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Esplendor e Crise do Constitucionalismo Global

Splendor and Crisis of Global Constitutionalism

Resumo

Neste trabalho serão discutidos os avanços e os retrocessos no direito constitucional e no direito internacional no pós-guerra. Analisa-se o mundo que emerge normativamente mais igual após a Carta da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos de 1966, aproximando-se de um constitucionalismo global, porém permanece desigual no plano fático. A pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica.

Palavras-chave:
Soberania; Direito Internacional; Constitucionalismo Global

Abstract

The paper discusses advances and setbacks in constitutional law and international law in the postwar period. Analyzes the world emerges more equal normative guidance after the UN Charter, the Universal Declaration of Human Rights and the Covenants of 1966, approaching a global constitutionalism, but remains uneven in factual plan. The research was conducted through literature review.

Keywords:
Sovereignty; International Law; Global Constitutionalism

1 Introdução

O conceito de soberania foi pensado ao longo da constituição do Estado moderno a partir de um duplo viés: o plano interno e o plano internacional. É soberano o Estado que demonstra ser capaz de fazer valer seu ordenamento jurídico em todo o território sob seu domínio. Aliás, essa é uma condição para ser reconhecido como um igual pela sociedade internacional. É nesse sentido que o monopólio da força, exercido com exclusividade pelo Estado, pode e deve ser utilizado sempre que necessário para conter insurgências que possam ameaçar a ordem interna. No plano externo, manifesta-se ser soberano o Estado que consegue impor seus interesses perante os demais entes estatais igualmente livres. Sem as regras do estado civil para dirimir conflitos, vigoram as leis do estado de natureza. No teatro mundial, é preciso impor-se perante os demais atores valendo-se dos meios adequados, sem exclusão até mesmo do recurso à guerra.

Esse conceito duplo de soberania, da forma como pensado até a Segunda Guerra Mundial, começa a ruir após o fim do conflito. A sociedade internacional aprendeu, a duras penas, que as divergências entre nações teriam que ser dirimidas pelo direito e não pela força bruta do mais forte. Duas guerras mundiais mostraram que o caminho deveria ser outro, até mesmo porque um terceiro conflito global seria o último. Portanto, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e os demais textos legais elaborados na sequência visavam resolver contendas de forma pacífica.

Ao mesmo tempo, via Estado de Direito, o legado deixado pela tradição liberal ensinou que o poder estatal deve ser limitado e dividido para evitar arbitrariedades e excessos por parte de quem comanda o governo; e a Segunda Guerra Mundial também mostrou que um governo pode praticar violência contra seu próprio povo, valendo-se até mesmo do apoio das maiorias. Daí a importância de textos constitucionais principiológicos que possam indicar o caminho para quem governa.

Denota-se, portanto, mudanças nas duas dimensões do conceito de soberania. Não pode mais o Estado impor-se perante os cidadãos sem respeitar os limites constitucionais e os direitos humanos. E, também, não pode o Estado tratar os demais Estados por qualquer outro meio que não seja pacífico e mediado pelo direito. Porém, se as construções normativas do Pós-Guerra asseguraram um conjunto de direitos que formam um “constitucionalismo global” (FERRAJOLI, 2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013.), no plano fático, a perspectiva teórica mostrou-se deficitária.

Para tratar do problema aqui brevemente introduzido, divide-se o texto em quatro partes: século XX - um mundo em transformação; soberania e novo direito internacional; soberania e cidadania - dois conceitos não efetivados; e a reação antiglobalização.

A reflexão reconstrói, em grande parte, teses do jurista italiano Luigi Ferrajoli. Seu pensamento é o principal marco teórico do artigo e sua extensa obra Principia Iuris, dividida em três volumes, contempla e resgata produções de toda uma vida intelectual. A metodologia seguida, portanto, segue a trilha da reconstrução bibliográfica.

2 Século XX: um mundo em transformação

O século XX pode ser considerado, como afirma Hobsbawm (1995HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX - 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.), um breve século. Os grandes acontecimentos que marcaram a história começam em 1914 (Primeira Guerra Mundial) e terminam com o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e com o fim da Guerra Fria. A queda do Muro de Berlim, em 1989, é o símbolo do término de uma era. O evento mais marcante do “século de 75 anos” é com certeza a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Dela emerge uma Europa destroçada com mais de 50 milhões de mortos e a possibilidade de destruição do planeta em decorrência da invenção de armas nucleares. O mundo passa, então, a demandar novos conceitos e novas instituições para sobreviver.

