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Terraços e suas relações com a incisão fluvial em grandes escarpamentos de margem passiva: aspectos genéticos e geocronológicos

Resumo

Terraços fluviais e seus tratos deposicionais são geoindicadores importantes de condições ambientais pretéritas e da evolução neoquaternária do relevo, e em regiões de grandes escarpamentos de margem passiva assumem diferentes vínculos genéticos. O presente artigo assume o objetivo de discutir causas geradoras dessas geoformas, empreendendo técnicas de análise faciológica e geocronológicas e atinando para os padrões gerais de ocorrência e distribuição, bem como para as particularidades, articulando as tipicidades regionais e os controles locais. Para tanto, foram realizadas datações por Luminescência Opticamente Estimulada (LOE) e análises de fácies em nove terraços fluviais, interpretadas integradamente a outros resultados cronológicos, obtendo-se idades compreendidas entre o Pleistoceno terminal e o Holoceno. Quanto aos vínculos genéticos, foram encontrados terraços gerados por captura fluvial, transposição de soleiras e entalhe vertical por soerguimento tectônico, resultados que ampliam o conhecimento acerca da organização sedimentar no domínio dos grandes escarpamentos, permitindo ainda a correlação com outros estudos regionais.

Palavras-chave:
Níveis deposicionais fluviais; Captura fluvial; Entalhe vertical; Controle neotectônico; Luminescência Opticamente Estimulada

Abstract

Fluvial terraces and their depositional tracts are important geoindicators of past environmental conditions and the relief neoquaternary evolution, and in regions of great escarpments passive margins assume different genetic links. This article aims to discuss different causes generate these geoforms, using techniques of faciologic and geochronological analysis and paying attention to general patterns of occurrence and distribution, as well as to particularities, articulating regional characteristics and local controls. For this purpose, dating by Optically Stimulated Luminescence (OSL) and facies analyzes on nine river terraces, integrated with other chronological results, obtaining ages between the terminal Pleistocene and the Holocene. As for genetic links, terraces generated by river capture, transposition of thresholds and vertical notch by tectonic uplift were found, results that expand the knowledge about the sedimentary organization in the great escarpments domain, allowing the correlation with other regional studies.

Keywords:
Fluvial depositional levels; Fluvial captures; Vertical notch; Neotectonic control; Optically Stimulated Luminescence

Resumen

Las terrazas fluviales y sus tramos de depósito son importantes geoindicadores de las condiciones ambientales pasadas y de la evolución Neocuaternaria del relieve, y en regiones con grandes escarpes de margen pasivo asumen diferentes vínculos genéticos. El presente artículo asume el objetivo de discutir las causas que generan estas geoformas, utilizando técnicas de análisis faciológico y geocronológico y considerando los patrones generales de ocurrencia y distribución, así como las particularidades, articulando tipicidades regionales y controles locales. Para ello, se realizaron dataciones y análisis de facies por Luminiscencia Ópticamente Estimulada (OE) en nueve terrazas fluviales, interpretadas en conjunto con otros resultados cronológicos, obteniendo edades entre el Pleistoceno terminal y el Holoceno. En cuanto a los vínculos genéticos, se encontraron terrazas generadas por captación de ríos, transposición de sills y muescas verticales por levantamiento tectónico, resultados que amplían el conocimiento sobre la organización sedimentaria en el dominio de los grandes escarpes, permitiendo además la correlación con otros estudios regionales.

Palabras clave:
Niveles de depósitos fluviales; captura de río; muesca vertical; control neotectónico; Luminiscencia estimulada ópticamente

Introdução

O relevo concernente à região dos grandes escarpamentos do sudeste brasileiro é dissecado por canais caracterizados por forte incisão vertical, organizados em uma rede de drenagem que demanda diretamente o Oceano Atlântico e outro que drena em direção ao interior do continente, tendo como nível de base grandes rios que também têm foz atlântica. Dispõem-se então bacias de forte agressividade erosiva formadas pelos canais mais próximos do nível de base atlântico, e um conjunto de bacias de significativa expressão espacial voltadas para o interior, formadoras das bacias do Paraná e do São Francisco. Embora os modelos de evolução do relevo em margens passivas referenciados no princípio do equilíbrio isostático flexural prevejam uma denudação mais agressiva nas vertentes oceânicas dos grandes escarpamentos em comparação às vertentes interiores ( Macedo, 1989MACEDO, J. M. Evolução tectônica da Bacia de Santos e áreas continentais adjacentes. Boletim de Geociências da Petrobrás, v.3, n. 3, p. 159-173, 1989.; Summerfield, 1991; Gilchrist e Summerfield, 1994GILCHRIST, A. R.; SUMMERFIELD, M. A. Tectonic models of passive margin evolution and their implications for theories of long-term landscape development. In: KIRKBY, M.J. (ed.). Process Models and Theoretical Geomorfology. New York: Jonh Wiley & Sons, 1994. p. 55-84; Marent et al. 2013MARENT, B. R.; SALGADO, A. A. R.; SANTOS, L. J. C. Modelo de evolução do relevo em margens passivas em regiões de grandes escarpamentos. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 14, n. 2, p. 235-240, 2013.), tal como comprovam datações por BE ( Salgado et al. 2014SALGADO, A. A. R.; MARENT, B. R.; CHEREM, L. F. S.; BOURLÉS, D.; SANTOS, L. J. C.; BRAUCHER, R.; BARRETO, H. N. Denudation and retreat of the Serra do Mar escarpment in Southern Brazil derived from in situ produced 10Be concentrated in river sediments. Earth Surface Processes and Landforms, v. 19, n. 3, p. 311-319, 2014.; Salgado et al. 2016SALGADO, A. A. R.; REZENDE, E. A.; BOURLÈS, D.; BRAUCHER, R.; SILVA, J. R.; GARCIA, R. A. Relief evolution of the Continental Rift of Sotuheast Brazil revealed by in situ-produced 10Be concentration in river-borne sediments. Journal of South America Earth Sciences, v. 67, p. 89-99, 2016.), também é reconhecido o papel das capturas fluviais, ( Cherem et al. 2013CHEREM, L. F.; VARAJÃO, C. A.; MAGALHÃES JR. A.; VARAJÃO, A. F. D. C.; SALGADO, A. A. R.; OLIVEIRA, L. A. F.; BERTOLINI, W. Z. O papel das capturas fluviais na morfodinâmica das bordas planálticas do sudeste do Brasil. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 14, n. 4, p. 299-308, 2013.; Rezende et al. 2013REZENDE, E. A.; SALGADO, A. A. R.; SILVA, J. R.; BOURLÈS, D.; BRAUCHER, R.; LÉANNI, L. Fatores controladores na evolução do relevo no flanco NNW do rif continental do sudeste do Brasil: uma análise baseada na mensuração de processos denudacionais de longo-termo. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 14, n. 2, p. 221-234, 2013. https://doi.org/10.20502/rbg.v14i2.416
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) da litologia e da tectônica ( Saadi, 1991SAADI, A. Ensaio sobre a morfotectônica de Minas Gerais: tensões intraplaca, descontinuidades crustais e morfogênese. Tese (Professor Titular) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, 1991.; Santos, 1999SANTOS, M. Serra da Mantiqueira e Planalto do Alto Rio Grande: a bacia terciária de Aiuruoca e evolução morfotectônica. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1999.; Marques Neto e Perez Filho, 2013MARQUES NETO, R.; PEREZ FILHO, A. Análise morfoestrutural e morfotectônica da bacia do rio Verde, sul de Minas Gerais. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 14, n. 4, p. 271-277, 2013.) na evolução desses sistemas geomorfológicos.

