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Críticas ao ‘gato’ e o ‘gato’ como crítica: um estudo etnográfico das insinuações realizado a partir da eletricidade na Favela Santa Marta, no Rio de Janeiro

Critique of the ‘Gato’ and the ‘Gato’ as Critique: an Ethnographic Study of the Insinuations about Electricity on the Santa Marta Favela in Rio de Janeiro

Resumo

Este artigo objetiva analisar as críticas à instalação clandestina de energia elétrica - conhecida como “gato” - e como ela pode ao mesmo tempo ser pensada como crítica, partindo da observação etnográfica da troca de acusações entre moradores da Favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, e agentes da concessionária de energia elétrica Light, na era das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Observou-se a predominância dos dois lados da insinuação de fraude, uma acusação velada de roubo - de energia de um lado, de dinheiro do outro. A relação entre prestadora e clientes persiste entre o pagamento da conta supostamente abusiva e a tolerância ao “gato” supostamente praticado pelos moradores.

Palavras-chave:
crítica; insinuação; favela; UPP; ilegalismos

Abstract

This study aims to analyze the critiques of the clandestine installation of electricity - known as “gato” - and how it can simultaneously be thought of as criticism. We do so by deploying an ethnographic observation of the exchange of accusations between residents of the Santa Marta favela in Rio de Janeiro and agents of the electricity company Light during the time of the Units of the Pacifying Police. We found a predominance, in both sides, of the insinuation of fraud, a veiled accusation of theft - of electricity on the one hand and of money on the other. The relationship between service providers and customers persists between the payment of supposedly abusive bills and the tolerance of the “gato” allegedly practiced by residents.

Keywords:
critique; insinuation; favela; UPP; illegalisms

Introdução

Este artigo analisa uma forma específica de crítica, a insinuação, aquela feita de forma velada - ao se apenas sugerir que algo errado foi feito ou que alguém o fez -, no âmbito da relação entre uma empresa concessionária de serviço público e a população de uma favela, no contexto de uma política pública de segurança. Isso é feito por meio da observação etnográfica das críticas trocadas entre moradores da Favela Santa Marta, em Botafogo, Rio de Janeiro, entre 2011 e 2015 - época do auge das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) -, e a Light, companhia responsável pelo fornecimento de energia elétrica, relativamente à prática conhecida como “gato” - o furto de energia por meio de instalações clandestinas.

Por um lado, trata-se de olhar para as insinuações de parte a parte (da empresa, de furto de energia pelos moradores; dos moradores, de fraude na cobrança pela empresa) como crítica expressada - como chamou Hirschman (1973HIRSCHMAN, Alfred. Saída, Voz e Lealdade: reações ao declínio de firmas, organizações e Estados. São Paulo: Perspectiva, 1973.), crítica voz (voice) -. De outro, trata-se de ao mesmo tempo levar a sério o “gato” como uma manifestação crítica, implicitamente manifestada na ruptura de relação - crítica de saída (exit) para Hirschman - na medida em que ele propicia uma retirada viável, isto é, uma resposta ao monopólio da Light, na forma de um ilegalismo (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, Michel. La société punitive: cours au Collège de France 1972-1973. Paris: Seuil;Gallimard, 2013 [1972-1973]. [1972-2913], 2014 [1975]).

O objetivo, então, é compreender um tipo de crítica, isto é, uma comunicação ao(s) outro(s) sobre o estado de insatisfação relativamente a alguma situação, destacando a chamada por Boltanski e Thévenot (1999BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. “The Sociology of Critical Capacity”. European Journal of Social Theory, Paris, vol. 2, n. 3, pp. 359-377, 1999.) de momento crítico, aquele em que os atores suspendem a rotina e buscam efetivar essa admoestação. Nos termos dos autores (1999, p. 359):

[A] pessoa que se dá conta de que algo não está funcionando raramente permanece em silêncio. Ela não guarda seus sentimentos para si. O momento em que se dá conta de que algo não está funcionando é, na maioria das vezes, aquele em que percebe não poder mais suportar esse estado de coisas. A pessoa deve, por essa razão, expressar descontentamento em relação às outras com quem estivera desempenhando, até então, uma ação conjunta.

E essa análise se dá em um contexto no qual, como disse, abundam ilegalismos - isto é, práticas ilegais na letra da lei, mas em geral toleradas -,que são comparados com as “formas formais” de se criticar expressadas por análises de uma sociologia da crítica e da moral (BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme competence. Paris: Métailié, 1990.; BOLTANSKI e THÉVENOT, 1999, 2020 [1991]; ; WERNECK, 2023WERNECK, Alexandre. “Is There Such a Thing as Moral Phenomenon, or Should We Be Looking at the Moral Dimension of Phenomena?”. In: HITLIN, Steven; LUFT, Aliza; DROMI, Shai (orgs.). Handbook of the Sociology of Morality. vol. 2. Londres: Nova York: Springer, 2023. No prelo.; WERNECK e LORETTI, 2018). Além disso, o quadro da análise é pensado como um efeito da chegada das UPPs, de modo que não podemos entender as críticas ao processo de regularização de energia e este como crítica aos hábitos de consumo dos moradores dessas localidades sem pensar sobre a política de “pacificação de favelas”. O programa, iniciado em 2008/2009 e que seguiu plenamente ativo até 2018 - ganhando uma nova versão em 2023 - consistiu na instalação de efetivos policiais fixos em unidades no interior de favelas, estabelecendo uma espécie de “policiamento de proximidade”, que teria como objetivo maior reduzir a letalidade derivada dos confrontos armados entre traficantes (e entre estes e policiais), em uma suposta tentativa de “pacificar” o ambiente (e a própria relação entre policiais e moradores de favela). Isso implicou, ainda, o acesso do Estado (e do mercado) àquele ambiente para além do policiamento, de modo que vários produtos e serviços passaram a ser formalizados ali - e sua utilização informal (até aquele momento rotineira naquelas localidades) passa a ser claramente ilegal. Assim, para fins deste artigo, afirma-se que a instalação de tal aparato possibilitou, entre outras, a formalização das redes elétrica e de água. Como observado por Marcia Leite (2015LEITE, Márcia da Silva Pereira. “De territórios da pobreza a territórios de negócios: dispositivos de gestão das favelas cariocas em contextos de pacificação”. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE, Márcia; MACHADO, Carly; CARNEIRO, Sandra. Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV, 2015. pp. 377-401., p. 626)1 1 O projeto expandiu-se, contabilizando um total de 38 unidades. Para um panorama do programa, ver o dossiê publicado em Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 8, n. 1, 2015, no qual autores estudiosos do tema discutem os sentidos da pacificação. Entre os estudiosos de favelas, é comum o uso do termo “pacificação” assim, entre aspas, porque há todo um debate questionador do conceito adotado na política da Secretaria Estadual de Segurança Pública. Por essa razão, o termo é encarado como uma categoria a ser investigada tanto por antropólogos quanto por sociólogos. Nesse sentido, tomo como premissa o fato de haver uma UPP na história da Santa Marta e de ela ter servido como forma de instauração da relação de fornecimento de um serviço aqui analisada. :

o programa foi sendo criado ad hoc. Por meio de um decreto-lei, de número 41.650, de 21/01/2009, o governo criou a UPP na estrutura da PM. Até então o estado não se referia a uma “polícia pacificadora” ou a uma “força de pacificação”, mas a uma polícia ou a um policiamento de proximidade por meio das UPPs.

Aqui, os ilegalismos se opõem à cidadania quando esta é pensada como um efeito de poder, um dispositivo de controle do Estado, que implica uma sujeição ou assujeitamento às regras de convivência social. Como sugeri em outro trabalho (LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 122),

[a] ideia de ilegalismo, conceito foucaultiano utilizado de maneira intensiva por Telles e Hirata para analisar a sociabilidade urbana nos mercados informais de São Paulo, permite compreender que nas tramas de uma grande cidade, as nuances entre os sistemas legal e ilegal atravessam as relações de produção e circulação de bens, confundindo a todos. Uma mesma pessoa pode no mesmo dia atravessar essas fronteiras sem ao menos se dar conta ou problematizar esse fato. Os autores, então, indagam-se sobre o modo como os ordenamentos sociais se associam aos jogos de poder e explicitam disputas capazes de delimitar a transitividade entre o legal e o extralegal, considerando a porosidade das demarcações dos mercados informais, produzindo um instigante relato sobre as nuances da trama entre a ordem e a desordem dos ilegalismos difusos inscritos nas mobilidades laterais.

Mais centralmente, a análise tira proveito de uma matriz formal de análise da “forma-crítica” (WERNECK, 2015WERNECK, Alexandre . “‘Dar uma zoada’, ‘botar a maior marra’: dispositivos morais de jocosidade como formas de efetivação e sua relação com a crítica”. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 58, n. 1, pp. 187-221, 2015., 2016) proposta por um colega e por mim (WERNECK e LORETTI, 2018). Segundo Werneck (2015WERNECK, Alexandre . “‘Dar uma zoada’, ‘botar a maior marra’: dispositivos morais de jocosidade como formas de efetivação e sua relação com a crítica”. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 58, n. 1, pp. 187-221, 2015., 2016), é possível observar a crítica como dispositivo dissecável em seus vários elementos, componentes de uma forma formal e em suas várias dimensões actanciais, o que permite compreender os eixos relevantes para se efetivar uma crítica e mapear uma matriz geral de sua construção. Em nosso esforço conjunto, chegamos a uma matriz (Quadro 1) composta por 15 variáveis de caráter formal distribuídas em três dimensões - metamoral, estética e lógica - em que diferentes combinações de valores dessas variáveis (de dimensões variadas) caracterizariam diferentes tipos e protocolos críticos.

Como é possível depreender, a variável mais relevante aqui em jogo será o grau de explicitação: o jogo entre críticas explícitas e insinuadas foi o elemento central da querela aqui analisada. Ela se deu no horizonte da instauração de uma nova relação mercantil entre os dois personagens observados - os moradores da Favela Santa Marta e a Light, relação que pode ser descrita como de fornecimento, aquela fundada no imperativo de oferta de um bem de um lado para outro (HIRSCHMAN, 1973HIRSCHMAN, Alfred. Saída, Voz e Lealdade: reações ao declínio de firmas, organizações e Estados. São Paulo: Perspectiva, 1973.).

Na esteira do programa de segurança pública implementada em Santa Marta e no restante do Rio de Janeiro, a promessa governamental passou a incluir a integração das favelas às políticas públicas urbanas pensadas para toda a cidade - com um discurso proclamado como de transformações referente a representações como a “metáfora da guerra” (LEITE, 2001LEITE, Márcia Pereira. Para além da metáfora da guerra: percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca. 2001. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.) ou a “cidade partida” (morro versus asfalto) (VENTURA, 1994VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.). Nesse sentido, a chegada da Light prometia aos moradores o acesso a mais um serviço urbano regularizado e com a mesma qualidade do oferecido ao “asfalto”, além de contribuir para a sua “conversão cidadã”, tendo em vista a história secular que colocava esses territórios em desvantagem e sua população à margem das cidades.