A partir da década de 1940, com a criação da ONU e de outras instituições internacionais, abre-se no horizonte a possibilidade de novas formas de coordenação das ações para além da esfera estatal. Seja de natureza política ou com intuito de pensar questões de ordem econômica ou financeira, a exemplo do Banco Mundial (BM - 1944), Fundo Monetário Internacional (FMI - 1945) e as rodadas de negociação do comércio internacional que formularam os Acordos Gerais de Tarifa do Comércio (GATTs) e redundaram na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC, 1995), tais organizações/instituições formam um conjunto de novas regras que interagem com o direito de cada Estado, complementando, suprindo lacunas, substituindo ou conflitando. O Estado nacional vai, gradativamente, perdendo competências, a exemplo da exclusividade de elaborar normas para a sociedade.

Tais mudanças provocaram alterações profundas nas relações internas dos Estados, entre Estado e indivíduo e entre os próprios Estados. Tomando o direito internacional como referência, percebe-se que as concepções tradicionais acabam por abrir espaço para uma perspectiva pluralista. Ferrajoli (2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 472) faz uma breve síntese de três concepções e acrescenta um quarto ponto de vista. A primeira, de cunho monista-nacionalista, remete a Hegel e ao século XIX e entende que o ordenamento jurídico internacional deriva do estatal. Portanto, segundo essa concepção, não existe um direito internacional único, mas muitos ordenamentos internacionais dependentes dos ordenamentos estatais. Uma segunda concepção, essa monista-internacionalista, defende que o Direito Internacional ocupa o primeiro plano em relação ao Direito Estatal. É o direito do Estado que faz parte do Direito Internacional e não o contrário. A regra mais importante do Direito Internacional seria o princípio de efetividade, que reconheceria como válidos os ordenamentos estatais efetivos. A terceira concepção seria a dualista, por admitir que o direito internacional e os ordenamentos estatais não são dependentes entre si, como nas duas primeiras concepções, por serem “distintos”, independentes” e “originários”. Portanto, buscariam fontes e fundamentos de validade de maneira autônoma. Ferrajoli (2013) destaca que hoje fala-se muito mais em pluralismo dos ordenamentos do que em dualismo. Isso se deve ao fato de que:

[...] os direitos dos estados formam uma pluralidade de ordenamentos e, também, cabe acrescentar, o mesmo direito internacional é formado por uma pluralidade de instituições e os correspondentes entes e ordenamentos. Sobretudo, ademais, se reconhece que entre essas diversas instituições existem múltiplas relações de distintas naturezas - de coordenação, subsidiariedade, subordinação, integração - determinadas pelas diversas normas de direito positivo. (FERRAJOLI, 2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 473)

Tais ordenamentos, ou instituições, não são derivados, mas originais e de alguma forma integrados entre si. O melhor exemplo é a União Europeia na qual muitas decisões tomadas no âmbito do bloco passam a ter vigência sem a ratificação interna dos parlamentos locais. Não se trata de uma discussão de modelo fixo, padronizado, mas de algo ainda em construção, mesmo após mais de meio século de história. Desde a criação do Benelux, passando pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, pelo Mercado Comum Europeu (ou Comunidade Econômica Europeia), e, finalmente, com o impulso dado pelo Tratado de Maastricht, na década de 1990, chega-se ao estágio atual de integração da União Europeia envolvendo 28 Estados. A convivência entre países com histórias e culturas distintas demanda a construção de novas formas políticas e jurídicas.

Em uma conferência proferida em 2001, Habermas (2001HABERMAS, Jurgen. A constelação Pós-Nacional: Ensaios Políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001.) critica Siedentop por defender a necessidade da criação de um modelo novo que iria além de uma confederação, porém aquém de uma federação, configurando um projeto que buscaria unificar a soberania dos Estados apenas em aspectos específicos e não agiria sobre os indivíduos. O equívoco de Siedentop estaria no fato de que a Europa, para Habermas, já teria ganhos históricos solidificados e que deveriam ser mantidos.

Esses ganhos incluem, não apenas as garantias formais dos direitos civis, mas níveis de bem-estar social, educação, e tempo livre que são a condição prévia tanto da autonomia privada real como de uma cidadania democrática. A substantificação contemporânea da lei significa que os debates constitucionais sobre o futuro da Europa se encontram, hoje, progressivamente circunscritos ao terreno dos discursos altamente especializados de economistas, sociólogos e cientistas políticos, mais do que no domínio de juristas constitucionais e filósofos políticos. (HABERMAS, 2002, p. 6HABERMAS, Jurgen ¿Por qué necesita Europa una constitución? Precedente Anuário Jurídico, Santiago de Cali, 2002. )

