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Positivismo jurídico x materialismo histórico: uma leitura acerca das fundações dos sistemas jurídicos de Kelsen e Pachukanis1 1 Meus agradecimentos aos pareceristas pelas valiosas contribuições e também a Frank Sautter (UFSM), Juliele Sievers (UFSM), Marcos Palermo (UNIFRA) e Rogério Severo (UFSM) pela leitura minuciosa e pelos comentários sobre o presente trabalho.

Legal positivism x historical materialism: a reading of the foundations of the legal systems of Kelsen and Pachukanis

Resumo

Este artigo avalia as concepções fundacionais dos sistemas jurídicos de Hans Kelsen e Evgeny Pachukanis. Expõe os elementos metodológicos que fazem com que cada um dos autores justifique as bases de seus sistemas teóricos do modo como as formulam e argumenta-se que o fundamento do direito deve residir em uma anuência mínima compartilhada por parte dos indivíduos que residem na comunidade em que o sistema legal é imposto. Com isso, alega-se que o modelo de Kelsen poderia concordar com concepções socialistas moderadas sem que isso implicasse no abandono da estrutura piramidal por ele concebida.

positivismo jurídico; materialismo histórico; socialismo

Abstract

This paper assesses the foundational conceptions of legal systems according to Hans Kelsen and Evgeny Pachukanis. It presents the methodological elements used by each of these authors to justify their theoretical systems and argues that the grounds of law have to reside on a minimum shared accordance by the individuals that live in the community to which the legal system is applied. Thus, it claims that Kelsen’s model may agree with a moderate socialist view without entailing the abandoning of the pyramidal structure conceived by him.

legal positivismo; historical materialism; socialism

Introdução

O século XX foi adequadamente adjetivado de Era dos extremos por Eric Hobsbawn (2009)HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., título de seu livro – originalmente publicado em 1990 – que descreve os acontecimentos entre o início da Primeira Grande Guerra até o colapso da antiga União Soviética em 1991. Durante esse período, nunca a humanidade vivenciou guerras capazes de vitimar tantas pessoas em tão pouco tempo.2 2 Para dados de mortos em virtude das guerras deste período, ver: HOBSBAWN, ERIC. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 32-34. Além das duas Grandes Guerras, o período foi palco de profundas disputas intelectuais. No âmbito jurídico, por exemplo, uma escola de pensamento com grande influência – ao menos nos países não-alinhados ao bloco soviético – foi o positivismo capitaneado por Hans Kelsen.

Na Teoria pura do direito (2012) – cuja primeira edição foi publicada em 1934 – Kelsen defendia que o direito fosse concebido a partir de uma concepção científica própria. Para ele, a estrutura de qualquer sistema jurídico é essencialmente hierarquizada. Há normas gerais, dispostas a partir de uma Constituição, que orientam – e justificam – a estrutura do Estado e tudo o que rege a vida em sociedade. Mas a Constituição não é justificada por si mesma. Qualquer sistema legal pressupõe a existência de uma norma hipotética básica que o valida sem ser contaminada por questões alheias ao direito, tais como a política ou a sociologia.

Contrariando Kelsen, uma crítica surgiu do seio do bloco soviético através do jurista Evgeny Pachukanis. Em seu Teoria geral do direito e marxismo (1988) – obra originalmente disponibilizada ao público em 1924 – 3 3 Mesmo que a primeira edição da Teoria pura tenha sido publicada dez anos após a obra de Pachukanis, Kelsen já havia publicado as bases nucleares de seu positivismo em 1911. Ver: JESTAEDT, Matthias. (Org.). Hans Kelsen werke. Tübingen: Mohr, 2008, v. 2/1-2, p. 49-878. , Pachukanis afirma que a concepção kelseniana colocaria, por assim dizer, “a carroça na frente dos bois”. Afinal, Kelsen não questionava como surgiam as estruturas jurídicas ou estatais. Para ele, os Estados são formas políticas oriundas do conflito entre os donos dos meios de produção e os trabalhadores. Portanto, os conceitos mais básicos do direito (“sujeito”, “igualdade” ou “liberdade”) deveriam ser pensados a partir das relações conflituosas oriundas da luta de classes. Nesse caso, o materialismo histórico de Karl Marx forneceria o método adequado para a compreensão do direito.

Dito isso, os objetivos deste artigo são (a) apresentar os elementos dessas duas concepções – principalmente as fundações dos ordenamentos jurídicos – e (b) avaliá-las criticamente. Para tanto, analiso a discussão do seguinte modo: na primeira seção, apresento a concepção de Kelsen (subseção 1.1) seguida da crítica de Pachukanis (subseção 1.2). Na sequência (seção 2), avalio as lacunas (eventuais) de cada uma das concepções (subseções 2.1 e 2.2) e finalizo o artigo avaliando em que medida o modelo de Kelsen poderia ser harmonizado com uma perspectiva socialista (seção 3). Argumento que a estrutura piramidal jurídica de Kelsen não contradiz as concepções socialistas e suas considerações pontuais sobre formas de organização política são compatíveis com uma modelagem socialista, como a defendida por Carlos Nelson Coutinho.

1. O método de Kelsen e a objeção de Pachukanis

Kelsen e Pachukanis são herdeiros de movimentos intelectuais díspares surgidos na Europa no séc. XIX. Enquanto este é fruto da tradição marxista originária dos escritos de Marx (e Friedrich Engels) desde a década de 1840, aquele pertenceu ao chamado “Círculo de Viena” na Áustria do início do séc. XX. É sob essas tradições filosóficas diferentes que surgirão suas concepções de sistema jurídico e seus modos de pensar o direito.4 4 Uma descrição interessante sobre o contexto histórico da Viena da época de Kelsen e sua relação intelectual com os positivistas do Círculo de Viena pode ser encontrada em: BAPTISTA, Fernando. O Tractatus e a Teoria pura do direito. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. Já com relação à influência do marxismo no movimento operário da segunda metade do séc. XIX e durante boa parte do séc. passado, é extensa a literatura sobre o assunto. Um bom resumo do tópico pode ser encontrado em: ELEY, Geoff. Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.

1.1 A concepção científica do direito de Kelsen

Em meados do séc. XIX, concepções jurídicas com grande influência no meio intelectual jurídico eram justificadas com base no direito natural. Em geral, essas concepções – chamadas de “jusnaturalistas” – afirmavam que havia direitos fundamentais intrínsecos aos homens e que as leis por eles criadas deveriam respeitá-los. Essas ideias não eram novas. Já na Retórica, Aristóteles (apud INGRAM 2010INGRAM, David. Filosofia do direito: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2010., p. 28) dizia que “se a lei escrita depõe contra o nosso caso, devemos claramente apelar para a lei universal, e insistir em sua maior equidade e justiça”. Outras concepções de direito natural foram posteriormente formuladas por autores medievais como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino e também por autores modernos como John Locke e Jean-Jacques Rousseau, cada um com suas motivações específicas e particularidades.5 5 Um resumo dessas concepções pode ser encontrado em: INGRAM, David. Filosofia do direito: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 28-33. O positivismo de Kelsen acabou sendo, em certo sentido (mesmo sem ser essa a sua intenção), uma reação a essas concepções. Afinal, justificar o direito com base em algo externo – como algo ainda não incorporado ao ordenamento jurídico – abriria margem demasiada a escolhas subjetivas do julgador.6 6 Um tema central daquela que foi uma das principais discussões da filosofia jurídica da segunda metade do séc. XX – o debate entre Herbert Hart e Ronald Dworkin – foi antecipado por Kelsen. O problema da discricionariedade judicial e da possibilidade de haver uma única resposta correta para todo caso jurídico, foi por ele assim abordado: “Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como ‘correta’”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 391. Já a crítica de Dworkin à discricionariedade judicial pode ser encontrada em: DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 217-268. E dentre as diversas respostas a Dworkin – muitas defendendo Hart – uma importante resposta encontra-se em: ENDICOTT, Timothy. Vagueness in law. New York: Oxford University Press, 2000, p. 159-182. Respondendo a Erich Kaufmann, Kelsen disse que

O jusnaturalismo é metafísica jurídica. E a invocação de metafísica ecoa agora – depois de um período de positivismo e de empirismo – em toda parte e em todos os âmbitos cognoscitivos. Mas aonde nos leva este apelo à metafísica e ao direito natural no campo da jurisprudência? Acima de tudo, leva-nos a um subjetivismo radical.7 7 Apud KAUFMANN, Eric. Critica della filosofia neokantiana del diritto. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992, p. 103.