Quadro 1:
Matriz de dimensões formais da crítica

A promessa de integração e cidadania, então, inicialmente animou os habitantes, que acreditaram que o reconhecimento de seus direitos básicos, a exemplo de moradia, acesso à água e esgoto, bem como à rede elétrica os beneficiaria integralmente. Além disso, imaginaram que pagariam um valor ajustado à realidade de sua renda. Não foi o que se observou, entretanto, como mostrei em mais de uma oportunidade (LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.; WERNECK e LORETTI, 2018WERNECK, Alexandre; LORETTI, Pricila. “Critique-Form, Forms of Critique: The Different Dimensions of the Discourse of Discontent1”. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 3, pp. 973-1008, 2018.), e um conflito se estabeleceu entre as partes. A regularização do fornecimento de energia na favela implicava o estabelecimento de uma relação comercial na qual parte da população que antes da presença da UPP acessava o serviço por meio das chamadas “gambiarras” ou ligações clandestinas, dos “gatos”, passou à condição de cliente da Light. Ao controlar as perdas energéticas, um mercado rentável se apresentava, portanto, à concessionária. Para o morador a possibilidade de reconhecimento de sua cidadania lhe foi dada a partir de uma lógica de mercado que, segundo eles diriam posteriormente, não considerou sua condição econômica, porque, como veremos, os valores cobrados pela energia acabaram por se mostrar insustentáveis, o que iniciou a onda de críticas dos dois lados.

* * *

Segundo o modelo das economias da grandeza (EG), proposto por Luc Boltanski e Laurent Thévenot (2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: UFRJ, 2020 [1991]. [1991]) para operacionalizar uma sociologia pragmática da crítica (BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme competence. Paris: Métailié, 1990., 2011 [2009]), quando pessoas se encontram envolvidas em uma disputa (como a instaurada no Morro Dona Marta), estão sujeitas a críticas e submetidas ao imperativo de justificação. Tomando-se como base um modelo fundado na accountability social (SCOTT e LYMAN, 2008SCOTT, Marvin B.; LYMAN, Stanford. “Accounts”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, pp. 139-172, 2008.), esse imperativo é pelo menos de prestação de contas. Assim, quem faz uma crítica precisa apresentar justificativas (isto é, argumentos em termos de justiça) para sustentar seu argumento contra a outra pessoa; e, por outro lado, quem a recebe precisa responder com um account adequado - que pode ser uma justificativa ou uma desculpa (WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: as circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.). É à luz dessa sociologia da crítica e da moral que busco investigar essa relação conflituosa entre a empresa e seus clientes.

Estamos diante, então, de mais uma variável determinante da matriz apresentada há pouco para o caso, aquela colhida diretamente da obra de Albert Hirschman (1973HIRSCHMAN, Alfred. Saída, Voz e Lealdade: reações ao declínio de firmas, organizações e Estados. São Paulo: Perspectiva, 1973.), a citada distinção entre crítica voz (voice) e de saída (exit). A tipologia proposta pelo autor pretende dar conta dos diferentes comportamentos (críticos) dos consumidores em relação a fornecedores diante de uma crise de fornecimento. O que está em jogo nessa distinção são as formas de manifestar a insatisfação. Nesse sentido, o ator social e a situação se moverão por intermédio de um de três caminhos: 1) a lealdade: a manutenção da relação independentemente da crise estabelecida (podendo, ainda, ser o resultado posterior da própria crise); 2) a voz (voice): a apresentação de uma crítica ao outro lado, exigindo-se uma melhoria por meio da ameaça de saída; 3) e a saída (exit): a ruptura da relação por parte do consumidor (insatisfeito com a prestação de serviço), o que será compreendido pelo prestador de serviço como crítica a seu fornecimento.

De um lado, a análise econômica busca explicar de que maneira a eficiência das firmas pode ser alcançada por intermédio das forças concorrenciais do mercado, expressada pela competência das pessoas para buscar melhores produtos, preços e salários em concorrentes mais eficientes. A questão de Hirschman é se essa mudança por parte dos usuários implicaria necessariamente a melhoria da empresa substituída. Em situações de monopólio, o que conta são, predominantemente, forças políticas e sociais como protestos e mobilizações dos consumidores, ou seja, a voz. Trata-se de manifestações críticas visando, se não rompimento, ao menos o tensionamento da relação. A lealdade permite postergar a opção saída, possibilitando ainda a manifestação dos mecanismos de voz. Em resumo: a crítica exit refere-se predominantemente a uma substituição do serviço ou bem ofertado pelo concorrente. Rumores (MENEZES, 2015MENEZES, Palloma. Entre o “Fogo Cruzado” e o “Campo Minado”: uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.), fofocas (FONSECA, 2004FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.), insinuações (LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.) e mesmo protestos radicais referem-se à crítica voice. São opções políticas distintas, mas correlacionadas.

Alguns autores (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009 [1999].; WERNECK, 2015WERNECK, Alexandre . “‘Dar uma zoada’, ‘botar a maior marra’: dispositivos morais de jocosidade como formas de efetivação e sua relação com a crítica”. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 58, n. 1, pp. 187-221, 2015.), entretanto, mostraram como a tese do economista ultrapassa os limites de sua disciplina para se oferecer como base de uma sociologia da crítica - podendo ser usada para analisar desde a relação entre os integrantes de um casal (WERNECK, 2012) até a relação entre cidadãos e o Estado (HIRSCHMAN, 2019HIRSCHMAN, Alfred. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 [1991]. [1991], LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Pois no caso de Santa Marta, estamos diante de uma relação literal entre consumidores e um fornecedor, mas com a peculiaridade de que nesse caso, como se trata de concessão, tem-se um monopólio do fornecimento de energia. Em uma situação na qual o consumidor pudesse buscar um novo fornecedor como substituto para um produto ou serviço com o qual estivesse insatisfeito, geralmente a crítica voice implica a empresa buscar compreender os argumentos fundamentadores da crítica e aplicar recursos para resolver a crise. Estaríamos diante de uma voice com a ameaça/intenção de exit (HIRSCHMAN, 2019 [1991]). Contudo, diante do monopólio de fornecimento de energia pela Light em boa parte da cidade do Rio de Janeiro, o cliente ficaria em uma relação de dependência, sem a possibilidade de saída, ao menos de uma formalizada, moral e legalmente aceita. Assim, a acusação de cobrança de preços considerados abusivos é uma expressão de voz que, mesmo justificada com argumentos, tem pouco potencial de ressonância nos ouvidos da empresa. Resta a ela a exit ilegal, o rompimento de relação com a Light para estabelecer um “gato”. À empresa, como justificativa diante das críticas aos valores cobrados, mobiliza uma outra crítica voice: a de que esses valores resultam justamente do furto de energia, que encareceria o valor do kWh.

O processo de formalização da rede elétrica e o novo sistema digital

Analisei o processo de regularização dos serviços de energia elétrica como um dos elementos do contexto das políticas públicas implementadas nas “favelas pacificadas” a partir do estudo de caso na Favela Santa Marta. Até aquele momento, além do usufruto diversas ligações clandestinas, muitos moradores recebiam um benefício automático concedido à população de baixa renda, a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), encerrado em 2010, pelo Governo Federal, para atualizar o cadastramento populacional com base no Cadastro Único (CadÚnico) e no Número de Identificação Social (NIS). O benefício consistira, até ali, em atribuir descontos por faixas de consumo, o que não garantia sua limitação apenas a quem realmente se enquadrasse nas linhas de corte por faixa de renda - o TSEE havia sido criado em 2002 para populações de baixa renda, indígenas e quilombolas, mas na prática não se impedia que cidadãos fora dos critérios estabelecidos por lei conseguissem descontos, bastando não consumir ou consumir pouco. A partir da mudança, realizou-se o recadastramento dos clientes de acordo com sua comprovação de renda.

Com a chegada da UPP, muitos moradores sentiram-se enganados pelos governos, porque apesar de os dados confirmarem o declínio de mortes violentas derivadas de operações policiais, nos primeiros meses de instauração da UPP na Santa Marta, a promessa de uma política de integração foi amplamente questionada no morro, notadamente pela militância. Sobre os dados a respeito da redução da letalidade policial no Rio de Janeiro, o Gráfico 1 permite comparar o “antes” e o “depois” da instalação das UPPs:

Gráfico 1:
Mortes por intervenção de agentes do Estado em UPP meses antes e depois de sua ocupação

Foi nesse contexto que Light anunciou, por meio de seu Projeto Comunidade Eficiente (PCE), um aumento progressivo nas contas de energia elétrica. À medida que os meses passaram, o preço cobrado pelos serviços públicos tornou-se inviável para uma parcela expressiva dos moradores. Alguns deles começaram a pensar em saídas econômicas para não ter que deixar o território.

Esse quadro inaugurou uma onda de críticas públicas (LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.; WERNECK e LORETTI, 2018WERNECK, Alexandre; LORETTI, Pricila. “Critique-Form, Forms of Critique: The Different Dimensions of the Discourse of Discontent1”. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 3, pp. 973-1008, 2018.), que teve continuidade nas chamadas “Jornadas de Junho”2 2 Para uma síntese, ver Werneck (2019). , em 2013, quando tiveram lugar manifestações em todo o país sobre diferentes assuntos da agenda pública, entre os quais preços abusivos cobrados por empresas de eletricidade.

À época, com uma população de cerca de 6 mil moradores e com 1.593 moradias dispersadas em uma área de 54 mil m2, a conhecida Favela Santa Marta, ou simplesmente Morro Dona Marta, foi, depois da instalação da primeira UPP, mapeada pela Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) e passou a ser vista como um ambiente controlado. Com seus becos e suas vielas estreitos e labirínticos, contém algumas especificidades: é muito próxima ao “asfalto” no bairro de Botafogo, e seu acesso por carro é limitado. Como parte de um cenário emblemático do noticiário policial há muito tempo, por conta das disputas entre facções de traficantes e a polícia - notadamente por conta do medo da “bala perdida” nas proximidades externas à favela -, constituía-se como um desafio para a corporação militar, que a percebia como um território de difícil acesso por seu alto índice de letalidade em confrontos armados. Ademais, o morro tem um terreno inclinado em relação às ruas de Botafogo e como forma de torná-lo acessível foi instalado um funicular (ou plano inclinado)3 3 Ao mesmo tempo, isso pareceu facilitar a realização de eventos contando com a presença de ilustres autoridades da cena política, sejam atores da própria favela, governantes, empresários, pesquisadores universitários, sejam turistas e vizinhos de Botafogo. . Sem a necessidade de subir a escadaria que dá acesso às suas cinco estações - são 788 degraus até o topo -, a instalação dos serviços também se tornou mais viável.

Foi sobretudo no contexto político no qual foram implantadas as UPPs que a imagem da guerra ao tráfico de drogas e da violência policial foi relegada a um segundo plano para dar lugar a novas formas de representações sociais e dinâmicas de vida no ambiente das favelas (MACHADO DA SILVA e LEITE, 2008MACHADO DA SILVA , Luiz Antonio; LEITE, Márcia da Silva Pereira. Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.; MACHADO DA SILVA e MENEZES, 2019 ). Com a chegada da “polícia de proximidade”, a Santa Marta não apenas passou a ser uma experiência-piloto dos poderes públicos e das pesquisas de mercado, como também passou a ser vista como laboratório de pesquisas sociais. Assim, é a partir dos efeitos dessa política de segurança pública, implementada primeiramente nessa localidade, que passei a observar as novas dinâmicas de ordenamento e as transformações urbanas do espaço social de favelas da Zona Sul. Pois uma dessas operações de integração e consequente reconfiguração de relações sociais consistiu justamente na revisão e formalização do fornecimento de energia elétrica, que na maior parte do Rio de Janeiro é feita por concessão pública à Light e à Enel, empresas privadas de longa história de fornecimento desse recurso no estado.

