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‘A gente faz o mesmo exercício que o juiz faz’: Práticas conciliatórias e sentidos de justiça nos Juizados Especiais Criminais

Resumos

Este artigo visa compreender as práticas conciliatórias e as representações acerca dos Juizados Especiais Criminais (Jecrims). Para tanto, analiso os modos situacionais de decidir, conciliar e conduzir audiências, que variam conforme os conflitos, as partes envolvidas e as representações dos atores institucionais acerca desse contexto e das funções dos juizados. Ao mesmo tempo, busco refletir sobre os sentidos de justiça que orientam as ações desses atores. A pesquisa realizada mostra que algumas audiências parecem priorizar renúncias ao procedimento e que conciliações/transações nem sempre são satisfatórias para o estabelecimento do diálogo e a harmonização do tecido social.

Palavras-chave:
Jecrim; conciliação; conflito; consenso; justiça


‘We Do the Same Exercise that the Judge Does’: Settlement Practices and Senses of Justice in Special Criminal Courts. aims to understand the practices and representations concerning the Special Criminal Courts. I analyse the situational ways of deciding, reconciling, and conducting audiences, which vary according to the conflicts, the parties involved, and the representations of the institutional actors related to this context and the functions of the courts. At the same time, I seek to reflect on the meanings of justice that guide the actions of these actors. The research show that some hearings which seem to prioritize procedural waivers, and that settlements/transactions are not always satisfactory for the establishment of dialogue and the harmonization of the social fabric.

Keywords:
Special Criminal Court; settlement; conflict; consensus; justice


Introdução

Este artigo visa compreender as práticas conciliatórias e as representações acerca dos Juizados Especiais Criminais (Jecrims), bem como os sentidos de justiça que orientam essas práticas. Os principais atores observados na pesquisa realizada foram os conciliadores, orientados por uma lógica própria de distribuição da justiça e das punições e de “dizer o direito”.

Os Jecrims se enquadram em um conjunto de medidas inovadoras previstas na Constituição de 1988, que incorporou na ordem política e jurídica uma série de direitos civis, políticos e sociais. Entre eles, foram criados institutos processuais, voltados para a proteção de direitos e para a garantia de uma sociedade democrática e reconhecedora da cidadania. Os Jecrims foram instituídos em 1995, pela lei no 9.099, como um microssistema cuja peculiaridade é inserir na Justiça criminal uma gama de princípios, como oralidade, simplicidade, informalidade, celeridade, economia processual, conciliação e transação. O próprio texto constitucional prevê, em seu artigo 98, inciso I, que os estados criarão os Juizados Especiais para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo.

Antes de seguir, vale contextualizar o Jecrim, a fim de compreender sua peculiaridade na distribuição da Justiça criminal no Brasil. O juizado de que pretendo tratar é uma instituição da estrutura do Poder Judiciário, na Justiça comum estadual. Existem as Justiças especializadas, como a eleitoral e a militar, e as comuns (residuais). Do mesmo modo, entre estas, há Justiças federais e estaduais, sendo a primeira competente para crimes de interesse da União e a segunda também residual. Há, por previsão legal, Jecrims federais e estaduais, seguindo esse mesmo princípio de interesse. Toda essa organização do Judiciário está prevista especialmente na Constituição Federal, na legislação ordinária, em códigos de organização e divisão judiciária e em súmulas de tribunais.

A relevância de estudar essa questão guarda relação com a peculiaridade dessa instituição no Judiciário brasileiro e com sua função normativamente prevista. Os Jecrims inserem na Justiça criminal uma fase não tradicional ao nosso sistema. Em vez de um processo que se efetiva na denúncia proposta pelo Ministério Público (MP), na defesa do acusado e na decisão do magistrado, implanta-se uma fase prévia, negocial, que coloca o autor do fato e a vítima frente a frente. O procedimento, assim, permite que as partes, mesmo se tratando de uma infração penal, possam debater sobre o conflito e chegar a uma resolução consensual. Autoriza, também, que o MP não faça uma acusação formal, mas ofereça a proposta de uma medida que, caso seja aceita, coloca fim ao procedimento, antes mesmo que ele se torne um processo no sentido clássico do termo. Impedir-se-ia, dessa forma, que o conflito fosse judicializado, pois não chega às mãos do juiz para a tomada da decisão.

Outro ponto relevante é que nem todo conflito incriminável no Brasil é passível de acordo nos Jecrims, somente aqueles de pequeno potencial ofensivo, considerados pela lei infrações puníveis com até dois anos de prisão. Os casos que chegam a esses Juizados podem ser pensados como conflitos e violências do cotidiano. Muitos desses delitos se dão em contextos de vizinhança, família e trabalho, além de disputas que se desenrolam no espaço público, como brigas por vagas de estacionamento ou em contexto de relações comerciais. Além desses fatos que podem se desenvolver como consequência de ofensas físicas, morais, patrimoniais ou ameaças, há infrações penais sobre as quais o Estado tem a iniciativa e o dever de proceder sem que haja uma vítima claramente estabelecida, como o jogo do bicho e o uso de drogas.

Essa prática de fazer “acordos” em Justiça criminal é inscrita na tradição anglo-saxã, individualista. O modelo americano é, inclusive, adjetivado de plea bargaining machine (BISHARAT, 2015BISHARAT, George E. The Plea Bargaining Machine. Confluências: Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, v. 17, n. 2, p. 123-150, 2015.), por se orientar preponderantemente por acordos entre o acusador e o acusado sobre o fato e a punição aplicada. Na tradição ibérica, holista, à qual, por razões históricas, está reportada a tradição jurídica brasileira, a decisão judicial é prerrogativa de um terceiro que tem a autoridade legal e moral de dizer a verdade sobre o fato e a consequência adequada para ele.

Este artigo foi sistematizado em três seções, além desta introdução e da conclusão. Na primeira, trato dos aspectos metodológicos da pesquisa. Em seguida, apresento a estrutura e as rotinas dos Jecrims. Na terceira seção, descrevo como se dão as transações penais e os sentidos particularizados de justiça dos agentes do Jecrim, assim como as representações dos conciliadores sobre os sentidos da categoria “conciliação”. Por fim, na conclusão, apresento os resultados empíricos da pesquisa.

Metodologia

Este trabalho foi feito com inspiração na metodologia típica da antropologia do direito, a etnografia. Sobre esta, Van Velsen (2010)VAN VELSEN, Jaap. A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. In: FELDMAN-BIANCO, Bela. Antropologia das sociedades contemporâneas: Métodos. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 345-374. destaca que o trabalho de campo etnográfico é orientado, mas não determinado, pela visão teórica do antropólogo. O autor chama a atenção para evidências de que antropólogos com formações teóricas contrastantes coletam diferentes tipos de material e usam métodos de coleta variados. Isso torna a apresentação do autor parte do processo de compreensão de seu texto; ele está inserido no que escreve, da definição do objeto à análise e à escrita, passando pela coleta dos dados. Nesse sentido, optei, em muitos momentos, como destaca Van Velsen (2010)VAN VELSEN, Jaap. A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. In: FELDMAN-BIANCO, Bela. Antropologia das sociedades contemporâneas: Métodos. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 345-374. em diálogo com Gluckman, por trazer registros de situações reais e de comportamentos específicos, transportados do diário de campo para as descrições analíticas, não como ilustrações das formulações abstratas, mas como parte constituinte da análise. É o que o autor chama de análise situacional. Ao usar esse método, o pesquisador não somente apresenta ao leitor abstrações e conclusões do seu material de campo, mas fornece parte considerável desse material. Isso dá ao leitor, de acordo com Van Velsen (2010)VAN VELSEN, Jaap. A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. In: FELDMAN-BIANCO, Bela. Antropologia das sociedades contemporâneas: Métodos. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 345-374., condições para avaliar as análises não apenas do ponto de vista da coerência interna da argumentação, mas também por meio da comparação dos dados com as conclusões extraídas deles (pp. 454-455). Nesse sentido, o autor destaca ainda que o modo de se pensar analiticamente, nessa concepção metodológica, é tentar incorporar o conflito como “normal” no lugar de parte “anormal” do processo social (VAN VELSEN, 2010VAN VELSEN, Jaap. A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. In: FELDMAN-BIANCO, Bela. Antropologia das sociedades contemporâneas: Métodos. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 345-374., p. 438). A pesquisa, desse modo, foi inspirada por concepções acerca da etnografia, aderindo à ideia de Cardoso de Oliveira (2000)CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. 2.ed. São Paulo: Editora Unesp, 2000., de efetuar um olhar, um ouvir e um escrever como um gênero de observação peculiar para a compreensão dessa realidade empírica em sua interioridade.

O trabalho de campo1 1 Trabalho de campo realizado para a produção da tese de doutorado do autor, defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em 2020. teve início no começo de setembro de 2016, em um Jecrim2 2 Por razões éticas e com o objetivo de proteger a identidade dos meus interlocutores, optei por não identificar o Jecrim em que fiz o trabalho de campo e por não explicitar os nomes dos atores com quem interagi e/ou que entrevistei.). localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Até o final de 2017, fiz observações diretas e registrei no caderno de campo cerca de 80 audiências de conciliação, a maior parte delas realizadas por conciliadores. Optei por encerrar o trabalho de campo quando, na minha percepção, as audiências se tornaram bastante repetitivas e as representações dos conciliadores acerca de suas práticas e da instituição Jecrim também se tornaram recorrentes. Além disso, em diálogos informais, notei que as representações, fossem elas defensoras do modelo ou críticas a ele, se pautavam em fundamentos semelhantes.

Durante as imersões no espaço do referido Juizado, fiz entrevistas formais e informais com diversos atores do Judiciário, especialmente conciliadores (interagi com 13 deles), mas também juízes, promotores, servidores e partes (autores do fato, vítimas, advogados) dos procedimentos observados. Muitas audiências observadas e conversas não foram registradas, tendo sido derivadas de visitas informais. Essas incursões formais e informais contribuíram para a construção das minhas interpretações do campo.

