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JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: RESERVA DO POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL

JUDICIALIZACIÓN DE LA SALUD: RESERVA DE LO POSIBLE Y MÍNIMO EXISTENCIAL

RESUMO

Objetivo

analisar casos de judicialização da saúde, descrever seu desfecho e discutir as repercussões das decisões judiciais para o atendimento em saúde e o Sistema Único de Saúde

Método

estudo de caso, realizado em maio e julho de 2020, nos sítios do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - Brasil, Tribunal Regional Federal da Segunda Região e Superior Tribunal de Justiça. A análise baseou-se na teoria da reserva do possível e mínimo existencial

Resultados

identificaram-se quatro casos sobre judicialização na saúde, os quais caracterizaram-se como mecanismo de garantia de direitos laboral, evidenciando a necessidade de mais eficiência nas políticas públicas para melhorar o acesso à saúde

Considerações finais

o dilema entre a vida humana e a economia apareceu nas decisões judiciais, e a judicialização apresentou-se como mecanismo de garantia de direitos. Contribuiu-se com a discussão sobre demandas judiciais na saúde e a baixa capacidade de atendimento às pessoas com necessidades complexas.

DESCRITORES
Judicialização da Saúde; Direito à Saúde; Sistema Único de Saúde; Política Pública; Enfermagem

RESUMEN

Objetivo

analizar casos de judicialización de la salud, describir sus resultados y debatir las repercusiones de las decisiones judiciales para la atención de la salud y para el Sistema Único de Salud

Método

estudio de caso, realizado entre mayo y julio de 2020 en los sitios web del Tribunal de Justicia de Río de Janeiro - Brasil, del Tribunal Regional Federal de la Segunda Región y de la Suprema Corte de Justicia. El análisis se basó en la teoría de la Reserva de lo posible y mínimo existencial

Resultados

se identificaron cuatro casos sobre judicialización de la salud, que se caracterizaron como un mecanismo de garantía de derechos laborales, evidenciando así la necesidad de mayor eficiencia en las políticas públicas para mejorar el acceso a la salud

Consideraciones finales

el dilema entre la vida humana y la economía se hizo presente en las decisiones judiciales, y la judicialización se presentó como un mecanismo de garantía de derechos. El aporte del estudio fue el debate sobre demandas judiciales en salud y la escasa capacidad para atender a las personas con necesidades complejas

DESCRIPTORES
Judicialización de la Salud; Derecho a la Salud; Sistema Único de Salud; Política Pública; Enfermería

ABSTRACT

Objective

to analyze cases of judicialization of health, describe their outcome and discuss the repercussions of the legal decisions for health care and the Unified Health System

Method

a case study, carried out from May to July 2020, in the websites of the Court of Justice of Rio de Janeiro - Brazil, Regional Federal Court of the Second Region and Superior Court of Justice. The analysis was based on the theory of contingency reserve and basic human dignity

Results

four cases about judicialization in health were identified, which were characterized as a mechanism for guaranteeing labor rights, evidencing the need for more efficiency in the public policies to improve access to health

Final considerations

the dilemma between human life and economy emerged in the legal decisions, and judicialization presented itself as a mechanism for guaranteeing rights. It contributed to the discussion about lawsuits in health and about the low ability to serve people with complex needs

DESCRIPTORS
Judicialization of Health; Right to Health; Unified Health System; Public Policy; Nursing

