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O Direito de Saída no Contexto do Multiculturalismo

The Right of Exit in the Context of Multiculturalism

Resumo

O atentado terrorista contra as Torres Gêmeas nos Estados Unidos provocou acaloradas discussões sobre a necessidade de se limitar e de se controlar a atuação de algumas minorias culturais, assim como de se criar mecanismos para proteger os direitos individuais dos membros dessas minorias perante as decisões tomadas pelo grupo. Nesse contexto, o presente artigo pretende analisar os alcances e as possibilidades do direito de saída no contexto do Multiculturalismo. Com essa finalidade, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental na doutrina nacional e estrangeira. Após a análise dos dados levantados, verificou-se que o direito de saída constitui um valioso mecanismo de proteção dos direitos individuais dos membros de uma minoria cultural, entretanto, existem situações, especialmente nos casos nos quais os valores do grupo são internalizados pelos membros, em que esse direito é insuficiente, devendo-se recorrer a outros meios de proteção.

Palavras-chave:
Direito de Saída; Multiculturalismo; Minorias

Abstract

The terrorist attack on the Twin Towers in the United States provoked heated discussions about the need to limit and control the performance of some cultural minorities, as well as to create mechanisms to protect members of these minorities against the decisions taken by the group. In this context, this paper aims to analyze the possibilities and limits of the right of exit in the context of Multiculturalism. To this end, a literature research was performed in national and foreign doctrine. After analyzing the data, it was found that the right to exit is a valuable mechanism for protecting members of cultural minorities, however, there are situations, especially in cases where the values of the group are internalized by the members, in which this right is insufficient and should be supplemented by other human rights.

Keywords:
Right of Exit; Multiculturalism; Minorities

1 Introdução

No atual mundo globalizado, onde a diversidade cultural da humanidade revela-se na sua plenitude, levantam-se questionamentos sobre como se garantir o respeito e a convivência pacífica entre os diversos grupos culturais e entre os membros no interior desses grupos.

Perante essa realidade, o Multiculturalismo surge para valorizar a diversidade cultural da humanidade e mostrar que o outro não é um inimigo, como afirmava Schmitt (1992SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992.), mas que, embora diferentes, é possível construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Nesse marco contextual, o presente artigo busca analisar o direito de saída como mecanismo para garantir os direitos individuais dos membros das minorias culturais perante as decisões do grupo. Para tanto, os contornos conceituais do Multiculturalismo e suas formas serão inicialmente expostos. Seguidamente, a classificação das reivindicações das minorias culturais de Jacob Levy (1997LEVY, Jacob. Classifying cultural rights. : SHAPIRO, Ian; KYMLICKA, Will. Ethnicity and group rights New York: New York University Press, 1997. p. 22-66.) será apresentada, no intuito de mostrar a riqueza e complexidade dos direitos envolvidos. Finalmente, o direito de saída será analisado buscando mostrar seus alcances e possibilidades.

No século XXI, a humanidade ainda tem a chance de superar os erros do passado. É, com essa preocupação que, no presente artigo, propõe-se o reconhecimento/respeito do outro , a partir de uma interação livre, dialógica e pacífica entre todos os membros da sociedade como pré-requisito para o respeito à dignidade de todos os seres humanos.

2 O Multiculturalismo no Século XXI

A delimitação conceitual do termo Multiculturalismo padece de diversas imprecisões (LOPES, 2008LOPES, Ana Maria D´Ávila. Proteção constitucional dos direitos fundamentais culturais das minorias sob a perspectiva do multiculturalismo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, Senado Federal, ano 45, n. 177, p. 19-29, jan.-mar. 2008.), na medida em que se refere diretamente ao conceito de cultura , cuja ambiguidade é também matéria de diversos debates.

A expressão multiculturalismo designa, originariamente, a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio das sociedades modernas [...]. Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem todas no sentido "emancipatório". O termo apresenta as mesmas dificuldades e potencialidades do conceito de "cultura", um conceito central das humanidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se tornou terreno explícito de lutas políticas. (SANTOS; NUNES, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. : SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Porto: Afrontamento, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.ces.fe.uc.pt/emancipa/research/pt/ft/intromulti.html > Acesso em: 10 jan. 2015.
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)

Mikhaël Elbaz (2002ELBAZ, Mikhaël. El inestimable vínculo cívico en la sociedad-mundo. : ELBAZ, Mikhaël; HELLY, Denise. Globalización, ciudadanía y multiculturalismo. Granada: Maristán, 2002. p. 17-44., p. 27) ensina que Multiculturalismo é um conceito e uma ideologia, cuja polissemia somente pode ser entendida no âmbito da desestruturação da narração nacional, sob os efeitos da globalização. Nesse sentido, o Multiculturalismo pode ser entendido de diferentes formas, tais como:

2.1 O Multiculturalismo Comunal e Corporativo

O Multiculturalismo Comunal e Corporativo deriva da lógica da politização da luta entravada pelas minorias contra o Estado na busca dos direitos que lhe foram historicamente negados. Tal lógica é ao mesmo tempo pragmática e instrumental, na medida em que objetiva criar novos titulares de direitos. O reconhecimento pelo Estado da diversidade cultural e dos direitos das minorias passa inevitavelmente pela mediação institucionalizada de uma elite da própria minoria. Esse tipo de Multiculturalismo provoca tanto apoios como rejeições, haja vista colocar em discussão as dicotomias: espaço público/privado, universalismo/relativismo de valores, direitos individuais/coletivos, objetivismo/subjetivismo.