Com isso, Kelsen afirma que, para essas concepções, há uma ausência de critérios jurídicos claros se o fundamento primeiro do direito for algo externo a si próprio.8 8 Segundo John Finnis, o jusnaturalismo não é necessariamente refratário ao positivismo. Para Kelsen, essa discussão só é relevante na medida em que o jusnaturalismo se apresente como um método diferente do modelo por ele proposto de sistema jurídico. Kelsen nunca negou que o conteúdo das leis possa remeter a direitos intrínsecos ou básicos dos homens. O que nega é haja uma sintaxe – ou estrutura – distinta do positivismo por ele formulado. Ver: FINNIS, John. Natural law theories. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2011. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/natural-law-theories/>. Acesso em: 10 jul. 2015. Portanto, seu esforço intelectual consistiu em formular uma concepção científica de direito que inibisse (ou pelo menos minorasse) esse problema. Para tal empreitada, seu ponto de partida era o direito tal como se apresentava nos Estados nacionais de sua época. Ele não elaborou uma concepção de como o direito deveria ser (ao menos, não em seu sentido ético e/ou político) e restringiu seu objeto de estudo às normas legais (preocupado essencialmente com seu aspecto formal).9 9 Kelsen abre a Teoria pura da seguinte maneira: “Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. [...] Esse é o princípio metodológico fundamental”. KELSEN, H. Teoria pura...op.cit. p.1.

Segundo Kelsen, a ciência jurídica deve se ocupar do seu objeto de estudo: a norma positivada. Pesquisar as fontes primárias ou fundacionais do direito não é papel do cientista do direito, mas pode ser do sociólogo (LOSANO, 2011LOSANO, Mario. “Introdução”. In: KELSEN, H. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. xvi). Afinal, a sociologia ou a ciência política lidam com questões factuais. Mas para Kelsen, que incorporou a intransponível dicotomia humeana entre ser e dever-ser, enunciados prescritivos (ordens) não são extraídos de enunciados sobre fatos.10 10 HUME, DAVID. A treatise of human nature. Oxford: Clarendon Press, 2007, p. 244-245.

Já com relação à estrutura do sistema jurídico, Kelsen adotou de Adolf Merkl a ideia de sistema piramidal em que normas (jurídicas) estão hierarquicamente dispostas dentro de um sistema (jurídico) e o que as tornam válidas é sua pertença ao sistema. As orientações gerais da conduta de indivíduos em sociedade são previstas em uma Constituição que orienta todas as normas hierarquicamente inferiores. As normas mais básicas das diversas esferas do direito (penal, civil, direito do trabalho) são justificadas por normas hierarquicamente superiores que, por sua vez, são validadas em virtude de outras normas superiores assentadas na Constituição.11 11 Tal estrutura evidencia o ganho explicativo – além de prático – em assumir a distinção humeana na esfera legal: uma coisa é a existência e a validade de uma regra de direito; outra coisa é a sua aplicação nos casos concretos. Portanto, no plano da validade das normas, para evitar um regresso ad infinitum, Kelsen supôs uma norma que justifique a existência das demais (e do sistema jurídico como um todo) sem precisar de outra que a justifique. Essa é a norma fundamental, que acaba sendo a

[...] fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa.12 12 KELSEN, H. Teoria Pura...op. cit., p. 217.

Há duas maneiras de interpretar a norma fundamental (e que são complementares): (a) na esteira da epistemologia kantiana e (b) como fonte de validade do ordenamento.13 13 Em sua fase inicial, Kelsen pensou na norma básica como uma hipótese. Posteriormente, ele prefere tratá-la como ficção, já que uma hipótese tende a ser confirmada ou refutada pela experiência, o que é inviável para a norma fundamental (e não-condizente com seu intuito). Diz ele em sua obra póstuma: “Deveria ser notado que a norma básica não é uma hipótese no sentido da filosofia de Vaihinger do ‘como se’ – como eu mesmo tenho às vezes a caracterizado – mas uma ficção. Uma ficção difere de uma hipótese em que ela é acompanhada – ou deve ser acompanhada – de uma consciência de que a realidade não acorda com ela”. KELSEN, Hans. The general theory of norms. Oxford: Clarendon Press, 2001, p. 256. No primeiro caso, a norma é, à Kant, transcendental, isto é, ela confere condição de possibilidade para apreensão dos fenômenos percebidos:

As semelhanças entre a proposta kantiana no terreno das ciências naturais e a de Kelsen na seara jurídica são bem conhecidas. [...] Do mesmo modo que as categorias [...] do entendimento (quantidade, qualidade, relação e modalidade) de Kant são formas puras, ou seja, conceitos sem qualquer conteúdo, que nada prescrevem em termos materiais às leis naturais, mas, todavia, as tornam possíveis, i.e., pensáveis, a norma fundamental dinâmica, própria de ordens jurídicas contemporâneas, também é vazia de conteúdo e não determina nenhuma prescrição jurídica específica, ao contrário de normas fundamentais estáticas que orientam os ordenamentos de matriz jusnaturalista.14 14 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. “Norma fundamental: ficção, hipótese ou postulado?”. In: KELSEN, Hans. Sobre a teoria das ficções jurídicas: com especial consideração da filosofia do “como se” de Vaihinger. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012, p. 30.

Como condição de possibilidade que estrutura aquilo que é objeto de conhecimento, a norma básica admite que os argumentos jurídicos escapem da guilhotina de Hume. Agora, a premissa de um argumento jurídico que leva à conclusão de que, por exemplo, “Todos os indivíduos devem pagar seus impostos” tem como sua pressuposição básica – ou premissa – um enunciado prescritivo. Ou seja, as conclusões dos silogismos jurídicos são justificadas por um ponto de partida prescritivo.15 15 Esta discussão, no entanto, remete a um problema já clássico, tanto no âmbito da filosofia prática quanto na teoria do direito, a saber, o chamado “dilema de Jorgensen”. Sobre isso, ver: ROSS, Alf. Imperatives and logic. Philosophia Scientiae, v. 11, n. 1, 1944, p. 30-46. E também: CABRERA, Carlos Alarcón. Imperativos y logica en Jorgen Jorgensen. Isegoría, v. 20, 1999, p. 207-215. Assim como Kant rejeitava que tivéssemos acesso epistêmico às coisas em si (noumenon), para Kelsen não há nada em si em um modelo científico de direito. Nossos objetos de cognição jurídicos (as normas) são modelados segundo nossos interesses e construções teóricas. Portanto, pressupor a norma básica é condição necessária para a fundamentação racional do direito enquanto sistema teórico.