Diante dos contrastes erosivos, a evolução geomórfica tende a ser diferente entre as bacias hidrográficas que drenam para o interior daquelas referenciadas diretamente no nível de base atlântico (Summerfield, 1991). Os relevos de origem tectônica da fachada atlântica brasileira apresentam sequências de soleiras vinculadas a níveis de base locais geradas por erosão diferencial, mas também comumente formadas devido a pulsos tectônicos geradores de uplifts locais e basculamento de blocos. Esse escalonamento do relevo é bem marcado na porção interior desses escarpamentos, onde os tratos deposicionais variam de pequenos alvéolos altimontanos suspensos até as planícies desenvolvidas nos níveis de base regionais, como aquelas vinculadas aos rios Sapucaí, Verde e Grande.

Terraços são geoindicadores importantes na paisagem, preservando registros deposicionais muitas vezes valiosos para deduções acerca do controle climático e tectônico na evolução do relevo ( Leopold et al. 1964LEOPOLD, L. B.; WOLMAN, M. G.; MILLER, J. P. Fluvial process in geomorphology. San Francisco: Freeman and Company. 1964.; Schumm, 1977SCHUMM, S. A. The fluvial systen. New York: J. Wiley & Sons, 1977.; Christofoletti, 1981CHRISTOFOLETTI, A. Geomorfologia fluvial. São Paulo: Edgard Blucher, 1981.; Charlton, 2008CHARLTON, R. Fundamentals of fluvial geomorphology. London: Routledge, 2008.). Em função disso, os terraços têm sido tomados como objeto de estudo nuclear em diversas pesquisas geocronologicamente estabelecidas no Quaternário ( Etchebehere, 2000ETCHEBEHERE, M. L. C. Terraços Neoquaternários no Vale do Rio do Peixe, Planalto Ocidental Paulista: implicações estratigráficas e tectônicas. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo, 2000.; Oliveira, 2012OLIVEIRA, L. A. F. A dinâmica fluvial quaternária e a configuração do modelado do relevo no contato entre a Depressão do Rio Pomba e o Planalto de Campos das Vertentes. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.; Rubira e Perez Filho, 2019RUBIRA, F. G.; PEREZ FILHO, A. Geocronologia de eventos deposicionais associados às coberturas superficiais que sustentam e recobrem níveis de terraços marinhos pleistocênicos e holocênicos no litoral sul de Santa Catarina (SC). Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 20, n. 3, p. 581-602, 2019. https://doi.org/10.20502/rbg.v20i3.1339
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). Em contextos geomorfológicos de grandes escarpamentos, caracterizados pela tectônica ativa e por acentuado trabalho de dissecação e incisão fluvial, essas geoformas podem assumir significados distintos, sendo assim valiosas para a compreensão da evolução neoquaternária da paisagem.

No contexto da Serra da Mantiqueira, terraços persistem na paisagem de forma descontínua, porém recorrente, auxiliando a interpretação de importantes fatores intervenientes na evolução quaternária da paisagem. Em apreço às questões levantadas, o presente artigo assume o intuito de discutir elementos atuantes na evolução quaternária do relevo na porção interior da Mantiqueira Meridional mineira a partir da interpretação da gênese e idade de sedimentos presentes em terraços fluviais em suas relações com os controles tectono-estruturais vigentes. Para tanto, foram investigados arquivos deposicionais com foco no seu vínculo genético e nas suas relações com o contexto geomorfológico local e regional, procedimento sustentado na análise faciológica de depósitos em seções estratigráficas selecionadas e na datação desses materiais por Luminescência Opticamente Estimulada (LOE).

Materiais e Métodos

Os materiais visados para datação foram depósitos fluviais enterrados, de acresção vertical ou lateral, e horizontes orgânicos retrabalhados por pedogênese sobreposta ou inumados por materiais de cobertura. A coleta do material se deu mediante o emprego de tubo PVC de coloração escura para evitar a passagem de radiação solar. O tubo foi introduzido nos corpos deposicionais sempre em níveis mais profundos que 1,0 m, tendo suas extremidades vedadas para evitar incidência de radiação; na mesma lógica, foram firmemente embalados em plástico preto e, em seguida, enviados ao laboratório Datação Comércio e Prestação de Serviços Ltda, onde os ensaios foram realizados. Foram feitas nove coletas para datação em depósitos diferentes, e, subsequentemente, seus resultados foram comparados aos resultados de outros ensaios de datação por LOE realizados na área por Autor (2013) a fim de obter uma maior cobertura espacial a partir das unidades amostrais. Os depósitos datados não foram os únicos analisados ao longo da pesquisa, porém foram selecionados em função da sua preservação na paisagem do fundo de vale e de sua posição na área de estudo, a pretexto de recolher amostragens representativas em diferentes contextos tectono-estruturais. A localização e elevação dos depósitos analisados foram aferidas com GPS Garmin, modelo Etrex.

Em campo também foram anotadas as altimetrias dos depósitos, referenciadas pela elevação do ponto de coleta e da linha de drenagem ativa, medida no ponto mais próximo possível do talvegue. Subsequentemente foram mensuradas taxas de incisão ( Burbank e Anderson, 2011BURBANK, D. W.; ANDERSON, R. S. Tectonic Geomorphology. New York: John Wiley & Sons, 2011.; Rezende, 2018REZENDE, E. A; CASTRO P. T. A. Evolução da rede de drenagem e evidências de antigas conexões entre as bacias dos rios Grande e São Francisco no sudeste brasileiro. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 19, n. 3, p. 483-501, 2018. https:// doi.org/10.20502/rbg.v19i3.1304
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) dividindo a diferença altimétrica entre a altura do depósito e da calha ativa pela idade encontrada:

T a x a d e i n c i s ã o m m k A = a l t i t u d e d o d e p ó s i t o - a l t i t u d e d a c a l h a a t u a l ÷ i d a d e d o d e p ó s i t o

Para fins de visualização da posição do terraço no fundo do vale foram elaborados perfis transversais a partir do Google Earth, ambiente no qual foram descarregadas as coordenadas em UTM obtidas em campo. As seções transversais foram capturadas em diferentes distâncias de voo devido à conveniência em se ajustar a extensão das seções apresentadas à morfologia do fundo do vale, o que faz com que as referidas extensões não sejam as mesmas para cada representação. Posteriormente, as seções georreferenciadas foram redesenhadas em software CAD.

Doravante, os corpos deposicionais objetos de datação foram interpretados em relação ao sistema geomorfológico no qual se inscrevem, procurando diferenciar os terraços gerados por controle estrutural, vinculados a contatos litológicos ou ao entalhe que os canais promovem ao transporem uma soleira rochosa, os terraços gerados por entalhe em função de controle morfotectônico e aqueles vinculados a rearranjos da drenagem por captura fluvial.

