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Democracia defensiva na Alemanha e no Brasil na prática de hoje: paralelos entre o Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV) e a Procuradoria Nacional da União de defesa da democracia

Defensive democracy in Germany and Brazil in today’s practice: parallels between the Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV) and the Brazilian Office for democracy defense

Resumo

O tema “democracia defensiva” voltou à baila durante o governo do ex-Presidente da República Jair Bolsonaro, uma vez que os demais poderes identificaram a necessidade de combater ativamente a erosão democrática por ele provocada. Com a recente troca de governo, o Poder Executivo Federal, declaradamente inspirado na aludida teoria, criou a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União com o escopo principal de defender judicialmente a integridade da ação pública e a preservação da legitimação dos três Poderes e de seus membros para o exercício de suas funções constitucionais. A iniciativa brasileira segue o exemplo dado pela Alemanha do segundo pós-guerra, que criou, pelos mesmos motivos, o Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha (BfV). Com base nesse pano de fundo, o presente artigo científico tem por objetivo principal apresentar as duas iniciativas governamentais acima referidas, além de traçar os paralelos possíveis entre Alemanha e Brasil na criação de uma cultura de “democracia defensiva” e, o que é mais relevante, na efetiva defesa da democracia. O método de pesquisa utilizado foi o comparativo e a técnica de pesquisa foi a revisão bibliográfica. Os resultados obtidos vão no sentido de que a criação de agências de defesa da democracia, tal como ocorrido na Alemanha e no Brasil, contribui para o fortalecimento dos valores democráticos, não só de forma institucional, mas também no seio da sociedade.

Palavras-chave:
Democracia defensiva; Erosão democrática; Agência Brasileira de Defesa da Democracia; Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha (BfV)

Abstract

The subject “defensive democracy” came back in Brazil during the government of former President Jair Bolsonaro, since the other two Branches identified the need to fight the democratic erosion provoked by him. With the recent change of government, the Executive Branch, reportedly inspired by the alluded theory, created an office for the defense of democracy, under the supervision of the Attorney General, whose main goal is to protect the integrity of the public action and the preservation of the three Branches and their members, ensuring the exercise of their constitutional functions. The Brazilian Office for Democracy Defense follows the example set by Germany in the second post-war period, when this European country created, for the same reasons, the Federal Office for the Protection of the Constitution (BfV). Based on this background, the main goal of this paper is to present the two government initiatives mentioned above, in addition to tracing the possible parallels between Germany and Brazil in the creation of a culture of “defensive democracy” and, what is more relevant, in the effective defense of democracy. The research method used was the “comparative” and the research technique was the “bibliographic review”. The results obtained point to the fact that the creation of agencies for the defense of democracy, as occurred in Germany and Brazil, contributes to the strengthening of democratic values, not only institutionally, but also within society.

Keywords:
Defensive Democracy; Democratic erosion; Brazilian Office for Democracy Defense; Federal Office for the Protection of the Constitution (BfV)

1. INTRODUÇÃO

A crise democrática que afligiu o Brasil na última década (2013/2022), e que teve o seu ápice durante o governo Jair Bolsonaro (2018/2022), ligou um sinal de alerta para a necessidade constante de defesa da democracia. Se em algum momento os ataques institucionais perpetrados pelo então Presidente da República puderam ser compreendidos, sobretudo pelos seus apoiadores mais fiéis, como “críticas espontâneas” formuladas em nome de uma suposta liberdade de expressão sem restrições, no período pandêmico esse mal-entendido foi consideravelmente desfeito e muitos discursos e práticas passaram a se revelar ao grande público como ferramentas propositalmente utilizadas para a erosão da democracia1 1 Tendo por suporte a obra de Ginsburg e Huq, os pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais Mariana Tormin Tanos Lopes, Emilio Peluso Neder Meyer e Emanuel Andrade Linhares ponderam: “Via de regra, a erosão é operada por representantes eleitos, que ‘alteram arranjos legais e institucionais para degradar predicados básicos da democracia constitucional como eleições competitivas, liberdade de pensamento, associação e Estado de Direito’ (Ginsburg; Huq, 2018, p. 43 - tradução nossa). Para estabelecer seu projeto de poder, aproveitam a imagem consolidada no imaginário popular de que a democracia é subvertida por golpes bruscos e atacam, aos poucos e por vias constitucionais/legais, os principais mecanismos de accountability, como mídia, oposição política e Judiciário”. Os três autores ainda citam interessante trecho da obra dos pensadores norte-americanos em tradução livre: “A erosão democrática é, tipicamente, um processo agregado, constituído por múltiplas e pequenas incrementações. Mas essas medidas raramente são ataques frontais aos predicados da democracia, do tipo que poderia ser associado a um regime totalitário. Ao contrário, muitas são mascaradas sob a fachada de lei. A casca de legalidade, contudo, é ilusória. Mesmo que a maioria ou todos os passos individuais sejam feitos dentro dos limites constitucionais, em suma, eles levam a mudanças qualitativas nos sistemas legal e político. A chave para entender a erosão democrática é enxergar como medidas discretas que, isoladas ou em abstrato podem ser justificadas como condizentes com normas democráticas, podem ainda assim serem usadas como mecanismos para subverter a democracia constitucional liberal. (Ginsburg; Huq, p. 74-91 - tradução nossa)” (LOPES; MEYER; LINHARES, 2020). .

Não se pode negar que esse contexto de exceção, até então raro sob o ponto de vista da institucionalidade brasileira pós-88, pautou sensivelmente as eleições presidenciais de 2022, de modo que, para grande parcela do eleitorado, a possível reeleição de Jair Bolsonaro foi compreendida como uma verdadeira ameaça à democracia. Talvez por isso a derrota do ex-Presidente da República e a consequente eleição de Luiz Inácio Lula da Silva tenha sido sentida por muitos como uma espécie de sopro de esperança à já calejada democracia brasileira.

Embora outros temas tenham marcado a campanha eleitoral de 2022 e a eleição do novo Presidente da República, tais como a necessidade de valorização das chamadas pautas identitárias, a retomada das relações diplomáticas com antigos parceiros internacionais e a defesa do meio ambiente - todas negligenciadas ao longo do governo anterior -, é plausível afirmar que, em grande medida, a eleição de Lula se deveu a uma premente necessidade de dar maior atenção à defesa da democracia.

Correspondendo às expectativas geradas, já no primeiro dia do novo governo, foi publicado o Decreto Federal nº 11.328, de 1º de janeiro de 2023, que criou, no âmbito da Advocacia-Geral da União (AGU), a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, dando-lhe, entre outras atribuições, a de defender judicialmente a integridade da ação pública e a preservação da legitimação dos três Poderes e de seus membros para o exercício de suas funções constitucionais, inclusive por meio do combate à disseminação das indesejadas fake news. Conforme publicado em reportagem veiculada no site do Governo Federal, tal medida deve ser recepcionada dentro dos “esforços por políticas ambientais, de harmonia entre os Poderes da República e o repúdio à banalização dos discursos de ódio e intolerância2 2 Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2023/01/jorge-messias-anuncia-a-criacao-da-procuradoria-de-defesa-da-democracia-na-agu Acesso em: 25 abr. 2023. .

A criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia pode ser compreendida como a primeira grande medida de “democracia defensiva” adotada pelo Poder Executivo Federal após o encerramento do governo Jair Bolsonaro. Ao que tudo indica, a iniciativa - que, para uns, contempla atribuição que deveria ser do Ministério Público Federal, mas que, para outros, pretende preencher justamente a lacuna deixada pela Procuradoria-Geral da República durante os anos Bolsonaro - tem menos a ver com a intenção de punir do que com a criação de uma cultura nacional de defesa da democracia. Assim sendo, parece seguro afirmar que a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia pretenderá ter uma atuação de caráter acentuadamente pedagógico.