INTRODUÇÃO

Conceitos de saúde são historicamente determinados e guardam relação com o contexto cultural, social, político e econômico dos diferentes grupos humanos. Em tempos mais recentes da história, tal conceito já se conformou em sua negatividade, como ausência de doença, com positividade utópica, como completo bem-estar, e, talvez, de forma mais objetiva, atrelada aos determinantes sociais e econômicos refletidos nas condições de vida dos grupos sociais. Saúde é a expressão da qualidade de vida e resulta de fatores como alimentação, habitação, lazer, renda digna, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, liberdade e acesso a serviços de saúde(11 Rios DRS, Sousa DAB, Caputo MC. Diálogos interprofissionais e interdisciplinares na prática extensionista: o caminho para a inserção do conceito ampliado de saúde na formação acadêmica. Interface (Botucatu). [Internet]. 2019 [acesso rm 09 jul 2020]; 23: e180080. Disponível em: https://doi.org/10.1590/Interface.180080.
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-22 Almeida-Filho N. A problemática teórica da determinação social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde em Debate [Internet]. 2009 [acesso em 31 maio 2021]; 33(83). Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/4063/406345800003.pdf.
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).

No Brasil, a Reforma Sanitária, oriunda das discussões da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, estabeleceu como recomendação o direito à saúde e efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo ambos elevados ao status de garantia constitucional. O primeiro é exposto no Art. 196 da Carta Magna como “um direito de todos e um dever do Estado”, e o segundo está presente no Art. 198, que ratifica que as ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, com acesso universal da população(33 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado; 1988.).

Apesar do amparo legal estabelecido pela Constituição Federal de 1988, observa-se, a partir dos anos 90, que o ideário neoliberal passou a fundamentar as diretrizes econômicas e políticas no Brasil, culminando em reiterados ataques contra o SUS. O neoliberalismo é uma ideologia econômica e política que, a partir de sua lógica exploratória, visa a maximização do lucro com redução do custo de produção, além de propiciar a desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas. Tal situação tem resultado em enxugamento da máquina pública, redução do quantitativo de recursos humanos e materiais e diminuição de investimentos nas unidades do sistema de saúde(44 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2018 [acesso em 09 jul 2020]; 23(6). Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018.
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).

Nessa lógica, o SUS tem enfrentado um cenário desfavorável, a partir de uma reorganização do Estado Brasileiro, com propostas dissonantes das preconizadas pela Reforma Sanitária, ao seguir orientações de organismos financeiros como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (como desestatização e privatização). Essa situação contribui, ao longo de décadas, para o sucateamento do SUS e a precarização das condições de trabalho nas unidades dos serviços de saúde públicos(44 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2018 [acesso em 09 jul 2020]; 23(6). Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018.
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).

A partir desse cenário, a judicialização da saúde intensificou-se como meio para a garantia do acesso a bens e serviços de saúde, conferindo ao Poder Judiciário o protagonismo da efetivação do direito à saúde. Assim, ao apreciar alguns julgados referentes à concessão de bens e direitos ligados à saúde, nota-se que é comum a presença dos termos “mínimo existencial” e “reserva do possível” como principais fundamentos das decisões. Na maioria das vezes, o primeiro é utilizado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou por advogados em defesa daqueles que têm seu direito à saúde obstado. O segundo geralmente é usado como argumento pelo Estado em sua resposta para se negar a conceder o direito almejado(55 Bander R, Kalil G. Embate entre os princípios do mínimo existencial e da reserva do possível: a judicialização da saúde. Revista Jurídica [Internet]. 2020 [acesso em 31 maio 2021]; 3(1). Disponível em: https://revista.fcv.edu.br/index.php/revistadireito/article/view/280.
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).

O mínimo existencial pode ser compreendido como as condições mínimas da existência humana digna. Em contrapartida, a reserva do possível é construída a partir do entendimento de que o orçamento público é finito, e os direitos sociais, econômicos e culturais detêm uma quantificação econômica e só devem ser concedidos pelo Estado se houver orçamento disponível(66 Gomes EB, Jaboniski AL. O direito fundamental ao mínimo existencial e suas repercussões ao trabalhador: necessidade de adoção de políticas públicas? Revista do Direito [Internet]. 2016 [acesso em 09 jul 2020]; 1(48). Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/6359.
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). Configura-se, então, uma polarização para justificar a concessão, ou não, da decisão jurídica.