A outra forma de entender a norma fundadora enquanto fonte de validade do ordenamento implica (genericamente) que se deve seguir a orientação constitucional vigente: “para se pressupor a norma fundamental basta a eficácia global da primeira Constituição histórica” (MATOS, 2012MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. “Norma fundamental: ficção, hipótese ou postulado?”. In: KELSEN, Hans. Sobre a teoria das ficções jurídicas: com especial consideração da filosofia do “como se” de Vaihinger. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012., p. 39). Entretanto, como a norma básica é essencialmente teórica, ela pode se moldar às exigências de novas ideologias ou interesses dos homens que habitam um território, o que não implica que seja desprovida de valores, por isso a exigência de conduzir-se conforme a Constituição vigente:

Kelsen esclareceu repetidamente que a sua teoria é uma teoria pura do direito positivo e não uma teoria do direito puro, ou seja, de um direito desligado da realidade. Por conseguinte, o estudo da realidade social, da qual o direito nasce e para a qual ele retroage, não é negado, mas apenas distinguido da teoria formal do direito.16 16 LOSANO, Mario. “Introdução”. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. XVI.

Para Kelsen, as normas de um sistema legal são compreendidas – e em geral, aceitas – respaldadas pelo impacto social que exercem: “um ordenamento jurídico é considerado válido se as suas normas são eficazes em geral [in grossen und ganzen]” (KELSEN, 1992KELSEN, Hans. Reine rechtlehre. Wien: Österreichische Staatdruckerei, 1992., p. 219). Logo, por mais que o direito seja autopoiético, ele não se reinventa de costas para o mundo. A eficácia global do sistema jurídico depende da aceitação ou consentimento mínimo da grande maioria dos indivíduos que compõem o espaço geográfico atingido pelas normas.

Dando um passo atrás – isto é, colocando os pés no terreno político – é inegável a contaminação política que precede o direito: as regras jurídicas são criadas por homens e mulheres com os interesses mais diversos; muitas regras poderão ser excluídas no futuro, outras tantas incluídas, de acordo com os interesses e disputas circunstanciais no seio de uma sociedade. Todavia, nada disso obsta que o objeto de estudo do cientista jurídico – a norma estabelecida – seja avaliado de forma estrita. O modelo jurídico de Kelsen não é – nem pressupõe – uma estruturação da ordem jurídica no sistema capitalista ou socialista: ele independe de sistema econômico. Da mesma forma que procederam os pais da ortodoxia em economia que defendiam que o fenômeno econômico poderia ser descrito de modo independente a valorações políticas/éticas, Kelsen tomou o mesmo caminho: o direito pode ser estudado e descrito de modo avalorativo.17 17 Até o séc. XVIII, o estudo da economia não era distinguido de uma apreciação valorativa. Isso muda no séc. XIX com o avanço do olhar científico sobre a disciplina. Nesse novo cenário, as questões relativas à felicidade dos indivíduos e como melhor prover suas necessidades não são mais abordadas: o que importa é o estudo estrito da riqueza. Disse um dos pais do pensamento ortodoxo, Nassau William Senior: “As questões, em que medida e em que circunstâncias a possessão da riqueza é, no conjunto, benéfica ou penosa a seu possuidor, ou à sociedade da qual ela é membro? Qual a distribuição da riqueza mais desejável em cada estágio da sociedade? E quais os meios pelos quais um país pode facilitar sua distribuição? São questões de grande interesse e dificuldade, mas não mais formam parte da ciência da economia política”. SENIOR, Nassau William. “Outline of the science of political economy”. In: Methodology of economics: 19 Century British Contributions. Routledge: Thoemmes Press, 1997, v. 4. Sobre um resumo acerca do nascimento da escola ortodoxa em economia, ver: MAZZUCCHELLI, Frederico. Senior, Jevons e Walras: a construção da ortodoxia econômica. Economia e Sociedade, v. 12, n. 1, 2003, p. 137-146. Nesse sentido, sua elaboração teórica continua sendo extremamente atual e para refutá-la, não bastam críticas externas. Aqui, nesse quesito, me alio à opinião de Andityas Matos (2013MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. “Kelsen e a violência: uma leitura das críticas das ‘limitações’ da Teoria pura do direito”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; TRIVISONNO, A. (Org.) Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 253-279., p. 253-254): para desmontar o sistema de Kelsen é necessário extrair contradições internas ou inconsistências de suas teses. Caso contrário, o tiro será na água, como ocorre com a crítica de Pachukanis que passo a seguir.

1.2 A objeção de Pachukanis

Entre os teóricos marxistas do direito, Pachukanis foi, aos olhos do próprio Kelsen, “o mais proeminente representante da teoria jurídica soviética durante seu primeiro período de desenvolvimento” (KELSEN, 1955KELSEN, Hans. The communist theory of law. London: Stevens & Sons Limited, 1955., p. 89). Um de seus principais esforços foi tentar adaptar ao direito o método marxiano aplicado à economia política. Marx defendia que as elaborações teóricas deveriam partir de observações mais simples até as maiores abstrações. Para estudar a sociedade capitalista, o procedimento adequado deveria partir de hipóteses ou constatações mais básicas até alcançar as formulações mais complexas. Se o estudo dessa sociedade partisse da população, obscureceria as classes sociais que a compõe; essas, por sua vez, requerem para sua compreensão outros elementos como o salário e renda, por exemplo.18 18 MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 54. E para compreender o que é o salário ou a renda é necessário compreender outros elementos mais básicos como os mecanismos de fixação de preços das mercadorias. Portanto, nada mais apropriado que começar a avaliação dessa sociedade pelo estudo da mercadoria.19 19 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 113. Ao “colocar uma lupa” sobre a mercadoria, Marx identificou as “contradições sociais” no processo de produção e de circulação das mercadorias em uma economia de mercado. E o Estado é, assim como outras instituições sociais não-econômicas, fruto dessas “contradições” que apresentam um antagonismo de interesses como modus operandi do modelo capitalista.20 20 O exemplo mais cristalino disso é que enquanto ao capitalista o salário do trabalhador é custo, para o assalariado é renda. Segundo Marx, só é possível entender e explicar as principais estruturas sociais não-econômicas – Estado, religião ou direito – tendo como ponto de partida as partículas menores que engendram essas estruturas. Não se pode entender o que é o Estado ou o direito sem entender a dinâmica social que os determina e cria.21 21 Segundo Gerald Cohen, Marx explica as estruturas não-econômicas a partir das estruturas econômicas: “[...] as explicações centrais de Marx são funcionais, o que significa, grosso modo, que o caráter do que é explicado está determinado pelo seu efeito sobre o que o explica”. COHEN, Gerald Allan. A teoria da história de Karl Marx: uma defesa. Campinas: Unicamp, 2013, p. 325-326. Isso fica evidente em trechos que Marx diz que “as relações de produção correspondem às forças produtivas; a superestrutura legal e política se eleva sobre a base real; o processo da vida social, política e intelectual está condicionado pelo modo de produção material”. Apud COHEN, G. A. A teoria da história...ibid., p. 325. Isso é de profunda importância, pois a explicação funcional forneceu o fio condutor teórico necessário para Pachukanis justificar a forma jurídica como efeito da forma mercantil (ponto que exponho logo adiante).