É possível dizer que a inserção desse braço da Advocacia-Geral da União como órgão governamental de defesa da democracia brasileira segue, de alguma maneira, o modelo alemão, já que a agência executiva de inteligência denominada “Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha” (BfVALEMANHA. 2021. Brief summary 2021 Report on the Protection of the Constitution (Facts and Trends). Disponível em: https://www.verfassungsschutz.de/SharedDocs/publikationen/EN/reports-on-the-protection-of-the-constitution/2022-06-brief-summary-2021-report-on-the-protection-of-the-constitution.html#:~:text=The%20Report%20on%20the%20Protection,against%20Germany%2C%20and%20on%20proliferation. Acesso em: 05 jul. 2023.
https://www.verfassungsschutz.de/SharedD...
) também está posicionada sob o guarda-chuva do Poder Executivo daquele país, sendo a agência do Ministério do Interior responsável por vigiar e colher informações sobre toda e qualquer atividade tendente a comprometer o funcionamento constitucional da democracia alemã. Se bem compreendido, esse modelo, que tem se provado bem-sucedido na Europa, pode contribuir para a formação de uma cultura de democracia defensiva no Brasil, a ser capitaneada pelos pareceres produzidos e pelas ações judiciais patrocinadas pela AGU.

Nessa linha de raciocínio, o presente artigo científico tem por objetivo principal apresentar as duas iniciativas governamentais acima referidas, além de traçar os paralelos possíveis entre Alemanha e Brasil na criação de uma cultura de “democracia defensiva” e, o que é mais relevante, na efetiva defesa da democracia.

2. DEFESA MILITANTE DA DEMOCRACIA (“DEMOCRACIA DEFENSIVA”) ENQUANTO PRESSUPOSTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO CONTEMPORÂNEO

Quando escreveu o seu inovador e influente Militant Democracy and Fundamental Rights, o filósofo alemão Karl Loewenstein identificou no fascismo - enquanto movimento mundial - o grande inimigo da democracia. Àquela altura, junho de 1937, a Segunda Guerra Mundial ainda não havia eclodido, mas os governos ditatoriais de extrema-direita liderados por Adolf Hitler na Alemanha e Benito Mussolini na Itália já estavam implementando a política de expansionismo que levaria à invasão da Polônia em 1939.

Para Loewenstein (1937, p. 417-432), os governos autoritários da época representavam a anulação de um governo constitucional - em que impera o rule of law e uma racionalidade administrativa que preserva a esfera específica do direito privado e dos direitos fundamentais - por um governo emocional - em que ocorre a indevida substituição do rule of law por leis oportunisticamente aprovadas e a proliferação de argumentos vazios escorados na chamada raison d’etat.

Paradoxalmente, ao longo da história, os governos pautados pelo “emocionalismo” geralmente tiveram mais apelo popular do que os governos constitucionais escorados no rule of law. O próprio fascismo ganhou notoriedade e adeptos ao se utilizar de uma técnica política escorada na distorção do conceito de democracia e, em paralelo, na profusão de discursos nacionalistas entusiasmados, de intensa coerção psicológica e cujo principal objetivo era a disseminação de um terror direcionado ao sabor das grandes massas. Sobre o perfil dos “recrutados”, Loewenstein é preciso:

Os recrutados são geralmente retirados das classes médias deprimidas, de algumas seções da intelligentsia e, acima de tudo, da juventude, com uma boa quantidade de militares aposentados e de políticos descontentes. Observando de perto, também é perceptível uma semelhança nas personalidades dos “líderes”. Se disponível, um homem da classe média baixa ou do proletariado é preferível a um intelectual (Loewenstein, 1937LOWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The American Political Science Review , vol. XXXI, nº 04, 1937, p. 638-665., 417-432).3 3 Tradução livre de: “Recruits are usually drawn from the depressed middle classes, from some sections of the intelligentsia, and most of all from the youth, with a fair sprinkling of retired army officers and disgruntled politicians. On close observation, a similarity of the personalities of the ‘leaders’ is discernible also. If available, a man from the lower middle class or from the proletarian stratum is preferable to an intellectual”.

A fórmula é conhecida e continua muito atual. Basta pensar no perfil de apoiadores dos contemporâneos governos de Trump, Erdogan, Orbán, Putin e Bolsonaro para constatar que, no intervalo de menos de um século, após algumas idas e vindas, a história repetiu um ciclo que muitos acreditavam estar superado.

De toda forma, retomando o raciocínio de Loewenstein, a resposta ao sedutor governo emocional proposto pelo fascismo deve sempre estar escorada no necessário resgate e fortalecimento da democracia. Não uma democracia romantizada e, por vezes, suicida, que muitas vezes tolera ou permite o uso de instrumentos democráticos para erodi-la, mas, sim, a afirmação de uma democracia militante - ou, como preferimos, uma democracia defensiva4 4 Não existe consenso nos meios acadêmicos sobre a nomenclatura mais adequada à disciplina abordada no presente texto. Tarsila Ribeiro Marques Fernandes, por exemplo, aponta as seguintes diferenças entre os termos “democracia militante” e “democracia defensiva”/”democracia de resistência”: “Seguindo a mesma racionalidade da democracia de militância, a teoria da democracia de resistência também foi desenvolvida para impedir que grupos extremistas, situações indesejadas ou momentos de instabilidade institucional afetem o regular funcionamento da democracia. Apesar de terem a mesma origem, a teoria da democracia defensiva diferencia-se da democracia de militância por ser mais ampla. Vale dizer, a democracia de militância foi criada e desenvolvida para lidar com uma situação específica: a questão da exclusão de partidos ou de grupos políticos totalitários do processo democrático. A democracia defensiva, entretanto, visa impedir que vulnerem a própria democracia quaisquer situações ou grupos que afetem a normalidade democrática”. O argumento é válido, mas acaba reduzindo sobremaneira a teoria criada por Loewenstein, que em tudo se coaduna com as premissas, supostamente mais amplas, atribuídas aos artífices da “democracia defensiva” ou “democracia de resistência”. Nesse sentido, em nossa concepção acadêmica, não há nada que justifique a discriminação dos termos, podendos os três serem utilizados como sinônimos. Contudo, há um outro argumento, apontado pela mesma autora anteriormente citada, que recomenda evitar o uso da expressão “democracia militante”: “Ademais, as expressões democracia defensiva ou democracia de resistência parecem ser igualmente mais adequadas e condizentes com o que essa teoria reflete. Isto é, uma atuação reativa em prol da democracia em virtude de um ataque às instituições. Acrescente-se ainda que o termo ‘democracia militante’ parece conter um viés ideológico, o qual não corresponde à ideia de legítima defesa da ordem democrática, objetivo maior da democracia defensiva. Por essas razões, defende-se que se deve utilizar o termo democracia defensiva ou democracia de resistência em vez de democracia militante” (FERNANDES, 2021, p. 133-147). Assim sendo, basicamente para evitar o viés ideológico, é que esta pesquisa adota o termo “democracia defensiva”. -, que muitas vezes se utilizará de meios (por muitos considerados) antidemocráticos para se defender e se manter viva.