Tal polarização motivou o desenvolvimento do presente estudo, cujos objetivos foram analisar casos de judicialização da saúde, descrever seu desfecho e discutir as repercussões das decisões judiciais para o atendimento em saúde e o Sistema Único de Saúde.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso explicativo. Os estudos de caso são aplicados para explicar, explorar ou descrever fenômenos atuais inseridos em seu próprio contexto; nesse sentido, caracterizam-se como uma análise com ênfase na descrição e na relação de situações que envolvem o fenômeno investigado. Nos estudos de caso de abordagem qualitativa, são consideradas características fundamentais a interpretação de dados do contexto, a busca constante de respostas e questões, o retrato completo e profundo da realidade, o uso de várias fontes de informações, a generalização natural e a revelação dos diferentes pontos de vista sobre o objeto(77 Andrade SR de, Ruoff AB, Piccoli T, Schmitt MD, Ferreira A, Xavier ACM. Case study as a nursing research method: an integrative review. Texto contexto-enferm. [Internet]. 2017 [acesso em 91 maio 2021]; 26(4). Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-07072017005360016.
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).

Esse tipo de estudo é adequado quando a pesquisa objetiva analisar “como” e “porquê”, e o pesquisador apresenta baixo controle de uma situação que tenha naturalmente influência de questões sociais. Além disso, o estudo de caso pode ir além de uma pesquisa qualitativa, usando a mistura de evidência qualitativa e quantitativa(88 YIN, Robert K. Estudo de casos: planejamento e métodos. 5 ed. São Paulo: Bookman; 2015.).

A coleta dos dados foi realizada de maio a julho de 2020 e efetuada em bases de dados secundárias, especificamente nos sítios do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Tribunal Regional Federal da Segunda Região e Superior Tribunal de Justiça. Os três Tribunais foram escolhidos de maneira aleatória e estabeleceu-se como critério para inclusão dos casos, aqueles cujo processo tivesse iniciado nos últimos três anos. Ademais, para permitir uma análise aprofundada do fenômeno, definiu-se que a coleta dos casos cessaria a partir do momento que se identificasse pelo menos um caso referente à judicialização da saúde que utilizasse as teorias do mínimo existencial e da reserva do possível na promulgação da sentença, em cada estado da região sudeste e em âmbito recursal.

A coleta de dados foi realizada utilizando-se um formulário contendo: locais em que foram distribuídas as ações judiciais; datas em que foram movidas as demandas judiciais; números dos processos; motivos que justificaram os pronunciamentos judiciais; partes envolvidas nos processos judiciais; e desfechos das ações.

A análise dos dados embasou-se nos seguintes procedimentos: descrição sintética dos casos selecionados, focando em conteúdo que permitisse a compreensão da problemática pontuada e, posteriormente, comparação do conteúdo das decisões judiciais com a legislação e com as teorias da reserva do possível e mínimo existencial. Tais teorias proporcionaram suporte conceitual para análise e discussão dos casos de judicialização em saúde.

Vale salientar que a elaboração do presente estudo buscou atender os passos recomendados pelos Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research(99 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care [Internet]. 2007 [acesso em 09 jul 2020]; 19(6). Disponível em: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042.
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-1010 Buus N, Perron A. The quality of quality criteria: Replicating the development of the Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ). Int J Nurs Stud. [Internet]. 2020 [acesso em 20 ago 2020]; 102(1). Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.ijnurstu.2019.103452.
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). Ademais, ressalta-se que este estudo dispensa a submissão ao Comitê de Ética e Pesquisa com seres humanos, pois os dados apresentados são oriundos de sites de acesso livre, disponíveis a todos que visualizem tais portais e seus conteúdos. Entretanto, foram respeitados os preceitos éticos estabelecidos na Resolução 466/2012.

RESULTADOS

A partir dos critérios estabelecidos para a coleta de dados, foram encontrados quatro casos na região sudeste: um no Rio de Janeiro, um em São Paulo, um em Minas Gerais e um no Espírito Santo. Os processos selecionados iniciaram em 2019 e ainda estavam em tramitação nos meses da coleta de dados (maio e julho de 2020).