Esse foi o caminho tomado por Pachukanis para explicar o direito. Assim como Marx que criticou as principais concepções econômicas de sua época para extrair suas próprias conclusões, Pachukanis também usou essa estratégia, criticando concepções jurídicas de seu tempo. Ele criticou a teoria de Kelsen principalmente pelo excesso de formalismo. Ao descolar sua teoria do mundo dos fatos, toda a elaboração conceitual de Kelsen tornar-se-ia inócua para entender o direito:

Com relação ao Dever-Ser jurídico, nada mais existe do que a passagem de uma norma a outra de acordo com os degraus de uma escala hierárquica, em cujo cimo se encontra a autoridade suprema que formula as normas e que engloba o todo – um conceito-limite de que a jurisprudência parte como de um pressuposto necessário. [...] Uma tal teoria geral do direito, que nada explica, que a priori volta as costas às realidades concretas, ou seja, à vida social, e que se preocupa com normas sem se importar com sua origem [...] não pode ter pretensões ao título de teoria senão unicamente no mesmo sentido que, por exemplo, se fala popularmente de uma teoria do jogo de xadrez.22 22 PACHUKANIS, Evgeny. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 19.

A discussão fundacional do direito ou de qualquer outra ciência específica, é o ponto de partida para a elaboração do sistema em si. Para Pachukanis, as normas jurídicas não criam relações sociais. Antes disso, são as relações sociais que criam as regras do direito.23 23 Marx abre o capítulo 2 do livro 1 d’O capital do seguinte modo: “As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode toma-las à força; para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica é dado pela própria relação econômica”. MARX, K. O capital...op. cit. p. 159. Portanto, a normatização jurídica do que se entende por “contrato” depende da existência da relação de compra e venda de bens e serviços entre as pessoas. Para que essa relação, aos olhos da lei, seja legítima, parte-se do princípio de que o consumidor (o trabalhador) e o empresário (o capitalista) são livres e iguais. Entretanto, como o direito está inserido em um modo de produção específico (capitalismo), tais pressupostos surgem como condição necessária para a circulação eficaz das mercadorias, obscurecendo as relações de poder existentes na sociedade:

[...] O homem que produz em sociedade é o pressuposto que forma o ponto de partida da teoria econômica. A teoria geral do direito, na medida em que cuida de definições fundamentais, deveria partir igualmente dos mesmos pressupostos fundamentais. Assim, por exemplo, é necessário que exista relação econômica da troca para que a relação jurídica do contrato de compra e venda possa igualmente nascer. [...] A jurisprudência dogmática concluiu, portanto, que todos os elementos existentes da relação jurídica, inclusive, também, o próprio sujeito, são gerados pela norma. Na realidade, a existência de uma economia mercantil e monetária é, naturalmente, a condição fundamental, sem a qual todas as normas concretas carecem de qualquer sentido.24 24 PACHUKANIS, op. cit., p. 54.

Os conceitos de “liberdade” e “igualdade” estabelecidos na Revolução Francesa e receptados pelas Constituições do séc. XIX serviriam como engodo formal para perpetuar um modo de produção que engessa as reais capacidades humanas.25 25 Sobre os pilares da Revolução Francesa – os conceitos de “liberdade” e “igualdade” prescritos na Carta de 1791 – disse Marx: “[...] o direito humano à liberdade não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao contrário, na separação entre um homem e outro. Trata-se do direito a essa separação, o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo. A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada. [...] A egalité, aqui em seu significado não político, nada mais é que a igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesma. [...] Nenhum dos direitos dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho e separado da comunidade. Muito longe de conceberem o homem como um ente genérico, esses direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta”. MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49-50. Mesmo com a abolição da escravatura e dos estamentos sociais do Antigo Regime, através do poder financeiro o homem continuou capaz de submeter seu semelhante por meio do modelo econômico adotado. Assim, a igualdade entre os homens tornou-se “uma relação de equivalência na qual os homens estão reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em decorrência de sua subordinação real ao capital” (NAVES, 2014NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões, 2014., p. 87).

Por “coincidência”, foi justamente com a instauração do capitalismo enquanto modo hegemônico de produção que os sistemas jurídicos adotaram como critério para atribuição de pena – na esfera criminal – a busca por equivalência temporal entre o dano causado e sua reparação equivalente:26 26 Mesmo que o marxismo clássico não use, de modo geral nas suas formulações os conceitos de “causa” e “efeito”, preferindo o conceito de “dialética”, pode-se compreender, sem perda de sentido, que Pachukanis interprete as regras jurídicas como efeitos das relações econômicas na sociedade, cuja causa nuclear é econômica, encontrando respaldo teórico na teoria do valor de Marx, o que fica explícito na seguinte passagem: “Para que surgisse a ideia da possibilidade de expiar o delito com a privação de uma quantidade predeterminada de liberdade abstrata, foi necessário que todas as formas concretas de riqueza social estivessem reduzidas à forma mais abstrata e mais simples – o trabalho humano medido em tempo”. Apud NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 61. Esse exemplo do critério penal fixado enquanto tempo de reclusão foi um dos elementos concretos que permitiu a Pachukanis compreender a forma jurídica em função da forma mercantil. Afinal, Marx defendia que “é apenas a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso que determina a grandeza de seu valor”. MARX, K. O capital...op. cit., p. 117.

Como lembra Pachukanis, o direito penal, nos seus primórdios, vincula-se à prática da vingança, que se apresenta como uma sucessão de atos de violência levando a novos motivos ensejadores de novos atos de violência e assim por diante. É somente quando surge um sistema de compensação da ofensa em dinheiro que a vingança passa a se transformar: ela surge então como reparação disciplinada pela “lei de talião”. A ideia de equivalência surge, portanto, a partir da mercadoria, e permite que se considere o delito “como uma variante particular da circulação na qual a relação de troca, ou seja, a relação contratual, é estabelecida post factum, isto é, depois de uma ação arbitrária de uma das partes. A proporção entre o delito e a reparação se reduz a uma proporção de troca”.27 27 NAVES, M. B. Marxismo e direito...op. cit., p. 58-59.

Para os comunistas da primeira geração soviética pós-Revolução de 1917, a penalidade aos cidadãos deveria ser distinta do modelo jurídico empregado nos países capitalistas. Segundo eles, as principais causas dos crimes residiam nas diferenças de renda. À medida que a sociedade fosse gradualmente transformada, as instâncias de regulação social (como o direito de propriedade, por exemplo) acompanhariam o movimento da nova sociedade socialista:

[...] O direito soviético questionava o conceito de ‘culpa’ individual. O ‘crime’ era tratado primariamente como um produto da desigualdade social e, de acordo com isso, procurava-se trocar ‘punição’ por melhoramento social, educação e outras medidas reparadoras.28 28 HEAD, Michael. Evgeny Pashukanis: a critical reappraisal. Abingdon: Routledge, 2008, p. 5.

[...]

O primeiro Código Penal de 1919 fez o direito penal depender do “perigo social” e “medidas de defesa social”, substituindo as noções de “crime” e “punição”. Líderes soviéticos chegaram à conclusão de que esses últimos termos, acompanhados de “culpa”, ajudam a obscurecer as causas sociais do crime.29 29 Ibid, p. 6.