Vários foram os efeitos dessa regulamentação. Por exemplo, a partir dela, os moradores passaram a contar com endereços rastreáveis pelos Correios e a receberem correspondência em casa - o que era antes feito apenas em um posto na base do morro. Mas o efeito mais gritante e imediato se deu na elevação de preço da energia, eventualmente para patamares dezenas de vezes maiores do que os valores cobrados anteriormente. E com a “pacificação”, a favela tornou-se piloto também para um novo sistema de medidores eletrônicos de consumo, que foram instalados substituindo os tradicionais analógicos. O resultado foram valores muito acima da média de consumo dos demais clientes de Botafogo. Isso acabou por levantar a suspeita dos moradores em relação ao uso dessa tecnologia pela empresa, que passou a deter um controle exclusivo sobre a leitura do medidor e do uso da energia elétrica na favela. Como veremos, isso inaugura um conflito urbano explicitado a partir das manifestações de insatisfação, a partir das críticas formuladas pelos dois lados, ora como acusações explícitas, formalizadas ou não, ora como insinuações.

Críticas ao ‘gato’: a rede elétrica por medição digital

Como forma de combater as fraudes na rede elétrica, popularmente conhecidas como “gatos de energia”, a concessionária introduziu uma rede subterrânea de cabeamentos, reorganizando o emaranhado de fios antes encontrados em vias aéreas dispersados pelo caminho em postes, muitas vezes precariamente, e configurando alto risco de apagões e incêndios. Na continuidade desse movimento, a concessionária aproveitou a oportunidade para instalar o sistema de leitura digital. Diferentemente do analógico, o novo medidor permitiria à concessionária identificar fuga energética de determinado ponto da rede para uma unidade consumidora, assim como lhes permitia cortar o serviço mesmo à distância, sem ter de enviar uma equipe técnica ao local. Os medidores digitais ficam resguardados em um armário blindado, com o propósito de não serem adulterados. E o mapa topográfico da favela e o reconhecimento de logradouros foram atualizados com a colaboração de engenheiros e arquitetos da Secretaria Municipal de Urbanismo, assim como o cadastro de clientes das empresas Light e Cedae. De modo que as faturas passaram a chegar na porta de casa, entregues por funcionários terceirizados. Os postes da iluminação pública também passaram a ter um controle maior e apenas aos técnicos da empresa é permitido acessá-los.

Assim, em um primeiro momento, a instalação de tais dispositivos foi encarada como uma crítica explícita à prática de furto de energia, na medida em que representa ação coercitiva do Estado juntamente com a empresa, restringindo a manipulação da rede elétrica e o acesso ao relógio de medição de consumo somente a agentes autorizados, por encontrarem-se nos armários com lacre. De fato, o discurso da companhia é de que a favela foi contemplada com um modelo de medição da mais alta tecnologia internacional, adotado em países de primeiro mundo e representando, nas palavras do gestor comunitário da empresa4 4 É um representante da Light com o papel de levar as demandas dos moradores à empresa e trazer as respostas da companhia. Trata-se de uma espécie de porta-voz entre as partes, exercendo uma função de relações públicas, divulgando campanhas, datas importantes e fazendo informes gerais em nome da empresa. , no início do projeto, um “sistema antifraude”, “incorruptível”. Nesse sentido, o atendimento prestado às comunidades, segundo ele, seria até melhor do que o prestado às áreas formais da cidade, que ainda contavam com a medição analógica.

Aqui, nota-se a presença da insinuação: embora a possibilidade de o atendimento prestado ser melhor em virtude da não necessidade de presença de um técnico no local para religar a energia em casos de corte, o gestor afirmava que os medidores foram instalados para inibir a fraude na rede, insinuando que na favela havia ladrões, gatunos da energia, fraudadores. Logo, não bastaria atualizar o cadastro de usuários e conectar as casas com a rede elétrica. Ao cliente da favela, a presença da empresa apresentava uma inovação tecnológica: medidores digitais. De antemão já não lhes era permitida a saída de uma relação monopolista, o único recurso possível nesse momento era a fraude no sistema ou a mudança de endereço para uma área onde as ligações elétricas fossem clandestinas, isto é, em uma área sem UPP. Nesse sentido, chamo atenção para a importância do medidor. Ele é uma peça-chave para entender esse conflito instaurado a partir de 2010 na favela. Vejamos as palavras do gestor da companhia em um programa da Rádio [comunitária] Santa Marta, em 2011:

Não sei se você acompanha, mas aqui é uma comunidade modelo e nós temos aqui um sistema de telemedição para todas as ações, também para o corte de ligação. Isso é feito da própria empresa. Isso a gente já esclareceu para os moradores, certo Zé Mário [presidente da Associação de Moradores]? Fizemos uma assembleia aqui e deixamos tudo isso claro para o pessoal, fizemos inclusive palestras. [Fizemos] dois grandes eventos esclarecendo como é que nós estaríamos trabalhando aqui nesta comunidade. Tudo isto foi plenamente divulgado e todas as dúvidas foram sanadas, respondidas.

Da matriz da Light é possível acompanhar cada intervenção técnica na rede. Entre o setor de pagamento e o de fornecimento há uma comunicação bastante eficaz. Assim, com o sistema digital, a concessionária não necessita de uma visita técnica para interromper o fornecimento de energia ao cliente inadimplente. Dessa forma, além da ênfase nessas informações, o sistema eletrônico é apresentado como um sistema tecnológico antifurto, tanto por seus relógios estarem protegidos, quanto por sua rede subterrânea e engenharia dificultarem o acesso por não técnicos da Light. Contudo, a ideia de um sistema antifraude foi sendo flagrantemente desmentido pelos próprios moradores e técnicos da empresa, como se verá mais adiante.

Como já foi dito, o padrão anterior à UPP era um misto de “gatos” com ligações oficiais. Havia um armário na sede da Associação dos Moradores da FSM no qual estavam organizadas por ordem alfabética as contas de energia elétrica, entregues pela empresa naquele único endereço. Cabe lembrar que, o serviço não era realizado por agentes dos Correios, mas por terceirizados da própria Light.

Durante o período em que realizei pesquisa etnográfica na favela, fui informada pelos próprios moradores que mesmo com aqueles armários blindados, postos com a intenção de intimidar a prática do furto de energia, era possível arrombá-los e fraudar o sistema. Com o passar dos meses de instalada a UPP, notei não apenas a tolerância em relação ao furto de energia, tendo em vista a não aplicação do Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI)5 5 É um instrumento legal, previsto no artigo 129, inciso I, da Resolução nº 414/2010 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), com a finalidade de formalizar a constatação de qualquer irregularidade encontrada nas unidades de consumo dos usuários de energia elétrica que proporcione faturamento inferior ao real. Para tanto, pormenoriza todos os dados do titular e da unidade consumidora irregular, bem como a irregularidade constatada. Trata-se de um dispositivo de controle e repressão por fraude na rede elétrica, no qual o cliente recebe uma comunicação técnica e oficial da empresa cobrando uma multa pela prática ilegal. No entanto, para emitir o TOI, a Light precisa produzir uma prova de que realmente haja fraude no medidor. Para tanto é realizada uma visita de inspeção do medidor da unidade consumidora, momento em que se entrega uma cópia do documento ao morador. Já que na favela estava instalado um sistema que foi proclamado antifraude, seria incoerente emitir esse termo. Assim, mesmo que fosse possível realizar os “gatos”, não era possível confirmar que eles estavam sendo feitos para não desmentir a empresa sobre o fato de seu sistema ser incorruptível. , como também a disposição para o acordo entre as partes e a flexibilização das formas de pagamento - parcelamento da conta de energia.

O primeiro movimento diz respeito às desculpas (WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: as circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) para a não criminalização dessa prática, afinal na favela “é assim mesmo”6 6 Werneck (2012) propõe dois tipos de desculpa - tipo de account para ele fundado nas circunstâncias, diferentemente das justificativas, fundadas no universal. Além de um tipo chamado de “é assim mesmo”, no qual se afirma que a circunstância corresponde a uma normalidade alternativa, ele propõe haver a desculpa do “não era eu”, em que se afirma que o ator ou a situação passou, nesta última, por uma alteração de seu estado de normalidade. . Outro exemplo, encontra-se na explicação do ex-comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), Rodrigo Pimentel, e na ocasião comentarista de segurança pública do programa jornalístico RJ-TV, da Rede Globo. Segundo ele, como “não daria para prender todo mundo, então não se prende ninguém”. Afinal, o ilegalismo seria circunstancial, moralmente contestável, porém tolerável. A circunstância apontada se manifesta em uma alteração do curso da ação prevista da própria situação, de modo que se cria uma partição entre a situação normal e uma normalidade outra, revelada na desculpa. Assim, nesses casos trata-se de uma agência externa a si. É diferente de uma justificação, porque não promove uma discussão de princípios morais: é errado, mas “todo mundo faz”, logo “está tudo bem” (WERNECK, 2012).

O segundo movimento permite ao cliente adiar o corte de energia e manter a relação contratual com a empresa, o que nos permite classificar a interação de lealdade na tipologia de Hirschman, ao mesmo tempo que o pagamento parcelado proporciona a limpeza moral (MACHADO DA SILVA e LEITE, 2008MACHADO DA SILVA , Luiz Antonio; LEITE, Márcia da Silva Pereira. Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.; MACHADO DA SILVA e MENEZES, 2019) da condição de consumidor que busca ‘limpar seu nome”, isto é, saldar as dívidas e voltar a ter crédito, opondo-se a clientes inadimplentes, que ficariam com o “nome sujo” e recorreriam ao “gato”.

O sistema actancial da denúncia e as várias manifestações da forma-crítica: da insinuação à acusação formal

Inspirando-se em Boltanski (1990BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme competence. Paris: Métailié, 1990.), que constrói um sistema actancial para dar conta da denúncia pública, Werneck acaba por dar à forma-crítica (2015WERNECK, Alexandre . “‘Dar uma zoada’, ‘botar a maior marra’: dispositivos morais de jocosidade como formas de efetivação e sua relação com a crítica”. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 58, n. 1, pp. 187-221, 2015., pp. 194-195) um desenho de definição de papéis, descrevendo para esse tipo de fenômeno um protocolo, a partir de uma situação-tipo envolvendo dois actantes, A e B:

A, que está na mesma situação que B, se sente incomodado com o estado (grandeza) ocupado por B, o que prova que A possui uma capacidade moral, ou seja, uma faculdade para decidir o que acha certo e o que acha errado, o que é bom ou mau para ele. 2) A, que possui também capacidade crítica, “percebe não poder mais suportar esse estado de coisas” e se sente impelido a expressar sua insatisfação - poderia perfeitamente ficar quieto, mas, em vez disso, “não guarda seus sentimentos para si”. 3) A constrói uma afirmação - isto é, uma expressão linguageira com pretensão de verdade - segundo a qual tenta demonstrar o caráter problemático do estado do outro na situação, chamando a atenção para a falta de legitimidade do estado, apontando, assim, a responsabilidade do outro, e demandando dele uma prestação de contas, um account. 4) Como mostram Boltanski e Thévenot, essa tentativa de demonstração do caráter problemático não pode ser articulada de qualquer maneira; ela tem um protocolo, centrado em um componente inelutável da crítica, sua necessidade de provas: nessas situações, “as pessoas […] envolvidas estão sujeitas a um imperativo de justificação. Aquele que critica outras pessoas tem que produzir justificações para sustentar suas críticas, assim como alguém que seja alvo de críticas tem que justificar suas ações para defender sua causa”.