A seguir, os casos serão narrados, identificados e nomeados, pois são dados de acesso público. A apresentação traz os elementos centrais do processo, como a descrição da situação fática, o que motivou a demanda, os pedidos, os fundamentos utilizados e a decisão judicial.

Caso 1 – Julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (processo 0050737-41.2019.8.19.0000)

O autor, idoso e portador de enfermidade denominada CID N 146 (câncer de próstata), devido à negativa do município de São João da Barra-RJ em prover o tratamento adequado para sua moléstia, demandou judicialmente à municipalidade cirurgia de prostatectomia suprapúbica, cuidador enfermeiro durante e pós-cirurgia, fraldas geriátricas tamanho médio e cadeira de rodas, conforme os laudos médicos juntados ao processo.

O Poder Judiciário deu procedência ao pedido do autor, em decisão antecipada (em razão do risco de morte), para que fosse realizado o procedimento cirúrgico adequado em hospital público ou, inexistindo vaga, fossem providenciadas a internação e a cirurgia na rede conveniada ou em hospital particular, às expensas da municipalidade.

Caso 2 – Julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (processo 1001104-15.2019.8.26.0464)

O Ministério Público do Estado de São Paulo, a fim de resguardar os direitos de pessoa impossibilitada de exercer seu próprio juízo, ingressou com ação contra o município de Pompeia-SP e o Estado de São Paulo, para que ambos custeassem o tratamento de internação compulsória de pessoa usuária de entorpecentes, conforme indicação médica, possibilitando-lhe uma vida digna.

O Poder Judiciário deu provimento ao pedido do Ministério Público de São Paulo para que fosse realizada a internação, às expensas da municipalidade, resguardando a saúde física e mental da paciente usuária de entorpecentes, fazendo com que a administração pública cumprisse, ainda que compulsoriamente, seu papel de efetivação das políticas públicas essenciais, qual seja, a saúde preventiva e curativa da população.

Caso 3 – Julgado do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (processo 0007022-19.2019.8.08.0011)

A ação se originou pela necessidade do autor, portador de leucemia promielocítica aguda, com sério risco de morte, obter junto ao estado do Espírito Santo e o município de Cachoeiro de Itapemirim-ES o fármaco trióxido de arsênio, para prover seu tratamento. O juiz de primeira instância decidiu, em caráter de urgência, obrigar o estado e o município a fornecerem o medicamento citado.

O município recorreu da referida decisão de primeira instância, sustentando que o medicamento requerido não integra a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais e que, por isso, não possuía o dever de concedê-lo ao enfermo. Entretanto, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, ao apreciar o recurso e seguir a jurisprudência majoritária, decidiu não dar provimento ao recurso, mantendo a decisão, que ordenou a concessão do medicamento.

Dentre as fundamentações trazidas pelo tribunal, ressaltava-se a seguinte: “A reserva do possível e dificuldades orçamentárias não são instrumentos que amparam a postura da Administração em deixar de adotar medidas que assegurem direito constitucionalmente reconhecidos como essenciais”. O Tribunal ainda ressaltou que a concessão do medicamento devia ser arcada de forma solidária entre município e estado.

Caso 4 – Julgado do Tribunal de Justiça do Minas Gerais (processo 1.0000.19.159680-8/001)

A ação se originou pela necessidade de o autor ser transferido para um hospital especializado em tratamento de doenças do sangue e dos órgãos hematopoéticos, para poder prosseguir com o tratamento de “doença hematológica a/e: Bicitopnia (anemia + plaquetopenia) e leucocitose com linfose”. O juiz de primeira instância decidiu, em caráter de urgência, obrigar o estado de Minas Gerais e o município de Betim-MG a transferir o paciente para o hospital competente e promover o tratamento requerido.