Os procedimentos laboratoriais de datação seguiram o protocolo SAR (Single Aliquot Regenerative Doses) em 15 alíquotas. A LOE, conforme sabido, indica a idade aproximada em que o sedimento foi sepultado por deposição sobreposta e os quartzos e feldspatos isolados do contato com a luz, aprisionando os elétrons no retículo cristalino destes minerais, ocorrendo o decaimento de elementos radioativos (U, Th, K, Rb) e podendo criar elétrons livres que ficam aprisionados no mineral ( Jacobs e Roberts, 2007JACOBS, Z.; ROBERTS, R. G. Advances in optically stimulated luminescence dating of individual grains of quartz from archeological deposits. Evolutionary Anthropology, v. 1, n. 6, p. 210-223, 2007. https://doi.org/10.1002/evan.20150
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; Anderson e Anderson, 2010ANDERSON, R. S.; ANDERSON, S. P. Geomorphology: the mechanics and chemistry of landscapes. UK: Cambridge University Press, 2010.; Bierman e Montgomery, 2014BIERMAN, P. R.; MONTGOMERY, D. R. Key concepts in Geomorphology. New York: Freeman and Company, 2014.).

Como procedimento acessório, foram realizadas análises laboratoriais de granulometria, matéria orgânica e elementos químicos dominantes (Al, K, P, Ca e Mg) no material datado e nos materiais de recobrimento no intuito de melhor compreender os aspectos geoquímicos dos diferentes tratos deposicionais quanto a sua composição organo-mineral. Também foram analisadas a saturação por alumínio, saturação por bases e capacidade de troca catiônica (CTC). Os ensaios foram levados a efeito no Laboratório de Solos da Universidade Federal de Lavras por meio do protocolo Melinch. Devido ao espaço significativo que a apresentação dos resultados contidos nos boletins demanda, foi feita a opção por não apresentar os mesmos no corpo do presente artigo.

As análises laboratoriais subsidiaram uma divisão dos depósitos segundo as fácies identificáveis em campo, categorizadas em adaptação ao sistema metodológico de Miall (1984MIALL, A. D. Principles of sedimentary basin analysis. New York: Springer Verlag, 1984., 1986). As fácies fluviais encontradas foram representadas por uma letra maiúscula indicativa da fração granulométrica dominante, seguida de uma ou duas letras minúsculas que sinalizam granulometrias acessórias e/ou traços específicos, como horizontes orgânicos e assinaturas estratigráficas preservadas. Predomínio de materiais finos (silte\argila) foi representado pela letra F (fine), de areias pela letra S (sand) e de materiais clásticos pela letra G (gravel). Em seguida, os depósitos foram representados em perfis e correlacionados com o ambiente deposicional, atinando para as similitudes e discrepâncias entre os processos pretéritos e atuais.

A área de estudo

A Serra da Mantiqueira figura como um dos sistemas geomorfológicos mais significativamente acometidos por controle morfotectônico em todo o contexto da Plataforma Brasileira ( Saadi, 1991SAADI, A. Ensaio sobre a morfotectônica de Minas Gerais: tensões intraplaca, descontinuidades crustais e morfogênese. Tese (Professor Titular) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, 1991.; Gontijo, 1999GONTIJO, A. H. F. Morfotectônica do médio vale do Rio Paraíba do Sul: região da Serra da Bocaina, estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Geologia) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista. Rio Claro, 1999.; Santos, 1999SANTOS, M. Serra da Mantiqueira e Planalto do Alto Rio Grande: a bacia terciária de Aiuruoca e evolução morfotectônica. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1999.; Ribeiro, 2003RIBEIRO, M. C. S. História tectônica e exumação das serras da Bocaina e Mantiqueira, SP/RJ. Dissertação (Mestrado em Geologia Regional) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2003.; Chiessi, 2004CHIESSI, C. M. Tectônica Cenozoica no Maciço Alcalino de Passa Quatro (SP-MG-RJ). Dissertação (Mestrado em Geologia) - Instituto de Geociências, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.; Morales, 2005MORALES, N. Neotectônica em ambiente intraplaca: exemplos da região Sudeste do Brasil. Tese (Livre Docência em Geologia Estrutural e Geotectônica), Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2005.; Silva e Mello, 2011SILVA, T. P.; MELLO, C. L. Reativações neotectônicas na Zona de Cisalhamento do Rio Paraíba do Sul (sudeste do Brasil). Revista do Instituto de Geociências, v. 11, n. 1, p. 95-111, 2011. DOI: https://doi.org/10.5327/Z1519-874X2011000100006
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; Marques Neto, 2012MARQUES NETO, R. Estudo evolutivo do sistema morfoclimático e morfotectônico da bacia do Rio Verde (MG), sudeste do Brasil. Tese (Doutorado em Geografia). - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2012.; Silva, 2023SILVA, F. P. Análise morfotectônica comparativa entre os setores meridional e setentrional da Serra da Mantiqueira, sudeste do Brasil. Tese (Doutorado em Geografia), Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. ). Corresponde a um conjunto de zonas de cisalhamento de orientação predominante ENE com basculamento para NW, consubstanciando um horst contínuo que, em seu ramo meridional, se alinha na margem atlântica do sudeste brasileiro juntamente ao gráben do rio Paraíba do Sul e ao horst da Serra do Mar. Esses alinhamentos escarpados se referem às estruturas pré-cambrianas reativadas por efeito do sistema rifte continental do sudeste brasileiro ( Riccomini, 1989RICCOMINI, C.; SANT’ANNA, L. G.; FERRARI, A. L. Evolução geológica do Rift Continental do Sudeste do Brasil. In: MANTESSO-NETO, V. BARTORELLI, A.; CARNEIRO, C. D. R.; BRITO NEVES, B. B. (org.) Geologia do Continente Sul-Americano: evolução da obra de Fernando Flávio Marques de Almeida. São Paulo: Beca, 2004. p. 407-421.). Geomorfologicamente, a região foi designada por Gatto et al. (1983GATTO, L. C. S.; RAMOS, V. L. S.; NUNES, B. T. A.; MAMEDE, L.; GÓES, M. H. B.; MAURO, C. A.; ALVARENGA, S. M.; FRANCO, E. M. S.; QUIRICO, A. F.; NEVES, L. B. Geomorfologia. In: Projeto RADAMBRASIL. Folha SF-23/24 Rio de Janeiro/Vitória. Rio de Janeiro: IBGE, 1983.) por Mantiqueira Meridional.

O soerguimento plataformal e a tectônica tafrogênica associada gerou escarpamentos e significativas amplitudes altimétricas, com formação de patamares tanto para o interior do continente como do lado litorâneo. A drenagem orientada para o interior continental se organiza em níveis de base escalonados que definem uma sucessão de superfícies planálticas até o contato com os sedimentos fanerozoicos da Bacia do Paraná. A drenagem que verteu em direção ao protoatlântico, por seu turno, encontra o nível de base geral perfazendo uma extensão superficial muito menor, o que contribui para uma substancial agressividade erosiva das bacias que drenam para leste, diretamente conectadas ao Atlântico Sul. No sudeste brasileiro, essa rede de drenagem comandou o rebaixamento dos cinturões orogênicos proterozoicos reativados no Mesozoico\Cenozoico Inferior e promoveu a abertura erosiva de depressões interplanálticas escalonadas acompanhada de cortes epigênicos promovidos por tributários diretos do rio Paraíba do Sul, conforme discutido por Paixão et al. (2020)PAIXÃO, R. W.; SALGADO, A. A. R.; FREITAS, M. M.; ALMEIDA, J. C. H. Possibilidade de endorreísmo e capturas fluviais na morfogênese da bacia do rio Paraíba do Sul. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 21, n. 4, p. 821-834, 2020..