Da forma como fora engendrado pelo modelo capitalista – segundo Pachukanis – o direito se constituiu no mecanismo racional de opressão dos trabalhadores, sendo o elemento superestrutural moldado para representar os interesses da burguesia e usado para justificar o status quo da sociedade tal como é e está. Assim, a mudança do modelo de sociedade simplesmente acabaria com o direito.30 30 Ver: PACHUKANIS, E. Teoria geral...op. cit., p. 24. Obviamente que o direito precede o capitalismo. Entretanto, o direito romano, por exemplo, estava inserido em um modo de produção escravagista. Logo, não havia a ideia de “igualdade” ou “liberdade” entre os homens. O direito a que se reporta Pachukanis está inserido na conjuntura de um modo de produção que reivindica uma relação de equivalência entre sujeitos tão díspares no mundo capitalista. Portanto, a extinção da sociedade de classes terminaria com o direito tal como conhecemos hoje. O que viria a seguir seria um outro tipo de instância normativa de regulação que até poderia ser chamada de “direito”, mas com um conteúdo (e forma) diverso. Mas isso não deve ser confundido com o stalinismo – do qual Pachukanis fora vítima, morto em 1937 – ou com a implementação mecânica do socialismo31 31 Entende-se por “socialismo” a tese clássica da necessidade de coletivização dos meios de produção. .

Desde 1921, a Rússia vivia sob orientação da Nova Política Econômica implementada por Lênin. Com a finalidade de reconstruir a Rússia após a Primeira Grande Guerra, Lênin reintroduziu medidas capitalistas no território russo como a “agricultura predominantemente privada, além de comércio privado e produção privada em pequena escala legalizados” (NOVE, 1972NOVE, Alec. An economic history of U.S.S.R. Harmondsworth: Pelican, 1972., p. 85-86). Mas o Partido Comunista ainda mantinha as rédeas do setor bancário, industrial e o comércio exterior (BROWN, 2010BROWN, Archie. Ascensão e queda do comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010., p. 79). Esse panorama histórico é extremamente importante para a discussão, pois Pachukanis acreditava que a mudança do direito só seria realmente efetivada com a mudança estrutural da economia russa, com a coletivização dos meios produtivos e o consequente fim da sociedade de classes:

Inicialmente, a teoria do direito enquanto mercadoria de Pachukanis de 1924 tornou-se parte da doutrina oficial do regime. Ela ajudou a reconciliar as necessidades da Nova Política Econômica, incluindo a proteção legal dos direitos de propriedade, com a compreensão marxista do definhamento do Estado. Não obstante, sua teoria fornecia profundos insights tanto sobre a natureza da forma jurídica e o conceito de direito sob o capitalismo. [Mas] no final dos anos 1920, Pachukanis estava sob ataque dentro da União Soviética porque ele mantinha, em concordância com o marxismo autêntico, que os aparatos do direito e do Estado da União Soviética despareceriam com a construção de uma genuína sociedade comunista.32 32 HEAD, M. Evgeny Pachukanis...op. cit., p. 14.

O direito, à época da Nova Política Econômica, deveria ser interpretado segundo as contingências históricas soviéticas momentâneas, tendo como norte final a extinção da sociedade de classes. Os direitos de propriedade privada dos meios de produção seriam mantidos enquanto perdurasse a necessidade da transição do capitalismo ao socialismo. Ao contrário do positivismo jurídico, os conceitos jurídicos expressos nas normas não seriam definições standards que tenderiam a engessar as decisões dos magistrados. Afinal, “o direito, enquanto fenômeno social objetivo, não pode esgotar-se na norma ou na regra, seja ela escrita ou não” (PACHUKANIS, 1988PACHUKANIS, Evegeny. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 48).

2. O embate entre Kelsen e Pachukanis

Expostas as concepções (gerais) de ambos, uma contraposição de suas posições não evidencia, em sentido rigoroso, uma divergência. Afinal, os objetos de discussão de Kelsen e de Pachukanis são diferentes. A preocupação de Kelsen está em desenvolver uma construção teórica específica ao direito, sem preocupações morais ou políticas. Já as críticas de Pachukanis são externas, pertencem às ciências sociais em geral. Kelsen não tinha profundas preocupações com a principal inquietação de Pachukanis; ele exigiu de Kelsen algo que o próprio Kelsen não se propôs a oferecer. Portanto, creio que um modo mais frutífero de avaliar essa discussão não esteja em apresentar as réplicas de Kelsen a Pachukanis, mas sim em avaliar os méritos e as lacunas de ambas as concepções.

2.1 Vícios e virtudes do positivismo de Kelsen

Dentre as virtudes do modelo jurídico de Kelsen, acentua-se que seu sistema sintático é dinâmico o bastante para incorporar as mudanças sociais e incluí-las em um ordenamento jurídico, desde que o devido processo legal – ou seja, a forma – seja respeitada. O purismo de Kelsen descreve o direito em termos do direito, sem preocupações ulteriores. Se há problemas morais ou políticos os quais o direito não pode dar as costas, que tais problemas sejam discutidos em sociedade e suas soluções sejam incorporadas ao sistema jurídico pelo devido processo legal.33 33 Como bem aponta Elza Afonso: “Somente a ação humana pode impedir ou exigir que determinados conteúdos sejam acolhidos pela norma do Direito positivo”. AFONSO, Elza Maria Miranda. “Passos da teoria de Kelsen rumo à construção da teoria do direito”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de.; TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes (Org.). Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 61. Mas se esse não for o caso, lamenta-se: não há o que o juiz possa fazer (a menos que o juiz esteja fazendo política; aliás, é o que boa parte dos magistrados diz quando uma decisão é entendida como injusta pelas pessoas). Mas Leslie Green cita um caso que embaraçaria a norma básica de Kelsen:

A Constituição canadense de 1982 foi legalmente criada por um ato do Parlamento Britânico, afirmando que o direito canadense e o direito inglês deveriam ser partes de um único sistema legal, enraizados em uma norma básica: “a (primeira) Constituição do Reino Unido tem de ser obedecida”. No entanto, nenhuma lei inglesa é obrigatória no Canadá, e uma proposta de revogação do ato constitucional por parte do Reino Unido não teria efeito legal no Canadá.34 34 GREEN, Leslie. Legal positivism. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2003. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/legal-positivism/>. Acesso em: 11 jul. 2015.

O Canadá (assim como a Austrália) é uma monarquia constitucional com o mesmo chefe de Estado: a rainha Elizabeth II do Reino Unido. Segundo Kelsen, a norma básica origina-se de uma primeira Constituição histórica de um determinado Estado. Mas no caso canadense, podemos afirmar que a primeira norma básica dos canadenses e britânicos é a mesma? Como uma norma básica pode corresponder a sistemas legais que podem revelar-se antagônicos, uma vez que os canadenses – a partir de 1982 – são aptos a redigir normas de acordo com seus interesses sem se reportar aos fundamentos jurídicos britânicos?35 35 Dados sobre a história e a forma política do Canadá estão disponíveis em: <http://www.canadainternational.gc.ca/brazil-bresil/about_a-propos/organization-organisation.aspx?lang=por>. Acesso em: 15 ago 2015.

Outro problema diz respeito ao esforço de Kelsen em justificar os sistemas jurídicos com base em uma norma transcendental. O que seria assentir com uma norma que diz que devemos respeitar a Constituição? Ao contrário das formulações de Kant para explicar o conhecimento de objetos empíricos com categorias (conceitos a priori) e formas da intuição,

não estamos coagidos a obedecer a constituições da mesma forma que estamos compelidos a experimentar objetos no espaço e no tempo. Ademais, enquanto o espaço e o tempo explicam transcendentalmente a diferença entre experiência real, legítima, e a experiência sonhada, irreal, uma norma básica transcendental não pode explicar a diferença entre uma Constituição legítima (obrigatória) e uma Constituição que não o seja.36 36 INGRAM, David. Filosofia do direito...op. cit., p. 100-101.