O município recorreu da decisão, alegando que o tratamento pretendido pelo autor não estava disponível, e aquela decisão de primeira instância, se mantida, “poderá culminar na negativa a milhares de pessoas do direito à saúde, retirando do coletivo as verbas destinadas a medicamentos e programas de saúde para suprir a presente demanda judicial”.

Entretanto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao apreciar o recurso, decidiu manter a obrigação da transferência e do tratamento pretendido, ressaltando que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, devendo este último garantir “o tratamento médico adequado e os fármacos necessários e compatíveis com a cláusula da reserva do possível e a do mínimo existencial.”

Mesmo reconhecendo a solidariedade de todos os entes federados, no que tange ao direito à saúde, no caso concreto, pelo fato de o procedimento pretendido pelo autor ser de alta complexidade, o Tribunal entendeu que a obrigação deve ser cumprida apenas pelo estado de Minas Gerais, isentando o referido município, por este ter comprovado não possuir condições de cumpri-la, o que prejudicaria o próprio autor-enfermo.

DISCUSSÃO

De acordo com os resultados apresentados e com intuito de atender aos objetivos propostos, elaborou-se a discussão a partir da categoria: “Tensão entre o direito à saúde e as condições materiais do Estado”.

A articulação entre o direito constitucional e os ajustes com as políticas sociais e econômicas se configura como um enorme desafio para os gestores. Entretanto, a cláusula do possível, baseada no direito alemão, serve de argumento de que, para que haja efetivação de um direito, devem existir também correspondentes lastros orçamentários e financeiros, que, na administração, não podem ser utilizados como sinônimos(1111 Castro EK. The theory of reserve for contingencies and its use by the judiciary in health’s demands in Brazil. Revista de Direito [Internet]. 2016 [acesso em 09 jul 2020]; 8(1). Disponível em: https://periodicos.ufv.br/revistadir/article/view/1751/755.
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).

Da vinculação dos direitos humanos ao poder tributário surge o conceito de mínimo existencial, para todo aquele que se situa abaixo do patamar da capacidade contributiva. Essa linha de raciocínio assevera que, no que tange à proteção à saúde no SUS enquanto direito, em face de sua universalização, pode haver extrapolação do mínimo existencial ao permitir seu uso inclusive pelos mais privilegiados economicamente(1212 Araújo CS, Soares HP, Rangel TLV. Teoria da reserva do possível versus direito à saúde: uma reflexão à luz do paradigma da dignidade da pessoa humana. Revista Âmbito Jurídico [Internet]. 2017 [acesso em 09 jul 2020]; XX(164). Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/teoria-da-reserva-do-possivel-versus-direito-a-saude-uma-reflexao-a-luz-do-paradigma-da-dignidade-da-pessoa-humana/.
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).

Os casos analisados por este estudo indicam que o Poder Público, ao elaborar a lista dos serviços de saúde a serem prestados, bem como os remédios a serem disponibilizados aos cidadãos, avaliou, primeiramente, as necessidades de maior relevância e urgência a serem supridas e os recursos disponíveis para tanto. Em um segundo momento, focou nos aspectos técnicos de eficácia dos atendimentos e medicamentos.

A dificuldade de vocalização de uma parcela cada vez mais expressiva da população-alvo das políticas sociais perpetua sua invisibilidade nos poderes executivo e legislativo. A judicialização torna-se o instrumento que garante a atenção à saúde em procedimentos e medicamentos fora daqueles estabelecidos pela listagem da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais e para a obtenção de serviços negligenciados pelos gestores do SUS(1313 Sarlet IW, Zockun CZ. Notes on the existential minimum and its interpretation by the Brazilian Supreme Court under the judicial control of public policies based on social rights. Rev Investig Const [Internet]. 2016 [acesso em 09 jul 2020]; 3(2). Disponível em: https://doi.org/10.5380/rinc.v3i2.46594.
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). Ademais, diante da velocidade da evolução de tecnologias da saúde, bem como da inflação vertiginosa dos custos, a reserva do possível tem sido evocada para contestar medidas de obrigação de fazer, emitidas pelo judiciário(1313 Sarlet IW, Zockun CZ. Notes on the existential minimum and its interpretation by the Brazilian Supreme Court under the judicial control of public policies based on social rights. Rev Investig Const [Internet]. 2016 [acesso em 09 jul 2020]; 3(2). Disponível em: https://doi.org/10.5380/rinc.v3i2.46594.
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).