Se Habermas não prioriza o modelo, mas um legado histórico que deve ser mantido, Ferrajoli (2013, p. 474FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013.) destaca que a União Europeia se enquadra no paradigma de uma federação por comportar “[...] órgãos supra estatais que produzem normas imediatamente válidas para os Estados membros”. Não é um modelo vertical por contemplar uma “pluralidade de setores” com as instituições dos Estados membros. Os tratados e convenções, portanto, dependem de estruturas estatais para que possam vigorar. Em alguns Estados funciona um sistema misto que acolhe imediatamente o direito internacional geral, mas filtra tratados, acordos e convenções, os quais ficam na dependência de ratificação interna mediante leis específicas. As formas diversas de integração, porém, não permitem que se possa falar de federalismo, mas em “graus de federalismo”. Daí decorre que o direito internacional seja claramente pluralista e não uno e igualmente composto de vários ordenamentos distintos que, apesar de interligados, partilham diferentes graus de integração. Portanto, segundo Ferrajoli (2013), não se sustenta a concepção monista tanto do direito interno quanto do direito internacional. Da mesma forma é inviável a defesa da teoria dualista, sobretudo depois da criação da ONU e da retificação de pactos e tratados por parte dos Estados nacionais, especialmente de direitos humanos. Esse fato mina a defesa da separação entre a esfera estatal e o ordenamento internacional. Significa que o direito internacional está distante tanto do monismo quanto do dualismo e mais próximo do que se poderia denominar de pluralismo.

A imagem do direito internacional que expressa o pluralismo dos ordenamentos que o compõem é, pelo contrário, a de uma rede complexa e diversamente integrada por instituições e sistemas jurídicos, articulada em distintos níveis normativos. A isso se deve que a garantia de níveis supranacionais de democracia seja o grande problema que hoje se coloca para a reflexão teórica e o planejamento jurídico e político. (FERRAJOLI, 2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 475)

Assim, o direito surgido no pós-guerra já permite falar em uma constituição do mundo, formada pela Carta da ONU, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelos Pactos sobre os Direitos de 1966, denotando a existência de um conjunto de direitos que versam sobre a paz e os direitos humanos assegurados. Faltam, porém, mecanismos de garantia que assegurem sua efetividade.

3 Soberania e Novo Direito Internacional

Bobbio (1986BOBBIO, Norberto. Soberania. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. (org.) Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1986. p. 1179-1188. , p. 1.179-1.180), em seu Dicionário de Política, assim define o conceito de soberania:

Em sentido restrito, na sua significação moderna, o termo Soberania aparece, no final do século XVI, juntamente com o de Estado, para indicar, em toda sua plenitude, o poder estatal, sujeito único e exclusivo da política. [...] A Soberania, enquanto poder de mando de última instância, acha-se intimamente relacionada com a realidade primordial e essencial da política: a paz e a guerra. Na Idade Moderna, com a formação dos grandes Estados territoriais, fundamentados na unificação e na concentração do poder, cabe exclusivamente ao soberano, único centro de poder, a tarefa de garantir a paz entre os súditos de seu reino e a de uni-los para a defesa e o ataque contra o inimigo estrangeiro. [...] Evidencia-se, assim, a dupla face da Soberania: a interna e a externa. Internamente o soberano moderno procede à eliminação dos poderes feudais, dos privilégios dos Estados e das categorias, das autonomias locais, enfim dos organismos intermediários, com sua função de mediador político entre os indivíduos e o Estado. [...] Externamente cabe ao soberano decidir acerca da guerra e da paz: isto implica um sistema de Estados que não têm juiz algum acima de si próprios (o Papa ou o imperador), que equilibram suas relações mediante a guerra, mesmo sendo esta cada vez mais disciplinada e racionalizada pela elaboração, através de tratados, do direito internacional ou, mais corretamente, do direito público europeu.

A definição citada mostra o conceito clássico de soberania: o Estado como detentor da soberania tanto no plano externo quanto no plano interno. Cabe a ele fazer a guerra e a paz, pacificar o ambiente interno mediante o monopólio da força e impor-se perante a comunidade internacional. Esse conceito começa a ruir ao longo da história, sobretudo a partir do advento do Estado de Direito, porém, como aponta Ferrajoli (2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 476), desde a origem, o conceito comporta um paradoxo. Para o contratualismo, da forma como concebido pelos jusnaturalistas, o direito à vida deve ser resguardado. É fundamental que a vida seja protegida contra arbitrariedades por parte de terceiros ou do Estado. Contudo, paradoxalmente, o mesmo Estado que deve respeitar e proteger a vida por ser um direito natural deve poder exercer o direito de vida e morte sobre o indivíduo. É o fato de deter o monopólio da força e poder matar aqueles que violam o direito interno ou representam ameaça a partir de fora que configuram a soberania do Estado. A obrigação de garantir a vida, a priori absoluta e obrigação do Estado, poderia ser relativizada contra criminosos ou inimigos externos do Estado. Aos poucos, a concepção do conceito de soberania começa a mudar.

