autónoma, “pintura” executada “com a mão direita”, enquanto o filme era um “fresco” realizado como “com a mão esquerda” (assim Pasolini descrevia esta obra dupla na contracapa da primeira edição da versão literária de Teorema — apud SICILIANO, 1995, p. 409).
A diferença radical do cronotopo (da Sevilha quinhentista dos auto-de-fé para a Milão burguesa do séc. XX; dos meandros trágicos do poder teocrático para o dia a dia banal de uma família abastada) e do mecanismo narrativo (o ‘Hóspede’ pasoliniano ‘comunica-se’ despertando o desejo de todos os membros do núcleo familiar, juntando-se carnalmente a eles: o acontecimento místico produz-se como uma relação erótica),29
29
Apesar de recorrer a uma citação de Jeremias em que Deus é apresentado como um sedutor (cf. supra, nota 14), Pasolini realça que a atração erótico-mística produzida pelo Hóspede não deve ser confundida com a sedução humana: ele “«é sobretudo paterno», explica Pasolini, «porque paterno é aquele que possui e não se entrega, mas dá (enquanto os sedutores dão apenas para receber, ele não quer nada em troca), mas tudo o que ele faz, incluindo o amor, fá-lo com ternura materna».” (CEDERNA, 1968, p. 17).
não oculta o paralelismo essencial das duas ‘parábolas’. Em Teorema, é ativada a mesma fórmula dedutiva da lenda karamazoviana: a irrupção — ‘abnormal’, inexplicável — do sagrado abala o estado das coisas, o estado das almas, confrontando-as com uma alteridade perturbadora, que rebenta, “parte” a ‘falsa consciência’ em que se refugia o homem que se governa segundo um esquema de ‘organização da felicidade’. O sagrado dá cabo do ‘esquema’, diz Pasolini, porque “no seu sentido originário, o sagrado não é nem negativo nem positivo, nem homem nem mulher. Ele é o contrário, todo o contrário, o conjunto do contrário” (BONNEVILLE, 1972BONNEVILLE, L. Pier Paolo Pasolini et la religion. Séquences, n. 69, p. 31-35, apr. 1972. Disponível em: https://www.erudit.or g/fr/revues/sequences/1972-n69-sequences1154411/51478ac.pdf. Acesso em: 14.09. 2022.
https://www.erudit.or g/fr/revues/sequen...
, p. 32). O ‘Hóspede’, que parte como chegou, sem explicação (dele “nada saberemos, e, de facto, não precisamos de saber” PASOLINI, 1968, p. 906), é uma “aparição” fugidia de “extraordinária beleza” (Ib., p.905), “um desencadeador de sentimentos autênticos em pessoas que até então só tinham vivido no vazio, sem verdadeiros interesses, no meio de tabus e convenções, [...] uma aparição que, nestes burgueses, vem derrubar completamente a falsa ideia que têm de si próprios”(CEDERNA, 1968CEDERNA, C.: Tra le braccia dell’arcangelo. In: L’Espresso, 21.04. 1968, p. 16-17. Disponível em: https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP/14/1600/?#16. Acesso em: 20.09.2022.
https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP...
, p.17).
3 O silêncio e o fracasso do sagrado
Há um aspecto singular, tanto em Dostoiévski como em Pasolini, que é essencial realçar e que tem intrigado leitores, espetadores do filme e críticos: em nenhum dos dois autores a presença divina se explica. Em ambos, aquele que se apresenta é um ‘sagrado’ sem palavra, que age unicamente através da própria presença física, ressuscitando, sarando e beijando (em Dostoiévski) ou oferecendo-se ao desejo do homem, juntando-se carnalmente a ele, numa espécie de eucaristia blasfema (em Pasolini).30 30 Antes da estreia de Teorema, Pasolini declarou à jornalista italiana Camilla Cederna que teria sido um filme “quase mudo” (cf. CEDERNA, 1968, p. 16). A razão deste silêncio não é simplesmente que o sagrado, do ponto de vista cristão, é sacramento, passa pela presença corpórea (santuário do mistério para o ‘católico pagão’ Pasolini).31 31 Sobre a relação dialeticamente contraditória de Pasolini com a religião, a literatura crítica é exterminada. Entre as contribuições mais recentes, cf. RECALCATI, 2022. A dimensão eucarística da aparição do visitador transcendente é com efeito evidente tanto na Lenda como em Teorema (visitar o homem é ‘entregar-se’ a ele), mas o silêncio do Cristo enfrentado pelo Grande Inquisidor e do Hóspede que visita a família burguesa da Itália triste do milagre económico configura-se diretamente, antes de mais, como o índice de um diagnóstico histórico, como a denúncia do facto que o homem contemporâneo já não consegue ouvir Deus: a Sua palavra já não chega até ele.
A multidão que festeja o regresso de Jesus e o reconheceu imediatamente,32 32 Na Lenda do Grande Inquisidor, a aparição divina nunca é nomeada explicitamente como Jesus, mas referida como Ele. No entanto, a identidade crística é inequívoca: tanto para o narrador, como para a multidão de Sevilha, que o reconhece de forma misteriosamente instantânea, como enfim para o velho cardeal, cujo longo monólogo é construído como uma acusação dirigida diretamente ao Filho de Deus e cuja pergunta sobre a sua identidade é apenas um gesto de autodefesa preliminar. amanhã festejará a sua execução, garante o Inquisidor, porque a sua relação com Deus está aquém da verdade: o reconhecimento não mediado pela Palavra consome-se numa experiência de deslumbramento transitório e de perturbação desestabilizadora, que derruba a ordem de vida existente, mas não institui uma nova (em Teorema a família sai desintegrada do encontro com o visitador do Além, apenas a empregada o sublima numa condição de santidade: numa elevação seguida por um gesto sacrifical de autoimolação). Na perspectiva de Dostoiévski e de Pasolini, o sagrado é fonte de libertação, ao quebrar os ídolos sociais e pessoais que nos prendem, mas a sua ação não é correspondida no deserto da moderna sociedade burguesa (mais precisamente da sociedade neocapitalista de consumo, segundo Pasolini) em que o indivíduo é incapaz de fazer da visita do sagrado palavra, percurso, autorreconstrução.33 33 Sempre na entrevista com CEDERNA, 1968, Pasolini introduzia assim Teorema: “Qual é, no final, o futuro de todas as pessoas que foram marcadas pelo anfitrião ambíguo e misterioso? A sua inautenticidade é revelada precisamente no que acontece após a sua partida, pois cada um é isolado e reduzido à sua própria solidão: e pelo menos três em cada cinco (um caso, como se verá, permanece duvidoso) descarrilam definitivamente e perdem Deus. A uma experiência religiosa, mesmo que ocorra de uma forma paradoxal, como a representada pelo hóspede, eles reagem de facto patologicamente” (p. 17). Na versão literária de Teorema, três capítulos evocam abertamente e ‘didaticamente’ esta rejeição final já no título, “onde se descreve como” Odetta, Pietro, Lucia — os dois filhos e a mãe — “acabem por perder ou trair Deus” (PASOLINI, 1968, p. 991ss, p. 1017ss, p. 1024 ss).
Acabam mal as personagens de Teorema (com exceção de Emília, a empregada santificada pelo encontro com o Hóspede, que se reúne à terra e se converte em fonte milagrosa de lágrimas, ficando aberto o futuro do pai, entre redenção e loucura), enquanto os heróis de Dostoiévski quase sempre são deixados pela narração no meio do caminho, numa indeterminação suspensa do seu futuro, que é promessa, mas nunca certeza definitiva. O beijo de Jesus “arde no coração” do velho Inquisidor, mas ele “fica com a sua ideia” (Ik, p. 330). No fim não queimará o Visitador estrangeiro, como programado inicialmente, mas expulsa-o, deixando-o desaparecer “nas ruas escuras da cidade”, na labiríntica falta de luz da sociedade de massa. E quanto ao príncipe Michkin, cairá ele novamente numa idiotia irreversível? Dmitri Karamázov tomará o rumo da deportação na Sibéria ou da fuga? E que será de Aliocha fora do mosteiro? Para Dostoiévski, Deus ‘abateu-se’ sobre eles todos, escondido na “nuvem escura”34 34 No Êxodo, Deus guia o seu povo e manifesta-se a ele na figura de uma “nuvem tenebrosa” (Ex. 14, 20). “Iahweh disse a Moisés: «Eis que virei a ti na escuridão de uma nuvem»” (Ex 19, 9). “Moisés aproximou-se da nuvem escura, onde Deus estava” (Ex 20, 21 e 40, 36). da ‘grande desgraça’, do “malheur” (WEIL, 1950),35 35 “A desgraça (le malheur) é uma maravilha da técnica divina. É um dispositivo simples e engenhoso que traz para a alma de uma criatura finita esta imensidão de força cega, brutal e fria”, que é a “necessidade” que rege o universo. Na necessidade condensa-se a “a distância infinita que separa Deus da criatura”, fazendo dela o “ecrã pelo qual a alma é separada de Deus”. Na desgraça, porém, esta distância “concentra-se toda inteira num ponto para perfurar uma alma no seu centro” e abrir assim “um buraco” na parede que a separa de Deus. A alma encontra-se desta forma colocada no ponto de “intersecção da criação e do Criador. Este ponto de intersecção é o do cruzamento dos ramos da Cruz” (WEIL, 1950, p. 127-128, m. tr.). abriu-lhes os olhos sobre si mesmos e sobre a possibilidade do bem, mas a escolha a que este reconhecimento convoca, a reconstrução de si que ele exige, estão integralmente nas mãos do homem, na sua vontade de restituir a Deus a palavra e fazer do embate com Ele um diálogo que se desenvolve como aliança, como comunhão. Deus salva, mas não sem o sim do homem, veiculado por uma fala que se articula em autoconsciência: a liberdade que não se autocompreende como palavra fica vazia, inativa, desperdiça-se.36 36 “Sobre o infinito do espaço e do tempo, o amor infinitamente mais infinito de Deus vem para nos agarrar. Temos o poder de consentir acolhê-lo ou de recusar. Se ficarmos surdos, ele volta e volta como um mendigo, mas também, como um mendigo, um dia não volta mais. Se consentirmos, Deus coloca uma pequena semente em nós e vá-se embora. A partir desse momento, Deus, e nós com Ele, não tem mais nada a fazer senão esperar. A única coisa a fazer é não lamentar o consentimento que demos, o sim nupcial. Isto não é tão fácil como parece, pois o crescimento da semente em nós é doloroso. Além disso, pelo próprio facto de aceitarmos este crescimento, não podemos deixar de destruir o que o impediria, puxando e cortando as ervas daninhas; e infelizmente esta erva daninha faz parte da nossa própria carne, de modo que esta jardinagem é uma operação violenta.” (WEIL, 1950, p. 124-125, m. tr.)