Na segunda metade de seu artigo, Loewenstein (1937LOWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The American Political Science Review, vol. XXXI, nº 03, 1937, p. 417-432., p. 638-665) defendeu algumas medidas restritivas de defesa da democracia, que, em si, podem parecer antidemocráticas, mas, na verdade, devem ser implementadas com o único objetivo de defender a democracia: aprovação de leis para o banimento de grupos políticos extremistas; proibição da produção ilícita de armas; abuso de instituições parlamentares para a prática de políticas extremistas; criminalização da discriminação por questão de raça, religião ou opiniões políticas; restrição da liberdade de expressão no caso de propaganda subversiva, etc.

A lógica empregada por Loewenstein segue o mesmo raciocínio que seria desenvolvido anos mais tarde pelo filósofo austríaco Karl Popper em seu “The Open Society and Its Enemies” (2013POPPER, Karl. The Open Society and Its Enemies. Princeton University Press, 2013.), no qual o autor apresentou a sua tese sobre o “paradoxo da tolerância”, que pode ser resumida da seguinte forma: levada às últimas consequências, a tolerância ilimitada, inclusive em deferência aos intolerantes, redundaria no próprio fim da tolerância.

Em recente texto publicado na Revista Suprema, de autoria de Gustavo Henrique Justino de Oliveira e Pedro da Cunha Ferraz, o seguinte ponto foi detalhado:

[...] segundo Popper, caso seja permitido o emprego, sem limitações, da intolerância, os tolerantes serão suprimidos e a tolerância desaparecerá. Assim, o autor propõe que sejam suprimidas as manifestações dos intolerantes caso não seja possível a argumentação racional com eles, em razão do risco que provocam à manutenção de um ambiente tolerante. Isto é, seria necessário ser intolerante com os intolerantes, a fim de que se possa manter a ordem democrática (Oliveira; Ferraz, 2023OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; FERRAZ, Pedro da Cunha. Democracia Defensiva no Brasil?: Uma Análise Conceitual e Jurisprudencial. SUPREMA - Revista de Estudos Constitucionais, Brasília, v. 3, n. 1, p. 211-238, jan./jun. 2023., p. 211-238).

O raciocínio de Karl Popper em tudo se amolda à temática da democracia defensiva. Ora, a defesa da democracia precisa ser militante porque os seus inimigos estão dispostos a usar todo e qualquer tipo de arma para enfraquecê-la, inclusive de dentro para fora. Daí o paradoxo democrático: quando se admite, em nome da democracia, a criação de partidos políticos fascistas ou o uso abusivo da liberdade de expressão, a própria democracia é enfraquecida.

A Alemanha foi um dos primeiros países a perceber esse paradoxo.

Logo após a derrota sofrida na Segunda Guerra Mundial, houve a positivação de medidas de defesa da democracia na própria Constituição, inclusive proibindo a recriação de um Partido Nazista em seu território. Além disso, como se verá na sequência, no mesmo período houve a criação do Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha (BfV), com atribuições compatíveis com as melhores práticas da democracia defensiva.

3. O SERVIÇO FEDERAL PARA A PROTEÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DA ALEMANHA (BfV)

Atualmente, a Alemanha possui uma agência de inteligência subordinada ao Ministério Federal do Interior e, em última análise, ao Poder Executivo Federal, cujo nome pode ser extraoficialmente traduzido por “Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha” (Bundesamt für Verfassungsschutz ou, simplesmente, BfV), cuja principal função é identificar indivíduos e organizações antidemocráticas e mantê-los sob constante vigilância (Bennhold, 2023BENNHOLD, Katrin. 2023. Por que Alemanha criou um cargo no governo de ‘defensor da democracia’. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/01/por-que-alemanha-criou-um-cargo-no-governo-de-defensor-da-democracia.shtml. Acesso em: 04 jul. 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023...
).

Entre outras atribuições, compete ao BfV concretizar as normas constitucionais alemãs que veiculam medidas de democracia defensiva naquele país, tais como a proibição de criação e manutenção de partidos políticos antidemocráticos, a perda de direitos fundamentais por cidadãos golpistas e a possibilidade de, em casos excepcionais, exercer resistência armada contra projetos ditatoriais (Idem, Ibidem).

O atual Presidente do Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha, Thomas Haldenwang, narra que a última grande crise migratória da Europa ligou um alerta sobre a popularização de ideias extremistas na sociedade alemã, sobretudo após a eleição de um partido de ultradireita para o Parlamento, o “Alternativa para a Alemanha” (AfD), defensor de pautas racistas e anti-imigração. Segundo Haldenwang, essa radicalização levou ao primeiro assassinato de um político desde o fim do Nazismo e fez com que o próprio AfD fosse colocado sob vigília - o que foi posteriormente validado por um tribunal administrativo, não obstante os apelos do partido em sentido contrário (Idem, Ibidem).

Conforme destacado por Ana Estela de Sousa Pinto,

A AfD é o primeiro partido com representação no Parlamento alemão (Bundestag) a ficar sob vigilância do BfV, departamento criado após a Segunda Guerra Mundial para impedir a expansão de grupos extremistas. De 2007 a 2014, a agência investigou também A Esquerda, por causa de suas raízes no Partido Comunista da antiga Alemanha oriental.

A agência alemã não falou sobre a atual investigação, por causa de contestações judiciais. No ano passado, ao apresentar relatório sobre extremismo no país, o presidente da agência, Thomas Haldenwang, afirmou que o extremismo de direita e o terrorismo de extrema-direita eram o maior perigo para a democracia alemã (Pinto, 2021PINTO, Ana Estela de Sousa. 2021. Alemanha coloca partido de direita radical sob vigilância por suspeita de extremismo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/alemanha-poe-partido-de-direita-radical-sob-investigacao.shtml. Acesso em: 04 jul. 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021...
).

A onda conservadora de extrema direita, que se intensificou no globo durante a última década, trouxe consigo a disseminação de valores retrógrados e a erosão da democracia em países até então reconhecidamente comprometidos com pautas democráticas.5 5 Entre tais países, é comum citar os Estados Unidos de Donald Trump, a Hungria de Viktor Orbán, a Itália de Giorgia Meloni, o Brasil de Jair Bolsonaro, entre outros. Nesse cenário, o BfV identificou um sensível crescimento de atos terroristas domésticos, manifestações xenofóbicas e crescimento de circulação de armas de fogo.

No final do ano passado, um grupo extremista de extrema-direita, denominado Reichsbürger (Cidadãos do Reich) tentou aplicar um golpe de estado para assassinar o Primeiro-Ministro alemão Olaf Scholz e colocar no poder Heinrich 13º P.R., detentor de um título monárquico sem qualquer validade jurídica atualmente. Diante do poderio armamentista do grupo, o governo alemão, por iniciativa da Ministra Nancy Faeser, passou a discutir, como medida de defesa da democracia, o endurecimento de leis que regulam a venda e o porte de armas em todo o país. Além disso, o Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha listou e classificou o Reichsbürger como um grupo com “alto nível de perigo”.6 6 Reportagem disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/12/ministra-pede-mais-controle-de-armas-na-alemanha-apos-conspiracao-extremista.shtml. Acesso em: 04 jul. 2023.

Como já tem se tornado comum no âmbito da extrema-direita, membros e simpatizantes do Reichsbürger passaram a defender o grupo com base, entre outros valores, na “liberdade de expressão”. Para eles, a própria noção de democracia defensiva seria equivocada, pois estaria escorada em perseguições políticas e no ódio contra os ideais conservadores.

Entretanto, tal concepção é equivocada e visa apenas desqualificar o Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha, que é instituição apartidária e livre de ideologias políticas. Basta mencionar que o BfV funcionou perfeitamente sob o governo de Angela Merkel (2005/2021), notoriamente uma Primeira-Ministra conservadora e de direita, muito embora absolutamente comprometida e afinada com os ideais democráticos previstos na Constituição da Alemanha.