Juizados Especiais Criminais

Como já mencionado, os Jecrims foram instituídos pela lei no 9.099/95, conforme mandamento constitucional previsto em seu artigo 98, inciso I. Esse dispositivo da Constituição atribui a eles a competência para o conhecimento das infrações penais de menor potencial ofensivo, o que na atual legislação corresponde aos crimes punidos com pena privativa de liberdade de até dois anos e às contravenções penais. Em outras palavras, a competência se dá em razão da matéria, nos termos do artigo 61 da referida lei, alterada pela lei no 11.313/2006: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa” (BRASIL, 2016).

Esse procedimento, como informa o artigo 62 da lei no 9.099/95, deve se orientar pelos princípios da oralidade, informalidade, economia processual, celeridade, primazia da reparação de danos e da pena não privativa de liberdade. Desse modo, para que um crime seja da competência dos Jecrims estaduais, deverão ser observados dois critérios: que o delito seja da competência da justiça estadual e que o crime ou contravenção tenha pena máxima não superior a dois anos ou seja apenado exclusivamente com multa.

O procedimento tem início, geralmente, com a vítima comparecendo à delegacia e registrando em Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). Esse é um documento elaborado pela Polícia Civil e pouco detalhado, em comparação ao auto de prisão em flagrante. Seus principais elementos são: 1) a classificação do crime entre os delitos previstos em lei; 2) a dinâmica do fato, ou seja, um resumo do ocorrido descrito pelo policial que está lavrando o termo; e 3) o depoimento das partes. Quando registrado, o próprio sistema informatizado marca data e hora para a audiência preliminar. O inquérito comum é mandado para a Promotoria de Investigação Penal (PIP) e o TCO é diretamente aforado. O procedimento chega então ao cartório e é direcionado à audiência, antes mesmo de ser analisado pelo MP ou pelo juiz. Em outros casos, em crimes sem vítima determinada, o procedimento pode chegar à delegacia por encaminhamento policial. É o caso, por exemplo, do uso de drogas.

Em linhas gerais, o procedimento do Jecrim varia conforme o crime. Via de regra, procedimentos de ação penal privada, de ação penal pública condicionada e de ação penal pública incondicionada que tenham vítima identificável (por exemplo, desacato) têm início na audiência de conciliação, somente seguindo para a audiência de transação penal caso não haja renúncia ou acordo. Os procedimentos de ação penal pública incondicionada sem vítima determinada (por exemplo, uso de drogas) são iniciados já na audiência de transação penal.

A audiência de conciliação talvez seja a maior peculiaridade desse procedimento. Em crimes com vítima identificável, após a lavratura do termo circunstanciado na delegacia de polícia, ocorre imediata distribuição para o Jecrim competente para a delegacia que registrou a ocorrência, com agendamento de data e hora da primeira audiência. Esse primeiro momento em sede judiciária é o da audiência de conciliação. Ela é conduzida por conciliadores, colocando frente a frente a vítima e o suposto autor do fato para a composição do conflito.

Nesse percurso, há a possibilidade de que a vítima renuncie, de que haja acordo ou de que não haja acordo. Havendo renúncia, o procedimento se encerra no ato, tecnicamente por extinção da punibilidade, o que impede a instauração do processo. Havendo acordo, ele é lavrado em termo pelo conciliador e os efeitos jurídicos equivalem à renúncia. Não havendo acordo, é marcada uma nova audiência, geralmente apenas com o suposto autor do fato, para a apresentação da proposta de transação penal.

A transação penal é regulamentada no artigo 76 da lei no 9.099/95 com a seguinte redação: “Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta”.

Vale destacar que, com a imposição de pena não privativa de liberdade, há, nos termos da lei, condenação penal sumária, embora dela não haja consequência para além do óbice de se obter outra transação penal no prazo de cinco anos (CARVALHO, 2006CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Leis dos Juizados Especiais Criminais comentada e anotada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006., p. 76).

Em todo caso, não havendo nem conciliação nem transação penal, sendo crime de ação penal pública, o promotor de justiça ingressa com a denúncia, a peça inicial acusatória. A partir de então, é agendada uma data para a audiência de instrução e o julgamento. Na ocasião, o juiz reforçará as propostas de conciliação e de transação penal. Não sendo frutíferas, verificará se recebe ou não a denúncia, a partir da presença ou não de justa causa. Esse é o momento em que se avalia a suspensão condicional do processo. Não sendo cabível ou aceita, ele ouve testemunhas e toma o depoimento pessoal da vítima e do réu, para então proferir a sentença motivada. Caso o crime seja de ação penal privada, ocorre de modo semelhante, com a diferença de que é a vítima, mediante seu advogado, que ingressa com a ação penal, por meio da peça acusatória inicial chamada de queixa-crime. Nesse caso, o MP atua como fiscal do processo.

Conflitos, cidadania e reconhecimento de direitos

As noções de conflito e de cidadania parecem estar imbricadas, cada uma delas tendo significados variáveis. Elas vão da perspectiva do conflito como dissociativo, relacionado a uma ideia de cidadania estratificada, hierarquizada, até à ideia de conflito como inerente à sociedade e constitutivo dela, derivada de uma concepção de sociedade segundo a qual as noções de cidadania são expressão ampla de direitos civis, políticos e sociais.

Vale destacar que raramente a categoria conflito é usada pelos atores judiciários. Eles costumam se referir à lide, que, na doutrina jurídica clássica, diz respeito ao conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Do mesmo modo, os jurisdicionados não costumam se referir ao fato levado ao Judiciário ou à polícia como conflito; em vez disso, fazem uso de diversas outras categorias. Conflito, então, é uma categoria analítica que serve para a compreensão do fenômeno social aqui estudado, tal como as categorias “administração” e “resolução”. A primeira, administração, é tomada analiticamente, querendo significar de modo amplo os desfechos dos conflitos, seja com a intervenção de atores ou não. Já resolução guarda uma relação mais direta com aquilo que os atores judiciários dizem fazer, a saber, resolver a lide. É como se fizesse parte do imaginário institucional uma vocação de fazer desaparecer o que trouxe as pessoas ao Judiciário, devolvendo todos à “paz social”.

Conflito, para Simmel (1983)SIMMEL, Georg. A natureza sociológica do conflito. In: MORAES FILHO, Evaristo (org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-134., em “A natureza sociológica do conflito”, é uma forma pura de sociação, tão necessária à vida da sociedade quanto o consenso, sendo indispensável a sua coesão. Ao contrário do que se estabelece no senso comum, o conflito não é patológico, tampouco nocivo à vida social, mas uma condição para a sua própria manutenção e o processo social fundamental para a mudança de uma forma de organização social para outra. O conflito, nesse sentido, é uma forma de interação destinada a resolver dualismos divergentes. Ele resolve a questão entre contrastes. Formas de dissociação, nesse mote, seriam o ódio, a inveja, a necessidade e o desejo (SIMMEL, 1983SIMMEL, Georg. A natureza sociológica do conflito. In: MORAES FILHO, Evaristo (org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-134.).

Pensando nas representações sobre o conflito na sociedade brasileira, em Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro, Roberto DaMatta (1997)DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. faz uma importante discussão em ensaio que tem como título “Você sabe com quem está falando?”. O autor toma o conflito como uma forma de interação implantada no coração cultural brasileiro, um rito autoritário que indica sempre uma situação conflitiva. Mas aponta, contudo, que a sociedade brasileira parece avessa ao conflito, mesmo que, na prática, tenha alto nível de conflitos e crises. Ocorre que entre a existência de conflito e o seu reconhecimento há um longo caminho. O antropólogo diferencia, nesse ponto, formações sociais que tomam o conflito como parte intrínseca e indivisível de sua vida política e social, enquanto, no Brasil, indica que o conflito é inadmissível. No primeiro modelo, a crise aponta algo a ser corrigido; aqui, aponta o fim de uma era, um sinal de catástrofe. O conflito aberto e marcado pela representatividade de opiniões é traço revelador do igualitarismo individualista, que, no caso brasileiro, se choca com a hierarquização. O “você sabe com quem está falando”, nesse sentido, aponta no cotidiano essa repulsa à discórdia, traço de um sistema preocupado com cada qual no seu lugar, com a hierarquia e a autoridade. DaMatta ainda destaca que, em um mundo que se move obedecendo a hierarquia vista como natural, os conflitos são tomados como irregularidades. O conflito aberto é evitado, pois não pode ser visto como um sintoma de crise desse sistema, mas sim de uma revolta que deve ser reprimida. Aqui, o sistema iguala formal e legalmente em um plano e hierarquiza em outro, nas práticas sociais, diferenciando iguais. O “você sabe com quem está falando?”, assim, chama atenção para o domínio básico da pessoa, das relações pessoais, em contraste com o domínio das relações impessoais dadas pelas leis.

Aprofundando essa discussão, Kant de Lima (2000)KANT DE LIMA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: O dilema brasileiro do espaço público. In: GOMES, Laura Graziela et al. (Orgs.). O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 105-124., em seu ensaio “Carnavais, malandros e heróis: O dilema brasileiro do espaço público”, afirma que os sistemas judiciários têm uma de suas principais ênfases na administração de conflitos na sociedade. Entretanto, são contrastantes as formas pelas quais sua administração se dá, pois estão relacionadas a diversidades culturais que veem os conflitos ora como fonte de desordem e de quebra da harmonia social, a ser reprimida ou eventualmente punida, ora como inevitáveis para a vida social, como fonte de ordem, quando devidamente solucionados (KANT DE LIMA, 2000KANT DE LIMA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: O dilema brasileiro do espaço público. In: GOMES, Laura Graziela et al. (Orgs.). O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 105-124., p. 111).