Por isso, o ‘embate’ com o sagrado não chega para que a liberdade que ele promete se torne condição de vida, para que o estranhamento que ele produz se torne fonte de confiança regeneradora, fonte de sentido e de fé. Em Dostoiévski como em Pasolini, o fracasso do sagrado – o seu tornar-se irrelevante — paira no seu silêncio, na afasia à qual o confina a condição do homem moderno. E efetivamente, se o sagrado enche a literatura e a arte da modernidade, como manifestação limite da irrupção destrutora e desorganizadora de Deus na vida do homem, na história, ele manifesta-se maioritariamente para naufragar, para não consumar a mudança, a redenção, que promete e exige. Abate-se, terrível e misterioso, sobre o homem, mas a destruição que ele produz não se converte em experiência de reconstrução. O sagrado da arte contemporânea surge poderoso e doloroso como desajuste violento, para assistir à própria derrota, para não encontrar palavra,37 37 STEINER, 1967 reconstrói a vertigem do silêncio que assombra a palavra literária da modernidade e que em Hölderlin e Rimbaud assume duas declinações profundamente diferentes, mas ambas de extraordinária ascendência na tradição sucessiva. Este cariz essencialmente positivo entra em crise com o trauma histórico da segunda Guerra Mundial e da Shoah em particular: a literatura e o pensamento filosófico são confrontados com um sentido de culpa civilizacional que paralisa a criação artística e intelectual, levando à sentença de “morte da linguagem”. O naufrágio do humanismo racionalista, de cariz liberal e iluminista, gerador dos – ou pelo menos impotente perante os — horrores políticos do sangrento século XX, converte-se numa perda de confiança no valor humanizador da cultura ocidental (desmistificada pela literatura pró-bélica como um castelo de Barba Azul, que esconde uma violência bárbara e inumana atrás da sofisticada opulência do próprio aparato simbólico, cf. STEINER, 1971). para não florescer em Graça que redime e salva, para ficar cinza que recai depois da chama ter consumido o existente, e encobre o horizonte exterior e interior do ser humano numa manta negra de luto.38 38 “Estes escritos, quando queimados, vão finalmente lançar alguma luz” (Andrea Emo): o lema da exposição de Anselm Kiefer organizada em Veneza em concomitância com a Bienal 2022 condensa o itinerário deste artista que faz das ruínas e do luto (das tragédias da história, novecentista e universal) o cerne do seu trabalho. De qualquer forma, a obsessão com a cobertura, com o embrulho, com o véu escuro e claustrofóbico de cinzas, é um aspecto recorrente da arte contemporânea, desde o “Grande Cretto” de Burri, em Gibellina, a Christo, desde Anselm Kiefer a Claudio Parmiggiani.
É o sagrado fracassado e melancólico que assombra a escrita de Kafka – espera da carta imperial, enviada, mas nunca entregue -; que disseca The Waste Land eliotiano; que silencia a solidão beckettiana (vinda da carta, levada cada dia por um moço de recados, cada dia esquecido da própria vinda anterior, cada dia anunciando a vinda de quem não chegou, repetitivo e inconsciente como um autómato programado para uma função sem objeto);39 39 É a figura chave do messianismo implodido em ciclicidade implacável e cega na figura do mensageiro de À espera de Godot, que não reconhece os destinatários da sua mensagem, apesar de serem os mesmos do dia anterior; não se lembra de ter já vindo (cada vez é ‘novo’: Moço/ Garçon / Boy); e anuncia uma promessa que é uma decepção (afinal, mais uma vez, Godot há de vir, porque não veio). que imbui de melancolia o cinismo de M. Houellebecq.40 40 São exemplares, neste ponto de vista, o devaneio místico falhado de Submissão (2015) e a subtil ‘carência religiosa’ atestada em Aniquilação (2022). É um sagrado que não salva e em que não se acredita; que semeia ruínas, mas é ele mesmo ruína, em estado de desagregação perante a incapacidade do homem de o acolher. Como sintetiza epigramaticamente Ashbery, num monóstico fulminante, o sagrado em xeque que assombra a arte dos últimos dois séculos é um santuário votado à demolição:41 41 Inaugura-se assim “O tempo da vitória do Museu sobre a Catedral – ou o da transformação da Catedral em Museu”, como observa PIRES DO VALE, 2018, p. 42. O naufrágio do sagrado configura para a arte a tentação (teorizada programaticamente por ARNOLD, 1888) de erguer-se como ‘substituto’ da religião: “Se poderá ser apressado falar de “substituição”, podemos apontar, no entanto, a relevância crescente da arte e das suas instituições na época pós-morte-de-Deus. [...] Ao sair do contexto religioso, ao autonomizar-se, a arte parece ter-se transformado ela própria em religião – em vez de destruir as estruturas religiosas, aproveita-as.” (Ib.) No entanto, Pires do Vale denuncia a componente ideológica desta evolução (p. 42ss.), que como “regime da teoria institucionalista da arte” promove um reencantamento do mundo, funcional a uma estratégia capitalista de produção fetichista da crença. Para o autor, a arte da saída da arte (abraçada por outros artistas contemporâneos) é uma alternativa esteticamente mais consistente, ao desinstalar a pretensão de fazer da criação e fruição artística uma máquina de sacralização. Neste gesto (auto) desconstrutivo, Pires do Vale reconhece uma coerência profunda com a dinâmica ‘antirreligiosa’ do cristianismo que ele caracteriza, na esteira da antonomástica fórmula de GAUCHET, 1985 como uma religião da saída da religião, dispositivo espiritual e teológico de sabotagem de todo o fixismo metafísico, legalístico, naturalista, historicista, religioso. Que a ficção narrativa seja um dispositivo racional essencial para se relacionar com o mistério da condição humana e em particular com a angústia da passagem do tempo (o medo do fim) é a hipótese antropológica que guia KERMODE, 1967 | 2000 na sua magnífica análise histórico-crítica de aspetos e autores maiores da literatura do séc. XX: num horizonte espiritual de descristianização e de crise da fé, com a perda de uma perspetiva eternista de compensação da transitoriedade, a literatura torna-se ainda mais importante não para dar sentido à experiencia, mas para lidar com a sua falta de sentido.
Quando o homem nem sabe mais nomear aquilo que aguarda (a palavra torce-se num malapropismo desajeitado e inconsciente: God é desfigurado em Godot, recusando toda a pertinência semântica),43 43 A firme recusa de Beckett da interpretação do nome Godot como deformação alusiva da palavra ‘God’ (Deus), tem aberto uma caça desenfreada às ‘fontes’ alternativas de inspiração do nome (de ciclistas franceses a heróis balzaquianos). Mais interessante, no entanto, resulta a análise da complexa ratio onomástica que atravessa toda a peça como um relevante eixo semântico (cf. GORDON, 2002, Cap. IV, “The Conglomerative Voice: Cain and Abel”, p. 86ss. A ‘oscilação teológica’ beckettiana, dividida entre a dupla recusa do teísmo antropomórfico e do ateísmo é analisada em WYNANDS, 2007). como o poderá acolher? O embate é sim reconhecido como sinal, como ponto de colisão, mas sem que o vislumbre se traduza em visão, a perturbação se expanda em assombro, o mal-estar germine em Graça.
4 O sagrado como experiência cómica
É precisamente neste impasse que ganha forma, numa parte consistente da literatura contemporânea, uma expressão da experiência do sagrado como experiencia cómica, em que a desordem e a rutura traumática em que ele se configura não são recebidos como uma condição ‘séria’, mas antes como uma situação ‘ridícula’, grotesca, de suprema insensatez: o sagrado é a face com que o real se desvenda como absurdo, em que o ser humano se reconhece como despido de todo o valor.44 44 Para uma reconstrução geral das razões desta inscrição cómica do discurso teológico na literatura contemporânea, cf. BARTOLOMEI, 2021.
É a poética do Unheimlich (o estranho, o inquietante),45 45 Uma noção associada tradicionalmente ao numinoso, mas que encontra uma formulação autónoma seminal em FREUD, 1919. do ziw (“brilho vislumbrado”),46 46 No léxico teológico da Cabala (cf. SCHOLEM, 1962 p. 133), “Ziw” designa o brilho da Sabedoria, que, como Shekhinah, habita tudo aquilo que é, na dupla dimensão de visibilidade e latência. Scholem ilustra esta peculiar forma de luz que na condição terrena se mistura com a sombra, a partir de uma citação do Bahir, um dos textos fundadores da Cabala: “The Sophia, from which emanated the last sefirah, named ‘earth’ [which, as we know, is the lower Sophia] is in everything” (Ib.). própria de uma arte que expressa a própria inconformidade com aquilo que é, que denuncia o desajuste ocultado e atravessa a dor para procurar nela a luz, a “fenda” 47 47 “A fenda está aqui?” (“Il varco è qui?”), perguntava-se angustiado Eugenio Montale em “La casa dei doganieri” (“A casa dos aduaneiros”) (MONTALE, 1928-1939, p. 161). através da qual o “desconhecido” (o transcendente) se apresenta, mas apenas encontra a sombra da incompreensão, a ‘suspeita’ angustiada de que no silêncio não se abrigue nenhuma presença, mas antes o vazio do “sem sentido”, que está inscrito como terrível possibilidade no embate que quebra a ordem e as certezas. A manifestação perturbadora que se configura como vislumbre – suspeita — de uma luminosidade que permeia a escuridão da terra, revelando que ela também é emanação, apesar de fraca e distante, da luz primordial, não se finaliza em visão: a Shekhinah, a presença divina no mundo desdobra-se entre manifestação e ocultamento. A alteridade que relativiza o idêntico, as identidades sobre as quais nos regulamos, expondo-as como algo de ‘pequeno’, vulnerável e precário, não é objeto de experiência, mas condição de uma percepção diferente de nós, de uma alteração ótica, que desmente toda a visão anterior. A “vastidão” indiciada no vislumbre, na evidência traumática da nossa pequenez, não será apenas o abismo incomensurável do nosso não sermos nada disso?
evoca o que o tempo nos aconselha
com mensagens que parecem sem sentido:
o telefone toca apenas uma vez
faróis são deixados toda a tarde acesos
sucessivas falhas nos perturbam
pois não são falhas apenas
talvez nos momentos decisivos
regresse por alguma passagem o desconhecido
sobre o rio
e a alma repete a pergunta eterna
José Tolentino de Mendonça, “Ziw”48 48 TOLENTINO MENDONÇA, 2005, p. 186. Cf. também “Um piquenique no campo” e “Vidas secretas”, Ib., p. 183 e p. 189.
A “pergunta eterna”, porque sempre de novo repetida, por todo o homem, choca, sem resposta, na parede impenetrável da realidade, contra a qual a atirou um desajuste, uma “bússola enlouquecida que marca ao calha”, um “cálculo dos dados que não faz soma” (MONTALE, 1928-1939). Nos “momentos decisivos”, a nossa experiência do mundo racha como uma aparência; o presságio febril de que o nosso conhecimento não passa de uma forma de ignorância, uma corda bamba sobre a voragem do desconhecido, mede-se com a “pergunta eterna”, aterradora, se este desconhecido seja o sem sentido, o puro nada, ou algo tão grande que não cabe em nós, mas que nos contém e nos enche. Nos “momentos decisivos”49 49 São os momentos que Karl Jaspers notoriamente definiu de “situações-limite”: experiências – de sofrimento, medo, trauma, culpa, conflito, destino, fracasso – em que o ser humano lida com a própria finitude, a própria impotência e é chamado a conhecer o próprio ser na nudez da sua autenticidade e na sua abertura constitutiva à transcendência. É precisamente ao sofrer a constrição dolorosa da própria finitude, e da derrota – física, moral, metafísica – que ela implica, que para o ser humano se torna reconhecível uma “intimação de imortalidade”, de transcendência (cf. JASPERS, 1932, VII Cap. p. 201-254). — de trauma, de desordem, de sofrimento, de embate com o mal — o quotidiano é esmagado pela experiência do sagrado, pela ferida que ele abre na ‘normalidade’, entregando ao homem a questão vertiginosa de saber se esta ruptura é ‘ameaça’ ou ‘promessa’, se a alteridade indeterminável a partir da qual ela nos obriga a nos ver, seja o nada ou uma plenitude de sentido, graça ou infortúnio.