O ramo meridional da Serra da Mantiqueira é definido pelo horst mais contínuo e elevado, que no seu reverso é dissecado pelos rios que demandam o interior do continente, e que na região tem o rio Grande como principal tronco coletor. Embora atualmente o referido curso d’água seja um dos formadores do rio Paraná, Rezende et al. (2018REZENDE, E. A; CASTRO P. T. A. Evolução da rede de drenagem e evidências de antigas conexões entre as bacias dos rios Grande e São Francisco no sudeste brasileiro. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 19, n. 3, p. 483-501, 2018. https:// doi.org/10.20502/rbg.v19i3.1304
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) sugerem que a alta bacia do rio Grande pertencia à bacia do rio São Francisco, tendo sido capturada e redirecionada para a bacia do Paraná durante o Cenozoico.

Marques Neto ( 2017MARQUES NETO, R. O horst da Mantiqueira Meridional: proposta de compartimentação morfoestrutural para sua porção mineira. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 18, n. 3, p. 561-577, 2017.) propôs uma compartimentação morfoestrutural para a área em apreço integralizando as unidades geomorfológicas existentes, os lineamentos estruturais do relevo e da drenagem, a configuração da malha hidrográfica e a base geológica. Os resultados denotam um forte controle das estruturas preexistentes, sobretudo na diferenciação entre os Patamares de Cimeira e os Patamares Escalonados, cuja espacialidade se alinha na orientação geral NE-SW ( Figura 1). Evidências de controle morfotectônico sobreposto aos arranjos estruturais também foram identificadas em todos os compartimentos, além dos terraços fluviais, bastante conspícuos nesses relevos tectônicos, onde apresentam diferentes vínculos genéticos a seguir discutidos.

Figura 1.
Localização e compartimentação morfoestrutural da Mantiqueira Meridional em sua porção mineira.

Resultados e discussão

Descrição faciológica e cronologia dos terraços analisados

Em geral, os terraços fluviais analisados encontram-se nos fundos de vale, na baixa vertente e acima das planícies fluviais ativas. A presença de terraços foi averiguada em todo o contexto na Mantiqueira Meridional, sendo essas feições recorrentes em todos os seus compartimentos morfoestruturais. Em alguns casos se referem a paleodepósitos fluviais, raramente com estruturas sedimentares preservadas, podendo conter horizontes orgânicos relacionados a paleosolos aluviais, normalmente enterrados e com pedogênese sobreposta. As informações gerais referentes aos nove pontos analisados por datação se encontram sintetizadas no quadro 1. Nas figuras 2 e 3, constam a espacialização dos pontos de coleta e as seções transversais dos ambientes deposicionais investigados. O quadro 2 traz o detalhamento dos ensaios de datação.

Quadro 1.
Síntese das informações geomorfológicas e cronológicas dos materiais datados.

Figura 2.
Distribuição dos pontos de coleta no contexto da Serra da Mantiqueira Meridional.

Figura 3.
Seções transversais dos ambientes deposicionais investigados.

Quadro 2.
Resultados dos ensaios de datação.

Foram três os significados genéticos interpretados para os terraços datados: (1) geração por captura fluvial; (2) entalhe por transposição de soleira rochosa; (3) entalhe por soerguimento epirogenético.

O primeiro terraço da sequência apresentada (T1) foi datado com base em um horizonte orgânico enterrado (fácies Fo), que consiste em um paleorganossolo formado no final do Pleistoceno e distintamente mais escuro que as fácies sobrejacentes. O material em questão ainda preserva marcas de raízes, e apresenta 65 cm de pedogênese sobreposta. O depósito chega a se desnivelar em até 2 metros em relação ao nível de base local, figurando como um antigo alvéolo de acumulação atualmente posicionado entre duas linhas de dissecação ativa e reafeiçoado por processos erosivos lineares exercidos por canais efêmeros. Encontra-se controlado por uma estrutura N-S.

A fácies orgânica foi aqui interpretada como uma turfeira soterrada, com um formato tendencialmente oblongo e distribuída em aproximadamente 70 metros no maior eixo e 25 metros em seu menor eixo, o que corresponde à expressão espacial deste alvéolo altimontano. Os esforços deformacionais neotectônicos tem acentuado os declives e forjado funções transmissoras a um geoambiente que, no passado, figurou como uma barreira geoquímica em ambiente eminentemente deposicional. Atualmente o depósito em questão está sendo drenado em seu perfil e erodido em sua porção mais emergente, apresentando, portanto, processos distintos daqueles vigentes ao final do Pleistoceno.

O perfil seguinte - T2 corresponde a um corpo deposicional posicionado em segmento de terraço descontínuo também em ambiente altimontano. O canal se aproxima do divisor da margem direita, sugerindo assim um basculamento da margem oposta, pela qual restam exposições dos horizontes orgânicos alçados do plano aluvial, encontrando-se atualmente lixiviado e com pedogênese sobreposta. Nesse ponto parece ter havido acumulação sedimentar em bacia de inundação, cuja depressão encontra-se em parte preservada, ainda que reafeiçoada em função do basculamento e dos processos de vertente consequentes.

Em parte, os processos pedogenéticos são de organização latossólica, formando-se Latossolos associados a Cambissolos sobre os pacotes orgânicos, indicando uma franca transformação, e que em alguns pontos atingem espessuras superiores a 1 metro. Por conseguinte, o grau de preservação dos corpos orgânicos correspondentes a esse depósito pleistocênico é variável, tendendo à desfiguração quanto maior é a cobertura lixiviada sobrejacente.

Na figura 4 são demonstradas as seções abertas para coleta, descrição faciológica e datação dos terraços gerados a partir de captura fluvial.

Figura 4.
Terraços geneticamente vinculados a capturas fluviais. (A) T1 - Córrego Bom Jesus; (B) T2- Lima Duarte. Localização das amostragens no Quadro 1.

Os terraços gerados a partir de incisão após transposição de soleira erosiva sem capturas fluviais associadas são dados por T3, T4 e T5 ( Figura 5). No âmbito desse conjunto, T3 apresenta uma sequência de fácies aluviais, coluviais e orgânicas com contatos bem registrados, muito embora as marcas estratigráficas plano-paralelas estejam precariamente preservadas e sem um padrão definido de distribuição das substâncias organo-minerais ao longo das fácies. A datação foi realizada na fácies Sf basal, de gênese aluvial por acresção vertical sugerida pela laminação plano-paralela. Nesse corpo deposicional, as demais fácies arenosas não apresentam marcas estratigráficas preservadas, sugerindo assim que não se tratam de depósitos de preenchimento lateral como barras de pontal, mas que correspondam a um conjunto de fácies de inundação truncadas pela formação de horizontes orgânicos denunciadores de períodos de relativa estabilidade. A granodecrescência ascendente reforça a hipótese de acresção vertical.