Semprini (1999SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999., p. 90-111) chama essas dicotomias de "aporias conceituais", afirmando que as diferenças entre a epistemologia multiculturalista e a monoculturalista dificultam qualquer mediação dialética, transformando as controvérsias decorrentes desse choque em quatro aporias conceituais:

a) Essencialismo versus Construtivismo: a noção de Essencialismo é utilizada pelos defensores do Monoculturalismo, que sustentam que as minorias e suas identidades são os dados objetivos da realidade social, "peças imóveis do mosaico social". Diferentemente, no enfoque construtivista, endossado pelos multiculturalistas, as identidades minoritárias são o produto da própria evolução histórica da sociedade, em um contínuo processo dinâmico e transformador.

Os monoculturalistas utilizam o enfoque essencialista como argumento para legitimar o status quo e justificar qualquer oposição a mudanças. Uma das manifestações teóricas do Essencialismo é o genético, que entende que "[...] cada grupo humano está condicionado definitivamente quanto à sua inteligência e em seu potencial de mobilidade social conforme seu patrimônio genético" (SEMPRINI, 1999SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999., p. 91). Nessa linha pronunciou-se o prêmio Nobel de Medicina James Watson ao atribuir como causa do atraso do continente africano a menor capacidade intelectual dos negros, afirmação pela qual teve que posteriormente se desculpar (BBCBrasil, on-line );

b) Universalismo versus Relativismo: o Universalismo defende a existência de valores e julgamentos morais absolutos. Ensina Semprini (1999SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999., p. 92) que a "[...] utopia universalista nasce com o Iluminismo, concretiza-se nas revoluções americana e francesa e é traduzida politicamente nas instituições democráticas". Contrariamente, os relativistas afirmam "[...] a impossibilidade de estabelecer um ponto de vista único e universal sobre o conhecimento, a moral, a justiça, ao menos na medida em que existam grupos sociais ou minorias com finalidades e projetos de sociedade diferentes" (SEMPRINI, 1999SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999., p. 92). Para os defensores do Relativismo, o Universalismo seria uma violência, por pretender eliminar a diferença e impor um ponto de vista particular, mas apresentado como universal.

O Relativismo, entretanto, também é objeto de críticas. Popper, por exemplo, alerta sobre a necessidade de se distinguir relativismo de pluralismo:

O relativismo é uma posição segundo a qual se pode afirmar tudo, ou quase tudo, e, por conseguinte, nada. Tudo é verdadeiro, ou nada é. A verdade é, pois, destituída de sentido. O pluralismo crítico representa uma posição de acordo com a qual, no interesse da procura da verdade, cada teoria - e quanto mais teorias tanto melhor- dever ser posta em plano de concorrência com as demais. Esta concorrência consiste na discussão racional das diversas teorias e na sua eliminação crítica. A discussão é racional; isto significa que o que está em causa é a verdade das teorias concorrentes. Aquela teoria, que na discussão crítica parecer aproximar-se mais da verdade é a melhor: e a melhor teoria prevalece sobre as teorias menos boas. O mesmo passa com a verdade. (POPPER, 1989POPPER, Karl R. Em busca de um mundo melhor. Lisboa: Fragmentos, 1989., p. 174)

c) Igualdade versus diferença: a igualdade (formal) é a base da utopia universalista que, ignorando as desigualdades econômicas, culturais e sociais dos indivíduos, prevê direitos cuja real eficácia se perde no formalismo, favorecendo e fortalecendo a maioria. Por outra banda, para os multiculturalistas, o espaço social é heterogêneo. Dessa forma, qualquer aplicação de uma lei que seja cega às diferenças existentes entre os indivíduos e os trate como se estivessem em igualdade de condições é claramente discriminatória;

d) Reconhecimento subjetivo versus mérito objetivo: os multiculturalistas salientam a importância do reconhecimento subjetivo para colaborar no fortalecimento da autoestima dos membros dos grupos minoritários. Esse reconhecimento é concretizado por meio da adoção de livros didáticos e programas de ensino dos quais é resgatada a contribuição histórico-social das minorias e, sobretudo, concretiza-se por meio de ações afirmativas, a exemplo das cotas educacionais. Esta perspectiva é fortemente criticada pelos monoculturalistas, que defendem a política do mérito, ressaltando o aspecto positivo da competência e reivindicando critérios objetivos de avaliação.