Nesse sentido, Kant de Lima (2000)KANT DE LIMA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: O dilema brasileiro do espaço público. In: GOMES, Laura Graziela et al. (Orgs.). O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 105-124. observa que, em uma sociedade onde vige um modelo de hierarquia includente, como aquelas da tradição anglo-americana, a negociação, a barganha e a arbitragem são formas privilegiadas de resolução conflitos, em vez da conciliação e do julgamento. Primeiro se explicitariam os interesses divergentes que originaram o conflito, para então se decidir consensualmente, entre partes iguais que se opõem, qual é a ordem que melhor serve para sua resolução. Em uma sociedade baseada no modelo de hierarquia excludente, a hierarquia depende da harmonia e a regra é não resolver, mas reprimir ou extinguir conflitos. A conciliação, que os abafa, ou julgamento, que restaura a mesma ordem pela descoberta da “verdade real”, são formas que compensam a desigualdade, que reconhecem sua existência na sociedade, em que camadas diferentes identificam pessoas diferentes. Faz-se justiça pautando-se nessa desigualdade tida como estrutural.

Pode-se pensar em uma abordagem que em que dois modelos se confrontam. Um deles é individualista e tem como figura central é o indivíduo maximizador, egoísta, voltado para a realização de seus próprios interesses. O outro é o modelo holista, em que a integração e a harmonia social prevalecem sobre os apetites individuais. No primeiro, anglo-saxão, o conflito está na base da competição e do interesse, e esses são os vetores para a prosperidade, o progresso, a civilização. No outro, aqueles fatores são negativos e produzem predação, distopia, crise. O modelo individualista é igualitário e os indivíduos motivados pelas mesmas paixões têm as mesmas bases; já no modelo holista, temos uma sociedade hierarquizada onde cada um tem um lugar específico a ocupar.

Partindo dessas reflexões, pode-se considerar que a produção de justiça consensual assume idiossincrasias no Brasil. Ela não prescinde da figura de um terceiro (um conciliador ou, em alguns casos, o promotor) que intervém na solução do conflito, propondo sugestões e produzindo renúncias como “paz social”. Ao mesmo tempo, parece haver a intenção de que o conflito não chegue à “mesa do juiz”, sendo resolvido em uma fase pré-processual. A própria categoria “consenso”, cujos significados para os atores judiciários serão mais bem observados neste estudo, assume significados muitos particulares.

Ao mesmo tempo que o Judiciário se abre para a recepção da conflitualidade cotidiana, ele não é tão permeável ao diálogo entre as partes, nem ao exame da questão em sede processual propriamente dita. Desse modo, quando o conflito é institucionalizado e se realiza uma audiência de conciliação, isso não implica necessariamente o “cidadão” ter sido reconhecido e experimentado uma justiça ampla. Se a instituição dos Jecrims implicaria uma ampliação da cidadania, sua realização deficitária mantém o indivíduo como um cidadão não realizado. Trato, neste trabalho, da concepção de que o acesso à justiça não é mero acesso ao Judiciário, mas a uma prestação jurisdicional efetiva.

Rotinas de um Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro

As instituições judiciárias operam com inúmeras categorias, que, por sua vez, têm significados próprios para os atores. Assim, esses significados não são homogêneos, sendo objeto de disputa. As práticas judiciárias, nesse sentido, são informadas por um conjunto de representações sobre os papeis que esses atores acreditam exercer perante a sociedade e sobre o próprio papel que o Judiciário e o direito exercem. Tudo isso faz parte de uma gramática mais ampla, do conjunto de valores morais que informam as ações desses atores. Tanto suas interpretações da lei como suas interpretações dos fatos sociais, assim como o exercício de adequação entre as primeiras e as segundas, são orientados por esse conjunto de valores. Nesse diapasão, pretendo apresentar descrições empíricas, buscando compreender os seus significados para os atores que atuam diretamente na rotina dos Jecrims, especialmente os conciliadores. Isso indica o que pensam sobre certo “fazer justiça” e o que entendem sobre os próprios Jecrims. Aqui, opera a máxima de que a lei não diz nada, apenas aquilo que os seus intérpretes decidem.

O espaço do Jecrim observado conta com salas separadas em que se desenvolvem as atividades de cartório, as audiências de instrução de julgamento (AIJ) e as audiências de conciliação (AC), para além dos gabinetes do promotor e do juiz. O Jecrim é composto por um quadro concursado de atores tradicionais a uma vara criminal, como o juiz, o promotor de justiça e os serventuários (oficiais de justiça, analistas e técnicos judiciários), além dos defensores públicos e dos estagiários. O contraste está na figura do conciliador.

Considerando o cenário do ritual no Jecrim observado, as salas das audiências de conciliação não são as mesmas usadas para as audiências de instrução e julgamento. Elas são pequenas, localizadas uma ao lado da outra; nelas, os conciliadores dirigem as audiências simultaneamente, chamando um de cada vez os procedimentos agendados para o dia. As audiências costumam ser curtas. A sala da audiência de instrução e julgamento tem uma mesa em formado de T; em sua parte superior, sentam-se o juiz (no meio), seu secretário (à esquerda do juiz) e o membro do MP (à direita do juiz). Essa parte da mesa se encontra sobre um tablado, ou seja, é mais alta que o outro lado. Em sua parte inferior, sentam-se o defensor (à esquerda do juiz), ao lado do suposto autor do fato. Atrás do juiz, há um crucifixo com a imagem de Jesus Cristo.

A audiência preliminar de conciliação começa com um “pregão”, em que o conciliador chama as partes por um sistema interno de som, convocando-as para determinado órgão judiciário (no caso, o Jecrim) e determinado espaço (no caso, a sala de audiência). Ao chegarem, o suposto autor do fato e a vítima encontram uma mesa em formato de T, com o conciliador sentado em uma cadeira . A mesa toda está no mesmo nível, não havendo um tablado que coloque os atores em alturas distintas. As partes se colocam uma de cada lado da parte de baixo, não havendo lugar demarcado (como ocorre em outros órgãos judiciários); às vezes essas partes estão acompanhadas de advogado, outras vezes não. O conciliador confirma seus nomes e pede seus documentos de identidade. Após isso, os rituais desenvolvidos têm variações marcantes, orientadas por sentidos de justiça. Nem sempre se ouve as partes e se oportuniza um diálogo com vistas a um entendimento.

- Ela [a conciliação] é frutífera, eficaz. [Se] fizeram as pazes, [o processo] vem para mim, eu peço o arquivamento e vai para a juíza homologar. [Se] não teve acordo, vem para mim, eu avalio se tem testemunha, se tem prova. Se não tiver prova e não tiver como buscar ou se não for crime, eu peço arquivamento. Tem Jecrim que passa primeiro pelo promotor; ele arquiva o que é atípico, o que não é crime. Aqui sendo crime, não sendo crime, vai para conciliação primeiro, porque eles podem fazer as pazes. É uma forma do Estado chamar as pessoas às pazes. Se houver crime e estiver provado, eu ofereço transação penal. Se [o suposto autor do crime] não aceitar, eu denuncio o cara. Muitas vezes eu denuncio, o cara se senta na AIJ [audiência de instrução de julgamento] e aceita a transação. Aí a juíza não aceita a denúncia e homologa a transação. Caso já tenha recebido outra transação, a juíza aceita a denúncia e aplica a suspensão condicional do processo. (Promotor do Jecrim observado)

Geralmente, como contato pelo promotor, o processo só chega ao MP depois da primeira audiência de conciliação, onde são entregues as partes, caso não renunciem ou façam um acordo - um termo em que as testemunhas devem fazer a narrativa dos fatos que presenciaram. Nesse momento, o promotor emite um juízo ao analisar a justa causa, antes de propor uma transação penal (TP). Ele julga se há indício de autoria e materialidade a partir das provas previstas nos autos do procedimento. Quando entende que a justa causa está presente, define propor a transação e seu conteúdo. Nesse mesmo contexto, o promotor pode modificar a classificação das partes como autor do fato e vítima, podendo alterar também a classificação jurídico-penal (adequação típica) do fato.

Nesse diapasão, vale destacar que o fato oriundo do registro na delegacia de polícia só é examinado pelas autoridades judiciais tradicionais - MP e juiz - após a realização da audiência de conciliação. Até esse momento, o procedimento recebeu apenas uma descrição sucinta do fato por um inspetor da Polícia Civil e a classificação jurídico penal que esse agente público entendeu como cabível. Esse auto de procedimento chega ao Jecrim após agendamento de data e hora na própria delegacia de polícia e o recebimento de uma capa própria. A agenda é organizada pelo cartório do Juizado, sendo os autos separados conforme a pauta e retirados pelos conciliadores no dia do seu plantão de audiências. Os próprios conciliadores, em regra, só entram em contato com a narrativa do fato no momento da audiência.

Há duas dimensões na compreensão dos Jecrims. Em uma delas entende-se que há um autor do fato e uma vítima determinada; em outra, entende-se que há o autor do fato, mas a vítima seria o Estado, a coletividade, ou seja, uma entidade virtual e não determinada. Nesse sentido, duas dinâmicas diferentes podem ser pensadas: uma em que a vítima busca o poder público para o reconhecimento de um direito e para a solução do seu conflito e outra em que o poder público faz uso de um método dito transacional, prometendo, caso seja aceito, não perseguir criminalmente determinado autor de um fato dito delituoso.

Além disso, há crimes em que, apesar de processados mediante ação penal pública incondicionada, há vítimas identificáveis. Nesses casos, é como se o conflito deixasse de pertencer à vítima e passasse a pertencer ao Estado (por meio de sua face acusatória pública). Contudo, na prática, dependendo da idiossincrasia de cada Jecrim, é marcada uma audiência preliminar para acordo civil. No juizado observado não há conciliação, por exemplo, em delitos de desacato - crime de ação penal de iniciativa pública, mas com vítima identificável.