A norma fundamental de Kelsen não foi pensada como um artifício teórico apto a legitimar a colonização de países. Se após 1982, a Constituição canadense foi instituída segundo os interesses canadenses sem necessária anuência dos britânicos, pode-se entender que uma nova norma básica foi imposta no Canadá segundo as convenções e regras firmadas pelo povo canadense soberano. Portanto, a ideia de que a norma básica deva remeter a uma primeira Constituição histórica homologada ou promulgada não é adequada para responder esse tipo de problema. Deveria ser dito que, toda vez que uma Constituição é abandonada por outra, o mesmo ocorre com a norma básica.37 37 Com bem apontaram Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi: “a norma fundamental que impõe se conduzir de acordo com a Constituição Federal Brasileira de 1988 não é diferente, em sua função, daquela que impunha se conduzir de acordo com as Ordenações Filipinas. Por que hoje vale a primeira e não a segunda? Em razão do grau de eficácia social de cada uma no momento presente no Brasil”. DIMOULIS, Dimitri.; LUNARDI, Soraya. “A validade do direito na perspectiva juspositivista. Reflexões em torno de Hans Kelsen”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de.; TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. (Org.). Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 224. Além disso, tratar a norma básica como um elemento transcendental teórico que justifica as demais normas é inadequado. Na prática, respeitar a Constituição é uma escolha por um padrão geral de conduta de uma sociedade e é exatamente nesse momento de outorga ou promulgação de uma Carta Constitucional que se cristalizam as disputas de poder entre os diversos setores sociais. Portanto, a fundamentação do sistema jurídico com base no modelo kantiano não ajuda a explicar o bom funcionamento de um ordenamento jurídico. A saída é dar abertura à eficácia do sistema jurídico enquanto modelo apto a resolver litígios sociais com grau razoável de aceitação social e o quanto ele serve para prescrever condutas, algo que é corroborado por Kelsen.

Portanto, a eficácia que depende, em última análise, de sua valoração empírica, acaba sendo condição necessária, mas não suficiente: a validade ainda é primordialmente uma questão formal instituída por cada ordenamento. De toda maneira, de que forma esse grau mínimo de eficácia funciona no sistema de Kelsen é problemático. Afinal, abrir espaço ao plano factual de modo a permitir a justificação da norma básica com base em alguma perspectiva sociológica destruiria a distinção humeana, quebrando a espinha dorsal de seu modelo. Por outro lado, se a norma fundamental é estabelecida por algum(uns) ator(es) político(s) que funda(m) sua juridicidade e ela tende a ser cumprida pelas pessoas – o que dependerá de sua eficácia – o direito acaba sendo a organização justificada da força estatal alcançada por meio da violência. Por mais antipático que isso soe, o funcionamento do direito depende de um poder de polícia para seu funcionamento enquanto órgão fiscalizador das regras. Entretanto, não cabe reduzir a teoria jurídica de Kelsen a uma simples concepção justificadora da violência estatal. O fazê-lo seria tentar extrair de Kelsen o que o próprio não se propôs a oferecer. E mesmo que tal introspecção intelectual fosse levada a diante, dificilmente essa redução do direito ao papel policial do Estado se ajustaria com o rigor metodológico tão arduamente por ele defendido e buscado a todo custo para se afastar do mundo dos fatos.

Feita essas ressalvas, Kelsen foi um democrata por excelência. Ao enaltecer o aspecto sintático do direito e circunscrever o espaço de ação de um juiz àquilo que é previsto em um ordenamento, ele corrobora com uma das principais construções do Estado moderno pós Revolução Francesa: a lei impõe os freios formais à própria ação do Estado que, até então, agia sob a máxima “The king can do no wrong”. Acentuar o limite adstrito do juiz ao que é estabelecido em lei é defender a própria democracia. Afinal, o desvio deliberado do julgador faria com que pudéssemos cair em uma tecnocracia, em que os especialistas (nesse caso, os juristas) diriam o que é certo, podendo impor seus valores ou, o que seria ainda mais perigoso, funcionando como meros porta-vozes do executivo como em um regime fascista.38 38 Nesse quesito, é leitura obrigatória Carl Schmitt. Um bom resumo sobre sua obra e as relações entre direito, ordem e poder, ver: SÁ, Alexandre Franco de. Poder, direito e ordem: ensaios sobre Carl Schmitt. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012. Portanto, o suprassumo reino das leis é, na verdade, uma ode à democracia. Como bem dizia Norberto Bobbio (2015BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz & Terra, 2015., p. 265): “o governo das leis celebra hoje seu triunfo hoje na democracia. E o que é a democracia senão um conjunto de regras [...] para a solução de conflitos sem derramamento de sangue?”.

2.2 Vícios e virtudes do materialismo histórico de Pachukanis

Pachukanis não se prestou simplesmente a afirmar que o direito era uma estrutura política racionalmente formatada para conduzir os interesses de uma classe dominante. Mesmo que ele conclua isso, uma teoria geral do direito que se reivindica marxista precisaria demonstrar de que maneira isso surgiu na sociedade. Para chegar às suas conclusões, sua formulação foi demasiadamente facilitada pelo método de Marx. Pachukanis acreditava ser suficiente conduzir suas elaborações sobre o direito de um modo compatível com o que Marx aplicara à economia para demonstrar como a estrutura jurídica é indissociável da estrutura econômica.

Gerald Cohen, em A teoria da história de Karl Marx (2013) – obra originalmente publicada em 1976 – apresenta exemplos históricos que sustentam que

[...] as relações de propriedade são, por sua vez, funcionalmente explicadas pelas relações de produção: as estruturas legais surgem e desaparecem na medida em que promovem ou frustram formas de economia favorecidas pelas forças produtivas. As relações de propriedade possuem o caráter que possuem porque as relações de produção exigem que elas o possuam.39 39 COHEN, G.A. A teoria da história...op. cit., p. 276-277.

De acordo com o materialismo histórico, as alterações nas relações de propriedade são determinadas pelas relações de produção. Segundo Cohen, isso ocorreria sob três circunstâncias possíveis:40 40 Na verdade, Cohen elencou quatro casos possivelmente distintos da mútua relação de dependência entre modo de produção e relações legais. O caso (II) não foi mencionado pois pode ser interpretado como um sub-caso de I, que aqui é apresentado como caso (a). Ver: COHEN, G. A. A teoria da história...ibid., p. 272-276.

  1. No tempo t, as circunstâncias favorecem novas relações de produção que são tolhidas pela lei. Entre os períodos t e t + n, a lei é violada. A partir de t + n, a lei é revista para se adequar aos interesses da produção econômica.

  2. Novas relações de produção são formadas e nenhuma lei é ferida, pois não há nada que preveja a ilegalidade daquela relação. Nesse caso, uma nova lei é criada para fornecer garantia àquela nova situação econômica.

  3. As relações de propriedade se transformam sem que haja qualquer alteração da lei.

Um exemplo relativo a (a) diz respeito ao Estatuto dos artesãos ingleses de 1563. Tal lei previa que os artesãos cuja renda não atingisse determinada faixa mínima não poderiam ingressar na indústria têxtil: “essa lei não condizia com o desenvolvimento das primeiras manufaturas, sendo frequentemente burlada, por vezes com conivência das autoridades legais que faziam vista grossa” (COHEN, 2013COHEN, Gerald Allan. A teoria da história de Karl Marx: uma defesa. Campinas: Unicamp, 2013., p. 273). Após mais de um século, em 1694, a lei foi revogada. No caso (b), o conflito de classes no seio das fábricas inglesas no início do séc. XIX é o principal exemplo:

Os capitalistas das primeiras fábricas britânicas tentaram obter de seus empregados um trabalho intoleravelmente intensivo, mas os trabalhadores resistiram e os conflitos em torno do ritmo de trabalho foram endêmicos, durante os quais nenhum lado pôde citar uma lei que lhe fosse inquestionavelmente favorável, dado que não existia nenhuma legislação sobre a matéria controversa. A luta resultou em práticas normalmente reconhecidas e logo a lei rompeu seu silêncio, dando aos fatos uma forma legal.41 41 Ibid., p. 274.