Se o homem religioso da tradição podia interpretar o trauma como um castigo divino, um ato de justiça do supremo legislador e juiz, ele encontrava neste castigo uma confirmação do seu valor metafísico irredutível: por mais temível que seja, o julgamento de Deus reconhece no sujeito um estatuto de liberdade e responsabilidade que eleva a dignidade humana a uma dimensão escatológica. Nesta ótica, Deus está apaixonado pela liberdade humana, considera-a tão cheia de sentido que a torna objeto de um julgamento imperecível: arder no inferno por toda a eternidade pelo mal cometido no “sopro de brisa” que dura uma vida na terra50 50 “SENHOR, dá-me a conhecer o meu fim / e o número dos meus dias, / para que veja como sou efémero. / De poucos palmos fizeste os meus dias; / diante de ti a minha existência é como nada; / o homem não é mais do que um sopro! / Ele passa como simples sombra! / É em vão que se agita” (Sl 39|38, 5-7) (cf. também Sl 144|143, 4). é uma perspectiva aterradora, mas que consagra o significado indelével de cada ato feito, a importância irrevogável que todo o homem tem aos olhos de Deus.
Este consolo escatológico intrínseco à eventualidade do castigo, até aquele “monstruoso” da condenação eterna, é, contudo, negado ao homem contemporâneo, que experimenta o sagrado (a desordem, o excesso, que ultrapassa e derruba — inexplicável, incompreensível – padrões, convenções, rotina) sem ouvir dele uma palavra, sem a mediação de uma linguagem religiosa que estabelece a colisão como relação. Por isso, este homem afunda-se no silêncio do sagrado como que em areias movediças metafísicas que devoram pouco a pouco qualquer noção de integridade, identidade antropológica,51 51 Uma corrosão lenta e inexorável que encontra uma imagem poderosa na protagonista semienterrada da peça beckettiana Dias Felizes (Oh les beaux jours) retrato terno e pungente na sua fatalidade glacial, de uma pobre mulher paralisada pela sua própria inconsistência ontológica. que o enterram na sua própria imanência como uma armadilha sem saída, sem alternativa, que o priva de qualquer liberdade última (exceto a de usar um revólver,52 52 Ao alcance de Winnie, a protagonista de Dias Felizes, juntamente com o guarda-chuva e a carteira, há uma pistola, que — quem sabe — poderia também ser o verdadeiro alvo dos esforços do seu marido para se aproximar dela. terminando antecipadamente a sua própria vida).
A visão medonha do eterno como epifania do próprio ser supérfluo,53 53 O desajuste entre a finitude humana e a eternidade (inscrito na combinação aporética da ratio temporal da sucessão e da duração) é um tópico central da poesia de Emily Dickinson, que dedica algumas das suas líricas mais marcantes ao pesadelo da superfluidade metafísica do indivíduo (cf. entre outros, “Superfluous were the Sun”, F1013/J999 [1865]). Para uma análise do poema e um enquadramento crítico desta questão, cf. BARTOLOMEI, 2016. da condenação do homem ao apagamento, à futilidade da irrelevância ontológica absoluta — pesa sobre o sagrado afásico da arte contemporânea como uma ameaça ‘cómica’, como uma catástrofe desprovida da dignidade do trágico, que é uma experiência de sentido e valor. Na arte do absurdo, o sagrado é privado da fala, não porque nele esteja aninhado um Deus silenciado, mal compreendido pelo homem contemporâneo (como ainda acreditavam Dostoiévski e mesmo Pasolini, escritores trágicos, crentes irredutíveis na dignidade ‘eterna’ e não puramente terrena do ser humano),54 54 Para o ‘crente ateu’ Pasolini, a crise do sagrado na sociedade de massa é o índice central de uma trágica crise de civilização, de uma mutação antropológica em que o homem perde toda a noção da própria “origem”, da própria ligação à natureza, para se converter num consumidor homologado e alienado, cf. RECALCATI, 2022. mas porque neste silêncio é confirmada escatologicamente a consciência fundamental do homem-massa da sua própria futilidade existencial, histórica e metafísica.
Na experiência murcha do homem-massa, do refém inerte da sociedade do consumo, a subjetividade é reduzida a uma manifestação superestrutural de mecanismos económicos, sociais e técnicos totalmente subtraídos ao seu controlo e o desejo é degradado a dispositivo consumista de manipulação capitalista de autopercepção. Neste contexto, os “momentos decisivos”, as experiências limite, são desfigurados – surgem como a ocasião que desmascara a ilusão, o engano, que é toda a fé no próprio valor metafísico, na própria dignidade escatológica.
Nesta experiência cómica do sagrado, na qual ele se manifesta como confirmação da falta de sentido da existência humana, o sofrimento já não é a queda, gloriosa e magnificamente dignificadora, do indivíduo: o herói não cai, ele torna-se barata, cuja carcaça será varrida na indiferença geral pelos seus, como n’A metamorfose de Kafka; torna-se cão, que outrem leva à trela enquanto detiver o poder físico e social de o submeter e o degradar a mera pertença material (como acontece em À espera de Godot com o par constituído por Lucky e Pozzo, que encarna um duplo invertido dos protagonistas). Deste ponto de vista, A metamorfose de Kafka é a grandiosa parábola metaliterária desta parábola ‘cómica’ da imagem do homem que de herói trágico ‘decai’ em pura entidade biológica, descartado como lixo quando deixar de ser funcional como recurso da máquina social. Por outro lado, O Processo, em contraste com as interpretações que vêm nele um ajuste de contas geral com o mecanismo culpabilizador da Lei, também pode ser lido como a despedida glacial da consolação do julgamento de Deus como um testemunho do valor escatológico da liberdade humana. No horizonte do sagrado pós-religioso, em que a Lei já não é uma palavra que ilumina a consciência, o julgamento é um mecanismo de exercício do poder como um fim em si mesmo, que apenas faz sobressair a absoluta arbitrariedade da máquina social que nele assenta e a insignificância radical da consciência individual. A tragédia torna-se comédia, o sublime implode no grotesco.
Este processo de regressão do sagrado ao absurdo, de deflação cómica do trauma e da desordem na arbitrariedade do sem sentido, pode evidentemente levar ao cinismo e à abolição niilista de toda a moral (a convicção do super-homem que se coloca além do bem e do mal). É este o risco evocado na parábola feroz de regressão civilizacional apresentada no cinema dos anos Sessenta e Setenta em obras primas como Weekend55 55 Indiretamente inspirado pelo conto “La autopista del Sur” (“A autoestrada do Sul”) do escritor argentino Julio Cortazar e com referência explicita a Georges Bataille, cuja Histoire de l’Œil está livremente parafraseada no longo monólogo erótico da protagonista. de Jean Louis Godard, que retrata a perda de todas as coordenadas morais em que implode a sociedade de consumo, desmascarada como um júbilo orgíaco do desejo, desligado de qualquer normatividade ética, governado unicamente pela lei capitalista da sua própria afirmação e eficácia, e portanto fonte de uma violência cega, indiscriminada e inconsciente que culmina na inversão parodística do rito dominical da Eucaristia na refeição antropofágica perpetrada pelo bando de hippies revolucionários da “Frente de Libertação Marne et Oise”.
É outro, no entanto, o rumo predominante na produção artística associada a esta expressão do fracasso do sagrado como experiência ‘cómica’ – um rumo que abraça uma reafirmação dolorosamente derrotada, mas limpidamente autoconsciente da dignidade da não violência e da solidariedade. Em Kafka e em Beckett, por exemplo, os personagens aceitam o absurdo, a própria irrelevância metafísica, sem se revoltar, resignados ao próprio estatuto de animais para abate, destinados a um sofrimento sem sentido porque atores involuntários de uma vida sem sentido; eles recusam, porém, colocar-se do lado do poder, da violência, da injustiça que os fere. Por um lado, com efeito, eles mantêm tenazmente aberta — contra toda a negação — a possibilidade de o sagrado ser promessa e não apenas ameaça. Por outro lado, optam pela solidariedade e pela partilha como forma de sobrevivência a guardar na impotência e vulnerabilidade da própria condição (esta é a opção que subjaz à lealdade terna e inconclusiva, mas inabalável, que liga Estragon e Vladimir, como à mansidão do agrimensor d’O Castelo), atestação nem heróica nem programática, mas cristalina, da própria inconformidade com o mal. O homem sofre o mal e constata nele o absurdo, a falta de sentido terrena e escatológica, da própria condição, mas recusa-se a consuma-lo, subtraindo-se ao exercício da violência.56 56 Em Bataille, a diferença entre ser objeto e sujeito do excesso representado pelo mal e pela violência é eludida, prejudicando substancialmente a reflexão deste autor sobre a potência reveladora do mal na literatura (cf. BATAILLE, 1957).
5 A banalização do sagrado entre recalque e espetacularização
Nesta representação cómica do sagrado fracassado, desvendamento desmistificador e desmistificado da insignificância metafísica do homem, ocupa um lugar específico uma experiência fundamental do artista que observa o homem-massa, o seu embate com o sagrado despido de palavra, regredido a grotesco: a observação inquietante de que o que se torna comum no horizonte contemporâneo é a banalização do sagrado, no recalque da sua força reveladora, ou na sua espetacularização, na sua comercialização, no seu aproveitamento económico ou social (como capital identitário a gastar no mercado do simbólico).
A arte torna-se neste caso diagnóstico desolado desta manipulação banalizadora do trauma, da autossubtração à sua potência epifânica, que se expressa como cegueira (estratégia de sistemático obscurecimento da escuridão, de restabelecimento instantâneo e amnético da normalidade, do ‘padrão partido’ — do broken pattern -, no cancelamento do que aconteceu) ou como seu desgaste consumista.
Veja-se, como exemplo de retrato desta primeira atitude, de recalque e negação, a parábola triste apresentada no poema “Piquenique no campo” de J.T de Mendonça, onde um grupo de amigos é apanhado desprevenido por uma mudança atmosférica que lança uma luz totalmente nova sobre a paisagem do habitual passeio dominical,57 57 Encontramos neste poema mais um weekend. Seria interessante analisar o papel do fim de semana na arte contemporânea, cinema e literatura, como laboratório fulcral da relação temporal com o sagrado, na viragem civilizacional da sua ritualização religiosa para uma ritualização consumista — turística, hedonista -. desdobrando-se como um vislumbre de disrupção perturbadora (unheimlich) da integridade da realidade quotidiana: “afastados um do outro olham assustados a paisagem / muito preciosa, quebrada no bordo ou já sem asa / por isso alguém antes a colocara de um modo enganador” (TOLENTINO MENDONÇA, 2005TOLENTINO MENDONÇA, J. T. A Estrada Branca. In: A Noite Abre Meus Olhos [poesia reunida]. 4. ed. Lisboa: Assírio & Alvim (2006), 2021., p. 183). A reação do grupo, face a este trauma subtilmente inexplicável, é a decisão imediata e concorde, embora na ausência de qualquer verbalização, de se retrair na zona de conforto do regresso à normalidade: “Não disseram ainda, mas cada um já pensou / para a semana o piquenique no campo”. Para o homem-massa o embate com o sagrado muda apenas o rumo do passeio do fim de semana, da ocupação das ‘horas livres’: é uma experiência de desordem neutralizável numa estratégia cómica de pura futilidade – ir para o campo em vez da praia — porque afinal, há muito que esta experiência foi desvendada como uma ilusão, simulacro de um mistério que não há, ou epifania autêntica do facto de não haver mistério nenhum, de não haver nem sentido, nem Deus, neste desajuste que apanha o homem desprevenido, baralhando a harmonia da “paisagem muito preciosa”, do bem-estar quotidiano, dos hábitos amenos dos cidadãos das opulentas sociedades ocidentais.