- Há juizados que entendem que se a autoridade desculpar e o cara se redimir, o promotor perderia o interesse e arquivaria. Aqui não se permite a autoridade perdoar, seguimos a lei. Mas tenho mudado isso, porque às vezes as pessoas xingam por cabeça quente e o PM [policial militar] perdoa. A questão não é mais de ser ação pública, é de ter vítima identificável. No desacato há um limbo no qual tem gente que aceita a conciliação e tem gente que não aceita. Aqui, mesmo que a autoridade perdoe, não se arquiva não. Há promotores que mesmo assim arquivam. Quando o juiz não concorda, manda para o PGJ [procurador-geral de justiça] [conforme o artigo 29 do Código de Processo Penal]. (Entrevista com um promotor do Jecrim)

Em regra, como já mencionado, as ações de iniciativa privada iniciam-se na fase de conciliação. O mesmo se passa com as ações penais públicas, que exigem representação da vítima. Em ambas as ações, a vítima pode renunciar ao direito de ação. Quando não há acordo civil entre as partes, o promotor de justiça, em sua vista ao processo, se verificada a justa causa (indícios de autoria e materialidade), propõe a transação penal. Essa questão também apresenta peculiaridades entre os Jecrims e o MP. Há promotores que propõem a transação penal mesmo nos casos de ação penal de iniciativa privada; outros levam em consideração eventual proposta de transação penal oferecida pelo advogado da vítima.

- Na calúnia [crime de ação penal de iniciativa privada], a pessoa vai à delegacia, registra a ocorrência, a ocorrência é mandada para aqui e vai direto para conciliação. Não havendo conciliação, vem para mim. Eu escrevo: “Aguarde-se o oferecimento de queixa-crime”. Ofereceu no prazo, seis meses do fato; não ofereceu, está decadente. Se oferecer, eu vejo se tem prova. Se tiver, eu passo por cima e ofereço queixa-crime. Mas na AIJ muitas vezes as partes fazem acordo. Há vezes que o defensor coloca transação, mas ela é do MP. Quando o defensor oferece, eu ratifico, mas quando não oferece, eu atravesso e ofereço. (Entrevista com um promotor do Jecrim)

As transações penais

Como definiu uma promotora de justiça, a transação penal é “um acordo com o Estado para que não seja oferecida uma denúncia”. A audiência de transação penal inicia-se de modo semelhante à de conciliação. Contudo, chama-se apenas o suposto autor do fato; a vítima não costuma ser intimada para o ato, embora, com alguma frequência, compareça à audiência e peça para assistir. Sua presença é justificada pelo desejo de saber se o suposto autor do fato aceitará ou não a proposta de transação penal. Alguns conciliadores relatam que nesses casos os supostos autores de fatos criminosos só podem assistir, pois se “tumultuarem” deve-se chamar a polícia. Práticas como essas, na representação dos atores, são comuns em brigas de vizinho, em que já há relações prévias entre as partes. Reclama-se, muitas vezes, que a sanção é branda demais. Contudo, os conciliadores declaram que, a partir do momento que chega a transação penal, não cabe mais diálogo entre vítima e autor do fato: “O MP oportuniza conversar. Se não quer, é com o MP”, como disse um conciliador do Jecrim etnografado.

O conciliador na audiência de transação penal faz a leitura da proposta que vem dentro dos autos do procedimento. O promotor não está presente fisicamente nesse ato. O autor do fato pode ou não aceitar a proposta. Se não aceitar, tem o direito de explicar em curtas linhas a razão de sua recusa e o procedimento segue para a audiência de instrução e julgamento. Se aceitar a proposta, deve especificar o que aceita, considerando duas propostas alternativas: doação de bens revertidos para instituições de caridade ou prestação de serviços comunitários - existindo ainda, para casos selecionados, a possibilidade de doação de sangue. Finalmente, o conciliador lavrará o termo de aceite com a explicitação do bem que será entregue e de onde será entregue, caso seja essa opção escolhida.

Na grande parte dos casos que presenciei e na representação dos conciliadores entrevistados, fica determinada prestação do equivalente a R$ 440,003 3 Equivalente a meio salário mínimo, no valor vigente à época da realização do trabalho de campo. . Cabe ressaltar que nas audiências de transação penal, como declarou um conciliador, visa-se sempre o aceite, a submissão a essa “punição” imposta pelo MP, sob o argumento de que a recusa implicaria consequências jurídicas piores. Em outras palavras, elabora-se um discurso segundo o qual a medida é mais benéfica, devendo ser aceita.

A transação penal funciona como um acordo com o Estado para que não seja oferecida a denúncia. Para a análise das práticas da “transação penal”, a teoria da dádiva de Marcel Mauss (2003)MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. incita a imaginação. O promotor, ao propor uma transação penal, ofereceria um “perdão”; o acusado, caso aceitasse a conciliação, ofereceria não questionar as acusações em um processo; o promotor, por conta disso, concederia uma “pena” mais leve. É como o estabelecimento de uma relação, legitimada pelo direito legal, mas que só se efetiva após a produção de atos, aparentemente voluntários e livres, contudo obrigatórios, pelos atores institucionais e pelos cidadãos sujeitos à administração judiciária de conflitos. Caso algum desses atores se recuse a constituir essa relação, não se efetiva a “transação” e a “guerra” se estabelece, na forma de consequências jurídicas. Vale destacar que, para Mauss (2003)MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003., a vida social se constitui como um constante dar, receber e retribuir; são trocas baseadas em regras que se manifestam em diversas esferas da vida social, sendo simultaneamente obrigatórias e voluntárias.

Na prática, o aceite da transação pode ser entendido como a admissão simbólica da culpa, com a consequente submissão a uma pena sem processo, na qual a inocência pudesse ser discutida. Todavia, é sempre salientado que o ato de aceitar a transação não implica formalmente o reconhecimento de culpa. O autor do fato, a partir do momento em que ocorre a judicialização, se torna sujeito ao arbítrio de a vítima - se for o caso - renunciar ou conciliar e à decisão do promotor de indicar uma medida (transação penal) para que a aceite ou não.

De todo modo, sua escolha, nesse momento, é aceitar a punição, sem a possibilidade de discutir sua inocência - ou melhor, de vê-la sendo contestada em um processo - ou de recusar a transação, vendo-se submetido a um processo e a todos os riscos para os quais o autor do fato é advertido desde o primeiro momento. Cabe ressaltar que paira, durante o ritual dirigido pelo conciliador de oferta-aceite da transação penal, a advertência e, possivelmente, o medo de aquela questão chegar às mãos de um juiz, o que, por si só, colocaria o autor do fato sob o risco de sofrer as sanções de um processo.

Além disso, o aceite da transação penal, se não significa formalmente a assunção da culpa, a configura simbolicamente, por desdobramento lógico do aceite de uma punição. Trocar o significante “pena” por “medida alternativa” não retira o significado punitivo da reação estatal, afastando somente, a priori, a ameaça de privação de liberdade deambulatória.

Há casos em que o autor do fato recusa a transação penal, sob o argumento de que gostaria de se defender. Em certa ocasião, de um procedimento referente a desacato/desobediência praticado contra um policial militar, o autor do fato não concordava com a imputação de desacato, negando todos os fatos durante a audiência. Ele disse que gostaria de se defender, sendo a afirmação recebida com surpresa pelo conciliador.

- A transação penal é um benefício que a lei, as pequenas causas, lei no 9.099/95, confere a você. Fornece para o caso de a pessoa, no entendimento do MP, causou um prejuízo à outra parte e ter esse benefício e por cinco anos não poder arrumar confusão. Aí você paga cesta básica ou serviço à comunidade. (Conciliador)

- Você falou que não ia aceitar. No crime de desobediência não tem muita conversa. O Ministério Público vai denunciar você. Pode ser que o promotor na audiência ofereça esse mesmo benefício. É para você não ficar com antecedentes criminais. Se procurar na delegacia, vai achar você. Você aceitando não ficará na ficha criminal. Fica complicado você não aceitar, eu acho de bom tom você aceitar, mas é com você mesmo. (Conciliador)

- É o tal negócio, você chega para alguém que representa o poder público como o guarda municipal, ele tem o poder de polícia. Se você fala algo ou gesticula e ele entender que é desacato ou desobediência. Se você fala que não vai dar um documento, o que vale é a palavra deles como representantes do Estado. (Conciliador)

- Nada disso houve. Eu reclamei como qualquer cidadão de bem reclamaria por ser abordado no lugar onde foi criado. É uma posição de constrangimento. (Autor do fato)

- E o que aconteceu? Você estava na moto? (Conciliador)

- Eu estava na moto, no sinal. Eles passaram por mim e simplesmente voltaram para mostrar serviço, só isso. Eu fui tão surpreendido com a atitude dele que na hora eu não sabia que nem policiais militares eles são [se referia ao Projeto Segurança Presente]. Achei que fosse até apoio, segurança de rua, e aí tomei um susto. Estou em cima da minha moto, sou cidadão, trabalhador, no bairro que fui criado. Ninguém se identificou como policial. Ele havia passado e voltou e me pediu documento. Imediatamente desci da moto e perguntei o motivo e “quem são vocês”. Eu não sabia que se tratava de policiais. Comecei a procurar documentos no casaco. Nesse momento, ele achou que por eu estar argumentando, ele achou que reclamei da abordagem. Sou cidadão de bem, eu sou do tempo que qualquer profissional ou policial, só de olhar para o cidadão, já tinha a percepção de quem é cidadão. Foi quando ele começou a se alterar e dizer que agora ia ser diferente. Ele chamou por rádio um senhor que se identificou como sargento e mandou eu colocar as mãos na parede. Eu não desobedeci em nenhum momento. Tudo isso se deu em função da falta de treinamento por parte do rapaz. A abordagem foi totalmente equivocada. (Autor do fato)