É preciso reforçar que o Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha possui foco na defesa da democracia e na formação de uma cultura de defesa da democracia naquele país. Tudo inspirado na doutrina da democracia militante (ou democracia defensiva) difundida por Karl Loewenstein no início do século passado. Nesse sentido, é injusto dizer que a agência alemã tem por escopo perseguir grupos inimigos do governo, seja de direita ou de esquerda. Na verdade, o que ela faz é vigiar e, quando necessário, subsidiar a atuação contra os grupos extremistas das duas pontas, que ultrapassem os limites do espectro democrático. Portanto, é mais correto afirmar que o foco do BfV é o constante combate aos extremistas que ponham em risco a própria democracia alemã.

Eis a análise do pesquisador Erich Bleich, em entrevista concedida à BBC News Brasil:

É um requisito de uma democracia em funcionamento que as pessoas tolerem ideias com as quais discordam. No entanto, alguns discursos, alguns grupos, alguns partidos podem ser tão prejudiciais que os políticos e o público concluem que os riscos que eles representam superam os benefícios de protegê-los. Os alemães viram em primeira mão onde o nazismo pode levar, e por isso mesmo a Alemanha está entre os defensores mais ativos do que é chamado de “democracia militante” - em outras palavras, a noção de que a democracia deve ser defendida, mesmo ao custo de restringir algumas liberdades quando essas liberdades estão sendo exploradas para minar a democracia (Sanches, 2022SANCHES, Mariana. 2022. Caso Monark: por que Alemanha e outros países proíbem o nazismo? Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/02/caso-monark-por-que-alemanha-e-outros-paises-proibem-o-nazismo.shtml. Acesso em: 04 jul. 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022...
).

O que precisa ficar claro é que o momento político enfrentado no mundo é bastante peculiar. Grupos extremistas têm se utilizado de uma concepção distorcida sobre os limites da liberdade de expressão, difundindo ideias que são, em si mesmas, atentatórias à democracia. Ao contrário do que esses extremistas afirmam, a difusão de ideias que possam acabar com a democracia não deve ser tolerada pelos regimes democráticos, sob pena de sua própria erosão. Eis aqui novamente o paradoxo democrático, similar ao paradoxo da tolerância de Karl Popper, já abordado no item 2 deste trabalho.

Não fosse assim, a democracia (alemã, norte-americana, brasileira etc.) estaria sempre sujeita aos mais odiosos ataques de grupos extremistas. E, nesse ritmo, eventualmente o próprio regime democrático pereceria. Daí a importância de agências como a BfV no combate a atos antidemocráticos.

Por outro lado, é preciso atentar para o fato de que a mera existência de uma agência nesses moldes não garante, por si só, o sucesso da democracia, pois, enquanto agência do Estado, ligada ao governo federal, ela estará sempre vulnerável a ataques internos quando grupos extremistas eventualmente chegarem ao poder. Por mais autonomia que tais agências possuam, ainda assim há sempre uma grande suscetibilidade às influências do grupo político no poder. De que adiantaria uma agência governamental de defesa da democracia num país governado por Trump, Erdogan, Orbán, Putin e Bolsonaro? Possivelmente, seria de pouca serventia.

Daí a dificuldade de estabelecer modelos duradouros e imunes à atuação de grupos extremistas. Mas, na falta de um modelo mais consistente, a experiência do Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha pode servir de exemplo para outros contextos políticos, como o próprio Brasil, sobretudo se a intenção for a criação de uma cultura de defesa da democracia a médio e a longo prazo.

4. A PROCURADORIA NACIONAL DA UNIÃO DE DEFESA DA DEMOCRACIA DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

Como já mencionado, o governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro (2019/2022) foi marcado por um sensível enfraquecimento da democracia brasileira. Alguns exemplos são ilustrativos: nomeação de um poluidor para o Ministério do Meio Ambiente e de um racista para a Fundação Palmares (Gortázar, 2021GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Como Bolsonaro dinamita as instituições: o caso da Fundação Palmares. 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-09-18/como-bolsonaro-dinamita-as-instituicoes-o-caso-da-fundacao-palmares.html. Acesso em: 04 jul. 2023.
https://brasil.elpais.com/cultura/2021-0...
); aumento do número de brasileiros com autorização para ter armas de fogo, não obstante as vedações constantes no Estatuto do Desarmamento (Stabile, 2023STABILE, Arthur. Governo Bolsonaro liberou em média 619 novas armas por dia para CACs; 47% dos registros foram em 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/19/governo-bolsonaro-liberou-em-media-619-novas-armas-por-dia-para-cacs-47percent-dos-registros-foram-em-2022.ghtml. Acesso em: 04 jul. 2023.
https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
); ataques sistemáticos aos Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, com ênfase no questionamento às urnas eletrônicas de votação; seleção, fora da lista tríplice elaborada pela categoria, de um Procurador-Geral da República permissivo em relação aos atos antidemocráticos praticados pelo governo federal; etc.

Nesse cenário de crise democrática, que marcou sensivelmente as eleições gerais de 2022, é natural que o novo Presidente da República, eleito sob a promessa de mudança de cenário, tenha tomado providências quanto ao fortalecimento das instituições democráticas já no primeiro dia de governo. Assim é que, em 1º de janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 11.328/2023, que “Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Advocacia-Geral da União e remaneja cargos em comissão e funções de confiança”. No Anexo I, que trata da Estrutura Regimental da Advocacia-Geral da União, o aludido Decreto definiu as competências do novo órgão, dentre as quais é possível destacar: (i) defesa da integridade da ação pública; (ii) preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para exercício de suas funções constitucionais; e (iii) enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas.

No discurso de posse, o Advogado-Geral da União, Jorge Rodrigo Araújo Messias, pontuou a necessidade de abraçar os valores da doutrina da democracia defensiva no Brasil, sobretudo para combater a disseminação de fake news, reforçar a proteção ao meio ambiente e retomar a harmonia entre os Poderes da República. Extrai-se de reportagem constante no site do governo federal:

Segundo ele [Messias], a criação destes órgãos tem o objetivo de contribuir “com os esforços da democracia defensiva e promover pronta resposta a medidas de desinformação e atentados à eficácia de políticas públicas e ambiental”.

Messias disse que trabalhará para “resgatar a democracia com a retomada da harmonia entre os Poderes da República”. Destacou ainda que ataques às instituições da República não serão mais tolerados. “Não permitiremos que tais condutas sufoquem, intimidem ou abalem a atuação dos Poderes da União - Legislativo, Executivo e Judiciário - nem que interfiram em sua independência e harmonia”, declarou.

Para ele, “é inadmissível a banalização dos discursos de ódio e intolerância, perturbando a paz e disseminando o ódio às instituições. Repudiamos a apologia à violência e o autoritarismo”, conclui.7 7 Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2023/01/jorge-messias-anuncia-a-criacao-da-procuradoria-de-defesa-da-democracia-na-agu. Acesso em: 25 abr. 2023.