A fácies arenosa mais basal começa a ficar exposta a 1,02 m de profundidade, e, gradativamente, vai definindo marcas horizontais ainda que precariamente preservadas. A sequência deposicional é interrompida por um delgado horizonte orgânico, subjacente a outro corpo deposicional arenoso igualmente afilado que separa um horizonte orgânico mais espesso e enegrecido em relação ao anterior. Essa evidência sugere se tratar de um material mais recente e menos transformado em comparação à fácies orgânica mais basal, cujas características hidromórficas encontram-se mais desconfiguradas. A idade encontrada para a fácies basal sugere que o horizonte orgânico mais profundo também se formou em tempos neopleistocênicos, tendo sua evolução interrompida por um trato deposicional de acresção lateral subjacente ao horizonte orgânico mais emergente, provavelmente do Holoceno. De fato, a incisão mais branda indica uma mudança mais recente do nível de base local.

O perfil T4 apresenta fácies parecidas com o perfil anterior no que se refere à sucessão de registros de acresção vertical de textura areno-argilosa, com uma possível fácies de acresção lateral mais arenosa subjacente a horizonte orgânico. A datação, no entanto, acusou idade holocênica para este pacote, diferentemente da anterior, datada do final do Pleistoceno. Este corpo deposicional encontra-se 2,7 m acima do nível de base local, mais que o dobro em comparação aos 1,2 metros averiguados para o depósito anteriormente descrito, sugerindo um retrabalhamento mais intenso, que possivelmente se manteve resguardado em um desnível mais proeminente com a zona de trabalho fluvial, o que permitiu a conservação de horizontes orgânicos mais expressivos que puderam se formar durante o Holoceno.

O depósito amostrado em T5 também contém um horizonte orgânico neopleistocênico enterrado, este desnivelado 1,5 m em relação ao nível de base local. O material encontra-se em terraços fluviais geneticamente vinculados ao trabalho deposicional do córrrego Cambuí. É sugestiva uma movimentação no contato horst/gráben, com deformação dos depósitos, afloramentos rochosos em terraços e na base das vertentes, além da presença de uma falha inversa com solos imaturos sobrejacentes.

Figura 5.
Terraços geneticamente vinculados à transposição de soleiras. (A) T3 - Santa Bárbara do Monte Verde; (B) T4 - Santa Bárbara do Monte Verde; (C) - T5 - Maria da Fé.

O perfil T6 ( Figura 6) é bastante representativo das fácies mais recorrentes na área de estudo: horizonte orgânico enterrado com pedogênese sobreposta indicando antigos registros de hidromorfismo e evolução de solos em antigas planícies aluviais. A fácies superior representa a pedogênese ativa, dada por um horizonte A proeminente, e os dois pacotes intermediários figuram como uma zona de interpenetração entre processos pedogenéticos pretéritos e atuais, conforme apontado nos ensaios laboratoriais e pelas evidências de campo. Na base, um espesso pacote orgânico avulta como um paleossolo enterrado e desnivelado em pouco mais de três metros em relação à planície ativa. O terraço encontra-se recoberto por algum material coluvial, o que reafeiçoou sua morfologia mais interior para um aspecto em rampa, onde começam a imperar os processos de vertente.

A formação de horizonte orgânico também denota, para esse caso, uma relativa estabilidade pretérita, irrompida por provável basculamento da margem esquerda do canal, que migra em direção ao divisor da margem oposta, dado por um alinhamento bem marcado em falha normal. A parte emergente do pacote, acima do material orgânico, apresenta estrutura granular que tende para uma pedogênese latossólica e contrasta, dessa forma, com o material maciço subjacente desprovido de traços estratigráficos.

Para além do depósito datado, outras evidências de esforços deformacionais recentes vinculam-se ao sistema em falha normal bem definida no alinhamento do relevo. No hemigrábem distal ao alinhamento foi encontrado um paleocanal desconectado da drenagem ativa, e que corresponde ao antigo leito do mesmo canal adaptado à falha, que entalhou e migrou lateralmente de encontro ao divisor. A espessura decimétrica da linha de seixos arredondados a subarredondados com clastos subangulares acessórios indica contundente retrabalhamento em água. Define-se então uma situação morfoestratigráfica na qual a pedogênese transpôs a carga residual mediante uma organização estrutural argilúvica, desfazendo-se em blocos angulares a subarredondados. O material clástico é de constituição bastante homogênea, restrita a grãos de quartzo e matrizes feldspáticas de gnaisse-granitos. O horst adjacente, por seu turno, abriga vales suspensos paralelos desarticulados do nível de base, com escarpas compostas e escalonadas talhadas em facetas trapezoidais bem marcadas.

Na sequência, foi objeto de datação mais um horizonte orgânico desnivelado 2,7 metros em relação à planície ativa (T7). Nos Patamares Escalonados da Mantiqueira tais registros são mais rarefeitos em comparação aos ambientes altimontanos, indicando a presença de blocos subsidentes, sobretudo no compartimento das Cristas e Morrarias Sudoeste ( MARQUES NETO, 2017MARQUES NETO, R. O horst da Mantiqueira Meridional: proposta de compartimentação morfoestrutural para sua porção mineira. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 18, n. 3, p. 561-577, 2017.), correspondentes aos grábens onde se aloja o rio Sapucaí e alguns afluentes. Os terraços foram sepultados por materiais de cobertura que convergem para fundos de vale, induzindo a processos pedogenéticos mais recentes. No caso específico, resta um bolsão de sedimento enegrecido já bastante lixiviado, compacto e endurecido. Na porção superior, em contraste, a atividade biológica é intensa, levando à formação de um horizonte orgânico atual de aspecto grumoso, ladeado a Latossolos Amarelos ricos em gibsita, sugerindo se tratar de um pequeno gráben bastante evidente em campo.

A amostra T8 concerne a um terraço com mais amplo desenvolvimento na margem esquerda em função de migração lateral. Embora o perfil apresente ordenação de fácies bastante simplificada (material de cobertura e horizonte orgânico inumado), se coaduna aos padrões encontrados, com a maioria dos horizontes orgânicos datados do final do Pleistoceno.

Finalmente, o depósito T9 se refere a um terraço que congrega fácies fluviais preservadas, tanto de depósitos de diques marginais e planícies de inundação como materiais residuais de canal. A fácies emergente figura como um horizonte A proeminente correspondente aos materiais de cobertura que mesclam colúvios pedogeneizados com evidências de iluviação da argila. Logo abaixo subjaz um estrato que também apresenta significado pedogenético, na medida em que define um horizonte subjacente incipientemente evoluído; do ponto de vista morfoestratigráfico, no entanto, corresponde a antigos aluviões atualmente pedogeneizados, com mescla bem marcada entre alguma matéria orgânica oriunda do horozinte A sobrejacente e elementos minerais derivados da complexificação e lessivagem das argilas. Logo abaixo, um horizonte Bi encontra-se truncado por cascalheiras correspondentes a antigos depósitos residuais com espessura de 10 cm em média, suportadas por seixos arredondados formados por fragmentos de gnaisses e granitos. Esses materiais se encontram desnivelados em 1,5 m em relação à planície ativa e em mais de 2 m em relação ao talvegue, indicando forte entalhe vertical e formação de diques marginais. Sugestivamente, a cascalheira encontra-se posicionada no bloco que basculou, induzindo a migração do canal para a margem oposta, na qual os depósitos foram erodidos e não ficaram preservados.