- Antigamente os militares olhavam para as pessoas ou indivíduos e já sabia quem era cidadão. Hoje em dia não tem nem como fazer essa leitura. Já vi gente bonitinha de terno sendo ladrão. Acho que seu erro maior foi ficar indagando a eles. Eles só querem documento do carro, ver licenciamento e documento. Eles estão com metas aí de pegar motos roubadas, gente sem habilitação dirigindo. E aí o que acontece? Eles agora não fazem mais esse tipo de observação. Qualquer um pode ser ruinzinho ou bonzinho. O problema foi você ficar indagando a eles, eles não gostam. Já passei por situação mesmo mulher. Vai ficar discutindo com ele? Ele ia ficar grilado com isso. Vamos nós. O que o senhor vai resolver? Se o senhor não aceitar, o MP vai fazer a denúncia. Vai ter audiência com juíza togada e esse mesmo troço deve ser oferecido para você. Depois disso eu não sei o que acontece, porque nunca presenciei AIJ. Só sei que vão oferecer essa mesma transação penal que estou te oferecendo, depois não sei o que acontece. O senhor só não pode mais se meter em confusão se aceitar. (Conciliador)

- Se eu aceitar pagar a cesta básica, ficarei cinco anos nessa condição? (Autor do fato)

- Só pode ser vítima, não autor do fato. Se acontecer algo na rua após isso, aí vai para outro departamento. (Conciliador)

- E eu não tenho direito de defesa? (Autor do fato)

- Nesse caso aqui não sei como faz. Desacato já vem direto aqui para transação penal. Nunca vi defesa não. (Conciliador)

- Porque eu tenho testemunha. Na delegacia, o escrivão não me deu o direito de arrolar testemunha, um amigo presenciou toda a situação. Eu parto que teria o direito à defesa. (Autor do fato)

[Nesse momento, a conciliadora pega o telefone e diz que mandou chamar alguém do cartório.]

- Você falou para ele “você não tem faro para subir morro e prender vagabundo”? Que eles têm de “subir o morro para prender vagabundo”? (Conciliador)

- [Conciliador falando para a serventuária]: Esse senhor é o seu AF [autor do fato]. É desobediência. Ele quer saber se tem direito de colocar testemunha e se defender. Ele não quer aceitar TP. (Conciliador)

- Ele peticiona nesse sentido, faz termo de declaração e constitui advogado. (Serventuário)

- Ele só queria saber se pode fazer colocação de quem testemunhou o fato. Ele disse que está presente sem direito de defesa. (Conciliador)

- Pode procurar defensoria ou advogado e se manifestar ou preencher termo de declaração. O senhor não aceitando, o MP vai oferecer denúncia. Vai ter AIJ com juíza. Mesmo indo, se não constituir advogado, vai ter defensor público. Mas pode ser que a juíza aceite a denúncia e vire processo criminal. Por enquanto é só procedimento. (Serventuário)

- Tem defensor em AIJ? (Conciliador)

- Sim. Se não constituir patrono, defensor vem. A gente intima. (Serventuário)

- Não vai aceitar? (Conciliador)

- Mas você disse que eu não deveria levar adiante... (Autor do fato)

- Por que o senhor não aceita? (Conciliador)

- Porque não concordo como os agentes colocaram as coisas. (Autor do fato)

- Agora você vai aguardar que o MP vai entrar em contato com o senhor. (Conciliador)

Pode-se observar, a partir desse caso, que o aceite da transação penal é tão naturalizado pelos conciliadores que eles mal conseguem observar o direito de defesa nos Jecrims. É como se os procedimentos que encontrassem administração naquela sede institucional tivessem como destino certo o aceite da proposta punitiva do promotor de justiça, sem qualquer contestação quanto à veracidade dos fatos, sem defesa de qualquer tipo, sem o devido processo legal.

Na prática, como apontou um juiz, dificilmente o procedimento que chega aos Juizados vai à sentença condenatória, pois há um novo investimento em conciliar no começo da AIJ e, não sendo possível, será proposta a transação penal. Nada sendo frutífero, o juiz aceita a denúncia e propõe a suspenção condicional do processo, na forma do artigo 89 da lei no 9.099/95, impondo uma série de medidas restritivas para o, agora sim, réu.

Quando o procedimento chega à AIJ, significa que não houve acordo civil ou aceite de transação penal. Nesse caso, a audiência é conduzida pelo juiz, com a presença do promotor e do defensor (seja público seja privado). Um juiz entrevistado chamou a atenção para este detalhe: na audiência de conciliação, os conciliadores “botam um na frente do outro”. Ele diz, todavia, usar outra técnica: chama primeiro a vítima e a ouve, pois, desse modo, ela verbaliza sem ser na presença do autor do fato. Segundo o juiz, isso tem a potencialidade de melhorar o discurso dela; ela falaria com mais franqueza e mais facilidade. Depois disso, o juiz pergunta se a vítima quer continuar, se deseja um acordo civil. Faz então a proposta, explicando os efeitos da pena em relação ao que poderia ser feito - por exemplo, uma terapia. O juiz ressalta que entre terapia e uma “pena de R$200”, melhor a terapia. Em caso de aceite, ele pede para a vítima sair e chama o autor do fato.

Segundo o entrevistado, caso ele colocasse o autor do fato e a vítima frente a frente, só traria a ela lembranças daquele momento. O juiz avalia que faz sempre assim e dá certo:

- Raro não sair acordo. Não acirra o conflito, só traz o conflito pra mesa. Não é o ideal aqui, não vou ficar vendo parte se debatendo. Eu consigo separar vítima e autor do fato para unir em outro momento.

Desse modo, como declarou, ele faz o corte do que a vítima está dizendo e diz a ela o que julga ser melhor. Ela sai e, em seguida, o juiz diz ao autor do fato o que é melhor para ele, fechando assim o acordo.

- Não é mediação, não faço mediação aqui. Não tenho tempo para fazer mediação. Eu já digo o que quero, o que é o melhor, por isso dá certo. Se deixar para eles, não dá certo, ficarei aqui séculos. Nem eles sabem o que é melhor para eles. Não vou ficar perguntando o que é o melhor. Se a pessoa chega aqui, é porque ela não sabe o caminho, senão ela resolveria lá. Ela veio ao Judiciário pedir alguma coisa. Então digo a ela: “Posso dar isso, mas tenho essa alternativa. Não é melhor essa alternativa? Não é melhor ir a tratamento?”. Se ele for condenado, será condenado a X. “Mas esse caminho não vai te produzir resultado mais à frente?”. Então a pessoa acha o melhor [e] vou ver se convenço a outra parte. Então falo com a outra parte: “Está sendo dada a você essa oportunidade. Não é melhor aceitar? Não é o melhor para você?”. Cabe a mim convencê-lo, trazer ele para um ponto que é favorável para ele. As partes fazem um acordo, eles saem felizes [por]que chegaram a um acordo, mas um acordo que eu ditei. Há uma intervenção. “Aqui eu acho que chegou a um limite, se eu não tratar pode dar uma morte”. Já houve processo aqui que antes de eu fazer uma audiência já houve uma morte. Eu tenho de ser rápido, não posso fazer audiência. Aqui já estou tratando de pessoas doentes, já digo o que é o melhor. Aqui, ele [o defensor] dizendo que vamos fazer acordo civil. Isso não adianta, adianta composição de tratamento psiquiátrico. Acordo de doação de sangue, de paz, não tem repercussão nenhuma.

(...)

A proposta entrou como acordo civil. Eu tenho de ter efetividade daquilo que estou dando, tenho de ver que aquilo que estou propondo não vai mais trazer as partes aqui. Nem que seja construir um muro, mudar a posição da casa, tudo para evitar que as pessoas briguem. São os casos que as partes não aceitaram fazer acordo com a outra parte nem acordo com o promotor. A lei exige que eu comece a audiência tentando acordo com as partes. Já vem para cá com denúncia. AIJ só existe com denúncia. Alguns estou suspendendo o processo e aguardando cumprimento para encerrar. A denúncia foi proposta, mas não recebi a denúncia ainda. (Entrevista com juiz do Jecrim)

O juiz salienta que, em sua AIJ, inicia com uma conciliação. Caso não seja frutífera, reitera a proposta de transação penal que consta dos autos, agora com a presença física do promotor. Se o autor do fato não aceitar, recebe a denúncia e oferece suspensão condicional do processo. Na hipótese de, mesmo assim, o autor do fato não aceitar, ele ouve as testemunhas e profere a sentença. Contudo, esse trecho da entrevista evidencia uma ideia específica do que significa produção de consensos no Juizado, reforçando a ideia da figura do terceiro como um negociador que sabe o melhor para as partes e, por isso, tem o poder de dizer a solução do conflito.

Nesse sentido, para o juiz entrevistado, o Jecrim produz um efeito de pacificação social. É como se fosse feita a paz social por meio da discussão de um procedimento de desistência ou com as partes tendo minutos de diálogo - pode-se entender como uma paz social em sua forma, mas não em sua substância. Por outro lado, a dimensão de patologização do conflito fica evidente quando o juiz diz que preferia uma medida de terapia. É como se o conflito social fosse visto como uma anormalidade, um sintoma de um desvio psíquico das partes envolvidas. Nesse sentido, para as partes, a medida mais adequada seria tutelar, tratar e, quem sabe, curar.

Sentidos de justiça e conciliação

- Eu acho que a justiça é injusta. Eu vejo coisas aqui que não concordo, [que] o MP coloca e eu não concordo. Sou obrigada a fazer oferecimento da transação penal. Fiz a audiência, sei o que aconteceu e o cara recebe transação penal. Às vezes, vejo que a pessoa não fez aquilo e é obrigada a passar pelo constrangimento da transação penal. Na transação penal é dito que não é assumir culpa, mas ela é punição sim. (...) A transação é uma punição. Tem horas que está bem colocada no caso, aí vem transação penal de R$440,00. Pelo que você sabe do que presenciou na audiência, você sabe que o que o cara fez e aprontou. Ele deveria pagar dez cestas básicas. (Entrevista com conciliadora do Jecrim)

Como aponta Fonseca (2008)FONSECA, Regina Lúcia Teixeira Mendes da. Dilemas da decisão judicial: As representações de juízes brasileiros sobre o princípio do livre convencimento motivado. 2008. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2008., a liberdade na formação de convicção concedida aos julgadores pela lei outorga-lhes a hegemonia de “dizer o direito”, o que lhes assegura galgar posição de absoluta supremacia quanto ao poder de, de fato, dizer o direito em suas decisões. Tal situação colabora para fragilizar os consensos sobre as normas jurídicas, que, debilitadas, pois são objeto de várias interpretações, não alcançam entendimento unívoco internamente no campo, tampouco se apresentam em condições de serem internalizadas nos cidadãos, ou seja, de serem “normalizadas” na sociedade (FONSECA, 2008FONSECA, Regina Lúcia Teixeira Mendes da. Dilemas da decisão judicial: As representações de juízes brasileiros sobre o princípio do livre convencimento motivado. 2008. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2008., pp. 26-27).