O diagnóstico artístico desta tendência crescente, por parte das massas, para banalizar o sagrado através da remoção e amnésia, é combinado com o diagnóstico da sua espetacularização consumista naquele grande mistério cómico do século XX que é La dolce vita de Federico Fellini, um fresco desolado e magnífico da profanação implacável do cristianismo perpetrada por Roma, a cidade eterna, sede do Papado, ‘capital’ do catolicismo. No filme, Cristo é reduzido a uma estátua voando sobre os céus carnais da Urbe, um pretexto grosseiro para engatar meninas bonitas; o desespero dos pobres e dos pequenos é uma oportunidade para os apanhar na armadilha de uma religião degradada à superstição, transformando o engano do falso milagre num festival mediático de júbilo jornalístico convulsivo:58 58 Que a abordagem ‘cultural’ ao sagrado corra o risco de se tornar pura manipulação comercial ou ideológica é uma questão essencial também para Pasolini, que retrata a dissolução do religioso degradado a puro fenómeno social e conteúdo comunicativo em Teorema (“Inchiesta sulla santità”, p. 1035ss.) e a puro achado estético no filme curto A ricotta (1962), em que a morte ‘ritual’ do protagonista se dá num quadro do estranhamento geral, e a reprodução artística do religioso se torna obstáculo para a recepção da sua dimensão mistérica. para as manchetes, o embuste religioso funciona como os cornos do ator americano. No moedor de carne da produção capitalista de informação, o céu e a terra igualam-se (pari son); o sagrado é uma variável permutável do profano na equação do sucesso e do negócio; a mundanidade e o sexo casual são uma forma de vida que anda de mãos dadas com a autodestruição de uma cultura consciente da sua própria impotência social e aridez existencial: nem mesmo a morte trágica de um pai que mata os seus dois filhos antes de cometer suicídio é capaz de parar o carrossel negro de que o protagonista, Marcello, é refém, juntamente com a sociedade — embriagada pela afluência e pela busca neurótica do prazer — que rodopia à sua volta.
O homem-massa já não sabe o que fazer com a dor, por isso varre-a para debaixo do tapete ou, perante ela, varre-se a si mesmo para debaixo do tapete, quando não escolhe exibir o sofrimento como um troféu, funcional à própria autopromoção identitária e material.
Se na arte pós-religiosa que regista o silêncio de Deus (ou a incapacidade humana de receber a sua palavra), o sagrado é fracasso, “santuário votado à demolição”, na arte que regista a experiência cómica do sagrado como confirmação da percepção histórica do absurdo, do não sentido da condição humana, da insignificância metafísica do sujeito, ele é reduzido a um pálido simulacro de uma presença que foi falsificada durante tanto tempo que a sua ausência já não dói, não fere, não perturba. A insignificância humana instituída pelo dispositivo mortal da sociedade de massa encontra confirmação na inexistência divina, na ausência de qualquer alteridade divina dentro do coração do sagrado. O homem e Deus afundam-se juntos neste naufrágio, mas o espetáculo desta derrota já foi visto e descrito tantas vezes que aquilo que foi inaugurado como uma tragédia é agora recebido como uma farsa.59 59 “Se é um espectáculo digno de uma divindade ver um homem virtuoso em luta com as contrariedades e as tentações para o mal e vê-lo, no entanto, oferecer resistência, é um espectáculo sumamente indigno, não direi de uma divindade, mas até do homem mais comum, porém bem pensante, ver o género humano a elevar-se de período para período à virtude e, logo a seguir, recair tão profundamente no vício e na miséria. Contemplar por um instante esta tragédia pode talvez ser comovente e instrutivo, mas é preciso que por fim caia o pano. Efectivamente, com o tempo, isso torna-se uma farsa e, embora os actores não se cansem porque são loucos, cansar-se-á o espectador; pois já tem que chegue num ou noutro acto, se puder supor com razões que a peça, sem nunca chegar ao fim, é sem cessar a mesma.” (KANT, 1793, p. 41)
E, no entanto, no coração da busca artística, em cada coração não ressequido pelo fetiche do consumismo e do poder, não se pode saciar a sede de sentido em que o homem expressa dolorosa e irredutivelmente a sua não-resignação ao absurdo, ao nada.
6 A arte sedenta de crer, incapaz de crer. A beleza — experiência de não resignação
Na arte sedenta de crer, incapaz de crer, do nosso tempo, o poeta – todo o artista — não pode renunciar a desejar e querer dizer este sagrado que já não fala, já não é entendido, para o qual falta a palavra, banalizado, recalcado e espetacularizado como um recurso económico e identitário. O poeta, que já não pode dialogar com Deus, mede-se, cómica, mas obstinadamente, com o seu silêncio, não desistindo perante o fracasso da visão e a falta de argumentos, não desistindo perante a falta de interesse dos outros:
God has a problem with. Sure, he could see us
if he had a hankering to do so, but that’s
not the point. The point is his concern
for us and for biscuits. For the loaf
of bread that turns in the night sky over Stockholm.
what I had told them before. The affair is no one’s business.
The peeing man seemed not to notice either.
We came up the strand with carbuncles
and chessmen fetched from the wreck. Finally the surplus buzz
did notice, and it was fatal to our project.
We just gave up then and there, some of us dying, others walking
wearily but contentedly away. God had had his little joke,
but who was to say it wasn’t ours? Nobody, apparently,
which could be why the subject was never raised
in discussion groups in old houses along the harbour,
some of them practically falling into it.
Yet still they chatter a little ruefully: ‘I know
your grace’s preference.’
John Ashbery, “The God of fairness”60 60 “Os Deuses da Equidade” ASHBERY, 2000, p. 76-77: “A incapacidade de ver Deus não é um problema / com que Deus tem um problema. Claro, que Ele poderia ver-nos / se tivesse o desejo de o fazer, mas não é essa / a questão. A questão é a sua preocupação / conosco e com as bolachas. Com o pão / que rodopia no céu noturno sobre Estocolmo. // Aí não, ali. E eu gritei-lhes / o que lhes tinha dito antes. O caso não é da conta de ninguém. / Também o homem que mijava parecia não reparar. / Viemos da praia com bexigas nos pés / e peças de xadrez resgatadas do naufrágio. Por fim, o burburinho excedente / deu conta, e isso foi fatal para o nosso projeto. / Então desistimos, alguns de nós morrendo, outros afastando-se / cansada, mas contentemente. Deus tinha tido a sua pequena piada, / mas quem poderia dizer que não era a nossa? Ninguém, aparentemente, / o que poderia ser a razão pela qual o assunto nunca foi levantado / em grupos de discussão nas casas antigas ao pé do porto, / alguns deles praticamente afundando nisso. / No entanto, continuam a tagarelar com uma ponta de arrependimento: ‘Eu sei / o que vossemecê prefere’.” (m.tr.) Ib.
Será que Deus não se importa com a cegueira do homem, com o seu “fracasso” em relacionar-se com Ele? Será que Deus, pelo seu lado, não se importa de ver o homem, de olhar para ele? Com que se aflige Deus, então? Será que também para Ele, como para o cidadão do nosso tempo, vale tudo (‘nós e as bolachas’ pesando o mesmo na balança do seu interesse)? O poeta, intelectual de boas leituras, conhece todas as respostas (“Claro que”), sabe que perguntas destas são todas inconcludentes, mas não pode, teimoso e ingénuo, deixar de interrogar aquele rodopio perturbador da aurora boreal que tão absurdamente, contra todas as provas científicas, se indicia como experiência teofânica, como “pão celeste” que se oferece à fome do homem “no céu noturno de Estocolmo”. Será que o céu não tem mesmo nada a ver com o Céu? Não será que afinal é Algo e não o Nada, aquilo que se deixa vislumbrar? “Aí não, ali”: será que os outros não viram? O poeta “grita”, porque à primeira ninguém lhe deu ouvidos, porque ninguém “parecia aperceber-se”, porque o “projeto” de ver algo caía na indiferença geral (“O caso não é da conta de ninguém”). O projeto poético de ver Deus acaba sempre em “fracasso” (“failure”) e sábio seria renunciar (“Desistimos então), suspeitando que afinal pode bem ser que Deus se ria disso tudo (“Deus tinha tido a sua pequena piada”), “no entanto”, ainda após todas as desistências (‘alguns morreram’, ‘outros ‘afastaram-se’), o poeta continua a “tagarelar”: não renuncia, acredita – ilude-se? -, em certos momentos, em “momentos decisivos”, ter acesso a Ele, “ler a sua mente” e acolher este fragmento de entendimento como uma reserva de beleza sobreabundante, excessiva, maravilhosamente fora da norma:
when I even think I can read his mind,
There they are, for the taking. Take them away.
Hurry, before he changes his mind – again.
of spring planting, and the marvelous harvests to come.
Ib.61 61 “Há momentos em que / penso mesmo conseguir ler a sua mente, / revestida de pérolas e diamantes. / Aqui estão eles, para a colheita. Levem-nos. / Depositem-nos em qualquer banco suburbano à vossa escolha. / Depressa, antes que ele mude de ideias — mais uma vez. // Mas tudo o que eles fizeram foi apoiar-se nas suas pás, sonhando / a plantação primaveril, e as maravilhosas colheitas que se avizinham.” (m.tr.).
No sagrado, o tremendum e o mysteriosum, como realçado por Rudolf Otto62 62 No sagrado, observa R. Otto, o “numinoso”, o “Mysterium Tremendum” (combinação de “majestas”, energia, dimensão arrepiante e inacessibilidade do “totalmente outro”) está, contraditoriamente, mas indissociavelmente, associado com o fascinante e o assombroso (cf. OTTO, 1917). , estão sempre, contraditória e paradoxalmente, associados com o fascinans. Até o sagrado fracassado, recalcado, manipulado em objeto de exibição, não deixa de vir ao encontro do homem como manifestação de beleza transcendente que excede o humanamente concebível, que se apresenta como epifania de luz: “um milhão de cintilantes lanternas de papel / sobre o rio”.63 63 “A alegria e a dor são dons igualmente preciosos, ambos devem ser saboreados integralmente, cada um na sua pureza, sem procurar misturá-los. Através da alegria, a Beleza do mundo entra na nossa alma. Através da dor, entra no nosso corpo. Só com a alegria não poderíamos mais tornar-nos amigos de Deus do que podemos tornar-nos capitães estudando os manuais de navegação. O corpo tem um papel na aprendizagem. Ao nível da sensibilidade física, só a dor é um contacto com essa necessidade que constitui a ordem do mundo: o prazer não encerra a impressão de uma necessidade. É uma parte superior da sensibilidade que é capaz de sentir a necessidade da alegria, e isso só através do sentimento do belo. [...] A virtude transformadora da dor e a da alegria são igualmente indispensáveis” (WEIL, 1950, p. 123-124). Em breves instantes de iluminação, como em sonho, este fulgor parece tornar-se disponível “para a colheita”, misteriosa, milagrosamente acessível à palavra de quem escreve. É preciso ser rápido para aproveitar este instante, este fragmento, de Graça: da graça da inspiração, da inspiração da Graça (“Depressa, antes que [Deus] mude de ideias – novamente”). O sonho pode desvanecer e o fulgor apagar-se, mas se o poeta tiver sido atento, e tiver levantado a tempo a mão para a fugaz manifestação da beleza, “as pérolas e os diamantes” podem ser apanhados e levados como um tesouro a guardar numa biblioteca “suburbana”, nas páginas despojadas de um livro de bolso.