Semprini (1999SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999., p. 92) qualifica essas quatro oposições como aporias para justamente salientar seu caráter conflitual e aparentemente insolúvel, e cuja análise exige uma visão de conjunto e de matriz interdisciplinar.

2.2 O Multiculturalismo como Ideologia Política

O Multiculturalismo como Ideologia Política busca principalmente questionar o Monoculturalismo, demandando uma releitura da história e a desconstrução da comunidade do saber. Nesta perspectiva, o foco dos ataques dos multiculturalistas é contra o Eurocentrismo e o Androcentrismo e não contra o Estado. Objetiva, assim, partir da noção dos seres humanos como entes diferenciados, rejeitando o ideal de igualdade que oculta versões e interpretações da diferença.

Em uma análise da sociedade americana, Semprini afirma que, desde a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776), as elites políticas e culturais do país eram de origem anglo-saxônica e de tradição puritana, fatores que condicionaram o ulterior desenvolvimento americano. Assim, acrescenta que "[...] a alma do país permaneceu branca, anglo-saxônica e protestante (WASP)" (SEMPRINI, 1999SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999., p. 25), o que incidiu na formulação do modelo do cidadão americano como o homem, branco-anglo-saxão e protestante, excluindo-se da titularidade dos direitos os indivíduos que não reunissem essas qualidades.

2.3 O Multiculturalismo e a Síndrome Benetton

O Multiculturalismo e a Síndrome Benetton referem-se à mercantilização da cultura. Sob essa perspectiva, o mundo globalizado é percebido como um grande bazar, caracterizado como um mosaico de sabores, sons e cheiros, que é paulatinamente conquistado pelo mercado global por meio da adaptação dos produtos aos gostos locais. Trata-se de um fenômeno denominado glocalização pelo marketing japonês (ELBAZ, 2002ELBAZ, Mikhaël. El inestimable vínculo cívico en la sociedad-mundo. : ELBAZ, Mikhaël; HELLY, Denise. Globalización, ciudadanía y multiculturalismo. Granada: Maristán, 2002. p. 17-44., p. 23) que, se por um lado evidencia a capacidade de reinterpretação e de adaptação dos produtores e dos consumidores ao mercado global, por outro, mostra que a diversidade não necessariamente significa pluralismo cultural, mas, às vezes, implica a redução da cultura a um único modelo que apenas se adapta às exigências locais no intuito de ampliar o número de consumidores. A generalização deste tipo de Multiculturalismo transforma "[...] los pequeños trabajadores infatigables en pequeños consumidores impenintes encerrados en su torre, su barrio, su casa gracias a la teleciudad universal en detrimento del espacio de deliberación pública" (ELBAZ, 2002ELBAZ, Mikhaël. El inestimable vínculo cívico en la sociedad-mundo. : ELBAZ, Mikhaël; HELLY, Denise. Globalización, ciudadanía y multiculturalismo. Granada: Maristán, 2002. p. 17-44., p. 23). Ademais, essa mercantilização da cultura descontrói a sociedade ao reforçar os interesses individuais sem oferecer um referencial capaz de manter as pessoas unidas.

Após a análise dos três modelos, Elbaz (2002ELBAZ, Mikhaël. El inestimable vínculo cívico en la sociedad-mundo. : ELBAZ, Mikhaël; HELLY, Denise. Globalización, ciudadanía y multiculturalismo. Granada: Maristán, 2002. p. 17-44., p. 32) sintetiza o Multiculturalismo em duas proposições:

  1. a) Apesar das nossas diferenças, todos nós somos humanos , afirmação oriunda da concepção pauliana fundadora do universalismo cristão, que reconhece a alteridade como parte intrínseca da humanidade.

  2. b) É graças às nossas diferenças que podemos ter acesso à nossa humanidade , proposição decorrente da "[...] lectura herderiana del mundo, que presume que todo conjunto humano tiene un Geist , una singularidad que tiene derecho a preservarse y a transmitirse." (SEMPRINI, 1999SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999., p. 32)

No presente trabalho, o direito de saída será desenvolvido no contexto do primeiro modelo acima apresentado, o Multiculturalismo Comunal e Corporativo, cujo eixo gira em torno das reivindicações das minorias pelo reconhecimento de direitos que historicamente lhes foram negados. Dentre essas reinvindicações, os direitos culturais são os que mais suscitam polêmicas, notadamente, porque os contornos conceituais desses direitos ainda não foram claramente definidos, conforme será exposto no tópico seguinte.

3 Classificação dos Direitos Culturais das Minorias

Desde seu surgimento no início do século XX até os anos de 1980, os direitos culturais foram os direitos humanos que menos atenção receberam dos teóricos, em razão das restrições ideológicas que recaíam sobre o termo "cultura" (DONNELLY, 1989DONNELLY, Jack. Human rights, individual rights and collective rights. : BERTING, Jan et al . (Ed.). Human Rights in a Pluralist World. Individuals and Collectivities. London: Westport, 1989. p. 39-62., p. 54).