A nova Procuradoria, espécie de “Agência Brasileira de Defesa da Democracia”, foi pensada da forma mais democrática e plural possível, tendo as discussões sobre a sua configuração incluído cidadãos de fora dos quadros da Advocacia-Geral da União. O próprio grupo de trabalho que posteriormente daria origem à Portaria Normativa PGU/AGU nº 16/2023, com todo o regramento a ser observado pela Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União, contou com representantes da comunidade acadêmica e científica para definir o âmbito de sua atuação.8 8 Os 27 integrantes do grupo de trabalho foram designados por meio da Portaria AGU nº 43, de 20 de janeiro de 2023: Ademar Borges de Sousa Filho; Adriana Martins Ferreira Festugatto; Alaor Carlos Lopes Leite; Allyne Andrade e Silva; Ana Cláudia Farranha; Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende; Bruna Martins dos Santos; Carolina Maria Horta Gaviria; Daniel Sarmento; Flávia Mateus Rios; Gustavo Henrique Justino de Oliveira; Janaína Lima Penalva da Silva; João Gabriel Madeira Pontes; José Luís Bolzan de Morais; Juraci Lopes Mourão Filho; Leonardo Avritzer; Letícia Cesarino; Lizandra Serafim; Luciana Silva Garcia; Marcela Mattiuzzo; Marcelo Cattoni de Oliveira; Marcia Maria Barreta Fernandes Semer; Marco Aurélio Ruediger; María Mercedes Iglesias Bárez; Martonio Mont’ Alverne Barreto Lima; Mauro de Azevedo Menezes; Nina Fernandes dos Santos; Monika Weronika Dowbor; Tainah Simões Sales Thiago; e Thula Rafaela de Oliveira Pires.

Dentre as diretrizes e competência previstas na Portaria Normativa PGU/AGU nº 16/2023, que restringe a atuação da Procuradoria temática aos casos de comprovado interesse público da União, consta o seguinte: (i) guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e na conservação do patrimônio público; (ii) formação de uma estratégia nacional de defesa da democracia, por meio do compartilhamento de informações, celebração de parcerias e aperfeiçoamento de ações integradas; (iii) criação de instrumentos que viabilizem a participação plural da sociedade; (iv) preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para exercício de suas funções constitucionais; e (v) enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas amparadas em valores democráticos e direitos constitucionalmente garantidos.

No mais, buscando evitar a banalização da atuação da AGU, o ato normativo deixa claro que “A Coordenação-Geral de Defesa da Democracia não atuará nos casos de manifestações próprias da retórica política, quando não houver indicação de dados ou evidências que possam indiciar a materialidade do alegado” (art. 12).

Como se nota, a iniciativa do governo brasileiro, executada pela Advocacia-Geral da União, possui algumas semelhanças com o modelo do Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha, as quais serão abordadas com maior detalhamento no tópico subsequente. Entretanto, há uma diferença marcante entre os dois órgãos: enquanto a agência alemã é formada por servidores técnicos especializados na investigação de grupos e partidos antidemocráticos, a agência brasileira é atualmente composta por juristas, basicamente advogados públicos de carreira acostumados a litígios judiciais e confecção de pareceres em defesa dos interesses da União.

Há quem defenda que a criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União foi inadequada justamente porque, dadas as limitações do órgão, não seria possível atuar de forma eficaz na defesa da democracia, sobretudo por conta das influências políticas às quais a Advocacia-Geral da União está naturalmente submetida a cada troca de governo. Além disso, é preciso lembrar que a AGU é órgão de representação jurídica da União como um todo e não apenas do Poder Executivo. Então, a sua atuação em defesa da democracia poderia ficar comprometida quando, em exemplo hipotético, algum Presidente da República perpetrasse atos antidemocráticos contra Ministros do Supremo Tribunal Federal. Nesse caso, a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União certamente ficaria de mãos atadas, comprometendo a missão de executar os valores defendidos pela doutrina da democracia defensiva.

Para muitos, a solução desse problema seria deslocar a agência brasileira de defesa da democracia para o Ministério Público Federal, órgão constitucionalmente dotado da autonomia necessária para resguardar a democracia brasileira, inclusive com poder de investigação sobre autoridades que gozam de foro privilegiado, como deputados, senadores, ministros e o próprio Presidente da República.9 9 Veja-se, a propósito, a opinião de relevantes juristas em entrevista concedida ao canal de televisão GloboNews. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/05/entenda-a-discussao-sobre-a-procuradoria-de-defesa-da-democracia-anunciada-pela-agu.ghtml. Acesso em: 04 jul. 2023.

O contraponto é que a iniciativa de defesa da democracia só teria sido encampada pela Advocacia-Geral da União tendo em vista a própria inércia do Ministério Público Federal na consecução de tal mister. No primeiro período em que o Procurador Augusto Aras esteve no comando da Procuradoria-Geral da República, o Parquet federal foi acusado de omissão em favorecimento do governo do ex-Presidente da República Jair Bolsonaro em mais de uma oportunidade, em que pesem as insistentes negativas do Chefe do Ministério Público.10 10 Veja-se, por exemplo, a seguinte reportagem: https://www.otempo.com.br/politica/judiciario/augusto-aras-nega-omissao-e-inercia-em-investigacoes-na-pgr-1.2812512. Acesso em: 04 jul. 2023.

De todo modo, a verdade é que o Ministério Público Federal não manifestou interesse na criação de um órgão nos moldes idealizados pela Advocacia-Geral da União. Sem dúvida nenhuma, esse relevante fato também deve ser levado em consideração quando da análise (inclusive sobre o ponto de vista da legitimidade) da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União.

5. PARALELOS POSSÍVEIS ENTRE ALEMANHA E BRASIL

Em política, soluções ideais nem sempre são possíveis.

Obviamente que, talvez em outro contexto fático, a atribuição ora esposada pela Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União pudesse encontrar solo fértil no seio do Ministério Público Federal. Ou, em especulação ainda mais arrojada, talvez fosse possível cogitar da criação, por meio de emenda constitucional, de um grande Conselho Nacional de Defesa da Democracia (CNDD), nos moldes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Mas, considerando o momento histórico vivenciado, de intensa polarização política na sociedade brasileira, soluções como essas se tornaram muito improváveis. Assim sendo, em homenagem ao princípio da reserva do possível, realisticamente sobrou para a Advocacia-Geral da União iniciar o projeto de formação de uma cultura de democracia defensiva no Brasil, o que, certamente, já é um grande avanço.

Algumas das dificuldades inerentes ao modelo desenvolvido pela Advocacia-Geral da União também podem ser encontradas no modelo alemão, já que o Serviço Federal para Proteção da Constituição da Alemanha está subordinado a um ministério ligado ao Poder Executivo Federal e não goza de poder de polícia para executar autonomamente as medidas necessárias ao combate de atos antidemocráticos. Mas nem por isso o BfV deixa de dar a sua relevante contribuição no combate aos extremismos que redundam no cometimento de crimes políticos. Inclusive, o trabalho da septuagenária agência alemã é internacionalmente reconhecido como dos mais relevantes no combate ao terrorismo na Europa.

No “Relatório sobre a Proteção da Constituição: Fatos e Tendências”, referente ao ano de 2022, publicado no último mês de junho, há um resumo sobre os segmentos vigiados pelo Serviço Federal para Proteção da Constituição da Alemanha, com análise estatística sobre aumento/diminuição de casos em consideração aos anos anteriores: crimes motivados por questões políticas; extremismo/terrorismo de extrema direita; atuação dos grupos “Reichsbürger” e “Selbstverwalter”; deslegitimação inconstitucional do Estado; extremismo de extrema esquerda; extremismo/terrorismo islâmico, extremismo internacional; atividades de inteligência/espionagem e cyber ataques promovidos por poderes estrangeiros; sabotagem envolvendo informações sigilosas; e organizações de cientologia (Alemanha, 2023).