A denúncia, então, é uma forma específica da crítica e é justamente aquela que, ao retornarmos à matriz apresentada no início do texto, vemos se fundamentar em uma distinção em termos de amplitude da complexidade moral contemplável (MISSE e WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: as circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.; WERNECK, 2012, pp. 62-64; WERNECK e LORETTI, 2018), isto é, o quanto a crítica se abre para a possibilidade de contemplar outros quadros de referência moral mobilizados pelo outro lado. Com isso, pode-se classificar a crítica entre um tipo acordável (accountable, quando se esperada do criticado um account que confira sentido a sua ação criticada) e um tipo acusatorial (quando se busca um culpado, simplificando-se a complexidade moral do mundo em favor de uma única moralidade, idealizando para o agente uma necessária punição).

No entanto, em uma situação como a encontrada na Santa Marta, de embate entre consumidores/cidadãos e empresa/prestadora de serviço público, a crítica de lado a lado adquire uma forma peculiar dessa exposição, a da construção de uma insinuação da forma-crítica que nos permite compreender a complexidade moral envolvida entre as partes que se acusam mutuamente de forma velada em situações geralmente típicas de denúncia pública.

Na hipótese de uma crítica acordável se manifestar nessa relação comercial, o consumidor e a prestadora buscariam encontrar soluções capazes de contemplar os interesses das duas partes envolvidas no conflito, baseando-se na disposição para o acordo e na ideia de bem comum. Nesse sentido, a concessionária de energia elétrica poderia procurar estreitar seus vínculos com seus clientes por intermédio do governo e buscar apoio das lideranças locais para implementar as políticas públicas voltadas para a prestação do serviço público diferenciado nas áreas com clientes de baixa renda, buscando a lealdade. No caso de uma crítica acusatorial, a Light acusaria o morador da favela de furtar energia e ameaçaria cortá-la. Por outro lado, o morador também teria a possibilidade de apresentar uma crítica acusatorial à empresa, pelo fato de ela vir realizando cobranças indevidas para uma comunidade de baixa renda. No entanto, como argumento aqui ter sido o caso mais consistente na relação entre moradores e Light, a crítica pode ser apresentada de forma insinuada, diferenciando-se de uma versão sua mais explícita.

Nesse sentido, o morador da favela associa a instalação do medidor eletrônico ao aumento da conta de luz, insinuando que a concessionária encontrou uma forma de lucrar de uma maneira moralmente contestável, submetendo um cliente de baixa renda ao pagamento de preços elevados por um serviço básico ou essencial:

Depois que a Light trocou os medidores e colocou esse chip na favela, agora recebo contas de R$ 400, R$500. E se não pagar, eles cortam a luz. Aqui em casa economizamos ao máximo, e ainda assim a conta de energia não reduz. Queremos saber por que a Light está cobrando esses valores em uma comunidade de baixa de renda (morador da Santa Marta, 2011).

Ao contestar os valores cobrados, o cliente critica a mudança de tecnologia dos medidores, insinuando não serem confiáveis. Ele aponta para uma possível falha no dispositivo, o que seria “bastante conveniente” para efetivar os lucros da empresa. Ele não pode acusar formalmente ou atestar a intencionalidade da fornecedora de causar dano a seus clientes, ou ainda que o esteja roubando, na medida em que, nesse caso não conta com acesso ao leitor de seu medidor. Assim, fica mais difícil, apesar de não impossível, provar não ter realizado de fato o consumo mensal em kWh alegado pela conta de energia elétrica, um documento com status formal raramente contestado pelos clientes. Poderiam, como quaisquer outros clientes, evidentemente, recorrer ao Procon, promovendo uma auditoria. Quando questionados sobre não tomarem as medidas cabíveis, notava-se uma certa apatia como resposta. A suposta negligência dos moradores ou falta de interesse em levar adiante a apuração técnica sobre seu consumo justificava-se pelo fato de que as pessoas, em geral, parecem evitar dar início a momentos críticos (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1999BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. “The Sociology of Critical Capacity”. European Journal of Social Theory, Paris, vol. 2, n. 3, pp. 359-377, 1999.), considerando-se a quantidade de recursos necessários para tal empreitada - uma condição chamada por Werneck (2015WERNECK, Alexandre . “‘Dar uma zoada’, ‘botar a maior marra’: dispositivos morais de jocosidade como formas de efetivação e sua relação com a crítica”. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 58, n. 1, pp. 187-221, 2015.), inspirando-se em Hirschman, de slack moral. Como me disse um morador: “Não tenho tempo para processar a Light ou ir a protestos. Preciso trabalhar para pagar as contas, Pricila”.

Assim, ainda que os clientes desconfiem que a empresa esteja levando vantagem, alguns deles estão bastante ocupados ou desinteressados em reivindicar seus direitos de consumidor, porque isso implicaria, contraditoriamente, em esforçar-se ainda mais em meio a sua labuta cotidiana para fazer valer sua cidadania. E é previsível para a empresa essa falta de tempo do trabalhador para efetivar críticas, o que é uma vantagem. Os casos de corte de energia, seja qual for o seu motivo, costumam mobilizar essa energia para a crítica entre clientes, sejam eles da favela ou não.

O usuário do serviço público questiona, portanto, a confiabilidade do dispositivo tecnológico, tomando como hipótese a corrupção de um binômio causa/efeito (uso/cobrança), mas como é avesso à institucionalização dos conflitos e aos processos de produção de provas tangíveis de ambos os lados, recorre à insinuação. Além disso, na visão desse morador, a empresa não está preocupada com a falta de condição financeira de seus clientes, como teria alegado no início da campanha, quando buscou formalizar a relação com os consumidores moradores das comunidades. Por essa crítica, ela visaria apenas o lucro, o que a faria, inclusive, agir de forma escusa, manipulando as medições. Contudo, apesar da desconfiança em relação à instalação dos medidores eletrônicos, os moradores não têm competência técnica ou auxílio de especialistas para comprovar o que dizem a respeito do dispositivo tecnológico, recorrendo apenas à insinuação. Dessa forma, evita-se lançar mão de uma crítica radical, uma acusação propriamente dita.

A insinuação aponta para uma ação considerada negativa, mas não chega a incriminar abertamente o criticado como mau, criminoso, desviante etc., pois se parte de uma desconfiança, uma suspeita, que por falta de comprovação permanece em aberto. Nesse caso, haveria uma recusa da recuperação moral do outro envolvido, e possivelmente o fim da relação entre as partes. Assim, apesar de o morador ter a escolha de romper com essa relação por meio do “gato”, estaria comprometendo a identidade de todo o grupo de moradores de favela, contribuindo para reforçar a sujeição criminal já presente por acumulação social da violência (MISSE, 2022MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2022 [1999]. [1999]), e, por analogia, também o que chamei de sujeição desordeira, produzida por um processo de acumulação social da desordem urbana (LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.), e que se busca a todo o custo evitar - com os citados procedimentos de limpeza moral -, notadamente com a chegada da polícia ao território e a instauração da era das UPPs.

Como dito, observei que uma parcela dos moradores insinuava que a empresa não se importava com a falta de meios de grande parte dos habitantes da favela para quitar dívidas e/ou que seu sistema de medição era ineficiente - uma crítica a sua insensibilidade e/ou a sua competência -, enquanto outra parcela, de moradores residentes no topo do morro (área conhecida como Pico) - insinuava que a Light, juntamente com alguns políticos, tinha intenções ocultas de expulsá-los daquela área, por se tratar de um local de vista panorâmica privilegiada e cobiçada pelo setor imobiliário que, segundo se insinuava, passaria a investir na localidade após o processo de “pacificação das favelas”. No local, havia um debate sobre algumas casas de palafitas serem demolidas e as famílias realocadas para um prédio construído pelo governo do estado - no âmbito do Programa Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal - em uma área próxima na própria favela. Destoando do restante das residências, essas famílias pareciam descontentes por não receberem o mesmo tratamento em relação à formalização de sua rede elétrica: as “gambiarras” e os “gatos” não foram regularizados, sob a justificativa de que o local era uma “área de risco”. Tal ação, vista com desconfiança, pode ser analisada como uma tentativa de correção da postura moral dos moradores do Pico pela Light, já que esses foram os últimos endereços envolvidos em ligações clandestinas na era das UPPs.

Com isso, chegamos ao “gato” como crítica exit: como se trata de uma ligação clandestina feita diretamente na rede elétrica da Light, ele se torna uma forma de resolver o impasse entre um cliente inadimplente e a concessionária que decidiu interromper o serviço. Em alguns casos, como veremos, ela pode ser feita de comum acordo entre vizinhos, que passariam a dividir a conta. Fazer a ligação sozinho pode ser percebido pelos atores como uma crítica radical à empresa, já que rompe com ela por considerar sua ação produto de uma postura nefasta, enquanto que compartilhar a eletricidade com o vizinho pode ser visto como uma saída coletiva para a questão. Foi esse o caso de Alvinho7 7 Todos os nomes são fictícios para proteger a identidades de meus interlocutores. , um morador que não deixou de pagar a conta até o religamento da energia em sua residência. Ele recorreu à crítica exit indiretamente a partir de um compartilhamento com sua vizinha, sem romper totalmente a relação com a concessionária.

Críticas acusatoriais e (in)tangibilidade da prova

Como para toda crítica há uma expectativa/demanda/exigência de prova por parte daqueles que a formulam (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1999BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. “The Sociology of Critical Capacity”. European Journal of Social Theory, Paris, vol. 2, n. 3, pp. 359-377, 1999., 2020 [1991]), isso acaba por determinar diferentes formas de comportamento crítico: é possível reparar nas situações de campo diferentes graus de mobilização do imperativo de justificação ou, dito de forma mais simples, do grau de formalização da prova, a partir do rigor das exigências de prova. A prova é a justificação da crítica e toda crítica dependeria de uma prova. Nesse caso, no entanto, teríamos não simplesmente dois pontos discretos, mas uma escala contínua. Chateauraynaud (2004CHATEAURAYNAUD, Francis. “L’épreuve du tangible: expériences de l’enquête et surgissements de la preuve”. In: KARSENTI, Bruno; Quéré, Louis (eds.). La croyance et l’enquête: raisons pratiques. Paris: EHESS, 2004. pp. 167-194.) afirma que a tangibilidade de uma evidência é gradual, logo é possível contemplar uma escala de evidências e/ou justificações das mais “soltas”, fluidas ou informais, atribuídas de maneira geral às percepções de senso comum, até um estado mais sólido, mais formal da prova - uma “prova tangível”, possível por meio de métodos definidos, como os científicos e jurídicos, por exemplo - preocupadas com uma metodologia de produção e com todo um regramento de verificação baseado em um accountability técnico, de uma legitimidade industrial (BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020 [1991]).