Essas restrições derivavam da ideologia dominante à época, que propugnava a hegemonia da cultura europeia, considerada "o modelo" das outras. Desse modo, o conteúdo desses direitos limitava-se a "aprender a cultura ocidental para deixar de seu um inculto" (LOPES, 2009LOPES, Ana Maria D´Ávila. El derecho a la educación multicultural en el Estado Brasileño. : SCAFF, Fernando Facury; ROMBOLI, Roberto; REVENGA, Miguel. (Org.). A Eficácia dos direitos sociais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 168-186.), sendo esse o sentido que foi acolhido no artigo 27.1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, "Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios" (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. [1948]. Disponível em: <Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf >. Acesso em: 11 jan. 2015.
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).

Com a internacionalização e a universalização dos direitos humanos, iniciadas após a Segunda Guerra Mundial, o conceito de direitos culturais foi sendo progressivamente ampliado até abranger toda manifestação criativa e própria do sentir e pensar de um grupo social.

A cultura é um conjunto de traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. A cultura engloba, além das artes e das letras, o modo de viver junto, o sistema de valores, as tradições e crenças. (UNESCO, 2001UNESCO. Declaração Universal sobre a diversidade cultural 2001. [2001]. Disponível em: <Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf >. Acesso em: 10 jan. 2015.
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)

Acompanhando essa mudança conceitual, o dispositivo do artigo 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 reconheceu o direito dos membros das minorias étnicas, religiosas e linguísticas a ter sua própria vida cultural.

Art. 27. Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966. [1966]. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm >. Acesso em: 11 jan. 2015.
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)

Já nos anos de 1980, os movimentos pelos direitos das minorias e os estudos no campo do Multiculturalismo - impulsados pelo processo de globalização - demostraram não ser mais possível aceitar a hierarquização de culturas nem a imposição de modelos socioculturais (LOPES, 2012LOPES, Ana Maria D´Ávila. Da coexistência à convivência com o outro: entre o multiculturalismo e a interculturalidade. REMHU, Brasília, DF, v. 20, p. 67-81, 2012.). Assim, com base nesse entendimento, foram aprovadas, nas 31ª e 33ª sessões gerais da UNESCO, em 2001 e 2005, respectivamente, a "Declaração Universal sobre Diversidade Cultural" e a "Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais" estabelecendo, esta última, entre seus princípios:

Art. 2° Princípios orientadores

[...]

3. Princípio da igual dignidade e do respeito de todas as culturas

A proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais implicam o reconhecimento da igual dignidade e do respeito de todas as culturas, incluindo as das pessoas pertencentes a minorias e as dos povos autóctones (UNESCO, 2005UNESCO. Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais 2005. [2005]. Disponível em: <Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224por.pdf > Acesso em: 11 jan. 2015.
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).

Não obstante esses avanços no campo dos direitos culturais, a guerra contra o terrorismo e as ameaças de grupos religiosos extremistas, após o atentado de 11 de setembro de 2001, mostraram a necessidade de se regular as práticas culturais de alguns grupos minoritários (MCGOLDRICK, 2005MCGOLDRICK, Dominic. Multiculturalism and its discontents. : GHANEA, Nazila; SANTHAKI, Alexandra. Minorities, peoples and self-determination. Leiden: Martinus Nijhoff, 2005. p. 211-235., p. 212).

Com a finalidade de contribuir com esse debate, Jacob T. Levy (1997LEVY, Jacob. Classifying cultural rights. : SHAPIRO, Ian; KYMLICKA, Will. Ethnicity and group rights New York: New York University Press, 1997. p. 22-66.) identificou e classificou as reivindicações das minorias culturais que, com maior frequência, costumam estar presentes nas discussões jurídico-políticas, a saber:

a) Exceções às leis que penalizam ou dificultam uma prática cultural: trata-se de exceções que se fundamentam no reconhecimento do direito à diferença e na necessidade de conferir um tratamento especial às minorias (por exemplo, o consumo de vinho por católicos e judeus durante a proibição do uso de álcool nos Estados Unidos). Apesar de serem os tipos de reivindicação mais frequentes, deve-se observar que nem todos possuem caráter religioso (por exemplo, o direito dos indígenas de poderem pescar no período de defeso). Por outro lado, quando a lei regula uma prática cultural específica (por exemplo, a proibição de uso do véu em locais públicos na França) pode ser difícil de estabelecer uma exceção. De qualquer forma, toda exceção à lei deve estar fundamentada e deve considerar as circunstâncias do caso concreto. Assim, não se pode equiparar a permissão para que crianças não frequentem a escola à permissão a um adulto para não usar o capacete em razão de ter que usar um turbante (como no caso dos membros da minoria Sij).