A título de exemplo, é interessante mencionar o aumento de crimes cometidos por extremistas de extrema direita na Alemanha:

O número total de crimes violentos cometidos por extremistas de direita aumentou cerca de 3,8% em comparação com o ano anterior (2021: 20,201; 2022: 20,967). Os crimes de propaganda representaram a maior parcela dos crimes de extrema direita com 62.1% (13,026). Atos violentos somaram 4,8% de todos os crimes cometidos por extremistas de direta. Em comparação com o ano anterior, os crimes violentos cometidos por extremistas de direta aumentaram 7,5% no ano de referência (2021: 945; 2022: 1,016). Com 86,5%, as ofensas corporais (879 lesões corporais) foram a maior parcela dos crimes violentos e permaneceram no mesmo nível do ano anterior (2021: 82,9%, 783). As lesões corporais perpetradas por extremistas de direita com antecedentes xenófobos aumentaram 16,3% em comparação com o ano anterior (2021: 646; 2022: 751). O número total de crimes violentos de conotação xenófoba também cresceu (2021: 686; 2022: 796, 16,0%). O número de crimes de extremistas de direita na categoria de coerção/ameaças diminuiu apenas ligeiramente em 1,9% (2021: 425; 2022: 417), enquanto aqueles da categoria de danos materiais diminuíram 35,9% (2021: 923; 2022: 592) (Idem, Ibidem).11 11 Tradução livre de: “The total number of right-wing extremist criminal and violent offences increased by about 3.8% in comparison to the previous year (2021: 20,201; 2022: 20,967). Propaganda offences made up the largest share of right-wing extremist crime at 62.1% (13,026). Violent offences accounted for 4.8% of all right-wing extremist criminal offences. In comparison to the previous year, right-wing extremist violent offences increased by 7.5% in the reporting year (2021: 945; 2022: 1,016). At 86.5%, bodily injury offences (879 bodily injuries) made up the largest share of violent offences and remained at about the same level as in the previous year (2021: 82.9%, 783). Right-wing extremist bodily injury offences with a xenophobic background increased by 16.3% compared to the previous year (2021: 646; 2022: 751). The total number of violent offences with a xenophobic background grew as well (2021: 686; 2022: 796, 16.0%). The number of right-wing extremist offences in the category of coercion/ threats decreased only slightly by 1.9% (2021: 425; 2022: 417), while those in the category of property damage decreased by 35.9% (2021: 923; 2022: 592)”.

Além dos números, que são significativos, o BfV também fornece em seus relatórios uma análise contextualizada sobre as atividades dos grupos extremistas, o que também acaba servindo de alerta para a população em geral. A análise abaixo reproduzida também foi realizada considerando a atuação de grupos extremistas de extrema direita:

Os extremistas de direita continuam perseguindo o objetivo de obter aceitação entre os principais grupos democráticos. Enquanto no início do ano de referência os extremistas de direita se esforçaram para explorar os protestos contra as medidas de proteção relacionadas à Covid-19, eles mudaram o foco de atuação no outono e no inverno para questões como inflação e a ameaça de crise energética proveniente da invasão da Rússia contra a Ucrânia após o relaxamento das restrições relacionadas à Covid-19. Eles repetidamente evocaram a imagem de um “outono quente” que se transformaria num “inverno de raiva”. Como essa agitação não conseguiu ganhar o apoio do público em geral, também porque a escassez de energia não se concretizou, os extremistas de direita voltaram a focar cada vez mais no tema da migração. Nesse contexto, o número de manifestações de extremistas de direita aumentou 65% em relação ao ano anterior, totalizando 145 (2021: 88) mas os protestos não atingiram o mesmo nível do primeiro ano da pandemia (Idem, Ibidem).12 12 Tradução livre de: “Right-wing extremists continue to pursue the goal of gaining acceptance among mainstream democratic groups. While at the beginning of the reporting year, right-wing extremists strove to exploit the protests against COVID-19-related protective measures, they shifted the focus of their agitation in the autumn and winter to issues such as inflation and the threat of a looming energy crisis in the wake of Russia’s war of aggression against Ukraine, following the easing of COVID-19-related restrictions. They repeatedly evoked the spectre of a “hot autumn” which would develop into a “winter of rage”. Since this agitation failed to win support among the general public, also because the energy shortage did not materialise, right-wing extremists once again focused increasingly on the topic of migration. Against this backdrop, the number of right-wing extremist demonstrations increased by 65% compared to the previous year, totalling 145 (2021: 88) yet protests did not reach the same level as in the first year of the pandemic”.

Embora a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União tenha como atribuição precípua a atuação em juízo na defesa da democracia brasileira, é possível vislumbrar a possibilidade de atuação semelhante à realizada pela agência alemã por meio da elaboração de pareceres normativos que, quando lidos em conjunto, podem servir como verdadeiros relatórios (semestrais ou anuais) de identificação de células extremistas.

Outro paralelo possível entre Alemanha e Brasil é a predisposição no que diz respeito ao compartilhamento de informações com outros órgãos estatais. Tanto na Alemanha quanto no Brasil a mera identificação de grupos extremistas não é suficiente para garantir a defesa da democracia. É necessária toda uma etapa de investigação, que geralmente é realizada pela autoridade policial, além de uma etapa judicial que, no caso brasileiro, pode ser realizada tanto pela Advocacia-Geral da União quanto pelo Ministério Público, a depender do tipo de demanda ajuizada.13 13 A atuação de forma articulada com outras instituições, por meio do compartilhamento de informações, celebração de parcerias e ações integradas, está destacada no próprio site da Advocacia-Geral da União: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/funcionamento-da-procuradoria-nacional-da-uniao-de-defesa-da-democracia-e-regulamentado. Acesso em: 11 jul. 2023.

Finalmente, o principal paralelo que pode ser traçado entre as duas agências é a nítida vocação para a formação de uma cultura de democracia defensiva.

Em nenhum dos dois casos o foco principal parece ser a responsabilização pela prática de atos antidemocráticos, mas sim o emprego de estratégias para evitar que os atos antidemocráticos sequer ocorram. No caso da agência alemã, criada na década de 1950, são mais de 70 anos numa incessante defesa da democracia, que trouxe resultados, mas não resolveu integralmente o problema - basta ver os índices mencionados anteriormente. No caso brasileiro, há um longo caminho pela frente, mas a Procuradoria criada pela AGU parece trilhá-lo adequadamente, apostando não apenas na repressão, mas também na prevenção.

6. CONCLUSÕES

Não existe vácuo de poder.

A já batida frase, que muito se escuta no mundo político, traz consigo uma verdade insuperável: diante de uma determinada demanda, sobretudo quando houver clamor popular, sempre haverá alguém disposto a assumir a responsabilidade pela sua resolução.

Na Alemanha do segundo pós-guerra, identificou-se a necessidade de virar a página e abraçar a democracia enquanto regime de governo, coibindo não só a existência de uma nova ditadura de cunho fascista como também a própria divulgação de ideias contrárias à nova realidade política vivenciada àquela altura no país. Assim sendo, o constituinte alemão fez a opção de proibir a própria recriação do Partido Nazista, evitando-se, assim, a proliferação de extremismos.

A consagração das ideias de Karl Loewenstein na nova Constituição Federal trouxe consigo, entre outras inovações, a criação do Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha (BfV), órgão vinculado ao Ministério do Interior e que está na ativa, promovendo os ideais da democracia defensiva, até os dias de hoje. A fórmula é muito clara: diante de uma concreta ameaça democrática, foram viabilizados, em resposta, mecanismos eficazes para a sua defesa.

Para quem olha de fora, pode ficar a impressão de que, conceitualmente, o BfV estaria sempre no risco de se tornar uma agência de validação daqueles que se encontram circunstancialmente no poder: num contexto em que predominasse um governo de direita, partidos e grupos de esquerda poderiam estar mais suscetíveis ao controle; por outro lado, num contexto em que predominasse um governo de esquerda, partidos e grupos de direita poderiam ser vilanizados em nome da defesa da democracia.