Assim, se a crítica acusatorial for também explícita, as exigências - e, em consequência disso, as chances - de formalização da prova, ou seja, de que ela seja altamente tangível (ou que se demande isso dela), aumentam, como no caso dos processos judiciais, nos quais ao denunciador (crítico) cabe o ônus da prova - mas ao mesmo tempo à defesa cabe muitas vezes também ajuntar provas fortemente tangíveis em suas explicações. Por outro lado, se a crítica não passar de uma série de insinuações, é possível que a exigência de comprovação (épreuve) seja bem menor, ou que ela nem sequer seja demandada, como no caso da relação aqui apontada entre a Light e seus clientes.

Um exemplo é o caso de seu Chico: o morador preferiu mudar de bairro a ir atrás da Justiça ou contratar por conta própria um eletricista para identificar a causa do aumento de sua conta - o que foi sugerido pela Light quando questionada sobre o alto preço, com o qual o dono de birosca (um pequeno comércio/bar) não tinha condições de arcar. Se tivesse contratado um eletricista, segundo seu Chico, não poderia acessar o medidor legalmente, porque este apenas pode ser manipulado por técnicos da empresa, e continuaria a depender da intervenção da Light ou dependeria de judicializar o conflito. Sem as provas formais contra a companhia de energia, restam-lhes as insinuações contra a idoneidade da Light: “Eu tenho um freezer e uma geladeira. Tem aqui o meu ventilador, mas eu quase não ligo. E só. Um chuveiro - uma vez ou outra, tomo um banho. Não dá para isso, não tem cabimento cobrar tão caro por uma energia dessas, viu?”.

Em 15 de maio de 2012, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) considerou lícita a instalação dos medidores eletrônicos e declarou imperiosa a produção de provas para identificar o(s) culpado(s). No entanto, a Light é a detentora das chaves do lacre dos armários nos quais se encontram os relógios e a perícia técnica dependeria majoritariamente da Justiça obrigar a empresa a verificar as próprias falhas, seguida de uma retratação pública a respeito de seus erros de cálculo, se fosse o caso, ou mesmo para mostrar que estava certa a respeito do consumo. Isso nunca aconteceu. De fato, durante os anos quando realizei trabalho de campo, não tomei conhecimento de nenhum registro de produção de provas de ambos os lados da querela. Como o ônus da prova cabe a quem acusa, os moradores, se quisessem acusar formalmente a empresa, deveriam contratar um eletricista ou aguardar decisão judicial para envio de perícia no local.

A despeito do controle dos medidores pela empresa, a Justiça poderia requerer uma perícia independente para avaliar os casos. O desembargador do processo contra a concessionária não descartou a possibilidade de defeitos nos equipamentos, entretanto considerou mais provável a possibilidade de uso excessivo da energia elétrica por parte dos usuários do serviço público. Desse modo, para esse juiz, o fato de a Light obstruir, de certo modo, a produção das provas e dificultar a contestação dos clientes a respeito da honestidade da prestadora não se apresentou como questão.

Embora o sistema actancial da denúncia tenha sido pensado para analisar uma situação em que tenderíamos a esperar um grau ótimo de exigência de tangibilidade de prova - considerando-se o nível de energia mobilizado se ela for aceita como denúncia -, nem sempre é possível contar com uma prova cabal da realidade dos fatos pretendida por aqueles que a apresentam e representam. Em um sistema judicial, os ritos exigiriam provas altamente tangíveis das acusações para que houvesse julgamento e, conforme o interesse dos acusadores, punição dos culpados. Não é o meu propósito aqui entrar na discussão propriamente dita sobre a inquisitorialidade do sistema jurídico brasileiro, mas cabe lembrar que verdades jurídicas são produzidas em um regime de validação profissional e industrial dessas acusações tomadas como prova por um julgamento do mérito (BOLTANSKI e THÉVENOT, 2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: UFRJ, 2020 [1991]. [1991]).

Percebe-se nesses exemplos que as críticas acusatoriais, se formalizadas diante de um tribunal judicial ou de uma crítica midiática, necessitariam de investigações para abertura de um processo de incriminação e de provas, o que na maioria dos casos não é feito. Portanto, esse tipo de crítica é menos comum no contexto estudado. A crítica preeminente nas interações cotidianas de nosso caso é mesmo a insinuação de fraude, tanto da parte da empresa em relação ao morador, quanto do morador em relação à empresa.

Assim, de um lado, os moradores acusam a Light de “arrancar o dinheiro suado do trabalhador”, para não dizer explicitamente que se trata de um roubo; de outro, a Light também insinua o roubo de energia por parte dos moradores, com uma constante repetição de que “precisamos ver o que está acontecendo”, ou seja, apontando sempre para a necessidade de investigação dos fatos, sem, entretanto, precisar comprová-los generalizadamente, porque a prova produzida por ela mesma é direcionada caso a caso.

Na falta de um sistema da verdade dos fatos, tudo que temos são supostos indícios, alegadas pistas, especulações e, na ponta do iceberg, insinuações. Entretanto, como uma mobilização menos intensiva da forma-crítica, a insinuação pressupõe uma situação distinta do sistema actancial apresentado por Boltanski, porque na falta de uma acusação completa ou integral, os papéis de denunciador, vítima, perseguidor e de juiz ficam implícitos ou alienados conforme o tipo de crítica. Se o crítico não pode provar o que diz sobre o criticado, o quadro da denúncia não se completa. Contudo, as insinuações podem ser poderosas para inflamar os ânimos dos descontentes que iniciam por si mesmos uma investigação da verdade dos fatos. Esse é um momento muito rico do ponto de vista da análise, porque configura a suspeição de um agente em relação ao outro. É, portanto, um momento crítico. Nesse jogo de desconfianças mútuas sem provas os atores se identificam nesse processo de acusação entre as partes.

O ‘gato’ como crítica

Na visão dos moradores, a escolha da sua “comunidade” para piloto da política do governo do estado do Rio de Janeiro teria a ver com o fato de que a partir dela seria possível contemplar alguns dos mais belos cartões postais da Zona Sul do Rio de Janeiro, uma vez que do alto do morro de maior inclinação da cidade tem-se uma visão panorâmica do encontro das formas naturais e urbanísticas. Assim, a explicação a respeito das medidas políticas de urbanização da favela, isto é, a “razão oculta” para o início das políticas de “pacificação” e substituição do controle territorial, antes nas mãos do “movimento” (a quadrilha de traficantes de drogas) para o domínio do Estado, representado pelo braço da polícia, passaria menos pela preocupação de situações violentas envolvendo a integridade física e moral dos moradores e mais pelas vantagens trazidas pelo novo momento aos mercados turístico e imobiliário nessa região.

Segundo Hirschman (1973HIRSCHMAN, Alfred. Saída, Voz e Lealdade: reações ao declínio de firmas, organizações e Estados. São Paulo: Perspectiva, 1973., 2019 [1991]), a ideia de reclamar (voice) tem lugar geralmente quando a saída não é a melhor opção (ou não é mesmo possível) - embora sua possibilidade seja fundamental para fundamentar a mobilização da voz. Nesse sentido, um cliente insatisfeito com certeza de que a voz funcionará efetivamente como complemento da saída poderá optar por utilizá-la, postergando o momento de ruptura ao privilegiar o acordo em vez do conflito. Isto é, há casos em que pessoas insatisfeitas se manifestam em busca de uma negociação antes de optarem pelo rompimento. O autor define a voz como qualquer tentativa de mudança de um estado ao qual se pode fazer objeções individuais ou coletivas aos responsáveis. Desse modo, caracteriza tanto apelos aos superiores e diretores das empresas, organizações ou governos quanto os protestos e ações de mobilizações da opinião pública.

O volume da voz dependerá das oportunidades de saída, de modo que quanto menos houver concorrência mais alta e sonora ela será. Nos casos de monopólio, quando a saída se torna quase impraticável, a voz servirá como um alerta para o mau funcionamento da relação entre a empresa e seus clientes ou organizações e usuários, governos e cidadãos. A voz poderá tanto substituir a saída como complementá-la. Entretanto, uma vez que se escolha a saída, perde-se geralmente a oportunidade da voz. A saída pode ainda significar uma reação de último recurso, depois de a voz ter falhado.

O caso de Alvinho nos permite pensar os três tipos apontados por Hirschman. O cabelereiro, morador da favela, buscou primeiramente o diálogo com a empresa para tentar solucionar um corte de energia resultante de falta de pagamento. Por algum motivo técnico, mesmo após ter realizado o pagamento das faturas atrasadas, ele não teve sua energia religada. Sem obter uma resposta satisfatória sobre como seria solucionado o problema e sem que qualquer visita técnica fosse feita, o morador por conta própria buscou uma saída: fez um “gato” na rede elétrica da vizinha, com o consentimento dela, que aceitou compartilhar o recurso com ele, dividindo assim os custos. Apesar disso, seguindo as orientações de um advogado, continuou a pagar a taxa mínima cobrada pela disponibilidade do serviço, mantendo assim uma relação de lealdade com a Light. Ao mesmo tempo, processou a empresa.

Ao analisar o caso de Alvinho, teríamos, como antecipei, reunidas em um único caso as três dimensões analisadas por Hirschman - e observadas por mim nas situações de campo - na relação do cliente com a empresa: 1) uma saída ou ruptura parcial com a empresa fornecedora do serviço, na forma do “gato”; 2) a voz, quando Alvinho busca expressar sua insatisfação em linguagem jurídica por meio do processo judicial; e 3) uma manifestação de lealdade, caracterizada pelo pagamento dos “custos de disponibilidade” e do consumo por intermédio da vizinha.

Um outro exemplo de saída é evidenciado por uma crítica da própria concessionária ao sugerir o “gato” como saída econômica. Adeliana, uma moradora antiga, personalidade na favela, mulher de um ex-presidente de Associação de Moradores conhecido e reverenciado por todos como “seu Mario”, contou-me que sua conta de energia, em um mês de janeiro, veio em torno de R$ 900, 00, um valor que comprometia mais de 65% da renda de sua família. Mesmo sendo um período de altas temperaturas, a moradora afirmou não ter feito uso constante do ar condicionado: ela mora no alto da colina e em frente ao mar, um local fresco; durante o verão, basta abrir as janelas, segundo ela.

Adeliana afirmou ter questionado o valor cobrado na conta de energia, apontando para uma possível falha da empresa. A moradora insistiu que buscou adequar seus hábitos às novas regras, assim que passou a receber uma conta de energia, usando com parcimônia seus eletrodomésticos. Disse ter seguido à risca as orientações encontradas em um material de orientação distribuído pela Light com o intuito de chamar atenção dos moradores para a redução do consumo de energia - e que incluía como primeiro item da lista o uso moderado do climatizador. Esse equipamento, seguido de chuveiro elétrico, geladeira e lavadora de roupas, são percebidos como os maiores vilões, responsáveis pelo aumento da fatura de eletricidade. Ela também argumentou ter desligado o chuveiro elétrico, tomando banhos frios, como forma de economizar. Já a geladeira, era novíssima, havia sido trocada fazia pouco tempo, o que indicava ser de baixo consumo.