O material datado corresponde a paleoaluviões que ainda não foram contundentemente atacados pela pedogênese hodierna. De idade holocênica, são cronocorrelatos a depósitos datados não muito distantes em terraços do rio Aiuruoca (entre 2850 e 3000 anos) ( MARQUES NETO; PEREZ FILHO, 2013MARQUES NETO, R.; PEREZ FILHO, A. Análise morfoestrutural e morfotectônica da bacia do rio Verde, sul de Minas Gerais. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 14, n. 4, p. 271-277, 2013.), sinalizando a franca influência de tectônica ativa, amplamente registrada por Santos (1999SANTOS, M. Serra da Mantiqueira e Planalto do Alto Rio Grande: a bacia terciária de Aiuruoca e evolução morfotectônica. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1999.) nessa bacia.

Figura 6.
Terraços geneticamente vinculados a entalhe por controle tectônico.

A interpretação dos resultados obtidos em diálogo às informações geocronológicas obtidos em outros pontos ( MARQUES NETO, 2012MARQUES NETO, R. Estudo evolutivo do sistema morfoclimático e morfotectônico da bacia do Rio Verde (MG), sudeste do Brasil. Tese (Doutorado em Geografia). - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2012.; MARQUES NETO; PEREZ FILHO, 2013MARQUES NETO, R.; PEREZ FILHO, A. Análise morfoestrutural e morfotectônica da bacia do rio Verde, sul de Minas Gerais. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 14, n. 4, p. 271-277, 2013.) foi importante para a apreensão das tipicidades mais recorrentes no ramo meridional da Serra da Mantiqueira.

Relações entre o vínculo genético dos terraços e a organização geomorfológica local e regional

Em comum, os perfis analisados apresentam recorrência de certas fácies, dominando os depósitos de acresção vertical argilosos a arenosos, sinalizadores do forte entalhe vertical apontado pelas taxas de incisão independente do vínculo genético e do compartimento no qual os depósitos se encontram. No entanto, os processos de migração lateral também deixaram seus registros, relacionando-se de maneira bastante verossímil com planícies fluviais cujo desenvolvimento é incompatível com a capacidade de carga de canais geralmente de pequenas dimensões, e que eram provavelmente menores ainda durante os períodos menos úmidos do final do Pleistoceno. Além destas fácies recorrentes, horizontes orgânicos também se encontram fartamente preservados acima dos níveis de base locais.

Os processos de captura fluvial são copiosos na região, e podem ocorrer por erosão diferencial ( Paixão et al. 2019PAIXÃO, R. W.; SALGADO, A. A. R.; FREITAS, M. M. Morfogênese do divisor hidrográfico Paraná\Paraíba do Sul: o caso da sub-bacia do Paraibuna. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 20, n.1, p. 119-136, 2019. https:// doi.org/10.20502/rbg.v20il.1498
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) ou por estímulo tectônico ( Santos, 1999SANTOS, M. Serra da Mantiqueira e Planalto do Alto Rio Grande: a bacia terciária de Aiuruoca e evolução morfotectônica. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1999.) reativando cabeceiras, rehierarquizando a rede hidrográfica e dinamizando a organização erosiva do sistema. Entre os terraços analisados, dois deles (T1 e T2) foram gerados em função de processos de captura que favoreceram o entalhe do canal com as mudanças nos níveis de base. O terraço T1 registra a captura de uma porção das cabeceiras do ribeirão São Domingos pelo córrego da Lavrinha, pertencente à bacia do rio Itaim, partilhando de um processo que tem sido recorrente na bacia do rio Camanducaia, onde canais foram interceptados por afluentes do rio Itaim, que atinge um nível de base anteriormente ao rio Camanducaia em mais de 100 metros, fazendo com que a porção mais alta de sua bacia, posicionada nos contrafortes da Serra de São Domingos, seja profundamente rearranjada por capturas fluviais.

O terraço T2 corresponde a uma captura ocorrida no alto curso do rio da Conceição, que drenava para a bacia do rio Grande, mas que foi abduzido por uma bacia captora pertencente à bacia do rio Paraíba do Sul cujo nível de base de referência está quase 500 metros mais baixo, estabelecido na passagem do rio do Peixe. Esse rearranjo favoreceu o entrincheiramento do canal e o abandono dos horizontes orgânicos gerados no neopleistoceno nos níveis atuais de terraço, dinamizando o recuo das escarpas pelo remonte erosivo dos canais que demandam indiretamente o rio Paraíba do Sul.

A porção interior da Serra da Mantiqueira corresponde a um conjunto de escarpas de falha, escarpas herdadas de falha e morros alinhados em patamares cujo desnível maior é dado pelas superfícies de cimeira que chegam até a linha interfluvial com a bacia do rio Paraíba do Sul e pelos patamares escalonados da porção ocidental. Muitas soleiras, portanto, são formadas em contatos litológicos ou por soerguimento diferencial de blocos, fatores que também dinamizam o entalhe e a formação de terraços fluviais. Os terraços T3, T4 e T5 apresentaram esse vínculo genético e figuram como importantes testemunhos dos controles tectono-erosivos que engendram um relevo regional marcadamente escalonado.

Os terraços T3 e T4 posicionam-se na porção mais baixa da Mantiqueira, uma zona submontana designada por rebordos erosivos dissecados ( MARQUES NETO, 2017MARQUES NETO, R. O horst da Mantiqueira Meridional: proposta de compartimentação morfoestrutural para sua porção mineira. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 18, n. 3, p. 561-577, 2017.), dissecada pelos canais que drenam em direção ao rio Preto, afluente do rio Paraíba do Sul. Trata-se de duas sequências de fácies fluviais do rio Monte Verde, próximas entre si e truncadas por paleossolos, sob a influência do contraste erosivo entre quartzitos e litotipos mais tenros (xistos, gnaisses e charnockitos). Esses terraços preservam sequências de fácies deposicionais, malgrado o entalhe agressivo levado a efeito em um plano aluvial pouco acima de 900 metros, porém vinculado à passagem do rio Preto abaixo de 500 metros, definindo-se uma sequência de patamares e pequenos encachoeiramentos, com destaque para a soleira quartzítica da Serra Negra à jusante dos terraços em apreço. Essa estrutura separa sequências de granada-biotita-gnaisses à montante e associações de gnaisses e charnockitos à jusante, pertencentes ao Complexo Juiz de Fora ( Soares et al. 2002SOARES, E. A. A. Depósitos pleistocênicos na região de confluência dos rios Negro e Solimões, Amazonas. Tese (Doutorado em Geologia Sedimentar) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.).

No caso de T5, uma soleira a montante engendra o estrangulamento da planície. Além desse controle também foi aferida uma captura que envolveu uma ampla área da bacia do córrego Cambuí, ainda que o rearranjo fluvial tenha ocorrido no interior da bacia. Mudanças anômalas na direção do canal sinalizam influências tectônicas bastante significativas.

Os contextos morfogenéticos nos quais se encerram os terraços T6, T7, T8 e T9 não apresentaram evidências de captura fluvial ou de soleiras estruturais, restando a hipótese ligada ao controle tectônico atuando em processos de soerguimento e basculamento de blocos estimuladores do entalhe vertical.