Por fim, o terceiro caso (c) evidenciaria, se verdadeiro, um problema ao materialismo histórico. Afinal, haveria casos em que a relação de propriedade alteraria sem mudança de legislação. Esse problema é resolvido por Marx – segundo Cohen – ao longo dos Grundrisse:

Eis a essência da solução: os elementos da propriedade e do comércio capitalista são muito anteriores à formação da estrutura econômica capitalista propriamente dita, e as antigas leis que os regiam são aplicáveis a transações dentro da organização especial daqueles, que é o capitalismo. Sendo assim, ainda quando “o valor de troca não serve como base da produção”, na Antiguidade havia um setor de troca nesse setor, “âmbito dos [homens] livres, haviam-se desenvolvido os momentos da circulação simples”. Portanto, “[...] é explicável porque em Roma [...] tenham se desenvolvido as determinações da pessoa jurídica”. [...] A transição ao capitalismo é a passagem à centralidade de poderes que eram legítimos, mas somente eram exercidos de maneira periférica nas sociedades pré-capitalistas. Desse modo, as relações de propriedade podem se transformar completamente, sem uma transformação paralela no direito.42 42 Ibid., p. 292-293.

De acordo com Cohen, o embrião capitalista, mesmo que periférico, já habitava o passado. O capitalismo, em sua plenitude, apenas tornou central – e efetivo – um poder factual que já existia. Portanto, as relações de propriedade estariam (ou estão) imbricadas com o modo de produção capitalista. Mas há elementos a serem pontuados como os que se seguem abaixo.

Atualmente, o narcotráfico gera milhões de dólares com a circulação de drogas ilícitas. Há mais de 100 anos, a cocaína foi proibida de ser consumida (de acordo com lei norte-americana de 1914), o que não impediu que seu comércio paralelo gerasse riqueza sem qualquer alteração legal ao longo de mais de um século.43 43 Dados sobre distribuição e o aumento do consumo de drogas (lícitas e ilícitas) nas mais diversas camadas sociais estão dispostas no recente relatório da Comissão Interamericana para o Controle e Abuso de Drogas. Disponível em: <http://www.cicad.oas.org/apps/Document.aspx?Id=3209>. Acesso em: 20 ago. 2015. No caso das drogas, argumentos acerca dos malefícios do consumo dos narcóticos (e até mesmo religiosos) são centrais para a discussão. Logo, há outros elementos a serem avaliados que não apenas a mera relação econômica. Esse não é um processo mecânico; há certa autonomia relativa das estruturas não-econômicas (o que inclusive está de acordo com a própria perspectiva marxista).44 44 Sobre a autonomia relativa das superestruturas à infraestrutura econômica, ver: COUTINHO, Carlos Nelson. “A democracia como valor universal”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 21.

Além disso, um equívoco de Pachukanis é interpretar o positivismo como sendo uma doutrina que sustentasse a mera aplicação de normas de um modo robótico. O positivismo não é refratário a princípios gerais (valores morais ou políticos), como Dworkin também assim lia o positivismo.45 45 Concordo com Alexandre Trivisonno quando ele afirma que, para Kelsen, as “normas que possuem as propriedades lógicas atribuídas por Dworkin aos princípios, ou seja, princípios no sentido lógico de Kelsen, não estão excluídas do sistema normativo de Kelsen, mas, ao contrário, fazem parte dele, desde que produzidas em conformidade com uma norma superior e por uma autoridade determinada por essa norma superior, ou seja, por uma autoridade competente”. TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. “Princípios jurídicos e positivismo jurídico: as críticas de Dworkin a Hart se aplicam a Kelsen?”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; TRIVISONNO, A. (Org.) Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 198. Como o próprio Kelsen afirmou:

[Há uma] pluralidade de significações de uma palavra ou de uma sequência de palavras em que a norma se exprime: o sentido verbal de uma norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis. [...] De todo o modo, tem de aceitar-se como possível investigá-la [a vontade expressa pela norma] a partir de outras fontes [grifo nosso] que não a expressão verbal da própria norma, na medida em que possa presumir-se que esta não corresponde à vontade de quem estabeleceu a norma.46 46 KELSEN, H. A teoria pura...op. cit., p. 389.

Por fim, um questionamento: pode-se interpretar a equivalência ou igualdade entre mercadorias do mesmo modo que a igualdade ou equivalência entre os homens? O valor de troca de uma mercadoria, mesmo incluindo a mão-de-obra no rol das mercadorias, intenta descrever a proporção equivalente entre diversas mercadorias. Um industrial valora se o custo em manter x funcionários é mais vantajoso que o aperfeiçoamento do maquinário. Mas os argumentos morais e jurídicos em defesa da igualdade entre os homens não partem dessas bases. A equivalência marxiana para a troca de mercadorias – valor de troca – é essencialmente quantitativa: o quantum de uma mercadoria que é trocável por outra.

De acordo com Marx, as mercadorias possuem um aspecto dual. Por exemplo, a casa que habito possui um “valor de uso” óbvio: habitação. Mas ela também possui, dentro do sistema capitalista, um “valor de troca”: um valor expressado em dinheiro (aquilo que aparece como fenômeno percebido), cujo montante depende diretamente da relação entre oferta e demanda: “se a oferta é grande [de casas], o valor de troca baixará; se a oferta é muito pequena, o valor de troca elevará. [...] Mas por trás de todas essas flutuações, o valor pode permanecer constante” (HARVEY, 2010HARVEY, David. A companion to Marx’s Capital. New York: Verso, 2010., p. 23-24). E o “valor”, aquilo que Marx denominou por “trabalho socialmente necessário”, é uma média de trabalho despendido para a confecção de uma determinada mercadoria, dependendo de uma série de variáveis (custo do maquinário, terra, custo do trabalho, demanda etc.). Tal média varia de acordo com as “perpétuas revoluções através das mudanças tecnológicas e sublevações nas relações naturais e sociais” (HARVEY, 2010HARVEY, David. A companion to Marx’s Capital. New York: Verso, 2010., p. 24). Com isso, ele (valor) só pode ser apreendido em seu tempo histórico. Mas os argumentos em defesa da igualdade entre os homens, em seu sentido político/ético ou jurídico, possuem outros pontos de partida, premissas, preocupações e pressupostos.47 47 Um bom resumo das diversas concepções de “igualdade” – em sentido político e ético – pode ser conferido em: GOSEPATH, Stefan. Equality. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2007. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/equality/>. Acesso em: 21 ago. 2015. Além disso, na atualidade, a prática jurídica pressupõe a desigualdade entre os homens nas mais diversas esferas (direito do trabalho, direito penal, direito do consumidor etc.) para buscar fazer justiça. As condições materiais dos indivíduos são levadas em consideração no direito (por exemplo, pessoas têm acesso à justiça mesmo sem condições financeiras para custear um advogado, multas são fixadas de acordo com os vencimentos do infrator e princípios do Direito Penal como o da Bagatela prevê a extinção de punições para furtos de objetos com pouco valor (desde que preenchidos seus requisitos previstos) etc.).