Nesse sentido, Lupetti Baptista (2013)LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. “A minha verdade é minha justiça”: Dilemas e paradoxos sobre o princípio da imparcialidade judicial. Cadernos de Campo, n. 22, p. 301-314, 2013. discute os paradoxos sobre o princípio da imparcialidade judicial, partindo da declaração de um juiz, seu interlocutor: “A minha verdade é minha justiça”. A autora observa que a identificação do magistrado com determinada “justiça”, representada por aquilo que ele acredita ser uma determinada “verdade”, expõe que o juiz eventualmente conduz e julga processos judiciais a partir de critérios que estão além dos autos processuais e que ele pode levar em consideração fatores subjetivos, constitutivos de sua personalidade e não necessariamente representados e explicitados nesses autos (LUPETTI BAPTISTA, 2013LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. “A minha verdade é minha justiça”: Dilemas e paradoxos sobre o princípio da imparcialidade judicial. Cadernos de Campo, n. 22, p. 301-314, 2013.).

Os termos do acordo esbarram em questões que podem fazer dos Jecrims um instrumento eficiente de resolução de conflitos sociais, quando tratam de dimensões para além da atribuição de uma medida pecuniária ou de prestação de serviços, que mais se assemelham a punição. Entretanto, há práticas que fazem dele um mecanismo formal revitimizador. Utilizando a liberdade que a lei no 9.099/95 confere na imputação de medidas alternativas, os atores judiciários podem propor medidas produtoras de impactos positivos, caso sejam realizadas de maneira eficiente e nas hipóteses que configurem real necessidade, como a terapia e o comparecimento a grupos de apoio (por exemplo, narcóticos anônimos). Por outro lado, muitas vezes esses atores devolvem o conflito para o ambiente de que é oriundo, implicando sacrifícios econômicos a pessoas que dependem financeiramente do agressor. O conflito, após o pagamento do valor, pode ser entendido como privatizado e devolvido às partes, ficando o Estado isento de administrar uma solução (AMORIM, 2003AMORIM, Maria Stella de. Cidadania e jurisdição de direitos nos Juizados Especiais Criminais. In: KANT DE LIMA, Roberto; AMORIM, Maria Stella de; BURGOS, Marcelo Baumann (Orgs.). In: Juizados Especiais Criminais, sistema judicial e sociedade no Brasil: Ensaios interdisciplinares. Niterói: Intertexto, 2003. p. 19-52., p. 210).

Lima (2018)LIMA, Michel Lobo Toledo. “Que justiça seja feita”: Dilemas entre acesso à justiça, demandas e reconhecimento de direitos. Revista Antropolítica, n. 45, p. 150-181, 2018. aponta que na maioria dos casos observados em seu estudo etnográfico o acordo entre as partes conflitantes é tratado como sinônimo de desistência de se prosseguir com o processo judicial, em vez de ser considerado administração de conflitos, obtida pela ênfase na oralidade e informalidade na formação de acordos entre suposta vítima e suposto autor do crime. “O acordo como desistência do processo é uma negociação da continuidade ou não do processo, em que conciliadores, promotores de justiça e juiz utilizam ferramentas discursivas para o não prosseguimento do processo frente ao Judiciário” (LIMA, 2018LIMA, Michel Lobo Toledo. “Que justiça seja feita”: Dilemas entre acesso à justiça, demandas e reconhecimento de direitos. Revista Antropolítica, n. 45, p. 150-181, 2018., p. 153).

O conciliador, em suas práticas, afeta as partes. Um dos modos pelo qual isso se dá é na condução da audiência, especialmente quando o conciliador instrui a vítima a renunciar. Houve um caso descrito em que a parte era ao mesmo tempo autor do fato e vítima em uma infração de difamação (ação penal privada). A conciliadora do caso recomendou a renúncia, mesmo sob o protesto do seu advogado. Ao fim, como ele era também autor do fato, o procedimento seguiu apenas perante ele. Como apontou outro conciliador entrevistado, quando uma orientação é “mal dada”, isto é, não oferece uma declaração de testemunha, “a defesa fica cerceada”.

- O que acho ruim num conciliador é que às vezes é o cara que queria ser juiz. Às vezes o conciliador vem aqui com cabeça aberta. Ele vai conversar, é uma função sacerdotal, quase um padre promovendo a conciliação entre as pessoas. [Mas] muitas vezes o conciliador não está ali nesse espírito e mais se investe na figura do juiz que ele gostaria de ser. Quando o conciliador vem com espírito de autoridade, ele coloca o trabalho a perder. “Aqui ninguém vai gritar, senão chamo a polícia”. (...) O conciliador está ali para conciliar as partes, fazer uma função de Igreja, aproximar as partes, fazer a paz. (Entrevista com promotor do Jecrim)

Os conciliadores tomam decisões. Fazem um julgamento sui generis. Eles têm, nesse sentido, modos de julgar informados por seus sentidos de justiça, suas moralidades. Isso guarda correlação com o uso da palavra nas audiências, ou seja, com quem pode falar em uma conciliação. Como me disse um conciliador, “a gente faz o mesmo exercício que o juiz faz. (...) Tudo depende de como se conduz a audiência. Esse é o poder de decisão do conciliador”. Os conciliadores têm, então, um poder de decisão que, de acordo com eles mesmos, se configura na forma como a audiência é conduzida. Há, desse modo, um julgamento feito pelo conciliador sobre os autos do procedimento (TC e eventuais provas que estejam junto a ele), sobre a gravidade do fato e sobre o comportamento das partes durante a audiência. A categoria usada para casos em que o acordo conciliatório não seja esperado/desejado é “inapelável”.

Não é apenas na condução do procedimento que a prática decisória se percebe. Há um caso emblemático, uma audiência de transação penal em que se substituiu uma medida de pagamento de valor revertido em bens para instituição de caridade por uma de doação de sangue. Nessa audiência, foi possível perceber que o conciliador pode inclusive fazer algo como uma “dosimetria da pena”, se entender que há merecimento do autor do fato. Essa proposta é formalizada como se tivesse sido uma contraproposta do autor do fato.

Em outra audiência de transação penal observada na pesquisa, por contravenção de exercício ilegal da profissão, um homem entrou na sala após ser feito o pregão. Foi oferecida a ele a proposta alternativa de pagamento de valor revertido em bens à instituição ou serviço comunitário. A parte então começou a explicar que exercia atividade de frete irregular, tendo sofrido certo dia uma abordagem policial. Na ocasião, o policial militar perguntou se o autor tinha licença para fazer o fretamento. Ao responder que não, o policial o conduziu até uma blitz do Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro (Detro-RJ). Depois da parte falar dos prejuízos sofridos por ter tido seu carro apreendido e do medo da quantia que teria de pagar no Jecrim, o conciliador disse: “Não vou fazer isso com o senhor, eu vou dar uma aliviada no senhor. Eu vou colocar o senhor para doação de sangue. Inca [Instituto Nacional do Câncer], Hemorio. Mas o senhor não pode chegar lá dizendo que é transação penal ou vão liberar o senhor. Aí dei uma aliviada no senhor”.

Esse mesmo aspecto da distribuição de penas e do julgamento produzido pelo conciliador pode ser observado na narrativa de duas audiências ocorridas uma seguida da outra. Em ambos os casos, há a semelhança da existência de relações prévias (parentesco) entre as partes envolvidas no conflito. O primeiro era uma briga entre o ex-marido da filha e o marido da mãe. Já havia ocorrido audiência de conciliação, sendo aquela segunda audiência a de oferecimento de transação penal. O autor do fato feriu a vítima com uma faca, sob a justificativa que ela o havia chamado de “boi”, e o caso foi classificado como lesão corporal leve. O conciliador pegou o termo da proposta de TP anexada ao processo, em que constava a proposta de pagamento de cesta básica no valor de R$ 440,00 ou a prestação de serviços comunitários por dois meses, durante seis horas semanais. O conciliador leu o procedimento todo e, em certo momento, perguntou ao autor do fato se ele havia lesionado a vítima com faca, ao que o autor do fato respondeu que não. Ao final, ele aceitou a prestação de serviços comunitários. Depois do término da audiência, o conciliador declarou que perguntou sobre o ocorrido, pois pensou em “dar doação de sangue para ele”, mas, como o autor do fato havia mentido, dizendo algo em contrariedade com o laudo do Instituto Médico Legal (IML) e com as declarações das vítimas, não proporia essa alternativa.

No segundo caso, a lesão foi praticada pelo marido da filha contra o ex-marido da mãe. No termo constava que o autor do fato havia atacado a vítima a pauladas, sendo a agressão interrompida pela Polícia Militar. Mas na audiência de transação penal o autor do fato narrou que a vítima tinha agredido sua esposa (então enteada da vítima) meses antes, com socos, levando-a ao hospital com sérios ferimentos. Mostrou, inclusive, vídeos registrados pela gravação do sistema interno de vídeo instalado na padaria da família. O autor do fato descreveu que passava de carro quando avistou a vítima, o então agressor de sua esposa, e, em uma “crise de raiva”, o agrediu a “pauladas”, exigindo que ele pedisse desculpas. Disse ainda que “só não matou porque a PM chegou e não deixou”. Nesse caso, o conciliador ofereceu a doação de sangue para o autor do fato e, ao final do procedimento, o ajudou a procurar em sistemas informatizados notícias do caso da agressão sofrida pela esposa do autor do fato. O autor do fato até ficava perguntando se não valia seguir em frente - fazendo alusão a não aceitar a transação penal e deixar que o procedimento seguisse -, mas o conciliador o dissuadia, dizendo que ali “só pegava R$ 440,00”.