Contudo, é importante frisar que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado como escudo para impedir que o Estado cumpra seu papel na efetivação de políticas públicas essenciais, especialmente no que tange à saúde, devendo prevalecer os princípios da dignidade humana e do mínimo existencial, desde que o cidadão comprove que o não atendimento lhe retirará o mínimo de sua qualidade de vida, sobretudo a saúde(1414 Oliveira LGB de, Lippi MC. Judicialization and judicial activism toward Brazilian public health demands. Rev Derecho del Estado [Internet]. 2000 [acesso em 09 jul 2020]; 45. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3519503.
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).

No entanto, observa-se que o Estado utiliza o princípio da reserva do possível para justificar a limitação do direito à saúde, negando atendimentos e medicamentos. A partir dessa negativa, impõe-se ao Poder Judiciário, no caso de omissão dos demais poderes, uma atuação incisiva, para que seja efetivado o direito à saúde.

Os casos analisados nesta pesquisa apontam que o fenômeno das demandas judiciais de procedimentos propedêuticos ou terapêuticos não incorporados pelo SUS traz dilemas éticos de diferentes matizes, do ponto de vista dos gestores, do judiciário e dos profissionais de saúde. Se, por um lado, o direito à vida e à saúde não pode ser sobrepujado por justificativas econômicas, por outro, do ponto de vista da gestão, há limites entre interesse individual e o bem coletivo(1515 Silva I de A, Benacchio M. The conceptualization of the theory of the possible reserve and the existential minimum: reflections for the realization of the de-judicialization. Revista Tributária e de Finanças Públicas. [Internet]. 2018 [acesso em 09 jul 2020]; 139. Disponível em: http://rtrib.abdt.org.br/index.php/rtfp/article/view/98/64.
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).

Do ponto de vista do sistema judiciário, o artifício de judicialização das causas ligadas à saúde implica em um aparato de assessoria técnica para a especificidade das questões desse setor, para que não sejam cometidos abusos que firam a ética perante a sociedade. Por exemplo, no que tange aos pedidos de internação/tratamento, para que a tutela seja concedida pelo Poder Judiciário, deve ser comprovada a imprescindibilidade da medida por meio de laudo médico. Também é indispensável confirmar o esgotamento dos recursos extra-hospitalares, caso tenham sido implementados e, ainda, ser demonstrada a impossibilidade de o cidadão custear o tratamento/internação com recursos próprios, mostrando ser imprescindível a medida judicial impositiva(1616 Sarlet IW, Saavedra GA. Judicialization, budgetary and financial limits of resources and compliance in health sector. R Dir Gar Fund [Internet]. 2017 [acesso em 09 jul 2020]; 18(1). Disponível em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11307/2/Judicializacao_Reserva_do_Possivel_e_Compliance_na_Area_da_Saude.pdf.
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).

Profissionais de saúde também cometem abusos ao indicar tratamentos fora de padrão de alto custo, sem a devida preocupação com uma ética social, já que tais custos serão divididos por toda a sociedade, mesmo sabendo da existência de similares com eficácia comprovada, mas com melhor custo-efetividade(1515 Silva I de A, Benacchio M. The conceptualization of the theory of the possible reserve and the existential minimum: reflections for the realization of the de-judicialization. Revista Tributária e de Finanças Públicas. [Internet]. 2018 [acesso em 09 jul 2020]; 139. Disponível em: http://rtrib.abdt.org.br/index.php/rtfp/article/view/98/64.
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-1616 Sarlet IW, Saavedra GA. Judicialization, budgetary and financial limits of resources and compliance in health sector. R Dir Gar Fund [Internet]. 2017 [acesso em 09 jul 2020]; 18(1). Disponível em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11307/2/Judicializacao_Reserva_do_Possivel_e_Compliance_na_Area_da_Saude.pdf.
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).