Ela contou ter chegado a receber a visita de um técnico da Light, acompanhado pelo gestor comunitário da empresa, e que após o primeiro conferir a qualidade das instalações, a marcação em kWh no momento da inspeção e a média de consumo mensal por intermédio de faturas anteriores apresentadas por ela, acabou por atestar que o preço cobrado de fato não condizia com a média de consumo da unidade. Nesse momento, ela questiona: se não foi ela a responsável pelo uso da energia cobrada na conta, como a Light chegou àquele valor? E conta que, em seguida, diante da questão, o gestor comunitário8 8 Cabe ressaltar que o gestor em questão apenas atuava em favelas pacificadas, sendo ele próprio morador de um bairro popular. Essa sensibilidade e empatia para com o drama dos moradores advêm, possivelmente, do fato de ele se identificar mais como a realidade desses clientes do que com a política de corte da empresa por falta de pagamento. a chamou em um canto e a aconselhou a fazer uma ligação clandestina. Isso atestava ser possível realizar o furto na nova rede elétrica. Para ela, porém, isso insinuava que a própria empresa na qual o gestor trabalhava estava cometendo injustiças e sujeita a falhas, ou seja, sinaliza a incompetência da Light para solucionar as perdas técnicas e evitar fraudes no sistema. Ele estaria, então, dando por encerrado o processo de descobrir a real causa do problema. Assim, ao renunciar à comprovação, a oferecer provas, reconheceria a irregularidade e afirmava com esse movimento ser “assim mesmo” (WERNECK, 2012WERNECK, Alexandre. A desculpa: as circunstâncias e a moral das relações sociais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) que as coisas acontecem na favela: o “gato” é uma prática comum, não é pensado como algo grave, portanto é percebida muito menos como um crime, e muito mais como uma informalidade e/ou como desordem, o que acabaria por contribuir com a reprodução da representação social tanto do ambiente, quanto de seus moradores, que seriam classificados pela própria empresa moralmente inferiores em relação aos outros consumidores da cidade.

Insinuações de ambos os lados: manutenção tácita do acordo

A insinuação é um tipo de afirmação velada que ocorre fora do registro da comprovação e cuja veracidade não se busca desmentir ou confirmar: persiste o dito pelo não dito, aquilo que se pretendia dizer, mas não se diz, ou se diz, a partir de meias verdades, de forma camuflada, metafórica ou metonimicamente. Insinua-se algo de alguém ou para alguém, quando não se pode comprovar sua veracidade, quando não se tem certeza, talvez “a carapuça sirva”. Assim, supostamente a empresa acusa o morador da favela de perdulário ao distribuir cartilhas sobre como economizar energia em sua campanha publicitária. Do mesmo modo que os moradores acusam a empresa de lucrar indevidamente em cima do cliente da favela, ao esconder os métodos do seu sistema de medição, apontando para as falhas deste.

A relação entre prestadora e clientes persiste entre o pagamento da conta supostamente abusiva e a tolerância ao “gato” supostamente praticado por parte dos moradores, justamente por prescindir de comprovação da veracidade do que um ou outro insinuam. A relação tende para lealdade em meio às críticas, postergando a saída (exit): como se nada tivesse sido dito, seguimos com a relação. Diferentemente, a acusação, como crítica que é, pode ser tratada como ofensa e requerer comprovações, provas sobre o que se alega em relação à outra parte. Ao acusar alguém abertamente, descortina-se todo um cenário, um júri para avaliar as provas da acusação, se ela procede ou não. Prepara-se a defesa, e, então, deve-se apresentar as justificativas para tal acusação. Chama-se os peritos, busca-se as provas cabais, e perde-se a oportunidade de um acordo feito entre as partes sem a necessária presença de um arbitro ou juiz. A insinuação é capaz de evitar tudo isso e a comprovação, ao mesmo tempo que permite expressar o que se pensa criticamente sobre o outro.

Diferentemente do “gato”, que vimos poder ser pensado como crítica exit, esse dispositivo crítico bastante peculiar, a insinuação, faz parte do repertório crítico voice mobilizado pelos atores. Na busca por compensações diante de um expectador moral, ou seja, um juiz, ao que poucos estariam dispostos sem implicar a responsabilidade de preservar a relação ao outro, a insinuação permite continuar nesse registro, ainda que seja possível a produção de provas tangíveis, os atores optam por continuar colocando sob suspeita, mas mantendo o que Werneck (2020WERNECK, Alexandre. Obstáculos na ‘pista livre’: algumas considerações sobre a pragmática dos dispositivos da ‘Lei de trânsito’ no Rio de Janeiro. Revista Antropolítica, Niterói, n. 50, pp.327-355, 2020.) chamou de “indefinição da situação”. Desse modo, os moradores se manifestam em relação ao que intuem como “motivo oculto” por trás das ações da empresa, e esta igualmente em relação aos passos de seus clientes da favela. Além disso, a própria ideia de insinuação pode se tornar uma crítica em relação ao que esteja sendo dito pelo outro lado, o que revela ainda o estatuto moral dessa forma de criticar, sempre relacionada a intenções ocultas. Como mostram Boltanski e Thévenot (2020BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A justificação: sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: UFRJ, 2020 [1991]. [1991], pp. 417-418):

Quando, no decurso de uma disputa, uma parte acusa a outra de fazer insinuações, atribuindo assim a essa operação um valor negativo […], ela tem como objetivo revelar intenções ocultas. O adversário é acusado de promover, no recôndito de seu peito, aproximações inaceitáveis que traem, a sua revelia - ou, pior, intencionalmente -, a multiplicidade de sentidos das declarações apresentadas. Forma de dissimulação, o subentendido, quando apontado a respeito de uma figura polêmica, não pode, por definição, ser apresentado como tal pelo emissor. E para levá-lo a desempenhar um papel no processo de comprovação, é, portanto, necessária uma interpretação, cuja validade pode, por sua vez, ser contestada. Assim, apontar uma insinuação pertence ao quadro dos desvelamentos. A acusação, amparando-se em um enunciado julgado ambíguo por meio da alegação da presença de algo implícito, lança para o outro lado, para o oponente, o desafio de tornar explícitas suas intenções. E a acusação de insinuação pressupõe, com efeito, que a ambiguidade não pode ser suspensa, pois o esclarecimento exigiria a referência explícita a formas de equivalência injustificáveis. […] [A] acusação de insinuações em uma situação sujeita ao imperativo de justificação pode ser associada à denúncia de uma combinação oculta, de uma conspiração, recheada de cenas nas quais julgamentos injustificáveis poderiam solidificar um acordo (diz-se, por exemplo, que as pessoas falaram entre si pelas costas de um terceiro, que circularam fofocas, que houve muita falação ou boatos etc.).

Assim, diante do ambiente especulativo produzido pelas insinuações, o processo de comprovação acaba por ser evitado. A Light, em reuniões realizadas nos espaços de convivência da favela, buscava explicar aos moradores as possíveis causas para elevação dos valores cobrados na conta de luz. A resposta mais comum era atribuir ao consumidor a responsabilidade, por conta do consumo desenfreado, ineficiente, afirmando que, como “morador de comunidade”, esse cliente não estava habituado ao controle dos gastos, e a partir desse argumento a empresa justifica o combate à “cultura do desperdício” atribuída ao modo de vida na favela. Mas e o que ela não diz? A Light não acusa formalmente seu cliente de ser incompetente ou de estar faltando com a verdade sobre o uso cotidiano da energia elétrica. Nesse sentido, a visita técnica é percebida como crítica, como mostra esta fala do gestor comunitário da empresa, em uma reunião na quadra da escola de samba Unidos da Santa Marta, em junho de 2011: “Temos que verificar caso a caso para saber o que está acontecendo. A nossa equipe técnica vai até a casa do morador para saber se ele está fazendo um bom uso dos aparelhos domésticos”.

Implícita no vago “o que está acontecendo”, a acusação de que o morador é incompetente ou desonesto. Assim, ao buscar “educar” esse morador a restringir o uso dispendioso e desmedido de seus equipamentos, a empresa instaura na favela uma política de economização, isto é, do uso racionalizado, ponderado dos recursos, a fim de que eles “não se esgotem”. Seria como dizer que os moradores de favela carecem desse tipo de moralização de seu consumo, porque sem a intervenção da Light gastariam muito mais do que poderiam pagar, devendo assim, segundo a concessionária, adequar seu consumo a sua realidade financeira. A insinuação é que seu uso de energia elétrica seja perdulário, da mesma forma que instalar ecopontos para coleta de resíduos sólidos como forma de gerar descontos na conta de energia pode ser percebido como uma medida altamente moralizante. Por entender que economia é algo que se aprende na prática, o discurso da empresa afirma que esse tipo de consumidor, presumidamente de baixo poder aquisitivo, esbanjava no uso da eletricidade por não entender que a energia seja um bem escasso, logo era preciso ensiná-lo uma certa fenomenologia econômica (CALLON, 1998CALLON, Michel. “Introduction: the embeddedness of economic markets in economy”. In: CALLON, Michel (org.). The laws of the markets. Oxford: Blackwell, 1998. pp. 1-57.), na qual os consumidores aprendem a lidar com a economia a partir desse viés do uso racional.

Outra insinuação, como vimos no caso do Pico, é que por de trás dessa política de pacificação está a intenção antiga de ocupar o território dessas favelas. Assim, o aumento do preço da energia elétrica na favela seria uma forma camuflada de expulsar os pobres das áreas nobres da cidade - a saber, uma expulsão branca, nas palavras dos militantes da Favela Santa Marta. Por exemplo:

Realmente deve ter algo errado. O morador está pagando mais caro do que quem mora em Botafogo pela eletricidade. Tem contas aqui de R$ 300, R$ 400, R$ 500. A nossa taxa de iluminação é a mais cara. Essa conta aqui de R$ 279 e uns quebrados do mês de fevereiro… Aqui, R$ 20 só de iluminação pública. Não sabemos por quê. Tem muito poste apagado durante a noite.

A alusão se deve ainda a uma interpretação de racismo por parte da concessionária, pois a maioria dos moradores de favela são de pele preta. Descendentes de escravos ou migrantes nordestinos, em sua maioria, sentem-se discriminados de todas as formas, o que se manifesta desde na seletividade policial (ALVES, 2022ALVES, Jaime A. “F*da-se a polícia! Formações estatais antinegras, mitos da fragilidade policial e a urgência de uma antropologia da abolição”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 3, pp. 1021-1045, 2022.; KELLEY, 2022KELLEY, Robin D. G. “Inseguro: policiamento sob o capitalismo racial”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 1, pp. 379-409, 2022.; MISSE, 2022MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2022 [1999]. [1999]; MORELLATO e SANTOS, 2022) até o tratamento urbanístico (AZEVEDO, CAMPOS e LIRA, 2020AZEVEDO, Nilo Lima de; CAMPOS, Mauro Macedo; LIRA, Rodrigo Anido. “Por que os conselhos não funcionam? Entraves federativos para a participação popular no Brasil”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 13, n. 2, pp. 439-461, 2020.; LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Assim, há também críticas à visão elitista da empresa que, segundo os clientes da favela, trata de maneira diferenciada os clientes brancos e pertencentes a uma classe social abastada.