Nesse segundo caso, o autor do fato explicitou o desejo de aceitar a proposta de doação de sangue, mas decidiu pela cesta básica, considerando que havia feito uma tatuagem recentemente. Observa-se, a partir dessas descrições, que o conciliador, pautado em seu sentido de justiça, avalia o “merecimento” do autor do fato para apresentar a possibilidade de doação de sangue, uma medida em geral considerada mais “benéfica”.

Outro conciliador, durante a pesquisa, disse que “só de bater o olho no termo dá para ver a visão mais ampla do que pode ser aquilo, para depois se confirmar ou não a primeira leitura após ouvir as partes”. Essa descrição permite observar a importância do procedimento escrito na formação da opinião do conciliador sobre o fato e as partes do procedimento. Contudo, houve casos observados em que as partes sequer foram ouvidas por outros conciliadores, sob o argumento de que o responsável pelo caso já tinha lido tudo na dinâmica do fato inscrita no TC e, desse modo, não precisava ouvir mais nada.

A questão que se coloca, portanto, é a variação acentuada no comportamento dos conciliadores na condução de audiências. Entre as possiblidades, o conciliador ouve ambas as partes, apenas discute o procedimento com as partes, dando ênfase à renúncia ou então dá voz apenas à vítima. Em todas as audiências observadas o conciliador leu a dinâmica presente no TC. A diferença é que alguns deles fazem uma leitura dos autos e examinam provas eventuais atentamente. Certa conciliadora chegou a dizer que só de ver como as partes se comportam ao chegar ao espaço, após a apreciação do TC já sabe o desfecho da audiência.

Em uma audiência com um conciliador, ele ouviu apenas a vítima e disse que o que acontecia ali não era um julgamento e, portanto, não tinha de ouvir o autor do fato. Nesses casos não se discute a narrativa dos fatos, mas tão somente o procedimento para o encerramento do conflito. Assim sendo, em muitas audiências de conciliação é como se se discutisse a forma, mas não o conteúdo, o procedimento, mas não a substância. O conflito social, longe de ser explicitado para ser administrado, é resolvido institucionalmente, a partir de questionamentos feitos pelo conciliador sobre as providências processuais que podem ser tomadas. A pergunta “Quer renunciar ou prosseguir?” é representativa desse modo de fazer.

- Você sabe que temos uma audiência preliminar, né? Podemos até fazer um encerramento do procedimento. Ninguém quer anotação em ficha nem se prejudicar, para uma certidão ou o que for. O fato se deu em julho? Faz muito tempo? Daqui a pouco vem Papai Noel aí. Quanto ao fato, haveria possibilidade de a gente encerrar o procedimento? Fala para mim que eu vou te ouvir. Se necessário, escuto a outra parte. A pessoa que tem hombridade pede desculpas e diz que foi um momento. Isso pode acontecer à vida de qualquer um, um acontecimento que leva ao registro em delegacia. Às vezes chega à audiência preliminar [e] a pessoa já pensou bem, tem a condição moral de pedir desculpas e deixar para lá. Vamos ver o que a gente resolve. (Conciliador)

- Infelizmente acho difícil. A briga começou pela área comum do prédio, ofensas pela internet e até ameaças. Eu me dou muito bem com a mãe dele. São pequenos detalhes que poderiam se resolver de outro modo em conversa e não foram. (Vítima)

- E depois disso aconteceu mais algo? Teve outro registro? (Conciliador)

- Sim, e com testemunhas. (Vítima)

- O senhor acha que de momento é impossível fazer uma conciliação? (Conciliador)

- Sim. (Vítima)

- Eu vou entregar de momento os três termos. (Conciliador)

- Tudo bem. Agora assim. Eu não tenho direito nem de me expressar nem nada? (Autor do fato)

- Peraí um momentinho. Não passei a palavra para o senhor. Fica um pouco calmo, por favor. Não é para ficar nervoso, ninguém aqui vai decidir nada. (Conciliador)

[O conciliador explica o autor do fato sobre os termos de testemunha]

- O cartório vai fazer a juntada a esse procedimento e vai enviar ao Ministério Público, que virá com a promoção dele. Tudo entendido? Deixa eu fazer sua ata para você assinar. (Conciliador)

- E a minha versão, como fica? Porque até então vocês só estão escutando ele. (Autor do fato)

- Deixa eu explicar ao senhor.: aqui não é julgamento, aqui não é julgamento. Aqui é uma audiência preliminar de conciliação. Aqui é para escutar, expor os fatos. A suposta vítima pode encerrar; o suposto autor do fato não pode chegar aqui e encerrar. Se o autor do fato não estiver satisfeito com a manifestação de vontade que a vítima quis acabar, você vai na delegacia. (Conciliador)

- Minha dúvida não é essa. (Autor do fato)

- Deixa eu falar, o senhor não pediu para eu explicar? [disse gritando] O senhor vai ter direito de falar na audiência de instrução e julgamento, no momento oportuno. O senhor trará o advogado ou defensor público. Não tenho de te escutar porque não vou julgar nada, quem vai decidir é o Ministério Público agora. Agora o senhor pode falar. (Conciliador)

- Pensei que podia falar alguma coisa. Ele faz orgias no apartamento. (Autor do fato)

- O senhor deixa para falar quando estiver na instrução e julgamento. (Conciliador)

- Falsa acusação é crime. (Vítima)

- [Conciliador falando para vítima]: Se tiver alguma ponderação, pode ir à delegacia, se sofreu alguma injúria. (Conciliador)

- [Conciliador para autor do fato]: Aqui ninguém discute, não é para isso. Aqui é uma audiência de conciliação, é para conversar. A justiça dá essa possibilidade. Daqui para frente, ter um processo judicial vai prejudicar você e ele. Porque mesmo que não dá nada, não vai ser preso, vai ficar anotação na ficha. Amanhã ou depois precisa tirar uma certidão para qualquer coisa, vai ficar lá, respondeu a processo criminal no Jecrim. Se eu tiver de escolher um “nada consta” ou alguém envolvido em justiça, vou escolher o nada consta. Por isso, nessa audiência preliminar pode entrar num acordo e acabar, até porque se daqui a alguns dias tiver algum problema, pode ir na polícia de novo. (Conciliador)

Uma das técnicas que se usa para produzir a conciliação é a corroboração ou validação de sentimentos, conforme declarou um dos conciliadores. Durante a audiência de conciliação, segundo ele, “se utiliza essa técnica para se chegar ao denominador comum, ao objetivo do procedimento”. Esse objetivo seria não permitir a judicialização da demanda, desafogando o Judiciário.

O método que o conciliador diz usar para conciliar, como mencionado, é apaziguar os ânimos, validar sentimentos. Ele argumenta nas audiências algo como: “O senhor ou senhora não acham que estão aqui por motivo banal?”. Esse mesmo conciliador contou, na entrevista, o caso de uma relação de amizade de 30 anos em que as partes tiveram uma briga, sendo o fato registrado como vias de fato (contravenção penal, mas delito processado mediante representação da vítima). O conciliador disse ter tomado cuidado ao perguntar se jogariam fora 30 anos por um “contratempo”, sempre minimizando o ocorrido. Geralmente, nesses casos, tudo depende da forma como a audiência é conduzida. As partes, em situações como a narrada, acabam renunciando, como observado pelo conciliador. Isso é algo já esperado por ele: “O como se conduz é o poder de decisão do conciliador. (...) Se vejo que o problema que as trouxe aqui é banal, eu tento fazer as pessoas enxergarem isso”. Como observou um conciliador, eles precisam ter o feeling de sentir as partes e o problema que as levou ao Jecrim. Após isso, ele diz barganhar e “tentar abrir os olhos das pessoas”, pronunciando frases como: “Você acha que isso é motivo suficiente para parar aqui?”. Há situações, contudo, que são “inconciliáveis”: “Há coisas que se fica abismado”.

Quando se valida sentimentos e se busca um perdão, fazer as partes perceberem o que estão fazendo e se perdoarem, abandonando a rusga, é o objetivo do conciliador: “A gente faz o mesmo exercício que o juiz faz. Há procedimentos que são inapeláveis”. A ocorrência de uma mulher que foi filmada por baixo da saia é um exemplo. Um homem de mais de 50 anos foi flagrado filmando por baixo da saia de uma mulher no ônibus. A situação foi vista por um terceiro e o motorista do ônibus foi para a delegacia, onde o fato foi registrado. O conciliador disse que, com esse procedimento, foi a primeira vez que pegou uma transação penal maior que meio salário mínimo. Em casos como esse, ele apenas pergunta à vítima se ela deseja prosseguir ou renunciar. Faz então a validação dos sentimentos apenas quanto à vítima, concordando com os argumentos que ela declara. Geralmente ela diz que deseja prosseguir e explica o porquê.

O julgamento do conciliador, de modo indireto, tem relação com a decisão de se o autor do fato merece ter o procedimento encerrado ali ou receber uma eventual transação penal, representada muitas vezes, conforme descrito na citação anterior, como uma punição. Isso pode ser observado a partir da descrição de formas contrastantes de administrar conflito. De acordo com as declarações do conciliador, na passagem da amizade de 30 anos, validar os sentimentos, minimizar o litígio e reforçar a importância das relações prévias pode facilitar o perdão, a reconciliação e o encerramento do conflito, resultando no retorno das pessoas à sociedade e na retomada da “paz social”. No caso da importunação ao pudor, há um conjunto probatório robusto, de um fato grave, em que se abre a palavra para autor do fato e vítima, mas não se usa mais essa técnica de reconciliação das partes, apenas se pergunta qual a decisão de ambos sobre o procedimento: prosseguir ou renunciar.