Conclusão
O sagrado despido de palavra fica semente na palavra do homem, do poeta, que faz da experiência do sem sentido, do absurdo, uma fala, um grito (como no Teorema pasoliniano),64 64 “M.M.C. [Michel-M.Campbell] — E qual é o significado do grito do Pai quando anda nu no deserto no fim do filme? P.P. [Pier Paolo Pasolini] — Podemos repetir o que dizia sobre o Rapaz ou Deus. O grito final não é nem positivo nem negativo, é uma pura interrogação. M.M.C. — É o grito do homem perante o mistério da sua vida ou perante o sagrado! P.P.- É o grito do homem que, de certa forma, reencontra Deus ou o sagrado, e que se dá conta de que já lhe é impossível viver o sagrado” (BONNEVILLE, 1972, p. 32, m.tr.). “Assim, o filme termina com o seu grito, um grito que não se sabe se é libertador ou desesperado.” (CEDERNA, 1968, p. 17, m. tr.). um verso, uma busca de sentido: “Vamos então?” (“Alors, on y va ?”) pergunta Vladimir a Estragon nas falas finais de À espera de Godot. “Vamos” (“Allons-y”), responde Estragon, apesar de eles não se mexerem (como anota o texto), numa descolagem total entre palavra e ação. “Vamos”, diz aquele que não se mexe. Buscamos, diz aquele que não encontra. Toda a arte, toda a poesia, se inscreve no arco deste falhanço que se produz como não resignação, como irredutível procura do sentido negado pela experiência.65 65 Em Worstward Ho, S. Beckett condensa esta poética num aforismo tão sedutor que se tornou num mantra da cultura de pop: “Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better” (BECKETT, 1983, p. 7). A verdade é que esta frase, colocada na primeira página, é uma espécie de módulo combinatório a partir do qual é construído todo o texto, variatio meditativo-inconclusiva sobre a recursividade do fracasso: “Try again. Fail again. Better again. Or better worse. Fail worse again. Still worse again. Till sick for good. Throw up for good. Go for good. Where neither for good. Good and all” (Ib., p.8). “First try fail better one” (Ib., p. 21) “Next try fail better two […]. First back on to three” (Ib., p. 22). “That said on back to try worse […] Next fail” (Ib., p. 31, etc.).
O que o poeta salva, não é vida, nem a memória do que se deu — Orfeu não resgata Eurídice, nem a si mesmo da morte -,66 66 “And no matter how all this disappeared, / Or got where it was going, it is no longer / Material for a poem.” (“E pouco importa como tudo isto desapareceu, / Ou chegou onde ia, deixou de ser / Matéria para um poema”), “Syringa” (“Siringe”) (ASHBERY, 1977, p. 534-536; AECP, p. 210-215). A vida não se deixa capturar numa imagem: “the «tableau» / Is wrong. [… O]ne cannot guard, treasure / That stalled moment. It too is flowing, fleeting; / It is a picture of flowing, scenery, though living, mortal” (“o «quadro» está sempre errado. [... N]ão podemos guardar, entesourar / Esse encurralado momento. É demasiado fluido, fugaz; / É um retrato de fluidez, panorama, embora vivo, mortal”). mas sim a memória de uma plenitude incessantemente procurada e incessantemente desejada, em que este mundo sonha ser aquilo que não é, e sonha entrar em comunhão com aquilo, aquele que não é (sonha “ler a mente” de Deus). A maioria dos homens não lê poesia, nem se apercebe “das pérolas e dos diamantes” que o poeta vislumbrou e guardou nas páginas dos seus livros (“Mas tudo o que eles fizeram foi apoiar-se nas suas pás”), no entanto todo o homem não deixa por isso de sonhar as mesmas “maravilhosas colheitas”, o fruto da “plantação primaveril”, a beleza da vida que gera nova vida, que se entrega como novidade que sara. Além de todo o mal sofrido e infligido pelo homem, além de toda a insensatez à qual a vida se condena, Deus é promessa de bem que não se deixa apagar, que tenra e tenazmente se agarra à criatura e não a larga.
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“a nódoa negra mais tarde passará. / Por enquanto, a dor faz uma pausa na sua ronda, / anota a hora do dia, a temperatura do paciente, / deixa um memorando para o substituto: Mas que raio / pensavas estares a fazer? Quero dizer... / Enfim, menos dito melhor, como se diz. / Vou afixar isto na secretária. / Deus há de encontrar o padrão e parti-lo.” (m.tr.)
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Um estrangeiro que recebemos como “um intruso”, apesar de ele ser algo que nos define como seres humanos, sem o qual não nos reconhecemos como tais (cf. NANCY, 2000NANCY, J.-L. L’Intrus. Paris: Galilée, 2000.).
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“Está próximo o grande dia de Iahweh! Ele está próximo, iminente! O clamor do dia de Iahweh é amargo, nele até mesmo o herói grita. Um dia de ira, aquele dia! Dia de angústia e de tribulação, dia de devastação e de destruição, dia de trevas e de escuridão, dia de nuvens e de negrume, 1dia da trombeta e do grito de guerra contra as cidades fortificadas e contra as ameias elevadas.” (Sf 1, 14-16) (Todas as citações bíblicas são tiradas da BÍBLIA SAGRADABÍBLIA SAGRADA (Difusora bíblica). Disponível em: http://www.paroquias.org/biblia/index.php?m=1 Acesso em: 14 set. 2022.
http://www.paroquias.org/biblia/index.ph... ). -
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O “inaceitável” é a categoria que define a verdadeira arte segundo ASHBERY, 1968ASHBERY, J. –AECP. Auto-Retrato num Espelho Convexo e Outros Poemas. FEIJÓ, A. M. (Ed., tr. e Posfácio). Lisboa: Relógio d’Água, 1995..
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“Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada. Com efeito, vim contrapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora à sua sogra. Em suma: os inimigos do homem serão os seus próprios familiares.” (Mt 10, 34-36).
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Que, como afirmado no Timeu (28C ss), sendo bom e livre de inveja, quis que o mundo fosse bom e belo, que “tudo fosse o mais semelhante a si possível, e por isso produziu-o a partir do arquétipo da própria perfeição eterna — imutável e inalterável –” (29 D-E). “Na verdade, o deus quis que todas as coisas fossem boas e que, no que estivesse à medida do seu poder não existisse nada imperfeito. Deste modo, pegando em tudo quanto havia de visível, que não estava em repouso, mas se movia irregular e desordenadamente, da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que esta é sem dúvida melhor do que aquela.”(30 A -B) “As leis que regem são por isso a analogia (a semelhança) e a proporção (o mais perfeito dos elos entre a pluralidade dos elementos combinados pelo demiurgo na unidade do cosmo”. (31C) Esta cosmogonia platônica da intrínseca bondade do universo criado, fundada nos princípios de harmonia, proporção e analogia, será integrada (principalmente pela mediação da tradução e do comentário do Timeu, de autoria de Calcídio) na cosmogonia bíblica, instaurando-se, ao longo da Idade Média, como padrão filosófico da teologia criacionista cristã.
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“O que está sentado no trono declarou então: «Eis que eu faço novas todas as coisas»”.
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O aforismo, slogan da vanguarda novecentista, foi lançado por Ezra Pound, que o tirou de uma antiga crónica chinesa e o aproveitou como título de uma recolha de ensaios publicada em 1934. Sobre a história cultural da noção de novidade, e o seu papel diversificado, mas sempre essencial no modernismo, não apenas artístico, cf. BROOKER, 2010BROOKER P. Afterword: ‘Newness’ in Modernisms, Early and Late. In: BROOKER, P.; GĄSIOREK, A.; LONGWORTH, D.; THACKER, A. (Eds). The Oxford Handbook of Modernisms. New York: Oxford University Press 2010 (2016). p. 1012–1036. e NORTH, 2013NORTH, M. Novelty: a History of the New. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2013..
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Na sua obra seminal Teologia política, de 1922, Carl Schmitt formula a tese tão controversa quão influente de que toda a teoria jurídica e política da modernidade, nomeadamente o direito constitucional do Estado, se produz como reconfiguração secularizada de noções teológicas do cristianismo. Walter Benjamin retomará esta ideia para a generalizar ao horizonte cultural da modernidade, com a célebre imagem do “anão corcunda” escondido por baixo de um tabuleiro de xadrez, que controla os movimentos de um autómato e lhe permite ganhar os jogos contra os adversários de carne e osso. Na tese de abertura do seu ensaio “Sobre o conceito da história”, Benjamin observa: “A vitória está sempre reservada ao boneco a que se chama «materialismo histórico». Pode desafiar qualquer um se tiver ao seu serviço a teologia que, como se sabe, hoje é pequena e feia e, assim como assim, não pode aparecer à luz do dia.” (BENJAMIN, 1942BENJAMIN, W. Sobre o conceito da história (1942). In: BARRENTO, J. (Ed e tr.). O Anjo da história. Lisboa: Assírio & Alvim 2010. p. 9-20., p. 9). Nesta perspectiva, a modernidade não se despede da teologia, do cristianismo, pelo contrário continua a pensar nela, assimilando os seus conteúdos normativos e conceptuais, simplesmente cortando (mais ou menos autoconscientemente) o elo da crença. A permanência da teologia cristã como ‘grande código’ da cultura ocidental é uma chave crítico-hermenêutica aplicada à contemporaneidade por pensadores como Giorgio Agamben e Slavoj Žižek, leitores sofisticados de C. Schmitt e W. Benjamin (cf., exemplarmente ŽIŽEK, 2003ŽIŽEK, S. The Puppet and the Dwarf: the Perverse Core of Christianity. Cambridge, MA: MIT Press, 2003.. Para um ensaio da aplicação deste paradigma “arqueológico” à criação artística, e do seu potencial crítico-diagnóstico em relação aos processos da produção artística na idade da “religião do capitalismo”, cf. AGAMBEN, 2017AGAMBEN, G. Creazione e anarchia: L’opera nell’età della religione capitalistica. Milano: Neri Pozza Editore, 2017.).
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“No tocante ao tempo e o prazo, meus irmãos, é escusado escrever-vos, porque vós sabeis, perfeitamente, que o Dia do Senhor virá como ladrão noturno. Quando as pessoas disserem: paz e segurança!, então, lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores sobre a mulher grávida; e não poderão escapar.” (I Ts 5, 1-3).“Lembra-te, portanto, de como recebeste e ouviste, observa-o, e converte-te! Caso não vigies, virei como um ladrão, sem que saibas em que hora venho te surpreender. “(Ap 3, 3)
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“Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca da sabedoria, nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios.” (1 Cor 1, 22-23)
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“Deus viu que isso era bom”: é a fórmula de aprovação divina do fruto da própria ação criadora reiterada por bem seis vezes no primeiro livro do Genesis (1: 4, 10, 12, 18, 21, 25), ao longo das suas várias etapas diárias, e relançada no fim do sexto dia numa hipérbole que resume euforicamente o conjunto numa avaliação incondicionalmente positiva: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (31). O artista é o primeiro crítico da própria obra e Deus distancia-se contemplativamente, como espetador, do próprio papel de autor (primeiro faz, depois olha para a própria obra), para formular um juízo que se torna normativo para a criatura: a criação é uma coisa muito boa, belíssima (o hebraico: טוֹב |towb, é traduzido ‘καλόν’ pelos Setenta, — ‘valde – bonum’ pela Vulgata).