b) Assistência para as atividades que a maioria pode fazer sem necessidade de ajuda: mais do que separar, o objetivo desta reivindicação é integrar a minoria à sociedade (por exemplo disponibilização de cédula de votação em outra língua). Esse tipo de reivindicação assume contornos polêmicos quando envolve a concessão de subsídios econômicos apenas para um grupo minoritário (por exemplo, as isenções ou deduções tributárias a templos religiosos), na medida em que esse ato costuma ser interpretado como um tratamento privilegiado em relação ao resto da sociedade. São ainda mais polêmicas as reivindicações consideradas contrárias ao mérito e ao direito à igualdade (por exemplo, as cotas para o ingresso às universidades). Contra esses questionamentos, invoca-se a necessidade social de se adotar o conceito de justiça material no lugar do de justiça formal (cego às diferenças reais).

c) Autodeterminação para as minorias étnicas, culturais e nacionais: constitui, em razão de sua repercussão geopolítica, a reivindicação mais visível e difundida, cujo fundamento é o direito que todo grupo possui de não ser regulado por alguém que não seja membro. É um direito que pode ser reivindicado apenas por algumas minorias, na medida em que pressupõe a existência de um território próprio. Iris Young (2004YOUNG, Iris Marion. Two concepts of sel-determination. : MAY, Stephen. MODOOD, Tariq. SQUIRES, Judith. Ethnicity, nationalism and minority rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 176-195.) sugere substituir o termo autodeterminação por autogoverno, já que o primeiro implica um poder político soberano, sendo que a grande maioria das minorias culturais não busca se separar do Estado do qual faz parte, mas apenas objetiva exercer competências legislativas, administrativas e jurisdicionais em concordância com seus valores culturais.

d) Regras externas para não-membros: é a reivindicação que objetiva proteger as minorias perante terceiros (por exemplo, a proibição do uso de placas comerciais em inglês na cidade canadense de Quebec com a finalidade de proteger o idioma francês), sem a necessidade de se tornarem Estados independentes. A imposição de restrições à liberdade de não membros fundamenta-se no poder soberano que todo Estado possui de regular a convivência dos seus membros.

e) Regras internas para os membros: esta reivindicação funda-se na prerrogativa que todo grupo tem de elaborar suas próprias regras, as quais, apesar de não serem jurídicas, possuem caráter obrigatório para seus membros (por exemplo, só homens podem ser padres na Igreja Católica). Alguns autores (KYMLICKA, 1996KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural. Barcelona: Paidós, 1996.) entendem que toda imposição interna é ilegítima, enquanto outros (KUKATHAS, 1995KUKATHAS, Chandran. Are any cultural rights? : KYMLICKA, Will. The rights of minority cultures. New York: Oxford University Press, 1995. p. 228-256.) defendem esse direito com base na liberdade de associação.

f) Representação da minorias nos espaços públicos de poder do Estado: a natureza desta reivindicação é diferente de uma ação afirmativa, pois, nesse caso, o direito encontra-se fundamentado no princípio democrático e não no direito à igualdade. O reconhecimento deste direito provoca uma série de questionamentos práticos ainda sem respostas satisfatórias. Assim, os eleitos têm a obrigação de representar os interesses do grupo que os elegeu? Quem pode votar neles? Como garantir a efetiva participação dos eleitos se no Parlamento continuarão sendo minoria?

g) Direitos de valorização da minoria: esta reivindicação objetiva fortalecer a identidade da minoria por meio do reconhecimento social de seus símbolos próprios (por exemplo, a bandeira, o hino etc.).

h) Reconhecimento pelo Estado da obrigatoriedade das regras internas da minoria: o reconhecimento desta reivindicação deflagra a coexistência de diversas ordens normativas no interior de um mesmo Estado, cujos conflitos podem ser resolvidos aplicando as regras utilizadas nos Estados federais para resolver esse tipo de situação. Outro aspecto polêmico desse direito é quando a decisão do grupo restringe ou viola os direitos individuais de algum dos seus membros, especialmente em matéria de direito de família (por exemplo, os casamentos arranjados), de direito penal (por exemplo, as chibatadas) e de direito indígena (por exemplo, o uso comunitário da terra), questionando-se até que ponto um Estado deve aceitar como obrigatórias as práticas culturais que ferem os direitos individuais dos membros de uma minoria.

A classificação de direitos culturais elaborada por Levy constitui, sem dúvida, uma clara mostra da complexidade da temática e, mais ainda, de que o ordenamento jurídico e as instituições públicas não pertencem apenas à maioria, nem devem servir para privar as minorias de suas próprias práticas culturais (RAZ, 1994RAZ, Joseph. Ethics in the public domain. Essays in the morality of law of politics. Oxford: Clarendon Press, 1994., p. 159).