Uma outra pesquisa etnográfica (YACCOUB, 2010YACCOUB, Hilaine. Atirei o pau no ‘gato’: uma análise sobre o furto e o consumo de energia (“dos novos consumidores”) em um bairro popular de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.) já apontava para um relevante número de fraudes na rede elétrica da Enel, concessionária responsável pelo fornecimento de energia na cidade de Niterói, perdas técnicas provenientes de bairros de classe média. Nesses casos, em que a fraude no sistema é feita por cidadãos de classes mais abastadas, o “gato” não apareceria como crítica exit à concessionária, pois trataria-se menos de uma questão de falta de dinheiro para pagar a fatura e mais de uma questão de priorizar outros consumos, geralmente conspícuos, como viagens turísticas, tratamentos de beleza, combustível do carro, roupas, joias (YACCOUB, 2010). Para realizar essas outras compras, burla-se a medição com uma expertise superior à do próprio sistema, porém elege-se um ou dois eletrodomésticos (geralmente o que consume mais kWh, a exemplo do ar condicionado e/ou geladeira) para fazer o desvio energético. O trabalho ainda revela situações recorrentes nas quais eletricistas da própria concessionária oferecem os serviços de “gateiros” aos consumidores mediante pagamento para instalação clandestina na rede elétrica. Nesse particular, interpreta-se que a empresa tem interesse de prestar seus serviços onde haja demanda solvável, pouco se importando com as condições históricas das favelas e suas dificuldades em arcar com despesas essenciais.

Como afirma Ana Beraldo (2021BERALDO, Ana. “Entre a vida e a morte: normatividades, negociações e violência em uma favela de Belo Horizonte”. Dilemas: Revista Estudo de Conflito Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 1, pp. 27-51, 2021., p. 27),

a coexistência de distintos regimes normativos em território de periferia urbana, ou seja, da interação entre diferentes lógicas, moralmente informadas, a organizarem simbólica e materialmente as relações de sociabilidade e as determinações do que é ou deixa de ser socialmente aceitável, desejado ou reprovado.

Essa multiplicidade moral distinguiria a favela do asfalto justamente por conta das já citadas amplas representações de sua insegurança e desordem, configurando um ambiente em que a ação crítica dos moradores fica complexamente limitada (AZEVEDO, CAMPOS e LIRA, 2020AZEVEDO, Nilo Lima de; CAMPOS, Mauro Macedo; LIRA, Rodrigo Anido. “Por que os conselhos não funcionam? Entraves federativos para a participação popular no Brasil”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 13, n. 2, pp. 439-461, 2020.). Nesse sentido, passada mais de uma década, a relação entre a falência do programa das UPPs e o declínio do PCE da Light nas favelas é digna de nota. Após uma crise política e financeira ter abalado o estado do Rio de Janeiro, o governo recorreu aos reforços federais para garantir a manutenção das forças de segurança que vinham dando sinais de esgotamento: viaturas sem gasolina, armamento sem munição, salários atrasados dos agentes de segurança pública, entre outros fatores.

Como mostram Morellato e Santos (2020MORELLATO, Ana Carolina Bastos; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos. “Intervenção federal e a guerra contra os pobres na cidade do Rio de Janeiro”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 13, n. 3, pp. 711-736, 2020.), a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro (em 2018)9 9 Desde julho de 2017, entretanto, as Forças Armadas já atuavam no policiamento do Rio de Janeiro, a partir de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mecanismo constitucional que permite ao presidente da República acioná-las quando julgar necessário. A intervenção consistiu em uma consolidação e ampliação desse processo. , concentrada evidentemente nas favelas e pautada no modelo de militarização com base na ideologia de guerra às drogas, demonstra a oscilação dos governos entre as medidas repressivas e as tentativas de colocar em prática o policiamento comunitário. Esse processo expande e se intensifica principalmente em direção aos negros e pobres moradores de favelas, por meio dos dispositivos militarizados de controle. Nessa perspectiva, a intervenção é um projeto de continuidade das políticas anteriores que, ao mesmo tempo, rompe com o ideal declarado de paz e retoma a guerra como forma de governo. O fato é que essas medidas não resultam na redução da criminalidade, tendendo a aumentá-la e fazendo da favela palco de enfrentamento bélico, arbitrariedades e execuções sumárias, diuturnamente, afastando o clima de prestação de serviços representado pela relação de fornecimento aqui explorada. Com isso, intensifica a violência policial e o extermínio da população negra por conta da simbiose entre controle penal e racismo por meio da “guerra ao crime” que, em última instância, é um projeto político de criminalização da pobreza (MORELLATO e SANTOS, p. 734)10 10 Para esses autores, tais mudanças nunca envolveram reformas significativas na gestão dos conflitos sociais na cidade. As representações sociais da “violência urbana”, acompanhadas de seu duplo, o medo e a percepção de insegurança, retornam como “objeto de preocupação nacional de forma desvinculada das dinâmicas estruturais imbricadas nesse fenômeno” (MORELLATO e SANTOS, 2020, pp. 711-712). O mais grave é que esse dispositivo de controle e gestão dos territórios de favelas tem se mostrado um recurso efetivo para legitimar as necropolíticas (MBEMBE, 2018; RODRIGUES, 2021). O novo capítulo da gestão pública de segurança apresenta-se como um retrocesso, pois representa o retorno da repressão e criminalização das favelas com outrora. .

A história recente das políticas de segurança pública no Rio de Janeiro tem, então, oscilado entre medidas explicitamente repressivas e projetos que buscaram, em tese, envolver práticas integradas em uma aproximação das comunidades, a depender do contexto político da sua existência. O fato é que essas mudanças nunca envolveram reformas significativas na gestão dos conflitos sociais na cidade, expressados em parte no formato “violência urbana”, objeto de preocupação nacional de forma desvinculada das dinâmicas estruturais imbricadas nesse fenômeno.

De volta ao conflito crítico entre moradores e Light, em 2023 os moradores da FSM seguem protestando nas ruas do bairro de Botafogo contra a concessionária de energia elétrica, realizando agora manifestações públicas de forma explícita, com a exibição de cartazes diante de câmeras de meios de comunicação (Figura 1), demonstrando que o Estado não cumpre com o seu papel, exigindo fornecimento de energia, entre outros serviços públicos essenciais, como o abastecimento de água e tratamento de esgoto. Eles questionam nos cartazes: “Cadê a Light?” e emulam nesses anúncios placas de segurança de instalações energéticas, como se anunciassem uma manutenção, dizendo: “Desculpem o transtorno”.

Por sua vez, a Light luta contra a falência e agoniza com a proximidade do término de seu contrato de concessão com o governo federal, previsto para 2026. Na tentativa de salvar as contas, busca autorização da Aneel para aumentar a tarifa energética e segue acusando os moradores de furtarem energia da rede, dessa vez também de forma mais explícita, motivo pelo qual justifica falhas no fornecimento. Em resposta aos protestos, a empresa afirma que o problema enfrentado pelos moradores é decorrente das ligações clandestinas que sobrecarregam a rede elétrica da companhia, em uma crítica explícita da empresa aos moradores, acusando-os abertamente de praticarem um delito. Nesse sentido, estes ficam mais uma vez expostos não apenas à sujeição criminal, por acumulação social da violência, bem como à sujeição desordeira (LORETTI, 2016LORETTI, Pricila. Todas as energias da crítica: um estudo do conflito entre uma concessionária de energia elétrica e os moradores na Favela Santa Marta, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Pois, apesar de não serem formalmente incriminados, são rotulados (BECKER, 2008[1963]; GARCÍA et al., 2022GARCÍA, Gérman. et al., Das distorções da criminologia do Norte global a uma nova cosmovisão na criminologia do Sul. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol.15, n.01,pp. 179-199, 2022.) como sujeitos da desordem pública.

Assim, a falência das UPPs vem encontrando eco na saída formal dos serviços públicos, reverberando também na alteração do tipo de crítica efetivada, agora explicitamente acusatorial. Ao contrário da insinuação, ela não esconde o julgamento moral sobre a parte criticada, expressando uma condenação das práticas alheias.

Figura 1:
Moradores protestam na Rua São Clemente, em Botafogo, em frente à entrada da Santa Marta

Considerações finais

Como efeito da política pública de segurança baseada no policiamento comunitário, iniciou-se o processo de regularização dos serviços públicos na Favela Santa Marta, entre os quais destaquei o fornecimento de energia elétrica no Morro Dona Marta.

Passada mais de uma década desde as minhas primeiras incursões nas favelas, muitas mudanças ocorreram em relação às políticas públicas de segurança, o que pode ser atestado em diversos trabalhos, citados ao longo do texto, acerca de seu surgimento, manutenção e fracasso. Vimos que a política pública de segurança anunciada não se manteve, culminando em uma nova onda de confrontos entre a Polícia Militar e os traficantes de drogas, em um cenário já conhecido no Rio de Janeiro e também em outros estados brasileiros, nos quais os sujeitos se inserem, mais ou menos, em redes de criminais, e de qualquer forma, por sua proximidade a essas redes, acabam sofrendo seus efeito (FREIRE e TEIXEIRA, 2019FREIRE, Jussara; TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. “Sociabilidade violenta, o bandido e Deus: considerações sobre a gramática da violência urbana”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social., Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1, pp. 124-150, 2019.; HIRATA e GRILLO, 2019HIRATA, Daniel Veloso; GRILLO, Carolina Christoph. “Movement and Death: Illicit Drug Markets in the Cities of São Paulo and Rio De Janeiro”. Journal of Illicit Economies and Development, vol. 1, n. 2, pp. 122-133, 2019.; LIRA, 2015LIRA, Diogo. A república dos meninos: Juventude, tráfico e virtude. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015.; MACHADO DA SILVA, 1999MACHADO DA SILVA, Luís Antonio. Criminalidade violenta: por uma nova perspectiva de análise. Revista Sociologia Política [Internet], n. 13, pp 115-24, 1999.; MISSE, [2022MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2022 [1999].] 1999; MORELLATO e SANTOS, 2020MORELLATO, Ana Carolina Bastos; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos. “Intervenção federal e a guerra contra os pobres na cidade do Rio de Janeiro”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 13, n. 3, pp. 711-736, 2020.). A pesquisa etnográfica apontou para um tipo predominante de crítica, a insinuação, evidenciada em momentos críticos de mobilização coletiva de moradores das favelas em torno do mesmo problema público, reunindo um público interessado em buscar soluções. A partir desse mecanismo, os atores analisados permanecem em uma rotina em que acordos são ajustados em meio a acusações, tendo de ser refeitos diversas vezes, sem nunca resolver o conflito.