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A avaliação positiva de Génesis 1 reverte-se em Génesis 6, quando Deus olha para a história, para a ação do homem: da aprovação, Ele passa para uma condenação que é dolorosa decepção: “Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração. Iahweh arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e afligiu-se o seu coração” (Gn 6, 5-6).
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Ao contrário do Deus impessoal do deísmo, o criador bíblico não se ausenta radicalmente da criação: ele continua a preocupar-se ativamente com ela, a sustentá-la como um Deus da Providência (Sab 11, 24-26), mas governa-a indiretamente, através das ‘causas segundas’, respeitando as leis naturais que Ele mesmo instituiu.
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Cf. §§108, 125, 343 d’A Gaia Ciência: “O maior acontecimento recente — o fato de que «Deus está morto», de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito. — já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida; para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular; mais desconfiado, mais estranho, «mais velho»” (NIETZSCHE 1882NIETZSCHE, F. A gaia ciência. DE SOUSA, P.C. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 233).
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KANT 1781| 1787KANT, I. Crítica da razão pura (1781 — 1787). 9.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018., p. 526.
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A evocação desta experiência torna-se mandamento no trecho evangélico escolhido por Dostoiévski como epígrafe d’Os Irmãos Karamázov: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto” (Jo 12, 24). Por outro lado, a descrição do encontro com Deus como uma catástrofe existencial, é um aspecto central do profeta Jeremias, citado por Pasolini nos seus “Anexos” a Teorema (PASOLINI, 1968, p. 1060). Ser “seduzido” por Deus, deixar que Ele se apodere de nós, é entrar numa rua da amargura, em rota de colisão com o mundo, a sociedade, os outros homens: “Tu me seduziste, Iahweh, e eu me deixei seduzir; tu te tornaste forte demais para mim, tu me dominaste. Sirvo de escárnio todo o dia, todos zombam de mim. [...] Eu ouvi a calúnia de muitos: “Terror de todos os lados! Denunciai! Denunciemo-lo!” Todo aquele que estava em paz comigo aguarda a minha queda: «Talvez ele se deixe seduzir! Nós o dominaremos e nos vingaremos dele!»” (Jr 20, 7, 10).
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Para uma reconstrução histórico-filosófica e literária desta “morte” (metafórica porque um deus que morre nunca existiu), focada sobretudo no horizonte anglo-saxónico, cf. HARRINGTON, 1983, que retoma como título do seu livro uma imagem criada por Nietzsche (no § 125 d’A gaia ciência) e desenvolvida poeticamente no homônimo poema de Thomas Hardy (escrito entre 1908 e 1910), do qual Harrington tira as suas duas perguntas centrais: como interpretar o facto de que: “Whatever conclusion the metaphysician draws, however, religion goes on” (p. 336), e como preencher o vazio deixado por este desaparecimento? (XIII. Some in the background then I saw, / Sweet women, youths, men, all incredulous, / Who chimed as one: ‘This is figure is of straw, / This requiem mockery! Still he lives to us!’ // XIV. I could not prop their faith: and yet / Many I had known: with all I sympathized; /And though struck speechless, I did not forget / That what was mourned for, I, too, once had prized. // XV. Still, how to bear such loss I deemed / The insistent question for each animate mind”, “God’s Funeral”, HARDY, p. 307-309HARDY, T. The Collected Poems. London/Melbourne. Toronto: Macmillan, 1965.). Se o “theism of fools” se tornou cognitivamente impraticável, como não liquidar o potencial emancipador da dignidade humana associado à fé cristã? Que esta pergunta atravesse, atormente e dinamize uma parte importante da literatura dos séculos XIX e XX, como evidenciado por Harrington, é objeto fundamental de investigação tanto por parte de críticos literários (para a relação entre questão religiosa e modernismo, cf. LEWIS, 2006LEWIS, P. Religion. In: BRADSHAW, D. e DETTMAR, K. J. H. (Eds.). A Companion to Modernist Literature & Culture. Malden, MA; Oxford, UK: Blackwell Publishing. p. 19-28.; para uma perspectiva histórica mais abrangente, cf. BLOOM, 1989BLOOM, H. Ruin the Sacred Truths: Poetry and Belief from the Bible to the Present. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1989.) como de teólogos (essenciais as contribuições sobre a literatura contemporânea da ‘escola de Tubinga’ (cf. KÜNG, H. & JENS, W. 1985KÜNG, H., JENS, W., KUSCHEL, K.-J. Theologie und Literatur. Zum Stand des Dialogs. München: Kindler, 1986.; KÜNG, H. | JENS, W. | KUSCHEL, K.-J. 1986KÜNG, H., JENS, W., KUSCHEL, K.-J. Theologie und Literatur. Zum Stand des Dialogs. München: Kindler, 1986.; KÜNG, H. & JENS, W. 1989KÜNG, H. e JENS, W. Maestri di umanità. Teologia e letteratura in Thomas Mann, Hermann Hesse, Heinrich Böll. Milano: Rizzoli, 1989.; KUSCHEL, K.-J. 1997KUSCHEL, K.-J. Im Spiegel der Dichter. Mensch, Gott und Jesus in der Literatur des 20. Jahrhunderts. Patmos: Düsseldorf, 1997.; KUSCHEL, K.-J. 2018KUSCHEL, K.-J. Como alguns dos vossos poetas também disseram...” (At 17, 28): O meu percurso de teólogo com os escritores e as literaturas. In: Talvez escute Deus alguns poetas A literatura enquanto desafio à fé cristã. UCE Lisboa 2018. p. 17-43.).
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A discussão sobre a questão religiosa em Dostoiévski é imensa, coextensiva ao estudo crítico da sua obra em geral. Assinalam-se apenas como contribuições incontornáveis: SHESTOV 1903SHESTOV, L. La filosofía de la tragedia: Dostoievsky y Nietzsche (1901|1903). Buenos Aires: EMECÉ, 1949. (que assimila Dostoiévski e Nietzsche numa perspectiva trágica radicalmente niilista), o existencialista eslavófilo BERDIAEV, 1921 |1934BERDIAEV, N. L’esprit de Dostoïevski (1921 |1934). Paris : Les Éditions Stock (1945) 1974., GUARDINI, 1933GUARDINI, R. El universo religioso de Dostoyevski (Der Mensch und der Glaube. Versuch über die religiöse Existenz in Dostojewskis großen Romanen. Buenos Aires: EMECÉ, 1954. (com uma discussão angustiada d’Os Irmãos Karamazov) e STEINER, 1959STEINER, G. Tolstoy or Dostoevsky: an Essay in Contrast. Faber and Faber, 1959. (que enfatiza a dimensão mística, desorganizadora e libertária da religião de Dostoiévski contra o cristianismo moralista e ‘autoritário’ de Tolstói).
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20
IK, Vol. I, Segunda Parte, Livro V, Caps 4. (“Revolta”) e 5 (“A Lenda do grande Inquisidor”), p. 302ss.
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21
“Se toda a gente tem de sofrer para comprar ao preço do sofrimento a harmonia eterna, o que têm as crianças a ver com isso, és capaz de me dizer?” (IK, p. 310).
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22
“Ele [...] quis aparecer nem que fosse por um instante diante do povo, do povo sofredor” (IK, p. 315).
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23
“Apareceu sorrateiro, devagarinho, sem querer dar nas vistas e... cosa estranha, toda a gente O reconhece” (IK, p. 315).
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24
Ao ver a multidão em volta do Visitador, o Inquisidor, o velho cardeal, “[a]ponta o dedo em riste e manda que os guardas O prendam... A guarda o leva o prisioneiro para um calabouço apertado, tenebroso e abobadado” (IK, p. 316-317).
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25
“Amanhã mesmo condeno-Te e queimo-Te na fogueira” (IK, p. 317).
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26
“O velho vai até à porta, abre-a e diz: «Vai-Te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca! » E deixa-O sair para as ruas escuras da cidade. O prisioneiro vai-se embora.” (IK, op. 330).
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27
“Era a ideia da visita de Deus, que todos afeta e domina — uma visita que deixa emergir e torna demonstrável a sacralidade do real. Era a ideia do teorema, precisamente. / A burguesia mudou alguns ideais, o de possuir e preservar: agora quer produzir e consumir. Nisto a sua irrealidade é completa: “convenções horrendas, princípios horrendos, deveres horrendos, democracia horrenda, fascismo horrendo, objetividade horrenda, sorriso horrendo” [citação de Pasolini tirada de CEDERNA, 1968CEDERNA, C.: Tra le braccia dell’arcangelo. In: L’Espresso, 21.04. 1968, p. 16-17. Disponível em: https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP/14/1600/?#16. Acesso em: 20.09.2022.
https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP... , p. 17, m.n.], foi assim que Pier Paolo pintou aquela burguesia — e num tal horror ele pensou que o milagre poderia desencadear-se, e o teorema realizar-se. / Teria o milagre anulado tanto horror?” (SICILIANO, 1995SICILIANO, E. Vita di Pasolini. Firenze: Giunti, 1995., p. 408). -
28
O filme sai nas salas em 1968, pouco depois da publicação do texto literário, que não é um simples guião, mas uma obra desenvolvida e autónoma, “pintura” executada “com a mão direita”, enquanto o filme era um “fresco” realizado como “com a mão esquerda” (assim Pasolini descrevia esta obra dupla na contracapa da primeira edição da versão literária de Teorema — apud SICILIANO, 1995SICILIANO, E. Vita di Pasolini. Firenze: Giunti, 1995., p. 409).
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29
Apesar de recorrer a uma citação de Jeremias em que Deus é apresentado como um sedutor (cf. supra, nota 14), Pasolini realça que a atração erótico-mística produzida pelo Hóspede não deve ser confundida com a sedução humana: ele “«é sobretudo paterno», explica Pasolini, «porque paterno é aquele que possui e não se entrega, mas dá (enquanto os sedutores dão apenas para receber, ele não quer nada em troca), mas tudo o que ele faz, incluindo o amor, fá-lo com ternura materna».” (CEDERNA, 1968CEDERNA, C.: Tra le braccia dell’arcangelo. In: L’Espresso, 21.04. 1968, p. 16-17. Disponível em: https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP/14/1600/?#16. Acesso em: 20.09.2022.
https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP... , p. 17). -
30
Antes da estreia de Teorema, Pasolini declarou à jornalista italiana Camilla Cederna que teria sido um filme “quase mudo” (cf. CEDERNA, 1968CEDERNA, C.: Tra le braccia dell’arcangelo. In: L’Espresso, 21.04. 1968, p. 16-17. Disponível em: https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP/14/1600/?#16. Acesso em: 20.09.2022.
https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP... , p. 16). -
31
Sobre a relação dialeticamente contraditória de Pasolini com a religião, a literatura crítica é exterminada. Entre as contribuições mais recentes, cf. RECALCATI, 2022RECALCATI, M. Pasolini: Il fantasma dell’Origine. Milano: Feltrinelli, 2022..
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Na Lenda do Grande Inquisidor, a aparição divina nunca é nomeada explicitamente como Jesus, mas referida como Ele. No entanto, a identidade crística é inequívoca: tanto para o narrador, como para a multidão de Sevilha, que o reconhece de forma misteriosamente instantânea, como enfim para o velho cardeal, cujo longo monólogo é construído como uma acusação dirigida diretamente ao Filho de Deus e cuja pergunta sobre a sua identidade é apenas um gesto de autodefesa preliminar.