Miguel Carbonell (2014) afirma que uma coisa é que o Estado, suas regras e instituições não sejam neutrais e outra muito diferente é que o próprio Estado seja administrado como se pertencesse a um único grupo. É essa, justamente, a diferença entre um Estado democrático e um Estado totalitário.

De qualquer forma, não há como negar que os direitos culturais das minorias, assim como qualquer outro tipo de direito, não são absolutos, mas estão sujeitos a limites, sobretudo quando as reivindicações do grupo são suscetíveis de restringir ou violar os direitos individuais de seus membros. Nessas situações, o direito de saída constitui um valioso mecanismo para proteger os membros de uma minoria contra as decisões do grupo ao qual pertence, conforme será exposto a seguir.

4 O Direito de Saída: indivíduo versus grupo

Leslie Green (1998GREEN, Leslie. Rights of exit. Legal Theory. London: Cambrigde University Press, 1998. n. 4, p. 165-185.) observa que algumas das restrições impostas pelas minorias culturais1 Leslie Green utiliza a expressão genérica grupos sociais (social groups ) com a finalidade de abarcar os diferentes tipos de grupos. No presente artigo, considerando o marco teórico escolhido, far-se-á referência apenas às minorias culturais (religiosas, étnicas ou linguísticas). aos seus membros constituem graves violações aos seus direitos individuais, podendo ser sintetizadas na frase "ame-o ou deixe-o". Essa é uma prerrogativa que os Estados não possuem. Aliás, muitas das restrições impostas por essas minorias, se fossem impostas por um Estado, seriam consideradas ilegais. Por que, então, reconhecer a um pequeno grupo social esse poder?

Rawls (1971RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971., p. 212) afirma que todo grupo deve ter o direito de se auto-organizar de acordo com a vontade de seus membros e, sendo assim, é razoável aceitar que as minorias tenham o direito de estabelecer restrições aos seus membros. A questão, portanto, não é se um grupo pode impor regras aos seus membros, mas se essas restrições foram decididas democraticamente e qual a alternativa no caso de discordância.

Partindo-se do pressuposto de que um grupo deve ter o direito de fixar suas próprias regras, deve-se também aceitar o direito desse grupo de estabelecer o procedimento por meio do qual essas regras são tomadas. Isso pode implicar em aceitar a existência de regras que excluam alguns membros da participação da tomada de decisões (por exemplo, uma comunidade indígena na qual apenas os homens têm o direito de participar das reuniões e de votar) ou, considerando que, muitas vezes, as decisões são tomadas a partir da regra da maioria, ter que aceitar que uma parcela minoritária de um grupo nunca possa ganhar uma votação (por exemplo, as mulheres de um determinado grupo religioso).

Considerando essa situação, Kukathas (1995KUKATHAS, Chandran. Are any cultural rights? : KYMLICKA, Will. The rights of minority cultures. New York: Oxford University Press, 1995. p. 228-256.) defende o direito de qualquer membro de um grupo de escolher continuar ou não sendo parte dele. Desse modo, se alguém estiver em desacordo com as decisões adotadas, deve ter o direito de, a qualquer momento, sair do grupo. O ponto crucial da questão é se esse direito de saída é suficiente para proteger os membros dissidentes.

Green (1998GREEN, Leslie. Rights of exit. Legal Theory. London: Cambrigde University Press, 1998. n. 4, p. 165-185., p. 167) aborda inicialmente a questão distinguindo grupos sociais e Estados. Assim, a pertença a um grupo social é livre e voluntária, enquanto a um Estado não. Locke (1983LOCKE, John. A letter concerning toleration. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1983., p. 28), para ilustrar melhor essa diferença, compara uma Igreja a um Estado. No primeiro caso, há liberdade para pertencer ou não a ela. No segundo, não, já que o poder do Estado sobre todos os que se encontram em seu território é supremo. Os grupos sociais possuem um propósito determinado e uma forma específica de vida. Os Estados, apesar de terem seus objetivos definidos, não compreendem um único estilo de vida, exceto em um nível tão abstrato e geral que não chegam a interferir diretamente nas formas particulares de vida que seus membros possam adotar. Finalmente, os Estados têm a obrigação de serem tolerantes; já os grupos sociais não é que não precisem ser tolerantes, mas podem ser "menos tolerantes".

Essas diferenças evidenciam que grupos sociais e Estados não podem ser equiparados, devendo, portanto, reconhecer-se o direito dos primeiros de possuir regras diferentes, como no caso do direito de saída.

O direito de saída é definido como o direito do membro de um grupo de livremente decidir sair dele. Não é suficiente que o direito se exerça apenas de jure , mas deve também o ser de facto.