Se de início a Light precisava legitimar as regras a partir de uma série de discursos sobre eficiência no uso de um bem comum, demonstrando que a situação era favorável para ambos os lados, depois de alguns meses revelou-se que as normas não passavam de um cumprimento das exigências de regulação compulsória do Governo Federal - esse sim o responsável pelos descontos iniciais nas contas de energia elétrica -, ao qual a concessionária estava subordinada, de modo que a tarifa social anunciada pela empresa não era exatamente um benefício ofertado por ela a seus clientes da favela.

Sem diferenciar as ações governamentais da atuação da empresa em tempos de tentativa de aproximar e gerar confiança entre moradores e policiais, tendo como base não apenas a minha, mas diversas pesquisas de colegas realizadas durante a era das UPPs (LEITE, 2000; MENEZES, 2015MENEZES, Palloma. Entre o “Fogo Cruzado” e o “Campo Minado”: uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.; MACHADO DA SILVA, 2015MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “A experiência das UPPs: uma tomada de posição”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 1, pp. 7-24, 2015.) pode-se dizer que se tratou de uma relação problemática e tensa em um momento de indefinição. O fato de a Light ter entrado na favela na esteira da política pública de segurança com o discurso político da integração de favela à cidade, opondo-se à metáfora da guerra (LEITE, 2001), apesar da esperança de mudança social, foi recebida pelos moradores, ao mesmo tempo, com uma alta dose de desconfiança.

A confiança entre os atores sociais implicaria a ausência dos elementos de incerteza e vulnerabilidade (MÖLLERING, 2001MÖLLERING, Guido. “The Nature of Trust: From Georg Simmel to a Theory of Expectation, Interpretation and Suspension”. Sociology, Londres, vol. 35, n. 2, pp. 403-420, 2001.), estes presentes na relação entre a empresa e seus clientes, bem como entre os moradores de favelas e a polícia, constituindo-se, portanto, uma questão antiga. Paradoxalmente, a confiança que se pretende alcançar pelo novo acordo estabelecido entre as partes está atrelada à razão, à rotina e à reflexividade (MÖLLERING, 2001). A noção de “desconfiança” pode ser pensada como um conjunto de procedimentos de ação que, embora problemáticos na continuidade da vida das pessoas/entes sociais, permitem certas formas de manutenção da rotina (MÖLLERING, 2001; MOTA, 2018MOTA, Fábio Reis. “Do indivíduo blasé aos sujeitos cismados: reflexões antropológicas sobre as políticas de reconhecimento na contemporaneidade”. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, Niterói, n. 44, pp. 124-148, 2018.; TALONE, 2018TALONE, Vittorio. “Evitação e afastamento como dispositivos morais da gramática da desconfiança: uma leitura pragmatista do deslocamento urbano pela ‘violenta’ cidade do Rio de Janeiro”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 1, pp. 153-172, 2018.). Apesar da desconfiança ou da “cisma” (MOTA, 2018) - na era da UPP deu-se uma rotinização (WERNECK, 2022WERNECK, Alexandre. The Force of Grace, the Grace of Force: Joking Critique of Figures of ‘Urban Violence’ on the Covers of a Tabloid Newspaper as the ‘Violentization’ of Public Discourse. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 3, pp. 735-773, 2022.) que implicou um esforço para relacionar-se de forma não violenta, ou seja, pacificamente -, buscou-se, então, a aproximação, o reconhecimento das identidades em questão, em vez da negação do outro ou de sua concepção como inimigo ou ameaça, por oposição às ideias de evitação e afastamento presentes nos contextos de violência (TALONE, 2018) e que marcam as relações de desconfiança.

Dialogar com a dicotomia confiança/desconfiança possibilita pensar o quanto a própria insinuação, elaborada como crítica específica analisada na era das UPPs permite demonstrar a falta dos elementos de confiança entre as partes do conflito, pois o dispositivo comunicacional utilizado expressou uma relação tensa, conflituosa, tendo como base a incerteza, uma relação precarizada por décadas entre a empresa e os seus clientes. Assim, a insinuação é parte de um dispositivo, uma forma de crítica, operando por uma gramática da desconfiança, mas que, de um modo ou de outro, contribui para a manutenção de uma rotina problemática.

Esse papel ambíguo da concessionária é o que faz com que ela seja percebida em muitas situações pelos moradores como o próprio Estado e em outras produz a alienação da capacidade de regulação do poder público sobre a empresa, que poderia ser convocado pela própria população. Assim, as críticas feitas à Light estendem-se ao poder público, bem como as críticas feitas à empresa recaíram ao papel de controle do Estado.

A prática da fraude na rede elétrica apareceu aqui como uma crítica exit. Durante meu trabalho de campo nenhuma ação formal em relação às fraudes na rede elétrica de parte da concessionária referente aos moradores foi tomada. Porém, alguns moradores tentaram transformar sua insatisfação em denúncias públicas organizadas por meio de manifestações coletivas organizadas ora pelos movimentos sociais das favelas ora por formação de grupos efêmeros de moradores descontentes, com exceção de apenas um caso de processo judicial contra a concessionária do qual tomei conhecimento. Nesse caso, como narrei, a Light fez um corte por inadimplência e não religou a energia após o pagamento. As evidências apontaram para a persistência de insinuação (mútua).

Em meu estudo de caso, não encontrei relatos de ofertas de ligações clandestinas por parte de funcionários da concessionária, salvo o caso da moradora Adeliana, mas cabe notar que ela morava em outro morro, o Chapéu Mangueira, no Leme, também na Zona Sul carioca. No geral, por se tratar de moradores de favelas e Light, a desconfiança é mútua. Na relação entre prestadora e clientes persiste uma espécie de predisposição histórica para o acordo tácito entre o pagar a conta e tolerar a prática do “gato” nas favelas e, portanto, uma crítica insinuada. Por fim, o retorno da crítica acusatorial explicita o fim de uma estabilidade rotinizada representada pela era das UPPs e um retorno de políticas com fundamento na metáfora de guerra (LEITE, 2014LEITE, Márcia da Silva Pereira. “Entre a ‘guerra’ e a ‘paz’: Unidades de Polícia Pacificadora e gestão dos territórios de favela no Rio de Janeiro”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 4, pp. 625-642, 2014.) e na necropolítica (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 Edições, 2018.; RODRIGUES, 2021RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. “Necropolítica: uma pequena ressalva crítica à luz das lógicas do ‘arrego’”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 1, pp. 189-218, 2021.), após a incontestável falência do modelo representado pelas UPPs.

Referências

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  • WERNECK, Alexandre; LORETTI, Pricila. “Forma-crítica, formas da crítica: as diferentes dimensões do discurso de descontentamento”. In: CANTU, Rodrigo; LEAL, Sayonara; CORRÊA, Diogo Silva; CHARTAIN, Laura. (org.). Sociologia, crítica e pragmatismo: diálogos entre França e Brasil. Campinas: Pontes, 2019, pp. 349-386.
  • YACCOUB, Hilaine. Atirei o pau no ‘gato’: uma análise sobre o furto e o consumo de energia (“dos novos consumidores”) em um bairro popular de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
  • 1
    O projeto expandiu-se, contabilizando um total de 38 unidades. Para um panorama do programa, ver o dossiê publicado em Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 8, n. 1, 2015, no qual autores estudiosos do tema discutem os sentidos da pacificação. Entre os estudiosos de favelas, é comum o uso do termo “pacificação” assim, entre aspas, porque há todo um debate questionador do conceito adotado na política da Secretaria Estadual de Segurança Pública. Por essa razão, o termo é encarado como uma categoria a ser investigada tanto por antropólogos quanto por sociólogos. Nesse sentido, tomo como premissa o fato de haver uma UPP na história da Santa Marta e de ela ter servido como forma de instauração da relação de fornecimento de um serviço aqui analisada.
  • 2
    Para uma síntese, ver Werneck (2019).
  • 3
    Ao mesmo tempo, isso pareceu facilitar a realização de eventos contando com a presença de ilustres autoridades da cena política, sejam atores da própria favela, governantes, empresários, pesquisadores universitários, sejam turistas e vizinhos de Botafogo.
  • 4
    É um representante da Light com o papel de levar as demandas dos moradores à empresa e trazer as respostas da companhia. Trata-se de uma espécie de porta-voz entre as partes, exercendo uma função de relações públicas, divulgando campanhas, datas importantes e fazendo informes gerais em nome da empresa.
  • 5
    É um instrumento legal, previsto no artigo 129, inciso I, da Resolução nº 414/2010 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), com a finalidade de formalizar a constatação de qualquer irregularidade encontrada nas unidades de consumo dos usuários de energia elétrica que proporcione faturamento inferior ao real. Para tanto, pormenoriza todos os dados do titular e da unidade consumidora irregular, bem como a irregularidade constatada. Trata-se de um dispositivo de controle e repressão por fraude na rede elétrica, no qual o cliente recebe uma comunicação técnica e oficial da empresa cobrando uma multa pela prática ilegal. No entanto, para emitir o TOI, a Light precisa produzir uma prova de que realmente haja fraude no medidor. Para tanto é realizada uma visita de inspeção do medidor da unidade consumidora, momento em que se entrega uma cópia do documento ao morador. Já que na favela estava instalado um sistema que foi proclamado antifraude, seria incoerente emitir esse termo. Assim, mesmo que fosse possível realizar os “gatos”, não era possível confirmar que eles estavam sendo feitos para não desmentir a empresa sobre o fato de seu sistema ser incorruptível.
  • 6
    Werneck (2012) propõe dois tipos de desculpa - tipo de account para ele fundado nas circunstâncias, diferentemente das justificativas, fundadas no universal. Além de um tipo chamado de “é assim mesmo”, no qual se afirma que a circunstância corresponde a uma normalidade alternativa, ele propõe haver a desculpa do “não era eu”, em que se afirma que o ator ou a situação passou, nesta última, por uma alteração de seu estado de normalidade.
  • 7
    Todos os nomes são fictícios para proteger a identidades de meus interlocutores.
  • 8
    Cabe ressaltar que o gestor em questão apenas atuava em favelas pacificadas, sendo ele próprio morador de um bairro popular. Essa sensibilidade e empatia para com o drama dos moradores advêm, possivelmente, do fato de ele se identificar mais como a realidade desses clientes do que com a política de corte da empresa por falta de pagamento.
  • 9
    Desde julho de 2017, entretanto, as Forças Armadas já atuavam no policiamento do Rio de Janeiro, a partir de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mecanismo constitucional que permite ao presidente da República acioná-las quando julgar necessário. A intervenção consistiu em uma consolidação e ampliação desse processo.
  • 10
    Para esses autores, tais mudanças nunca envolveram reformas significativas na gestão dos conflitos sociais na cidade. As representações sociais da “violência urbana”, acompanhadas de seu duplo, o medo e a percepção de insegurança, retornam como “objeto de preocupação nacional de forma desvinculada das dinâmicas estruturais imbricadas nesse fenômeno” (MORELLATO e SANTOS, 2020, pp. 711-712). O mais grave é que esse dispositivo de controle e gestão dos territórios de favelas tem se mostrado um recurso efetivo para legitimar as necropolíticas (MBEMBE, 2018; RODRIGUES, 2021). O novo capítulo da gestão pública de segurança apresenta-se como um retrocesso, pois representa o retorno da repressão e criminalização das favelas com outrora.

Editado por

Editor responsável:

Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2023
  • Aceito
    02 Ago 2023
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