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Sempre na entrevista com CEDERNA, 1968CEDERNA, C.: Tra le braccia dell’arcangelo. In: L’Espresso, 21.04. 1968, p. 16-17. Disponível em: https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP/14/1600/?#16. Acesso em: 20.09.2022.
https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP... , Pasolini introduzia assim Teorema: “Qual é, no final, o futuro de todas as pessoas que foram marcadas pelo anfitrião ambíguo e misterioso? A sua inautenticidade é revelada precisamente no que acontece após a sua partida, pois cada um é isolado e reduzido à sua própria solidão: e pelo menos três em cada cinco (um caso, como se verá, permanece duvidoso) descarrilam definitivamente e perdem Deus. A uma experiência religiosa, mesmo que ocorra de uma forma paradoxal, como a representada pelo hóspede, eles reagem de facto patologicamente” (p. 17). Na versão literária de Teorema, três capítulos evocam abertamente e ‘didaticamente’ esta rejeição final já no título, “onde se descreve como” Odetta, Pietro, Lucia — os dois filhos e a mãe — “acabem por perder ou trair Deus” (PASOLINI, 1968PASOLINI, P. Teorema & Appendice a Teorema. In: SITI, W. & De LAUDE, S. (Eds). Romanzi e Racconti. Milano: Mondadori, 1998. v. II, p. 891-1067., p. 991ss, p. 1017ss, p. 1024 ss). -
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No Êxodo, Deus guia o seu povo e manifesta-se a ele na figura de uma “nuvem tenebrosa” (Ex. 14, 20). “Iahweh disse a Moisés: «Eis que virei a ti na escuridão de uma nuvem»” (Ex 19, 9). “Moisés aproximou-se da nuvem escura, onde Deus estava” (Ex 20, 21 e 40, 36).
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“A desgraça (le malheur) é uma maravilha da técnica divina. É um dispositivo simples e engenhoso que traz para a alma de uma criatura finita esta imensidão de força cega, brutal e fria”, que é a “necessidade” que rege o universo. Na necessidade condensa-se a “a distância infinita que separa Deus da criatura”, fazendo dela o “ecrã pelo qual a alma é separada de Deus”. Na desgraça, porém, esta distância “concentra-se toda inteira num ponto para perfurar uma alma no seu centro” e abrir assim “um buraco” na parede que a separa de Deus. A alma encontra-se desta forma colocada no ponto de “intersecção da criação e do Criador. Este ponto de intersecção é o do cruzamento dos ramos da Cruz” (WEIL, 1950WEIL, S. L’Amour de Dieu et le malheur. In: Attente de Dieu (1950). Paris: Albin Michel, 2016. p. 107- 128., p. 127-128, m. tr.).
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“Sobre o infinito do espaço e do tempo, o amor infinitamente mais infinito de Deus vem para nos agarrar. Temos o poder de consentir acolhê-lo ou de recusar. Se ficarmos surdos, ele volta e volta como um mendigo, mas também, como um mendigo, um dia não volta mais. Se consentirmos, Deus coloca uma pequena semente em nós e vá-se embora. A partir desse momento, Deus, e nós com Ele, não tem mais nada a fazer senão esperar. A única coisa a fazer é não lamentar o consentimento que demos, o sim nupcial. Isto não é tão fácil como parece, pois o crescimento da semente em nós é doloroso. Além disso, pelo próprio facto de aceitarmos este crescimento, não podemos deixar de destruir o que o impediria, puxando e cortando as ervas daninhas; e infelizmente esta erva daninha faz parte da nossa própria carne, de modo que esta jardinagem é uma operação violenta.” (WEIL, 1950, p. 124-125, m. tr.)
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STEINER, 1967STEINER, G. Linguaggio e silenzio. Saggi sul linguaggio, la letteratura e l’inumano. Milano: Garzanti, 2006. reconstrói a vertigem do silêncio que assombra a palavra literária da modernidade e que em Hölderlin e Rimbaud assume duas declinações profundamente diferentes, mas ambas de extraordinária ascendência na tradição sucessiva. Este cariz essencialmente positivo entra em crise com o trauma histórico da segunda Guerra Mundial e da Shoah em particular: a literatura e o pensamento filosófico são confrontados com um sentido de culpa civilizacional que paralisa a criação artística e intelectual, levando à sentença de “morte da linguagem”. O naufrágio do humanismo racionalista, de cariz liberal e iluminista, gerador dos – ou pelo menos impotente perante os — horrores políticos do sangrento século XX, converte-se numa perda de confiança no valor humanizador da cultura ocidental (desmistificada pela literatura pró-bélica como um castelo de Barba Azul, que esconde uma violência bárbara e inumana atrás da sofisticada opulência do próprio aparato simbólico, cf. STEINER, 1971STEINER, G. In Bluebeard’s Castle: Some Notes Towards the Redefinition of Culture. London: Faber and Faber, 1971.).
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“Estes escritos, quando queimados, vão finalmente lançar alguma luz” (Andrea Emo): o lema da exposição de Anselm Kiefer organizada em Veneza em concomitância com a Bienal 2022 condensa o itinerário deste artista que faz das ruínas e do luto (das tragédias da história, novecentista e universal) o cerne do seu trabalho. De qualquer forma, a obsessão com a cobertura, com o embrulho, com o véu escuro e claustrofóbico de cinzas, é um aspecto recorrente da arte contemporânea, desde o “Grande Cretto” de Burri, em Gibellina, a Christo, desde Anselm Kiefer a Claudio Parmiggiani.
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É a figura chave do messianismo implodido em ciclicidade implacável e cega na figura do mensageiro de À espera de Godot, que não reconhece os destinatários da sua mensagem, apesar de serem os mesmos do dia anterior; não se lembra de ter já vindo (cada vez é ‘novo’: Moço/ Garçon / Boy); e anuncia uma promessa que é uma decepção (afinal, mais uma vez, Godot há de vir, porque não veio).
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São exemplares, neste ponto de vista, o devaneio místico falhado de Submissão (2015) e a subtil ‘carência religiosa’ atestada em Aniquilação (2022).
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Inaugura-se assim “O tempo da vitória do Museu sobre a Catedral – ou o da transformação da Catedral em Museu”, como observa PIRES DO VALE, 2018PIRES DO VALE, P. Da saída: religião da saída da religião, arte da saída da arte. Rever, São Paulo, v. 18, n. 1, 2018. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/37372. Acesso em: 30.11.2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/reve... , p. 42. O naufrágio do sagrado configura para a arte a tentação (teorizada programaticamente por ARNOLD, 1888ARNOLD, M. The Study Of Poetry. In: Essays in Criticism. Second Series (1888). London: Macmillan, 1903. p. 1-55.) de erguer-se como ‘substituto’ da religião: “Se poderá ser apressado falar de “substituição”, podemos apontar, no entanto, a relevância crescente da arte e das suas instituições na época pós-morte-de-Deus. [...] Ao sair do contexto religioso, ao autonomizar-se, a arte parece ter-se transformado ela própria em religião – em vez de destruir as estruturas religiosas, aproveita-as.” (Ib.) No entanto, Pires do Vale denuncia a componente ideológica desta evolução (p. 42ss.), que como “regime da teoria institucionalista da arte” promove um reencantamento do mundo, funcional a uma estratégia capitalista de produção fetichista da crença. Para o autor, a arte da saída da arte (abraçada por outros artistas contemporâneos) é uma alternativa esteticamente mais consistente, ao desinstalar a pretensão de fazer da criação e fruição artística uma máquina de sacralização. Neste gesto (auto) desconstrutivo, Pires do Vale reconhece uma coerência profunda com a dinâmica ‘antirreligiosa’ do cristianismo que ele caracteriza, na esteira da antonomástica fórmula de GAUCHET, 1985GAUCHET, M. Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion. Paris: Gallimard, 1985. como uma religião da saída da religião, dispositivo espiritual e teológico de sabotagem de todo o fixismo metafísico, legalístico, naturalista, historicista, religioso. Que a ficção narrativa seja um dispositivo racional essencial para se relacionar com o mistério da condição humana e em particular com a angústia da passagem do tempo (o medo do fim) é a hipótese antropológica que guia KERMODE, 1967KERMODE, F. The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction. 2nd edition. New York: Oxford University Press, 2000. | 2000 na sua magnífica análise histórico-crítica de aspetos e autores maiores da literatura do séc. XX: num horizonte espiritual de descristianização e de crise da fé, com a perda de uma perspetiva eternista de compensação da transitoriedade, a literatura torna-se ainda mais importante não para dar sentido à experiencia, mas para lidar com a sua falta de sentido. -
42
ASHBERY, 1979ASHBERY, J. As We Know. In: CP 1979, p. 551-694., p. 676.
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A firme recusa de Beckett da interpretação do nome Godot como deformação alusiva da palavra ‘God’ (Deus), tem aberto uma caça desenfreada às ‘fontes’ alternativas de inspiração do nome (de ciclistas franceses a heróis balzaquianos). Mais interessante, no entanto, resulta a análise da complexa ratio onomástica que atravessa toda a peça como um relevante eixo semântico (cf. GORDON, 2002, Cap. IV, “The Conglomerative Voice: Cain and Abel”, p. 86ss. A ‘oscilação teológica’ beckettiana, dividida entre a dupla recusa do teísmo antropomórfico e do ateísmo é analisada em WYNANDS, 2007WYNANDS, S. Iconic Spaces: the Dark Theology of Samuel Beckett’s Drama. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2007.).
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Para uma reconstrução geral das razões desta inscrição cómica do discurso teológico na literatura contemporânea, cf. BARTOLOMEI, 2021BARTOLOMEI, T. Redenção e deformidade — A poética do estranhamento como discurso teológico da modernidade”, Teoliterária, São Paulo, v. 11, n. 23, 2021. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/teoliteraria/article/view/52474. Acesso em: 20.09.2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/teol... . -
45
Uma noção associada tradicionalmente ao numinoso, mas que encontra uma formulação autónoma seminal em FREUD, 1919.
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No léxico teológico da Cabala (cf. SCHOLEM, 1962SCHOLEM G. Origins of the Kabbalah (1962). In: WERBLOWSKY, R.J.Z. (Ed.). Princeton NJ: Princeton University Press, 1987. p. 133), “Ziw” designa o brilho da Sabedoria, que, como Shekhinah, habita tudo aquilo que é, na dupla dimensão de visibilidade e latência. Scholem ilustra esta peculiar forma de luz que na condição terrena se mistura com a sombra, a partir de uma citação do Bahir, um dos textos fundadores da Cabala: “The Sophia, from which emanated the last sefirah, named ‘earth’ [which, as we know, is the lower Sophia] is in everything” (Ib.).
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“A fenda está aqui?” (“Il varco è qui?”), perguntava-se angustiado Eugenio Montale em “La casa dei doganieri” (“A casa dos aduaneiros”) (MONTALE, 1928-1939MONTALE, E. Le Occasioni (1928-1939). In: BETTARINI, R. e CONTINI, G. (Eds). L’opera in versi. Torino: Einaudi, 1980. p. 103-183., p. 161).
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TOLENTINO MENDONÇA, 2005, p. 186. Cf. também “Um piquenique no campo” e “Vidas secretas”, Ib., p. 183 e p. 189.