O exercício de fato implica não apenas garantir a saída efetiva do grupo, mas vem sendo também utilizado para determinar a legitimidade de uma prática cultural. Assim, uma prática para ser aceita deve permitir que o indivíduo, ainda depois de ter saído do grupo, não carregue nenhuma marca indelével ou que faça com que terceiros possam identificá-lo como alguém que algum dia fez parte dessa minoria cultural. Nesse sentido, por exemplo, a imposição do uso de um turbante seria permitida, mas não a mutilação genital feminina. Deve-se ter presente que ser parte de um grupo não pode ser entendido como uma manifestação de total concordância com todas as decisões internamente tomadas. Sob essa perspectiva, sair do grupo seria uma espécie de legítima defesa que um membro teria contra as decisões das quais discorda totalmente. O problema é que, às vezes, a simples manifestação da vontade de sair do grupo pode ser considerada uma grave ofensa, provocando a exclusão e até o banimento desse membro, mesmo antes de ele concretizar seu direito de saída.

De qualquer maneira, o direito de saída não pode ser considerado absoluto. Haverá casos em que talvez sejam necessárias algumas restrições com a finalidade de proteger terceiros (por exemplo, no caso da propriedade comunal da terra) ou de permitir a participação de pessoas externas ao grupo para mediar o conflito. Nesse último caso, os terceiros deverão ter o cuidado de não impor suas próprias convicções culturais à minoria. Reconhecer, por exemplo, o direito de uma mulher indígena de se casar com um não indígena, como é permitido aos homens da mesma comunidade, poderá ser interpretado como imposição de uma prática cultural ocidental.

Há situações que são ainda mais complexas, sobretudo porque deixar um grupo social não é o mesmo que deixar um carro, conforme aponta Green (1998GREEN, Leslie. Rights of exit. Legal Theory. London: Cambrigde University Press, 1998. n. 4, p. 165-185., p. 172). Tratando-se de uma Igreja, por exemplo, cujos valores foram por anos internalizados pelo sujeito, sair pode ser um processo muito difícil, com profundas repercussões na vida e na identidade pessoal do indivíduo.

It is as difficult to leave many social groups as it is to leave the state, and in some cases it is even impossible. Considerer, to begin, that exit from many groups involves taking along a lot of baggage [...] Those groups that are most important in human life are precisely those in understanding how people come to be members than do the organic notions of growth and development [...] They grow up in a family or school with religious outlooks and values that they internalize and adapt. This produces a whole set of profound effects, including - sometimes - the feeling that one is so intimately bound up with the fate of one´s religion that it is almost a part of one´s personal identity. Abandoning this is so unlike the process of entering or leaving the market for a car or a health club that any similarities seem overwhelmed by the differences. (GREEN, 1998GREEN, Leslie. Rights of exit. Legal Theory. London: Cambrigde University Press, 1998. n. 4, p. 165-185., p. 172)

De qualquer forma, deve-se atentar também para o fato de que, às vezes, a pertença a uma minoria cultural não é consequência da manifestação expressa do indivíduo. Em algumas circunstâncias, esse pertencimento é atribuído pelo próprio grupo ou por terceiros. Um judeu, por exemplo, pode sair da sua congregação, mas talvez para o grupo ele continue sendo sempre um judeu. Um indivíduo com rasgos físicos indígenas pode não ser parte de uma comunidade indígena, entretanto, a sociedade pode considerá-lo como tal.

Verifica-se, portanto, que o direito de saída é um conceito complexo, especialmente em relação a determinados tipos de grupos sociais. Aceitar ou não uma autoridade religiosa pode, por exemplo, parecer ser livre do ponto de vista político-jurídico, mas não do ponto de vista religioso-moral, mostrando que, às vezes, a vontade de sair do grupo pode estar comprometida por circunstâncias psicológicas, morais, sociais ou econômicas, dificultando e até tornando tal saída impossível.

Esses aspectos mostram que o direito de saída não é suficiente para proteger os indivíduos contra o grupo. Green (1998GREEN, Leslie. Rights of exit. Legal Theory. London: Cambrigde University Press, 1998. n. 4, p. 165-185., p. 175-176) aponta três argumentos que respaldam essa afirmação, quais sejam:

  1. O direito de saída não é suficiente para garantir a liberdade de associação porque, algumas vezes, o pertencimento a esse grupo não adveio de manifestação expressa do indivíduo.

  2. O direito de saída não limita o poder absoluto dos chefes do grupo, haja vista esse direito não ter as características de um direito de veto.

  3. O direito de saída não é suficiente para garantir a saída de um grupo, na medida em que ser parte dele pode confundir-se com a própria identidade moral do indivíduo.

Daí a necessidade de se considerar outros direitos conexos que podem complementar a proteção jurídica do indivíduo, a saber:

  1. Liberdade de desfiliação: proíbe ao grupo estabelecer normas que dificultem, além do razoável, ou impeçam alguém de abandoná-lo.

  2. Liberdade de locomoção: garante o direito do membro de se locomover tanto no interior do território do grupo (quando assim seja aplicável), como de atravessar sua fronteira e livremente retornar.

  3. Liberdade de expressão: implica o direito de ter acesso à informação, para assim poder se manifestar livre e conscientemente.