No âmbito interno, com o surgimento do Estado de Direito, não resta mais espaço para uma soberania ilimitada; a Constituição passa a ser o referencial para o qual todos olham e a instância última e limitadora do poder. Se a lei é o parâmetro e se certos direitos fundamentais devem ser respeitados, então, fica claro que o Estado não pode mais ir às últimas consequências na defesa do que seria o seu interesse. Assim, o Poder Executivo não pode tributar sem passar pelo crivo de quem legisla, da mesma forma não pode dispor acerca da vida ou da liberdade dos cidadãos e, além disso, o próprio Estado pode ser demandado judicialmente por quem se sentir ofendido por seus agentes ou entender que seu direito não foi respeitado. O direito passa a ter como função primordial a defesa do indivíduo contra o Estado.

No âmbito externo, como bem sistematiza Bobbio, a concepção de soberania compreendia as relações entre Estados como essencialmente belicosas. A ausência de um poder comum para resolver conflitos jogava a todos em uma espécie de estado de natureza, e à soberania não restava outra alternativa a não ser depender da capacidade de cada Estado se impor-se perante os demais. Apesar do paradoxo de Estados soberanos viverem conforme o direito na ordem interna e em potencial conflito na ordem externa, todos se uniam na função de civilizar o mundo “bárbaro”.

Essa concepção de soberania entra em crise a partir da metade do século XX. Nos países com democracias menos sólidas e sem mecanismos de contenção, o poder das maiorias levou a regimes totalitários. No plano externo, por outro lado, parte dos Estados europeus se embrenharam em políticas de colonização do planeta, a exemplo do que ocorreu na África. Com interesses em jogo e sem uma forma jurídica para resolver impasses, o conflito mundial não tardou a aparecer.

O pós-guerra trará uma lição importante no plano normativo na medida em que, como observa Habermas (2001, p. 61-62HABERMAS, Jurgen. A constelação Pós-Nacional: Ensaios Políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001.)

A vitória dos aliados não serviu apenas para abrir caminho para o desenvolvimento democrático na República Federal da Alemanha, no Japão e na Itália e, finalmente, também em Portugal e Espanha. Todas as legitimações que não prestassem homenagem - ao menos verbal e textualmente - ao espírito universalista do Iluminismo político foram então descartadas.

Junto com a democracia também surgem novas instituições políticas e jurídicas; é o momento em que o conceito de soberania passa a ser revisto. Ferrajoli (2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 477) destaca que essa guinada pós-guerra dá novos contornos para o Estado, fato que ocorre mediante a “[...] constitucionalização dos direitos humanos e do princípio da paz como limites e vínculos impostos à política, quer dizer, aos poderes supremos tanto internos como internacionais”. Resulta desse processo um novo paradigma no direito interno dos Estados e no direito internacional. Na primeira dimensão, com o direito interno alicerçado nos pilares do Estado de Direito, as constituições erigidas em democracias não são apenas mais rígidas como trazem dentro de si formas de controle de constitucionalidade, ocasionando importantes mudanças no direito positivo e na democracia.

Nas democracias, as maiorias encontram na Constituição um limite e um compromisso com determinados conteúdos. O povo não pode tudo, a exemplo de dar-se um regime que atente contra o direito das minorias ou fira os direitos fundamentais. O texto constitucional obriga a que determinados comandos sejam respeitados e buscados. Com isso, a democracia deixa de ser apenas formal para ir mais adiante, há um conjunto de direitos assegurados que formam comandos para a sociedade; por exemplo, não pode a sociedade revogar os direitos humanos. São postulados que limitam e obrigam ao mesmo tempo. Com as novas dimensões de direitos constitucionalmente assegurados, o leque vai muito além dos direitos à vida e à liberdade, incluindo direitos sociais. É nesse sentido que a soberania parlamentar encontra um limite claro na Constituição, fato que torna a soberania popular livre para garantir direitos, mas não para tirá-los. Direitos fundamentais podem ser ampliados, mas não revogados. A soberania do Estado legislador deixa de ser absoluta para limitar-se ao que permite a Constituição.

Portanto, como a história da primeira metade do século XX demonstra com a sucessão de guerras e governos fascistas, a guinada representada pelas constituições mais rígidas e principiológicas trouxe ganhos muito significativos. Da mesma forma, também são percebidos avanços expressivos nas relações internacionais com a criação da ONU. Ferrajoli (2013, p. 478FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013.) destaca que houve a transição de um ambiente de prevalência da força para um modelo, mesmo com limitações, que se ampara em um “ordenamento jurídico supraestatal” que está estruturado na vedação à guerra e na defesa dos direitos humanos. Na esteira da ONU vieram outros documentos importantes, a exemplo, como já destacado, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos de 1966. Com isso, tem-se uma “constituição embrionária do mundo”.