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São os momentos que Karl Jaspers notoriamente definiu de “situações-limite”: experiências – de sofrimento, medo, trauma, culpa, conflito, destino, fracasso – em que o ser humano lida com a própria finitude, a própria impotência e é chamado a conhecer o próprio ser na nudez da sua autenticidade e na sua abertura constitutiva à transcendência. É precisamente ao sofrer a constrição dolorosa da própria finitude, e da derrota – física, moral, metafísica – que ela implica, que para o ser humano se torna reconhecível uma “intimação de imortalidade”, de transcendência (cf. JASPERS, 1932JASPERS, K.. Philosophie, Bd. II (Existenzerhellung). Berlin: Julius Springer Verlag, 1932., VII Cap. p. 201-254).
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“SENHOR, dá-me a conhecer o meu fim / e o número dos meus dias, / para que veja como sou efémero. / De poucos palmos fizeste os meus dias; / diante de ti a minha existência é como nada; / o homem não é mais do que um sopro! / Ele passa como simples sombra! / É em vão que se agita” (Sl 39|38, 5-7) (cf. também Sl 144|143, 4).
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Uma corrosão lenta e inexorável que encontra uma imagem poderosa na protagonista semienterrada da peça beckettiana Dias Felizes (Oh les beaux jours) retrato terno e pungente na sua fatalidade glacial, de uma pobre mulher paralisada pela sua própria inconsistência ontológica.
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Ao alcance de Winnie, a protagonista de Dias Felizes, juntamente com o guarda-chuva e a carteira, há uma pistola, que — quem sabe — poderia também ser o verdadeiro alvo dos esforços do seu marido para se aproximar dela.
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O desajuste entre a finitude humana e a eternidade (inscrito na combinação aporética da ratio temporal da sucessão e da duração) é um tópico central da poesia de Emily Dickinson, que dedica algumas das suas líricas mais marcantes ao pesadelo da superfluidade metafísica do indivíduo (cf. entre outros, “Superfluous were the Sun”, F1013/J999 [1865]). Para uma análise do poema e um enquadramento crítico desta questão, cf. BARTOLOMEI, 2016BARTOLOMEI, T. Figura huius Mundi: figuras líricas da temporalidade na poesia de Emily Dickinson. Tese de Doutoramento disponível no Repositório do Programa em Teoria da Literatura (UL). (2016). Disponível em: (http://www.letras.ulisboa.pt/images/areas-unidades/literaturas-artes-culturas/programa-teoria-literatura/documentos/bartolomei2_def.compressed.pdf).
http://www.letras.ulisboa.pt/images/area... . -
54
Para o ‘crente ateu’ Pasolini, a crise do sagrado na sociedade de massa é o índice central de uma trágica crise de civilização, de uma mutação antropológica em que o homem perde toda a noção da própria “origem”, da própria ligação à natureza, para se converter num consumidor homologado e alienado, cf. RECALCATI, 2022RECALCATI, M. Pasolini: Il fantasma dell’Origine. Milano: Feltrinelli, 2022..
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Indiretamente inspirado pelo conto “La autopista del Sur” (“A autoestrada do Sul”) do escritor argentino Julio Cortazar e com referência explicita a Georges Bataille, cuja Histoire de l’Œil está livremente parafraseada no longo monólogo erótico da protagonista.
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Em Bataille, a diferença entre ser objeto e sujeito do excesso representado pelo mal e pela violência é eludida, prejudicando substancialmente a reflexão deste autor sobre a potência reveladora do mal na literatura (cf. BATAILLE, 1957BATAILLE, G. La littérature et le mal. Paris: Gallimard, 1957.).
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Encontramos neste poema mais um weekend. Seria interessante analisar o papel do fim de semana na arte contemporânea, cinema e literatura, como laboratório fulcral da relação temporal com o sagrado, na viragem civilizacional da sua ritualização religiosa para uma ritualização consumista — turística, hedonista -.
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Que a abordagem ‘cultural’ ao sagrado corra o risco de se tornar pura manipulação comercial ou ideológica é uma questão essencial também para Pasolini, que retrata a dissolução do religioso degradado a puro fenómeno social e conteúdo comunicativo em Teorema (“Inchiesta sulla santità”, p. 1035ss.) e a puro achado estético no filme curto A ricotta (1962), em que a morte ‘ritual’ do protagonista se dá num quadro do estranhamento geral, e a reprodução artística do religioso se torna obstáculo para a recepção da sua dimensão mistérica.
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59
“Se é um espectáculo digno de uma divindade ver um homem virtuoso em luta com as contrariedades e as tentações para o mal e vê-lo, no entanto, oferecer resistência, é um espectáculo sumamente indigno, não direi de uma divindade, mas até do homem mais comum, porém bem pensante, ver o género humano a elevar-se de período para período à virtude e, logo a seguir, recair tão profundamente no vício e na miséria. Contemplar por um instante esta tragédia pode talvez ser comovente e instrutivo, mas é preciso que por fim caia o pano. Efectivamente, com o tempo, isso torna-se uma farsa e, embora os actores não se cansem porque são loucos, cansar-se-á o espectador; pois já tem que chegue num ou noutro acto, se puder supor com razões que a peça, sem nunca chegar ao fim, é sem cessar a mesma.” (KANT, 1793KANT, I. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. (1793). E-book. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_correcto_na_teoria.pdf. Acesso em: 14.09. 2022.
http://www.lusosofia.net/textos/kant_imm... , p. 41) -
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“Os Deuses da Equidade” ASHBERY, 2000ASHBERY, J. Your Name Here. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2000., p. 76-77: “A incapacidade de ver Deus não é um problema / com que Deus tem um problema. Claro, que Ele poderia ver-nos / se tivesse o desejo de o fazer, mas não é essa / a questão. A questão é a sua preocupação / conosco e com as bolachas. Com o pão / que rodopia no céu noturno sobre Estocolmo. // Aí não, ali. E eu gritei-lhes / o que lhes tinha dito antes. O caso não é da conta de ninguém. / Também o homem que mijava parecia não reparar. / Viemos da praia com bexigas nos pés / e peças de xadrez resgatadas do naufrágio. Por fim, o burburinho excedente / deu conta, e isso foi fatal para o nosso projeto. / Então desistimos, alguns de nós morrendo, outros afastando-se / cansada, mas contentemente. Deus tinha tido a sua pequena piada, / mas quem poderia dizer que não era a nossa? Ninguém, aparentemente, / o que poderia ser a razão pela qual o assunto nunca foi levantado / em grupos de discussão nas casas antigas ao pé do porto, / alguns deles praticamente afundando nisso. / No entanto, continuam a tagarelar com uma ponta de arrependimento: ‘Eu sei / o que vossemecê prefere’.” (m.tr.)
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“Há momentos em que / penso mesmo conseguir ler a sua mente, / revestida de pérolas e diamantes. / Aqui estão eles, para a colheita. Levem-nos. / Depositem-nos em qualquer banco suburbano à vossa escolha. / Depressa, antes que ele mude de ideias — mais uma vez. // Mas tudo o que eles fizeram foi apoiar-se nas suas pás, sonhando / a plantação primaveril, e as maravilhosas colheitas que se avizinham.” (m.tr.).
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No sagrado, observa R. Otto, o “numinoso”, o “Mysterium Tremendum” (combinação de “majestas”, energia, dimensão arrepiante e inacessibilidade do “totalmente outro”) está, contraditoriamente, mas indissociavelmente, associado com o fascinante e o assombroso (cf. OTTO, 1917OTTO, R. Das Heilige: Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen. Gotha: Leopold Klotz Verlag, 1926.).
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“A alegria e a dor são dons igualmente preciosos, ambos devem ser saboreados integralmente, cada um na sua pureza, sem procurar misturá-los. Através da alegria, a Beleza do mundo entra na nossa alma. Através da dor, entra no nosso corpo. Só com a alegria não poderíamos mais tornar-nos amigos de Deus do que podemos tornar-nos capitães estudando os manuais de navegação. O corpo tem um papel na aprendizagem. Ao nível da sensibilidade física, só a dor é um contacto com essa necessidade que constitui a ordem do mundo: o prazer não encerra a impressão de uma necessidade. É uma parte superior da sensibilidade que é capaz de sentir a necessidade da alegria, e isso só através do sentimento do belo. [...] A virtude transformadora da dor e a da alegria são igualmente indispensáveis” (WEIL, 1950WEIL, S. L’Amour de Dieu et le malheur. In: Attente de Dieu (1950). Paris: Albin Michel, 2016. p. 107- 128., p. 123-124).
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“M.M.C. [Michel-M.Campbell] — E qual é o significado do grito do Pai quando anda nu no deserto no fim do filme?P.P. [Pier Paolo Pasolini] — Podemos repetir o que dizia sobre o Rapaz ou Deus. O grito final não é nem positivo nem negativo, é uma pura interrogação.M.M.C. — É o grito do homem perante o mistério da sua vida ou perante o sagrado!P.P.- É o grito do homem que, de certa forma, reencontra Deus ou o sagrado, e que se dá conta de que já lhe é impossível viver o sagrado” (BONNEVILLE, 1972BONNEVILLE, L. Pier Paolo Pasolini et la religion. Séquences, n. 69, p. 31-35, apr. 1972. Disponível em: https://www.erudit.or g/fr/revues/sequences/1972-n69-sequences1154411/51478ac.pdf. Acesso em: 14.09. 2022.
https://www.erudit.or g/fr/revues/sequen... , p. 32, m.tr.). “Assim, o filme termina com o seu grito, um grito que não se sabe se é libertador ou desesperado.” (CEDERNA, 1968CEDERNA, C.: Tra le braccia dell’arcangelo. In: L’Espresso, 21.04. 1968, p. 16-17. Disponível em: https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP/14/1600/?#16. Acesso em: 20.09.2022.
https://bibliotecaginobianco.it/flip/ESP... , p. 17, m. tr.). -
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Em Worstward Ho, S. Beckett condensa esta poética num aforismo tão sedutor que se tornou num mantra da cultura de pop: “Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better” (BECKETT, 1983BECKETT, S. Worstward Ho!. New York: Grove Press, 1983., p. 7). A verdade é que esta frase, colocada na primeira página, é uma espécie de módulo combinatório a partir do qual é construído todo o texto, variatio meditativo-inconclusiva sobre a recursividade do fracasso: “Try again. Fail again. Better again. Or better worse. Fail worse again. Still worse again. Till sick for good. Throw up for good. Go for good. Where neither for good. Good and all” (Ib., p.8). “First try fail better one” (Ib., p. 21) “Next try fail better two […]. First back on to three” (Ib., p. 22). “That said on back to try worse […] Next fail” (Ib., p. 31, etc.).
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“And no matter how all this disappeared, / Or got where it was going, it is no longer / Material for a poem.” (“E pouco importa como tudo isto desapareceu, / Ou chegou onde ia, deixou de ser / Matéria para um poema”), “Syringa” (“Siringe”) (ASHBERY, 1977ASHBERY, J. Houseboat Days. In: CP 1977, p. 489-550., p. 534-536; AECP, p. 210-215). A vida não se deixa capturar numa imagem: “the «tableau» / Is wrong. [… O]ne cannot guard, treasure / That stalled moment. It too is flowing, fleeting; / It is a picture of flowing, scenery, though living, mortal” (“o «quadro» está sempre errado. [... N]ão podemos guardar, entesourar / Esse encurralado momento. É demasiado fluido, fugaz; / É um retrato de fluidez, panorama, embora vivo, mortal”).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Fev 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2022
Histórico
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Recebido
05 Out 2022 -
Aceito
29 Nov 2022