Mas essa visão cética acaba por ignorar os grandes avanços obtidas pelo Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha ao longo de sua relativamente longa história e, com mais vigor ainda, nos últimos anos. Como visto, em Relatório sobre o ano de 2021, o BfV relatou vigilância sobre crimes motivados por fatores políticos, extremismo e terrorismo de extrema direta, extremismo de extrema esquerda, extremismo e terrorismo islamita, extremismo estrangeiro, espionagem, sabotagem, ataques cibernéticos, etc. (Alemanha, 2023).

O que se conclui é que, após vários anos de atuação em defesa da democracia, a agência alemã conquistou a credibilidade e legitimidade necessária perante o povo alemão, o que acaba por garantir a ela a autonomia política desejável para a execução do trabalho. Certamente, não foi algo instantâneo e obtido por meio da força. Dependeu, em grande medida, da coragem, isenção e dedicação de seus membros.

No Brasil atual, refundado após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a necessidade de uma defesa mais enfática ou militante da democracia só se fez presente após os anos de Jair Bolsonaro à frente do Poder Executivo Federal. Antes disso, embora a democracia tenha passado por alguns percalços relevantes, como o polêmico impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff, nunca houve uma real possibilidade de rompimento do sistema. Porém, com a ascensão da extrema direita ao poder, e o advento da pandemia da Covid-19, tudo mudou.

Desde o início do mandato presidencial de Jair Bolsonaro os ataques à democracia deixaram de ser episódicos e passaram a configurar uma estratégia para perpetuação no poder. Por meio de divulgação de fake news sobre a Justiça Eleitoral e as urnas eletrônicas, o Brasil viu as instituições serem abaladas por meio de uma desconfiança que atingiu todos os espectros sociais. Do pobre ao rico, muitos passaram a referendar as teorias conspiratórias divulgadas pelo então Presidente da República e seus apoiadores.

Neste ano de 2023, com a assunção de um novo governo federal, de feição mais democrática, criou-se a necessidade de combater com maior vigor os atos antidemocráticos praticados por extremistas.

E é nesse contexto que a iniciativa de criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia da Advocacia-Geral da União deve ser compreendida. Inclusive aproveitando o vácuo de poder existente em instituições como o Ministério Público Federal, coube ao órgão de representação jurídica da União a iniciativa de implementar os valores da democracia defensiva no Brasil.

Como já dito, o sistema criado não é o ideal, pois a Advocacia-Geral da União é órgão vinculado ao Poder Executivo Federal e, nessa condição, está de certo modo atrelada aos ideais democráticos do governo de ocasião. Hoje, o cenário político permite que a AGU atue em defesa da democracia. Amanhã ou depois, quando um político de extrema direita eventualmente chegar ao poder, talvez não seja possível dar seguimento ao trabalho.

Por isso é que a iniciativa da Advocacia-Geral da União deve ser vista como um “pontapé inicial”, uma iniciativa de introdução de uma “cultura de democracia defensiva” no Brasil. Por paradoxal que possa parecer, o sucesso da empreitada será comprovado quando a atribuição eventualmente sair das mãos da AGU e for confiada a outro órgão, com composição mais plural, que inclua autoridades de outras instituições relevantes na defesa da democracia, inclusive a sociedade civil organizada.14 14 Nesse sentido, é válido mencionar a recente iniciativa do Senado Federal ao criar a Comissão de Defesa da Democracia (CDD): “O novo colegiado deverá opinar sobre temas como defesa das instituições democráticas; liberdade de expressão e manifestação; liberdade de imprensa; defesa do livre exercício do direito de voto; defesa da ordem constitucional; garantia da ordem pública; terrorismo; entre outros temas correlatos ao fortalecimento da democracia e do Estado de Direito. A CDD terá 11 membros titulares e igual número de suplentes. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e os demais membros da Mesa apontaram o ataque de 8 de janeiro como uma das justificativas para aprofundar os debates de projetos para assegurar o fortalecimento da democracia”. Reportagem disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/06/12/comissao-permanente-em-defesa-da-democracia-sera-instalada-na-quarta. Acesso em 01/08/2023.

No limite, seria possível pensar num Conselho Nacional de Defesa da Democracia (CNDD), nos moldes de um Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou de um Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Entanto, para que isso seja possível, é necessário mais do que uma emenda constitucional; é necessária uma mudança de perspectiva quanto aos valores democráticos da própria sociedade brasileira.