  4. Liberdade de associação: trata-se aqui de uma liberdade interna, ou seja, o direito dos membros de formarem subgrupos.

  5. Direito à justa distribuição dos recursos comuns: permite a saída do membro com seus bens, exceto nos casos de bens imóveis, como a terra ou acessórios inseparáveis. Nesses casos, em função da proteção dos direitos de terceiros ou até da própria existência do grupo, o direito tem sido limitado.

Não há dúvida de que esses direitos podem complementar o direito à saída, mas há outros aspectos mais cruciais e controvertidos, por exemplo, a legitimidade da prática cultural que está sendo imposta. O direito de saída garante a todo membro sair do grupo quando estiver em desacordo com um costume que está sendo imposto, mas, e se esse costume for contrário aos direitos humanos? Ainda nesses casos a única alternativa que tem o membro da minoria é sair dela?

Esse questionamento leva a outro mais complexo e que vem sendo objeto de intermináveis discussões entre universalistas e relativistas: como determinar se uma prática cultural respeita os direitos humanos? Nesse contexto, Elizabeth Reichert (2006REICHERT, Elizabeth. Human rights: an examination of universalism and cultural relativism. Journal of Comparative Social Welfare, [S.l.], v. 22, Issue 1, 2006. Disponível em: <Disponível em: http://socialwork.siuc.edu/resourcecenter/RJCS_A_152282.pdf >. Acesso em: 12. jan. 2015.
http://socialwork.siuc.edu/resourcecente...
) propõe os seguintes parâmetros:

  1. Analisar os antecedentes históricos da prática cultural: é um costume recente ou está enraizado nos valores e nos princípios estruturantes do grupo há séculos?

  2. Analisar se a prática cultural foi adotada democraticamente: todos os membros do grupo foram representados por aqueles que tomaram a decisão?

  3. Comparar a prática cultural com padrões contemporâneos de direitos humanos: a pratica é rejeitada pela grande maioria da sociedade mundial (Ocidente e Oriente)?

Essas considerações demonstram que a necessidade de se conciliar a diversidade cultural dos seres humanos para a garantia de uma convivência pacífica continua sendo um desafio para a humanidade e mostram que, no fundo, a maior preocupação deve ser o respeito à dignidade humana de todos sem nenhuma distinção.

5 Conclusão

A riqueza da diversidade cultural da humanidade foi durante séculos menosprezada. Como consequência disso, os direitos culturais foram relegados a um segundo plano nas discussões jurídico-políticas sobre direitos humanos.

Essa situação começou a mudar tão somente no final do século XX graças ao processo de globalização, que derrubou muitas das fronteiras geográficas e ideológicas do mundo, impulsionando as reivindicações identitárias das minorias culturais.

No entanto, acontecimentos lamentáveis, como o atentado terrorista do dia 11 de setembro, envolvendo alguns membros dessas minorias deflagraram discussões sobre a necessidade de se limitar e de se controlar a atuação desses grupos.

Dentre esses limites, o direito de saída foi proposto como uma forma de garantir os direitos individuais dos membros de uma minoria cultural perante as decisões do grupo. Assim, o direito de saída permite ao membro de um grupo, a qualquer momento, sair livremente dele. Trata-se de um direito cujo exercício deve ser garantido não apenas de jure , mas também de facto .

Apesar dos seus aspectos positivos, o direito de saída apresenta algumas insuficiências, especialmente nos casos em que os valores do grupo foram internalizados pelo membro, passando a ser parte da sua própria identidade pessoal. Nesses casos, a saída do grupo pode não ser a melhor resposta, dando lugar à discussão sobre a legitimidade da restrição que está sendo imposta ao membro.

Diante disso, há autores que se têm dedicado a propor mecanismos complementares do direito de saída como forma de superar suas insuficiências e, até, autores que têm proposto parâmetros para avaliar a legitimidade das práticas culturais das minorias, abrindo a discussão sobre a legitimidade de terceiros ao grupo para se pronunciarem sobre questões internas da minoria.

Essas situações evidenciam que, de fato, talvez as pessoas sejam menos receptivas do que pensam que são para aceitar a diversidade cultural da humanidade, por isso, Green (1998GREEN, Leslie. Rights of exit. Legal Theory. London: Cambrigde University Press, 1998. n. 4, p. 165-185., p. 185) afirma que o direito de saída é sempre intruso, uma manifestação crua e silenciosa de insatisfação (ame-o ou deixe-o), embora talvez seja a única forma de garantir a existência de um grupo, no qual o direito de escolha é um intruso.

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  • Leslie Green utiliza a expressão genérica grupos sociais (social groups ) com a finalidade de abarcar os diferentes tipos de grupos. No presente artigo, considerando o marco teórico escolhido, far-se-á referência apenas às minorias culturais (religiosas, étnicas ou linguísticas).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2015
  • Revisado
    03 Set 2015
  • Aceito
    20 Set 2015
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