Na bacia do rio Grande, o vínculo morfotectônico foi interpretado para duas amostras, sendo também observado em outros contextos que não foram objeto de descrição mais verticalizada. A amostra T6 se refere a um terraço do rio Grande desenvolvido quando este já atingiu o nível de base em seu alto curso, perfazendo uma vasta extensão sem interceptar desníveis topográficos ou soleiras abruptas. Esses materiais que preservam horizontes orgânicos aparecem descontinuamente em outros setores do plano fluvial do alto rio Grande, e seu vínculo morfotectônico dialoga com os resultados obtidos por Santos (1999SANTOS, M. Serra da Mantiqueira e Planalto do Alto Rio Grande: a bacia terciária de Aiuruoca e evolução morfotectônica. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1999.) na região.

O rio Aiuruoca, principal afluente do rio Grande em seu alto curso, além de ter sido captor de um braço do referido rio na porção mais elevada de sua bacia de drenagem, também apresenta variadas feições de terraços preservados, alguns deles com afloramentos rochosos. O material descrito e datado (T6), dessa forma, se adéqua a um controle morfotectônico que tem gerado dois ou mesmo três níveis deposicionais numa extensa faixa em torno de 1100 m de altitude caracterizada por baixo gradiente do canal, e coincide com uma mudança brusca na orientação NE-SW para N-S. Ao longo da referida extensão as mudanças de orientação são recorrentes e ocorrem na medida em que estruturas sobrepostas são interceptadas, apresentando também mudanças para E-W e NW-SE a partir da orientação mais geral.

Na bacia do rio Sapucaí, foi submetida à datação uma amostra contida nos patamares de cimeira (município de Cristina, T8) e outra nos patamares escalonados (município de Itajubá, T7). Quanto a T8, destaca-se sua localização em vale altimontano do ribeirão da Glória de marcada orientação E-W com o canal aprisionado na falha, sem migração lateral a erodir as vertentes e dominando o entalhe vertical. A dissecação vertical expressiva também se verifica nos patamares escalonados mais rebaixados, sendo T7 coincidente a um desvio abrupto do rio Lourenço Velho, cuja bacia foi destacada por Oliveira (2013OLIVEIRA, T. A. A concepção geossistêmica aplicada ao estudo da dinâmica da paisagem na bacia hidrográfica do Rio Lourenço Velho, sul do estado de Minas Gerais. Tese de Doutorado em Geografia, IGCE, UNESP, Rio Claro, 2013.) em função do controle tectônico expressivo que vige em sua área de drenagem. No ponto amostrado, a direção E-W é desfigurada por desvios controlados por sistemas N-S, provavelmente devido à influência de falhas transcorrentes com planos de movimentação na referida direção, ainda que tais planos não tenham sido encontrados em campo. Quanto à sua posição na paisagem, T7 encontra-se no próprio nível de base do rio Lourenço Velho (aproximadamente 860 metros) que é mantido até a confluência no rio Sapucaí, nível pelo qual ocorrem terraços descontínuos de até duas gerações preservados em níveis deposicionais distintos.

Influências neotectônicas na posição e distribuição dos terraços

A análise faciológica revelou o predomínio das fácies de acreção vertical em estrutura maciça, geradas dominantemente por decantação do material em pequenas bacias de inundação pleistocênicas e holocênicas. O aspecto confinado dos vales não favorece o desenvolvimento e estabilização de barras de acreção lateral, que dessa forma ficam restritas no registro estratigráfico. Embora dominem as fácies pelíticas, é notório que as mesmas são truncadas por fácies psamíticas e clásticas, assinalando o forte retrabalhamento vigente no sistema. Os sistemas medandrantes pelíticos com planícies fluviais bem desenvolvidas consubstanciam-se a partir dos Patamares Escalonados da Mantiqueira em demanda ao Planalto do Alto Rio Grande, como constatado por Marques Neto ( 2012MARQUES NETO, R. Estudo evolutivo do sistema morfoclimático e morfotectônico da bacia do Rio Verde (MG), sudeste do Brasil. Tese (Doutorado em Geografia). - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2012.) para a bacia do rio Verde.

As taxas de incisão dos terraços analisados variaram entre 54,176 mm/kA (Pleistoceno) e 1258,71 mm/kA (Meghalaiano), sendo que as maiores taxas foram verificadas em terraços holocênicos, sugerindo a continuidade dos esforços neotectônicos penecontemporâneos e uma correlação verossímil com os dois campos de tensão cronocorrelatos identificados por Silva e Mello (2011SILVA, T. P.; MELLO, C. L. Reativações neotectônicas na Zona de Cisalhamento do Rio Paraíba do Sul (sudeste do Brasil). Revista do Instituto de Geociências, v. 11, n. 1, p. 95-111, 2011. DOI: https://doi.org/10.5327/Z1519-874X2011000100006
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) na região, o que teria favorecido a continuidade do entalhe, possivelmente catalisada com a acentuação da tropicalidade pós-glacial. Deslocamentos aferidos em campo em falhas de orientação NE-SW e E-W reforçam as evidências de controle tectônico na evolução cenozoica do relevo regional. Não se pode descartar, entretanto, que as maiores taxas de incisão em materiais holocênicos se expliquem em função de um período mais curto de permanência dos depósitos mais recentes na paisagem durante o pós-glacial, época de uma tropicalidade acentuada que favorece retrabalhamentos mais intensos em comparação ao Pleistoceno.

O desnivelamento entre os terraços preservados e a altimetria atual dos canais ativos apresentou variação entre 1,2 metros e 3,15 metros. Embora os maiores desnivelamentos ocorram nos terraços holocênicos, o maior valor (3,15) foi constatado para um depósito de idade neopleistocênica. Desse modo, a tectônica ativa e os basculamentos associados a ela são elementos dificultosos para uma divisão altimétrica e cronológica segura entre diferentes níveis de terraço, uma vez que tais efeitos acentuam a dissecação fluvial e o retrabalhamento dos depósitos pelo próprio rio, possibilitando taxas de incisão diferentes em tratos deposicionais cronocorrelatos.

As idades neopleistocênicas e holocênicas dos terraços indicam uma organização geomorfológica bastante ativa, com prevalentes reorganizações erosivas nas vertentes e fundos de vale, controladas por fatores tectônicos e estruturais consorciados ao incremento energético proporcionado pela tropicalidade. Os terraços pleistocênicos são todos adequáveis ao Taratiano, e os três terraços holocênicos são cronocorrelatos ao Norte-Gripiano (T4) e Megahaliano (T7 e T9). Idades neopleistocênicas e níveis de terraço do Holoceno Inferior (Gronelandês), bem como depósitos Norte-Gripianos e Megahalianos, também foram encontradas por Autor (2013) no contexto da Mantiqueira Meridional e do Planalto do Alto Rio Grande, indicando que os terraços mais antigos ainda preservados, pelo menos de forma mais conspícua, datam do Pleistoceno Superior, tendo havido ainda gerações sucessivas ao longo do Holoceno.