Em um terceiro fato, uma mulher de aproximadamente 70 anos de idade desferiu um tapa na face de uma criança de oito anos. Ela havia justificado que falara com a menina, desconhecida, e ela não havia respondido, tendo assumido tudo o que fez durante a audiência. Nesse caso, o conciliador usou como estratégia levar a autora do fato a assumir seu erro. Durante todo o ritual, ela reconheceu que havia feito algo errado e pediu desculpas. Para o conciliador, “isso tem um peso”. Os pais da vítima tiveram seus sentimentos validados pelo conciliador, que disse ficaria revoltado com a atitude também. Logo em seguida, o conciliador salientou que a autora do fato havia reconhecido o erro e pedido perdão, podendo, desse modo, haver ali uma conciliação. “A atitude de confessar foi digna da parte dela”. Vale destacar, pensando nos contrastes, que nesse terceiro caso a autora do fato reconheceu seu erro e pediu perdão. Sobre a situação da importunação ofensiva ao pudor, o conciliador disse que mesmo se o autor do fato pedisse perdão ele se sentiria revoltado e indignado caso a vítima o perdoasse e renunciasse. A diferença entre os dois foi, principalmente, o fato de a senhora ter confessado, apesar da gravidade do que fez.

Esses três casos representam formas distintas de tomada de decisão que levam em conta a relação prévia entre as partes, a gravidade do fato e a análise do conteúdo probatório. Como disse um conciliador, “O poder decisório do conciliador é isso”. Em um deles se faz a validação de sentimento, se diz que vítima e autor do fato deveriam perdoar. No outro, o conciliador ouve ambas as partes, mas nada que o autor do fato dissesse adiantaria. Tratava-se de procedimento “inapelável”, como disse o conciliador, ou seja, em que estão presentes no processo todos os meios de prova (laudos, depoimentos, provas documentais com fotos) e se discute um fato avaliado como grave. De certo modo, pode-se observar que o conciliador julga as provas e a gravidade dos fatos: “Diante de tudo que consta no processo, fico até constrangido de tentar algo. Tudo depende do que consta nos autos”.

Conclusão

A cultura político-jurídica brasileira é marcada pela representação negativa do conflito, que o toma como dissociativo. Seu imaginário é de distopia e crise. Nela, encontramos marcas do iberismo e do holismo, em que a integração e harmonia social prevalecem sobre apetites individuais e as posições hierárquicas são mais rígidas e de difícil mobilidade. Essa representação coloca os atores institucionais na posição de avocarem para si a tarefa de resolver o conflito, ou melhor ainda, fazê-lo desaparecer.

Nesse contexto, a ideia de cidadania, longe da plenitude de seu tipo ideal, tem marcantes deficiências. A população carece amplamente do reconhecimento de seus direitos, especialmente os civis e os sociais. Nesse sentido, e muito orientado pelas explicitadas interpretações do Brasil, o legislador constituinte de 1988 aposta amplamente no Judiciário como garantidor e expansor de direitos da cidadania por meio do acesso à justiça. Em outras palavras, a ideia de acesso à justiça é central para a construção de uma cidadania ampla. Criar instrumentos jurídicos que o garantam, contudo, é meio caminho, se não o dotarmos de efetividade no reconhecimento das pessoas e suas demandas.

Há uma perspectiva de regulamentação do conflito e violências do cotidiano a partir de sua incorporação e administração pelo Judiciário. Os Juizados Especiais Criminais poderiam ser uma iniciativa fortalecedora da cidadania, promovendo que os conflitos, antes resolvidos informalmente ou preteridos, por estarem no mesmo juízo que crimes de alto potencial ofensivo, como latrocínios, tenham um espaço institucional para a sua administração. Embora o Judiciário se abra para a recepção da conflitualidade cotidiana, não é tão permeável ao diálogo entre as partes nem ao exame da questão em sede processual propriamente dita. Desse modo, quando o conflito é institucionalizado e é realizada uma “audiência de conciliação”, isso não implica necessariamente o reconhecimento do “cidadão” e ele ter experimentado uma justiça ampla. Se a instituição dos Jecrims implicaria a ampliação da cidadania, sua realização deficitária mantém o indivíduo como um cidadão não realizado.

Acesso à justiça não é mero acesso ao Judiciário, mas a uma prestação jurisdicional efetiva, que atenda as expectativas das partes quanto ao reconhecimento de sua identidade e direitos e à resolução dos seus conflitos. Em outras palavras, não existe acesso à justiça sem a resolução real do conflito. Nesses casos há acesso ao Judiciário, mas não à justiça em si. Ao impedir o entendimento mútuo entre as partes, interdita-se a realização de uma justiça ampla.

A maior parte dos conflitos é resolvida na fase ritual presidida pelo conciliador. As partes procuram a delegacia ou diretamente o Jecrim para a satisfação de uma série de interesses, entre eles a procura da “autoridade” para a composição do litígio ou a intervenção em aspectos de uma relação previamente constituída. Os conciliadores dizem, muitas vezes, fazer algo semelhante ao que o juiz faz. A posição institucional de presidir uma audiência, em diversos casos, os faz se perceberem em um lugar de poder, que os atribui a faculdade de até convocar a Polícia Militar, caso sejam “desacatados”. Em consequência disso, alguns conciliadores assumem uma posição tutelar quanto às partes, durante as audiências, podendo fazer aconselhamentos de toda ordem.

Se, por um lado, o Estado é procurado como o ator que pode solucionar o conflito ou resolvê-lo, é também temido como possível deflagrador de danos para todas as partes. Com esse discurso, os conciliadores se colocam na posição de “fazer justiça” e de fazer o que o juiz faz, mas também de atores que, para impedirem que o conflito chegue às mãos dos atores judiciários propriamente ditos, operam com todos os temores que a instituição pode deflagrar no indivíduo.

Os conciliadores buscam resolver o conflito antes deste chegar aos juízes e, muitas vezes, as partes ficam amedrontadas quanto às consequências imprevistas daquele procedimento que ocorre em sede institucional. Nesse sentido, autores de fato e, algumas vezes, até as próprias vítimas que levaram o conflito para ser administrado no Judiciário, acabam por desistir do procedimento, renunciar ou estabelecer um acordo, fugindo, desse modo, da tutela do Estado.

O Jecrim é um espaço de múltiplos sentidos. Em seu estudo, é possível se observar universos significativos e sentidos de justiça contrastantes, em que o conciliador está buscando “fazer justiça” com brevidade e reduzir os procedimentos que chegam ao Judiciário propriamente dito (juiz). Já as partes estão em busca de reconhecimento de direitos, de vingança e do valor simbólico de resolver conflitos no Judiciário, apesar do aparentemente contraditório receio quanto aos perigos possivelmente envolvidos de se estar em um ambiente institucional.

Os conciliadores acreditam estar produzindo consensos com suas práticas. A divergência está nos significados da ideia de consenso: não se trata aqui de uma ideia pautada na de entendimento mútuo, mas de outra forma de o significar. A prática obsta a produção do diálogo e a explicitação do ressentimento, sob o argumento que a sala de audiência não seria lugar para “bate boca” ou lavar “roupa suja”. Isso torna, muitas vezes, a audiência de conciliação um mero procedimento de desinstitucionalização.

O conciliador, em suas práticas, afeta as partes. Um dos modos pelos quais isso se dá é a condução da audiência, especialmente quando o conciliador instrui a vítima a renunciar. Os conciliadores tomam decisões, fazem julgamentos sui generis. Eles têm, nesse sentido, formas de julgar informadas por seus sentidos de justiça, suas moralidades. Isso guarda correlação com o uso da palavra nas audiências, ou seja, com quem pode falar em uma conciliação.

Em muitas audiências de conciliação, é como se discutissem a forma, mas não o conteúdo, o procedimento, mas não a substância. O conflito social longe de ser explicitado para, desse modo, ser administrado, ele é resolvido institucionalmente, a partir de questionamentos feitos pelo conciliador sobre as providências processuais que podem ser tomadas. A pergunta “Quer renunciar ou prosseguir?” é representativa desse modo de fazer. Observa-se, a partir dessa descrição, que o conciliador, pautado em seu sentido de justiça, avalia o “merecimento” do autor do fato para o oferecimento, por exemplo, de doação de sangue, medida considerada por ele mais “benéfica”.

Destarte, no Brasil, o direito legal possibilita que uma série de conflitos sociais sejam judicializados. Assim sendo, desde que possam ser enquadrados em leis penais incriminadoras, conflitos/violências do cotidiano considerados de pequena gravidade encontram no Judiciário, especificamente no Jecrim, um espaço institucional para sua administração. Isso integra um movimento conhecido como judicialização da vida. De outra parte, algumas audiências parecem priorizar renúncias ao procedimento e ocorrem conciliações/transações nem sempre satisfatórias para o estabelecimento do diálogo e a harmonização do tecido social. Em outras palavras, se, por um lado, o Judiciário abre as suas portas para que os cidadãos o busquem, visando à solução de seus conflitos sociais, por outro, certas práticas “encerram” conflitos, devolvendo sua (não) administração à esfera extrajudiciária.

  • 1
    Trabalho de campo realizado para a produção da tese de doutorado do autor, defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em 2020.
  • 2
    Por razões éticas e com o objetivo de proteger a identidade dos meus interlocutores, optei por não identificar o Jecrim em que fiz o trabalho de campo e por não explicitar os nomes dos atores com quem interagi e/ou que entrevistei.).
  • 3
    Equivalente a meio salário mínimo, no valor vigente à época da realização do trabalho de campo.

Referências

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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2021
  • Aceito
    15 Mar 2022
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