Essa importante transição no pós-guerra representou uma espécie de passagem, no plano normativo, do estado de natureza para o estado civil, ou, como assevera Ferrajoli (2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 479), “[...] do sistema de pactos de relações bilaterais e paritárias entre estados soberanos para um verdadeiro ordenamento jurídico de tipo confederal”. É uma ruptura muito importante com o modelo estipulado pela paz de Westfalia e a afirmação de um novo “contrato social internacional” da humanidade. E o papel decisivo quem desempenha é a ONU. Fundada por 51 países, a ONU hoje comporta 1931 1 “O direito de tornar-se membro das Nações Unidas cabe a todas as nações amantes da paz que aceitarem os compromissos da Carta e que, a critério da Organização, estiverem aptas e dispostas a cumprir tais obrigações. A ONU possui hoje 193 Países-membros. [...] O total de membros fundadores da ONU é de 51 países, entre eles o Brasil [...] Chamam-se Membros-fundadores das Nações Unidas os países que assinaram a Declaração das Nações Unidas de 1º de janeiro de 1942 ou que tomaram parte da Conferência de São Francisco, tendo assinado e ratificado a Carta. Outros países podem ingressar nas Nações Unidas por decisão da Assembléia Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança”. Texto disponível em: https://nacoesunidas.org/conheca/paises-membros/. Acesso em: 23 maio 2017. . A conduta mais importante por parte dos países-membros é a renúncia ao ius ad bellum e a necessidade de defesa dos direitos humanos no âmbito interno e externo. Um exemplo é a Resolução n. 2.335, de 2015, do Conselho de Segurança da ONU, que condena o emprego de sustâncias tóxicas como arma na Síria2 2 A Resolução n. 2.335, aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU em sua 7.501ª seção, em 7 de agosto de 2015, condena “em termos mais enérgicos o emprego de qualquer substância química tóxica como arma na República Árabe da Síria e observa com indignação que as substâncias químicas tóxicas empregadas como arma na República Árabe da Síria seguem provocando mortos e feridos entre a população civil”. Texto disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2235(2015). Acesso em: 25 maio 2017. .

O que as constituições mais rígidas e principiológicas fazem no plano interno e a ONU no plano externo é transformar o conceito de soberania da forma como pensaram “Francisco de Vitória, Gabriel Vasquez de Menchara, Balthazar de Ayala, Francisco Suarez, depois Grotius, Bodin e Hobbes” (FERRAJOLI, 2002FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 5). Não é compatível com a paz e os direitos humanos conceber as relações entre Estados à luz do estado de natureza. Da mesma forma não pode o Estado agir sobre seus cidadãos sem os limites e freios de uma Constituição que limita os atos de seus governantes. Sem princípios ou freios, qualquer meio aparentemente legal pode ser uma forma de legitimar a violência.

4 Soberania e Cidadania: dois conceitos não efetivados

Em tese “nos tornamos cidadãos do mundo”. Desde o advento da globalização, sobretudo após a queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real, o planeta teve as distâncias encurtadas. Porém, uma maior proximidade não significou que os problemas tenham diminuído. Antes, pelo contrário, afinal questões envolvendo meio ambiente, tráfico de armas e a migração de milhões de pessoas desafiam Estados e organismos internacionais a buscarem soluções para além das fronteiras dos Estados. O novo “constitucionalismo global” enfrenta hoje o desafio de responder às demandas contemporâneas que tendem, em muitos casos, a negá-lo. Há aqui um paradoxo. A legislação interna dos Estados concebe os direitos humanos, materializados na figura dos direitos fundamentais, em uma perspectiva universalista. São recepcionados como direitos de todos e não apenas dos locais. Portanto, tem-se um conjunto de direitos que são reconhecidos pelo direito de cada Estado, pelas comunidades supraestatais e pela ONU. O problema é que, no momento da efetivação, tais direitos acabam ficando restritos aos cidadãos de cada país e usados como barreira para os demais.