Dessa forma, há de se buscar mais eficiência na formulação de políticas públicas, com parâmetros de monitoramento baseados em evidências científicas, para que sejam efetivados a garantia do uso e o acesso racional às tecnologias, aos medicamentos e a uma rede de serviços de qualidade, sem a necessidade da intervenção do Judiciário. Tais medidas vão ao encontro das garantias constitucionais do direito à saúde e ao aumento da equidade na sociedade(1717 Bahia SJC, Silva DB e. Conciliating the existential minimum and the possibility objection. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais. [Internet]. 2016 [acesso em 18 ago 2020]; 2(2). Disponível em: http://dx.doi.org/10.26668/IndexLawJournals/2526-0111/2016.v2i2.1623.
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).

Por fim, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), no seu Art. 196, garante o direito à saúde, o qual deve estar sempre ajustado às políticas sociais e econômicas, visando tutelar também a universalidade das prestações do Estado, bem como das demais obrigações estatais decorrentes do orçamento público, e preservar um atendimento razoavelmente igualitário a todos os cidadãos(33 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado; 1988.).

Dessa forma, para que o Estado possa atender aos anseios dos cidadãos no âmbito dos direitos sociais (art. 6o da CF/88), há que programar políticas públicas. Diante de tal assertiva, é preciso ter em vista que, quando violado, o mínimo existencial não poderá ser relativizado. E quando confrontado com a reserva do possível, o mínimo existencial estará em constante tensão, sendo difícil apontar, de modo abstrato, qual deles e em que situação deverá prevalecer.

O presente estudo tem limitações em relação à área de abrangência e no número de casos discutidos, mas pode incentivar novos estudos para ampliar a discussão sobre o tema. Sugere-se desenvolver outras pesquisas tendo como lócus de pesquisa os tribunais de outras regiões do Brasil, para sopesar a aplicação dos princípios constitucionais em discussão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A judicialização mostra-se importante mecanismo de garantia de direitos, mas o dilema entre a vida humana e a economia se coloca nas decisões judiciais, tendo o Estado, ao apresentar recursos baseados na reserva do possível, se contraposto ao mínimo existencial no direito à vida e à saúde.

Entretanto, os direitos sociais inscritos no texto constitucional ratificam as decisões baseadas no conceito do mínimo existencial por serem necessários aos interesses fundamentais e, nesse caso, não se justifica o argumento pelo poder público da teoria da reserva do possível. O que a sociedade anseia é que o Estado cumpra seu papel, garantindo bem-estar social por meio de mecanismos redistributivos da riqueza, diminuindo desigualdades e honrando os princípios constitucionais.

A contribuição deste estudo está em discutir o crescimento de demandas judiciais diante da fragilização do sistema de saúde. Também se destacam como contribuições a análise do contexto atual da saúde e sua baixa capacidade de atendimento às pessoas que se encontram em complexas necessidades de cuidado.

COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO

  • Carvalho EC, Soares SSS, Andrade KBS de, Souza PD de O, Branco VN, et al. Judicialização da saúde: reservado possível e mínimo existencial. Cogit. Enferm. [Internet]. 2021 [acesso em “colocar data de acesso, dia, mês abreviado e ano”]; 26. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v26i0.76406

REFERÊNCIAS

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    Almeida-Filho N. A problemática teórica da determinação social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde em Debate [Internet]. 2009 [acesso em 31 maio 2021]; 33(83). Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/4063/406345800003.pdf
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Editado por

Editora associada: Susanne Elero Betiolli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2020
  • Aceito
    11 Jun 2021
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