Geralmente, os terraços encontrados na Mantiqueira Meridional não apresentam uma plena aderência entre a posição dos níveis deposicionais e suas idades, da maneira que foi constatado, por exemplo, nos trabalhos de Oliveira (2012OLIVEIRA, L. A. F. A dinâmica fluvial quaternária e a configuração do modelado do relevo no contato entre a Depressão do Rio Pomba e o Planalto de Campos das Vertentes. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.) na bacia do rio Pomba (MG), Dias (2018) DIAS, R. L. Geocronologia da cobertura superficial em níveis geomorfológicos do setor centro-ocidental na Depressão Periférica Paulista. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, 2018.na Depressão Periférica Paulista e Rubira e Perez Filho (2019RUBIRA, F. G.; PEREZ FILHO, A. Geocronologia de eventos deposicionais associados às coberturas superficiais que sustentam e recobrem níveis de terraços marinhos pleistocênicos e holocênicos no litoral sul de Santa Catarina (SC). Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 20, n. 3, p. 581-602, 2019. https://doi.org/10.20502/rbg.v20i3.1339
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) no litoral catarinense. A Serra da Mantiqueira tem uma especificidade dada pela elevada energia do relevo e forte retrabalhamento nas vertentes e canais, o que resulta numa distribuição descontínua dos terraços que podem variar de um a três níveis deposicionais em forte aderência aos fatores hidrogeomorfológicos locais ( Figura 7). Embora tenha sido constatado um padrão regional, aqui colocado em discussão, controles locais engendram as variações constatadas.

Figura 7.
(A) Vale de leito aluvial com um nível deposicional, tipicidade recorrente na bacia do rio Sapucaí (Itajubá, MG); (B) Sequência de três níveis deposicionais no médio curso do rio Lambari em segmento de entalhe pronunciado (Cristina, MG); (C) Nível deposicional em vale coalescente ao rio Grande (Bocaina de Minas, MG); (D) Sequência de dois níveis deposicionais suspensos em relação à faixa sedimentar ativa na bacia do rio Aiuruoca (Aiuruoca, MG). Em cada foto, os números representam os diferentes níveis deposicionais.

Esses controles locais foram averiguados, por exemplo, no material datado para o rio Aiuruoca (T9), cronocorrelato a outra amostrada datada em material similar depositado pelo mesmo rio a montante, que também apresentou idade holocênica recente (Meghaliano), fixada em 2.580 anos. No entanto, os materiais de T9 estão posicionados em um segundo nível de terraços, enquanto o depósito à montante encontra-se em um primeiro nível, ocorrendo em vale mais aberto no contexto da bacia do rio Aiuruoca. Mais à jusante é visível que o canal se entrincheirou, gerando uma planície mais estreita e recente e o abandono de um delgado nível deposicional ainda inundável em cheias mais severas, sinalizando controles distintos determinando diferentes posições na paisagem para depósitos de idade semelhante. Em comum, além da cronologia, esses materiais encontram-se subjacentes a cascalheiras cujo arredondamento aponta retrabalhamento em água e um fornecimento recente de detritos pelas vertentes conectadas a esses segmentos de canal, notoriamente operado nos últimos dois a três mil anos.

Os padrões deposicionais discutidos ocorrem em todo o ramo meridional da Mantiqueira mineira. É possível concluir, entretanto, que os horizontes enriquecidos em matéria orgânica concernentes a antigos Organossolos e Gleissolos são mais copiosos nos Patamares de Cimeira da Mantiqueira, e aparecem em alvéolos altimontanos muito além das amostras aqui datadas, e que foram abordadas geocronologicamente em outros trabalhos ( MARQUES NETO, 2012MARQUES NETO, R. Estudo evolutivo do sistema morfoclimático e morfotectônico da bacia do Rio Verde (MG), sudeste do Brasil. Tese (Doutorado em Geografia). - Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2012.; MARQUES NETO; PEREZ FILHO, 2013MARQUES NETO, R.; PEREZ FILHO, A. Análise morfoestrutural e morfotectônica da bacia do rio Verde, sul de Minas Gerais. Revista Brasileira de Geomorfologia, v. 14, n. 4, p. 271-277, 2013.), os quais identificaram depósitos cronocorrelatos para diferentes compartimentos da Mantiqueira e do Planalto do Alto Rio Grande. Nos Patamares Escalonados, embora seja registrada a ocorrência de terraços rochosos e depósitos quaternários tectonicamente afetados, a presença mais recorrente de hemigrábens de expressão longitudinal engendra níveis de base mais contínuos e bem definidos, com contato abrupto entre as vertentes e as planícies ativas. Ainda assim, em alguns blocos formam-se níveis de terraço, a exemplo dos materiais datados em Itajubá e Maria da Fé. Interessante também é a ocorrência de tais materiais nos rebordos erosivos dissecados, unidade que compreende a porção do horst em franca erosão exercida pelos canais que drenam em demanda ao rio Preto.

Considerações finais

Os terraços fluviais e seus arquivos deposicionais se mostraram geoindicadores de valor para a interpretação de aspectos importantes da evolução neoquaternária da paisagem, permitindo aferições e inferências sobre o papel do clima, da litologia e da tectônica na organização da rede hidrográfica e na geração dos tratos deposicionais em parte preservados na estrutura superficial e subsuperficial da paisagem.

Os resultados constataram padrões marcados pelo domínio da acreção vertical, pela presença recorrente de horizontes orgânicos indicando períodos de relativa estabilidade e, em alguns casos pela presença de carga de fundo clastossuportada. Tais padrões podem ocorrer em todos os vínculos genéticos considerados entre os depósitos analisados, tanto no neopleistoceno como em diferentes temporalidades holocênicas. Os registros deposicionais, portanto, não indicam por si severas mudanças nos processos dominantes no sistema geomorfológico estudado, sinalizando que os processos de entalhe, reorganização por captura e hidromorfismo traspuseram a passagem do Pleistoceno para o Holoceno e se mantiveram na paisagem. Essa constatação é muito sugestiva de um imperativo morfotectônico aninhando os campos de tensão neopleistocênicos e holocênicos anteriormente citados favorecendo um entalhe bastante prevalente. Somada ao controle estrutural engendrando erosão diferencial, a neotectônica influencia também na constelação de capturas fluviais que ocorrem na Serra da Mantiqueira e outros compartimentos dos planaltos cristalinos do sudeste brasileiro.

O conjunto de resultados apresentado mostra, portanto, processos fortemente marcadores do sistema geomorfológico regional bastante sujeito a controles locais, com significados genéticos e evolutivos muitas vezes controlados por níveis de base altitudinalmente dispostos que se escalonam a partir das superfícies somitais da Serra da Mantiqueira, e que por sua vez define um padrão regional. Conforme citado ao longo do texto, celebra confluências com resultados de trabalhos que estimam a tectônica regional, o papel das capturas na evolução do relevo e a idade dos terraços fluviais, normalmente datados na produção nacional entre o Pleistoceno e o Holoceno. Como ensejo, fica ressaltada a conveniência de se fomentar os estudos em escala de detalhe, melhorando a precisão cronológica e decodificando de forma cada vez mais minuciosa a evolução dos fundos de vale em áreas escarpadas com a intrusão de técnicas micropaleontológicas e o adensamento das análises faciológicas e aloestratigráficas.

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  • Agradecimentos

    O autor agradece ao CNPq pelo auxílio financeiro ao projeto de pesquisa.

Editado por

Editor do Artigo:

Fernando Nadal Junqueira Villela

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2022
  • Aceito
    12 Jul 2023
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