No mundo concreto, esse grau de universalização almejado por cartas, declarações, tratados e pactos ainda não ganhou contornos desejáveis. A razão para a baixa efetividade do “constitucionalismo global”, segundo Ferrajoli (2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 480), reside na ausência de instituições de garantia que possam tutelar e assegurar tais direitos. Instituições de garantia, ao contrário das instituições de governo, são mais abrangentes, vinculadas ao direito público, e buscam a concretização de demandas da humanidade, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Food and Agriculture Organization (FAO) ou a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, as quais, além de fragilizadas, atendem a demandas específicas. Mas não há, por exemplo, uma organização com alcance global vinculada à preservação do meio ambiente que esteja ligada à ONU e da mesma forma falta efetividade na garantia dos direitos humanos e no combate à violência. O vácuo que sobrevive nas relações internacionais permite que a velha soberania sobreviva, estabelecendo relações desiguais entre países desiguais. A saída dos Estados Unidos da América (EUA) do Acordo de Paris é um exemplo.

Em outro flanco, o da cidadania, a afirmação dos direitos humanos acaba negada por políticas de criminalização da imigração. Ferrajoli (2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 481) destaca que Francisco de Vitória, em pleno século XVI, já havia preconizado “[...] o direito a adquirir a cidadania como um dos primeiros direitos naturais”. Porém, mesmo com a universalização dos direitos humanos e a positivação nas constituições, a cidadania passou a ser negada àqueles que pressionam para entrar nos países ricos fugindo da fome ou da guerra. Como decorrência, a cidadania deixa de ser um elemento de “igualdade” e passa a organizar os indivíduos em categorias. Apenas alguns possuem cidadania plena. Outros somente podem residir provisoriamente no país e possuem direitos restritos. Um terceiro grupo é formado por aqueles que se encontram em situação irregular e não são portadores de direitos. Paradoxalmente, os seres humanos são mais iguais em termos jurídicos e mais desiguais na realidade fática.

A humanidade é, hoje, em seu conjunto, incomparavelmente mais rica do que no passado. Pior, é também, se se leva em conta as massas exterminadas e crescentes de seres humanos, incomparavelmente mais pobre. Os homens são certamente, no plano jurídico, incomparavelmente mais iguais do que em qualquer outra época, graças às inumeráveis cartas, Constituições e declarações de direitos. Porém são também incomparavelmente mais desiguais na prática. (FERRAJOLI, 2013FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris - Teoría del derecho y de la democracia 2: Teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2013., p. 526)

Há, aqui, um conflito entre os conceitos de soberania e cidadania, repensados após a Segunda Guerra em bases universalistas e a realidade fática. A soberania, que deveria ser compartilhada e entendida a partir de parâmetros internacionais, sobrevive cada vez mais alicerçada no velho paradigma nacionalista. Da mesma forma a cidadania passa a ser privilégio dos nacionais.

Os conflitos entre locais e imigrantes têm aflorado com intensidade nos últimos anos, desdizendo em parte a possibilidade real de um “constitucionalismo global”. É um direito que se fragiliza na:

[...] falta de regras, de limites e de vínculos que garantam a paz e os direitos humanos diante dos novos poderes transnacionais, tanto públicos quanto privados, que destronaram os velhos poderes estatais ou que perderam o seu papel de governo e de controle. Penso inclusive que a mesma globalização da economia pode ser identificada, no plano jurídico, com esse vazio de direito público internacional adequado para regular os grandes poderes econômicos transnacionais: não, deve-se notar, um vazio de direito, que não pode nunca existir, mas um vazio de direito público, inevitavelmente preenchido por uma plenitude de direito privado, quer dizer, de um direito de produção contratual que substitui as formas tradicionais da lei e que reflete, comumente, a lei do mais forte. (ATIENZA; FERRAJOLI, 2005ATIENZA, Manoel; FERRAJOLI, Luigi. Jurisdicción y argumentación em el Estado Constitucional de Derecho. México: UNAM, 2005., p. 117)

Com o mundo globalizado e desregulamentado, a falta de articulação e de garantias dos direitos já consagrados ameaça a própria democracia.

5 A Reação Antiglobalização

A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos da América vai muito além de uma disputa entre republicanos e democratas. Trump foge ao perfil dos políticos americanos tradicionais. Empresário, apresentador de TV, bilionário e até pouco tempo atrás distante das disputadas políticas, contra todas as previsões e contra as próprias expectativas do seu partido, elegeu-se presidente. A escolha da maioria do eleitorado americano por um nome que prometeu barrar a entrada de imigrantes de determinados países, mandar imigrantes já residentes no país para casa, denunciar tratados sobre meio ambiente e adotar políticas protecionistas, entre outras promessas, demandaria um estudo mais detalhado.