Nesse sentido, é preciso sempre lembrar que os políticos chegam ao poder mediante voto. E, portanto, o povo brasileiro é o último responsável pelo seu destino. A democracia brasileira, que passou por um relevante momento de estresse nos últimos anos, somente será plena se o povo brasileiro confiar os mandatos políticos dos quais é titular a democratas.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Tendo por suporte a obra de Ginsburg e Huq, os pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais Mariana Tormin Tanos Lopes, Emilio Peluso Neder Meyer e Emanuel Andrade Linhares ponderam: “Via de regra, a erosão é operada por representantes eleitos, que ‘alteram arranjos legais e institucionais para degradar predicados básicos da democracia constitucional como eleições competitivas, liberdade de pensamento, associação e Estado de Direito’ (Ginsburg; Huq, 2018, p. 43 - tradução nossa). Para estabelecer seu projeto de poder, aproveitam a imagem consolidada no imaginário popular de que a democracia é subvertida por golpes bruscos e atacam, aos poucos e por vias constitucionais/legais, os principais mecanismos de accountability, como mídia, oposição política e Judiciário”. Os três autores ainda citam interessante trecho da obra dos pensadores norte-americanos em tradução livre: “A erosão democrática é, tipicamente, um processo agregado, constituído por múltiplas e pequenas incrementações. Mas essas medidas raramente são ataques frontais aos predicados da democracia, do tipo que poderia ser associado a um regime totalitário. Ao contrário, muitas são mascaradas sob a fachada de lei. A casca de legalidade, contudo, é ilusória. Mesmo que a maioria ou todos os passos individuais sejam feitos dentro dos limites constitucionais, em suma, eles levam a mudanças qualitativas nos sistemas legal e político. A chave para entender a erosão democrática é enxergar como medidas discretas que, isoladas ou em abstrato podem ser justificadas como condizentes com normas democráticas, podem ainda assim serem usadas como mecanismos para subverter a democracia constitucional liberal. (Ginsburg; Huq, p. 74-91 - tradução nossa)” (LOPES; MEYER; LINHARES, 2020LOPES, Mariana Tormin Tanos; MEYER, Emilio Peluso Neder; LINHARES, Emanuel Andrade. Pandemia e erosão da democracia constitucional: uma análise dos ataques à transparência no Brasil. Revista de Direito Público, Brasília, Volume 17, n. 96, 93-122, nov./dez. 2020.).
  • 2
    Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2023/01/jorge-messias-anuncia-a-criacao-da-procuradoria-de-defesa-da-democracia-na-agu Acesso em: 25 abr. 2023.
  • 3
    Tradução livre de: “Recruits are usually drawn from the depressed middle classes, from some sections of the intelligentsia, and most of all from the youth, with a fair sprinkling of retired army officers and disgruntled politicians. On close observation, a similarity of the personalities of the ‘leaders’ is discernible also. If available, a man from the lower middle class or from the proletarian stratum is preferable to an intellectual”.
  • 4
    Não existe consenso nos meios acadêmicos sobre a nomenclatura mais adequada à disciplina abordada no presente texto. Tarsila Ribeiro Marques Fernandes, por exemplo, aponta as seguintes diferenças entre os termos “democracia militante” e “democracia defensiva”/”democracia de resistência”: “Seguindo a mesma racionalidade da democracia de militância, a teoria da democracia de resistência também foi desenvolvida para impedir que grupos extremistas, situações indesejadas ou momentos de instabilidade institucional afetem o regular funcionamento da democracia. Apesar de terem a mesma origem, a teoria da democracia defensiva diferencia-se da democracia de militância por ser mais ampla. Vale dizer, a democracia de militância foi criada e desenvolvida para lidar com uma situação específica: a questão da exclusão de partidos ou de grupos políticos totalitários do processo democrático. A democracia defensiva, entretanto, visa impedir que vulnerem a própria democracia quaisquer situações ou grupos que afetem a normalidade democrática”. O argumento é válido, mas acaba reduzindo sobremaneira a teoria criada por Loewenstein, que em tudo se coaduna com as premissas, supostamente mais amplas, atribuídas aos artífices da “democracia defensiva” ou “democracia de resistência”. Nesse sentido, em nossa concepção acadêmica, não há nada que justifique a discriminação dos termos, podendos os três serem utilizados como sinônimos. Contudo, há um outro argumento, apontado pela mesma autora anteriormente citada, que recomenda evitar o uso da expressão “democracia militante”: “Ademais, as expressões democracia defensiva ou democracia de resistência parecem ser igualmente mais adequadas e condizentes com o que essa teoria reflete. Isto é, uma atuação reativa em prol da democracia em virtude de um ataque às instituições. Acrescente-se ainda que o termo ‘democracia militante’ parece conter um viés ideológico, o qual não corresponde à ideia de legítima defesa da ordem democrática, objetivo maior da democracia defensiva. Por essas razões, defende-se que se deve utilizar o termo democracia defensiva ou democracia de resistência em vez de democracia militante” (FERNANDES, 2021FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p133.
    https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/...
    , p. 133-147). Assim sendo, basicamente para evitar o viés ideológico, é que esta pesquisa adota o termo “democracia defensiva”.
  • 5
    Entre tais países, é comum citar os Estados Unidos de Donald Trump, a Hungria de Viktor Orbán, a Itália de Giorgia Meloni, o Brasil de Jair Bolsonaro, entre outros.
  • 6
    Reportagem disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/12/ministra-pede-mais-controle-de-armas-na-alemanha-apos-conspiracao-extremista.shtml. Acesso em: 04 jul. 2023.
  • 7
    Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2023/01/jorge-messias-anuncia-a-criacao-da-procuradoria-de-defesa-da-democracia-na-agu. Acesso em: 25 abr. 2023.
  • 8
    Os 27 integrantes do grupo de trabalho foram designados por meio da Portaria AGU nº 43, de 20 de janeiro de 2023: Ademar Borges de Sousa Filho; Adriana Martins Ferreira Festugatto; Alaor Carlos Lopes Leite; Allyne Andrade e Silva; Ana Cláudia Farranha; Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende; Bruna Martins dos Santos; Carolina Maria Horta Gaviria; Daniel Sarmento; Flávia Mateus Rios; Gustavo Henrique Justino de Oliveira; Janaína Lima Penalva da Silva; João Gabriel Madeira Pontes; José Luís Bolzan de Morais; Juraci Lopes Mourão Filho; Leonardo Avritzer; Letícia Cesarino; Lizandra Serafim; Luciana Silva Garcia; Marcela Mattiuzzo; Marcelo Cattoni de Oliveira; Marcia Maria Barreta Fernandes Semer; Marco Aurélio Ruediger; María Mercedes Iglesias Bárez; Martonio Mont’ Alverne Barreto Lima; Mauro de Azevedo Menezes; Nina Fernandes dos Santos; Monika Weronika Dowbor; Tainah Simões Sales Thiago; e Thula Rafaela de Oliveira Pires.
  • 9
    Veja-se, a propósito, a opinião de relevantes juristas em entrevista concedida ao canal de televisão GloboNews. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/05/entenda-a-discussao-sobre-a-procuradoria-de-defesa-da-democracia-anunciada-pela-agu.ghtml. Acesso em: 04 jul. 2023.
  • 10
    Veja-se, por exemplo, a seguinte reportagem: https://www.otempo.com.br/politica/judiciario/augusto-aras-nega-omissao-e-inercia-em-investigacoes-na-pgr-1.2812512. Acesso em: 04 jul. 2023.
  • 11
    Tradução livre de: “The total number of right-wing extremist criminal and violent offences increased by about 3.8% in comparison to the previous year (2021: 20,201; 2022: 20,967). Propaganda offences made up the largest share of right-wing extremist crime at 62.1% (13,026). Violent offences accounted for 4.8% of all right-wing extremist criminal offences. In comparison to the previous year, right-wing extremist violent offences increased by 7.5% in the reporting year (2021: 945; 2022: 1,016). At 86.5%, bodily injury offences (879 bodily injuries) made up the largest share of violent offences and remained at about the same level as in the previous year (2021: 82.9%, 783). Right-wing extremist bodily injury offences with a xenophobic background increased by 16.3% compared to the previous year (2021: 646; 2022: 751). The total number of violent offences with a xenophobic background grew as well (2021: 686; 2022: 796, 16.0%). The number of right-wing extremist offences in the category of coercion/ threats decreased only slightly by 1.9% (2021: 425; 2022: 417), while those in the category of property damage decreased by 35.9% (2021: 923; 2022: 592)”.
  • 12
    Tradução livre de: “Right-wing extremists continue to pursue the goal of gaining acceptance among mainstream democratic groups. While at the beginning of the reporting year, right-wing extremists strove to exploit the protests against COVID-19-related protective measures, they shifted the focus of their agitation in the autumn and winter to issues such as inflation and the threat of a looming energy crisis in the wake of Russia’s war of aggression against Ukraine, following the easing of COVID-19-related restrictions. They repeatedly evoked the spectre of a “hot autumn” which would develop into a “winter of rage”. Since this agitation failed to win support among the general public, also because the energy shortage did not materialise, right-wing extremists once again focused increasingly on the topic of migration. Against this backdrop, the number of right-wing extremist demonstrations increased by 65% compared to the previous year, totalling 145 (2021: 88) yet protests did not reach the same level as in the first year of the pandemic”.
  • 13
    A atuação de forma articulada com outras instituições, por meio do compartilhamento de informações, celebração de parcerias e ações integradas, está destacada no próprio site da Advocacia-Geral da União: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/funcionamento-da-procuradoria-nacional-da-uniao-de-defesa-da-democracia-e-regulamentado. Acesso em: 11 jul. 2023.
  • 14
    Nesse sentido, é válido mencionar a recente iniciativa do Senado Federal ao criar a Comissão de Defesa da Democracia (CDD): “O novo colegiado deverá opinar sobre temas como defesa das instituições democráticas; liberdade de expressão e manifestação; liberdade de imprensa; defesa do livre exercício do direito de voto; defesa da ordem constitucional; garantia da ordem pública; terrorismo; entre outros temas correlatos ao fortalecimento da democracia e do Estado de Direito. A CDD terá 11 membros titulares e igual número de suplentes. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e os demais membros da Mesa apontaram o ataque de 8 de janeiro como uma das justificativas para aprofundar os debates de projetos para assegurar o fortalecimento da democracia”. Reportagem disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/06/12/comissao-permanente-em-defesa-da-democracia-sera-instalada-na-quarta. Acesso em 01/08/2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2023
  • Aceito
    11 Set 2023
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