O cidadão americano, sobretudo aquele sem formação superior, perdeu o emprego de qualidade que tinha e parte significativa de sua renda nas últimas três décadas. Tal fato não significa que o índice de desemprego seja alto nos EUA, antes, pelo contrário, é baixo. O problema é que os valores pagos hoje são inferiores aos praticados à época de Ronald Reagan. Apesar de estar no topo da pirâmide econômica, a concentração de renda aumentou nos EUA. Entre 1950 e 1970, os 10% mais ricos da população americana detinham 30/35% da renda nacional. Já no período 2000 a 2010, os 10% mais ricos concentravam cerca de 40/45% da renda nacional. A continuar no ritmo atual, em 2030, os 10% mais ricos atingirão 60% da renda nacional (PIKETTY, 2014PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 286-287).

Os dados acima mostram a alta concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos e o gradativo empobrecimento do americano branco de classe média/baixa. Para esse cidadão que viu os empregos que remuneravam melhor sumindo aos poucos, Trump é a promessa da volta dos tempos gloriosos, de empregos fartos e salários mais altos, mesmo que em tese isso ocorra pela expulsão de imigrantes e o endurecimento das regras do comércio. Hillary Clinton era a continuação da américa inserida no mundo globalizado.

Na Europa, mais especificamente na França, o fenômeno Marine Le Pen ilustra como parte do eleitorado reage diante dos efeitos internos do atual cenário global. Ou seja, assim como na política mundial contemporânea adveio Trump e Brexit, a recente eleição francesa com Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon “[...] põem novamente em discussão os tratados europeus e o regime atual de concorrência exacerbada entre países e territórios, e isso atrai muitos daqueles que a globalização deixou para trás.” (PIKETTY, 2017PIKETTY, Thomas. Populismo, resposta legítima. [2017]. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/564056-populismo-resposta-legitima-artigo-de-thomas-piketty . Acesso em: 1º jun. 2017.
http://www.ihu.unisinos.br/564056-populi...
, p. 1).

Quase 30 anos após a queda do Muro de Berlim e o início da integração global dos mercados, muitas coisas ficaram para trás. As assimetrias entre Estados, a perda de poder aquisitivo por parte das classes médias nos países desenvolvidos e a migração de postos de trabalho para regiões que remuneram menos fizeram com que segmentos da população ansiassem por um “passo atrás”. O próprio Reino Unido mesmo tendo sofrido menos os efeitos da crise de 2008, em comparação com outros países europeus, não passou imune à rejeição contra os vizinhos. Setores mais pobres e menos sintonizados com a perspectiva cosmopolita, defensores de bandeiras nacionalistas xenófobas, foram decisivos na votação pela separação da União Europeia. Não se pode desconsiderar também o déficit democrático do modelo de gestão da União Europeia. Sentindo-se distantes das decisões burocráticas de Bruxelas, muitos cidadãos somente participam com sim ou não quando consultados para decidir matérias fundamentais para o bloco. Aí é a hora do “não”, ou melhor, do “não desse modo” (HABERMAS, 2005), como a resposta dos franceses em 2005 à consulta acerca da proposta de uma Constituição para o bloco.

Em 2015, após nova crise da dívida grega, Habermas (2015HABERMAS, Jurgen. O governo dos banqueiros. [2015]. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/544030-o-governo-dos-banqueiros-artigo-de-juergen-habermas . Acesso em: 3 jun. 2017.
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, p. 2) assim se manifestou:

Estamos outra vez em crise comAtenasporque, já em maio de 2010, a chanceler alemã se importava mais com os interesses dos investidores do que com quitar a dívida para sanar a economia grega. Neste momento, evidencia-se outro déficit institucional. O resultado das eleições gregas representa o voto de uma nação que se defende com uma maioria clara contra a tão humilhante e deprimente miséria social da política de austeridade imposta ao país. O próprio sentido do voto não se presta a especulações: a população rejeita a continuação de uma política cujo fracasso as pessoas já sentiram de forma drástica em suas próprias peles. De posse dessa legitimação democrática, o Governo grego tentou induzir uma mudança de políticas na zona do euro. E tropeçou emBruxelascom os representantes de outros 18 Governos, que justificam sua recusa remetendo friamente a seu próprio mandato democrático.

Antes, em 2012, Habermas já havia se manifestado abertamente acerca do déficit político da União Europeia:

No processo de integração europeia, dois planos devem ser diferenciados. A integração dos Estados enfrenta o problema de como repartir competências entre aUnião Europeia, de um lado, e os outros Estados membros, de outro. Essa integração, portanto, diz respeito à ampliação de poderes das instituições europeias. Ao contrário, a integração dos cidadãos diz respeito à qualidade democrática desse crescente poder, ou seja, a medida em que os cidadãos podem participar na decisão dos problemas da Europa. Pela primeira vez desde a instituição do Parlamento europeu, o chamadofiscal compactque está sendo aprovado nestas semanas (para uma parte da União) serve para fazer crescer a integração estatal sem um correspondente crescimento da integração cívica dos cidadãos. A tese que eu gostaria de defender aqui está logo dita. Só uma discussão democrática que aborde em 360 graus o futuro comum da nossa cidadania europeia poderia produzir decisões politicamente críveis, isto é, capazes de se impor aos mercados financeiros e aos especuladores que visam à bancarrota dos Estados. (HABERMAS, 2012HABERMAS, Jurgen. Mais democracia, menos mercado. [2012]. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/172-noticias-2012/507493-mais-democracia-menos-mercado-artigo-de-juergen-habermas . Acesso em: 28 maio 2017.
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, p. 1)

O movimento em curso que separou o Reino Unido da União Europeia, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a guinada conservadora na França, mesmo não tendo se sagrado vitoriosa, fazem parte de um movimento que rejeita a globalização, os direitos humanos e a integração dos mercados. É a rejeição de políticas de natureza liberal. Diante da crise, os “nossos” empregos, os “nossos” valores e a “nossa” casa primeiro. Trata-se da negação de um projeto que está sendo construído, com falhas já apontadas, desde o pós-guerra.

6 Conclusão

Não cabe mais ao Estado ter poderes absolutos sobre os cidadãos. É prudente que haja três poderes constituídos, dotados de competências próprias e limitados. É razoável que tais poderes tenham em um patamar mais elevado uma Constituição que os limite e diga o caminho a seguir. Da mesma forma, deve o indivíduo poder litigar contra o Estado, se entender que seu direito foi violado. E, por fim, cabe ao Estado assegurar aos cidadãos, não apenas as garantias formais consagradas ao longo da modernidade, a exemplo da vida e da liberdade, mas, além disso, os direitos sociais e os chamados novos direitos.

Os Estados, nas relações entre si, devem pensar novas formas de cooperação. Se desde a criação da ONU quase duas centenas de Estados optaram pela solução pacífica dos conflitos mediada pelo direito, tal fato não significa que perderam sua soberania. A cada dia, fala-se mais em soberania compartilhada e menos em soberania absoluta dos Estados. Afinal, como ressaltado, os problemas globais são de todos e, da mesma forma, as soluções devem ser buscadas em conjunto. Problemas relativos ao meio ambiente, à violência, aos crimes cibernéticos e às crises econômicas, entre outros, deixaram de ser de um só Estado para chegar a todos os lugares do planeta. A crise de 2008 é ilustrativa.

A ausência de um direito público internacional focado nas grandes questões globais tem levado governos e grupos nacionais ao fechamento das fronteiras, ao protecionismo econômico e a negar aos outros direitos básicos de cidadania. A globalização trouxe integração econômica, proximidade decorrente das ferramentas de comunicação e contato mais aprofundado com novos valores e culturas. Porém, o mesmo nível de integração econômica e política não aconteceu. Como destacado, apesar do emaranhado de textos legais que tornam as pessoas mais iguais, não há a correspondente igualdade de fato. Da mesma forma, as instituições políticas não avançaram para contemplar o novo mundo que se descortinou após a queda do Muro de Berlim.

Em um mundo globalizado, apesar da produção de riquezas ser elevada, a distribuição não acompanha mais os patamares dos anos gloriosos da Europa e dos EUA. Muitos empregos migraram para países emergentes e as garantias socioeconômicas já não são mais as mesmas dos tempos do Estado de Bem-Estar. Quase três décadas após a queda do Muro de Berlim, as reações à globalização ganharam corpo na esfera política. Foi buscando entender esse fenômeno que o trabalho citou três acontecimentos recentes que demonstram a reação de parte da população à integração econômica global, à não constituição de instituições políticas que atendam aos novos tempos, especialmente no âmbito da União Europeia, e o nível expressivo de cidadãos que optam por soluções “a la Trump”. É provável que os empregos fartos e bem remunerados não voltem. O problema é que a promessa de retorno a um passado glorioso traz em seu bojo a recusa aos avanços globais na defesa do meio ambiente e de avanços importantes na busca pela paz global e de um mínimo de garantias aos imigrantes. Nesse sentido, os movimentos citados representam um claro retrocesso na busca da efetivação do “constitucionalismo global” defendido por Ferrajoli.

Referências

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    http://www.un.org/en/ga/search/view_doc....
    , aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU em sua 7.501ª seção, em 7 de agosto de 2015, condena “em termos mais enérgicos o emprego de qualquer substância química tóxica como arma na República Árabe da Síria e observa com indignação que as substâncias químicas tóxicas empregadas como arma na República Árabe da Síria seguem provocando mortos e feridos entre a população civil”. Texto disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2235(2015). Acesso em: 25 maio 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2019
  • Revisado
    26 Out 2019
  • Aceito
    20 Mar 2020
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