Com relação ao critério temporal adotado como modo de reparação do dano na esfera penal, o capitalismo não parece ser uma condição necessária para que tal critério tenha sido adotado. Historicamente, as afirmações de Marx sobre o capitalismo correspondem à época de supremacia britânica enquanto centro dinâmico de acumulação financeira mundial, maturada ao longo do séc. XIX. O que é dito por Marx n’O Capital – o livro 1 foi originalmente publicado em 1867 – não descreve a situação econômica da Europa de meados do séc. XVIII.48 48 Para Maurice Dobb, o nascimento do capitalismo deve ser situado entre a segunda metade do século XVI e início do século XVII. DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 31. Entretanto, a mudança qualitativa ao final do século XVIII com a revolução têxtil na Inglaterra transformou os rumos globais do capitalismo, marcando uma “ruptura na economia mundial da época, [representando] uma mudança de natureza qualitativa, ao mesmo título da descoberta do fogo, da roda ou a do método experimental”. FURTADO, Celso. “Elementos de uma teoria do subdesenvolvimento”. In: FURTADO, Celso. Essencial Celso Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 114. Portanto, mesmo que o surgimento do capitalismo possa ser demarcado no século XVII, o mundo que Marx descreve no séc. XIX não é idêntico aos momentos anteriores à Revolução Industrial. Isso é importante pois o critério temporal de pena foi, em grande medida, estabelecido como resultado da aversão aos julgamentos secretos, à tortura e humilhação imputada aos condenados ainda durante o período iluminista.49 49 O clássico Vigiar e Punir de Foucault abre da seguinte forma: “[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999, p.9. Contrários a esse tipo de tratamento desumano aos apenados, autores como Montesquieu e Césare Beccaria defendiam que os ordenamentos jurídicos deveriam instituir normas penais humanizatórias. A defesa da humanização das penas, sustentadas por Beccaria, pode ser vista em seu, hoje clássico: BECCARIA, CÉSARE. Dos delitos e das penas. Bauru: Edipro, 1993. A obra de Beccaria foi originalmente publicada em 1764.

Portanto, mesmo que o critério temporal de reclusão no cárcere tenha sido instituído quase que concomitantemente à instauração do capitalismo em sua plenitude descrita n’O capital, interpretá-lo como efeito do modo de produção é inadequado. Dito isso, por todas essas razões expostas, da teoria do valor de Marx não se extrai uma explicação geral para a origem dos mais diversos tipos de regras jurídicas (de direito administrativo, direito internacional, direito de família entre outras esferas do direito) como pretendia Pachukanis.50 50 Dentre os autores que sustentam haver uma derivação direta entre regras jurídicas e relações mercantis estão: MASCARO, Alysson. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2014. E também: JÚNIOR, Celso Naoto Kashiura. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Para uma das mais recentes contribuições à literatura secundária concernente ao tema, ver: BATISTA, Roberto Flávio. O conceito de ideologia jurídica em Teoria Geral do direito e marxismo: uma crítica a partir da materialidade das ideologias. Verinotio, n. 19, 2015. Creio que uma melhor explicação para a elaboração das regras seja: tal qual na ciência em que especialistas delimitam – mesmo com certo de grau de arbitrariedade – o que será entendido por “elétron” ou “quark” e em quais circunstâncias tais regras são aplicadas, os legisladores “recortam” (com base em casos paradigmáticos) o que pretendem tutelar com regras estabelecidas, como bem exemplifica o clássico exemplo de Hart com a regra “é proibido veículos no parque”.51 51 Sobre isso ver: HART, Herbert. The concept of law. Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 124-154. E também: FONSECA, Alexandre Müller. O externalismo com rosto humano: interpretando a semântica de Hilary Putnam e suas aplicações. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Maria, 2016, p. 46-86. Disponível em: <http://w3.ufsm.br/ppgf/wp-content/uploads/2011/10/Alexandre-Muller-Fonseca.pdf>.

Pachukanis enfatizou o direito como um substrato político derivado das “contradições” que compõem a sociedade, faltando elementos claros acerca da operacionalidade de seu modelo. Em sua defesa, sua Teoria geral foi um esboço sobre um modo marxista de avaliar a forma jurídica.52 52 No prefácio da Teoria geral, Pachukanis diz que “o presente trabalho não pretende ser de modo algum o fio de Ariadne marxista no domínio da teoria geral do direito, ao contrário, pois em grande parte foi escrito com o fim de esclarecimento pessoal. De onde a abstração e a forma concisa e mesmo assim apenas esboço de exposição [...] a crítica marxista da teoria geral do direito ainda está no início”. PACHUKANIS, E. Teoria geral...op. cit., p. 7. Como consequência, a aplicação de sua concepção às diversas esferas do direito precisa ser pormenorizada (e refinada por seus adeptos) a fim de avaliar em que medida elas próprias são determinadas pelo desenvolvimento do capitalismo.53 53 É importante frisar que Marx não tinha uma teoria sobre o direito. Concordo com Cohen quando ele afirma que “não podemos levar ao pé da letra as descrições legais que Marx faz das relações de produção”. COHEN, G. A. A teoria da história...op. cit., p. 293. Mas por que Marx utilizou termos legais em diversos momentos de sua produção intelectual? Bem, talvez porque não houvesse nenhuma alternativa mais atraente: “Marx empregou regularmente termos legais em um sentido não legal”. COHEN, G. A. Ibid., p. 269. Se há um elemento de força dentro da concepção de Pachukanis, está em apontar para o elemento político do direito: as bases do direito – aquelas hoje tidas como constitucionais – são essencialmente orientações políticas. Não há neutralidade na base de um modelo jurídico. Entretanto, mesmo que a orientação constitucional siga o modelo socialista, o aceite da maioria da população sobre o novo sistema é uma condição sine qua non para a eficácia do próprio sistema, o que seria perfeitamente condizente com o que defendia Kelsen.

3. O positivismo de Kelsen com um rosto social(ista) é possível?

Kelsen vivenciou o período de duas grandes guerras e viu florescer dois modelos políticos distintos das democracias liberais parlamentares: o fascismo e o comunismo soviético. Como um democrata, acreditava no modelo político baseado no liberalismo político que assegura liberdades fundamentais aos cidadãos, como a livre prática religiosa, o sufrágio universal e uma imprensa livre, elementos que considerava imprescindíveis para qualquer forma política.54 54 A preferência de Kelsen pela democracia parlamentar e pelas bases nucleares do liberalismo político não estão comprometidas com o liberalismo econômico: “na medida em que a opinião pública só pode surgir onde são garantidas a liberdade intelectual, a liberdade de expressão, imprensa e religião, a democracia coincide com o liberalismo político – embora não necessariamente com o econômico”. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins 2000, p. 411-412. Como corolário de seus pressupostos fundamentais – liberdade e igualdade – a democracia convive, mesmo que de forma conflituosa, com opiniões divergentes difundidas na população que vive em um território.55 55 “[...] Herdeiro das ideias iluministas [...] [Kelsen] era um adepto do relativismo filosófico, que, no plano político, se traduzia no regime que não admite valores absolutos, ou seja, na democracia parlamentar, na qual se alternam valores diversos, representados pela maioria e pela minoria. Visão fundada na igualdade e na liberdade individuais”. LOSANO, Mario. “Kelsen teórico da democracia e o corporativismo dos anos 1930”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de.; TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. (Org.) Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 300. Mesmo com essas virtudes, a democracia representativa apresenta falhas, na perspectiva kelseniana. Afinal, só manifesta a vontade da população de maneira indireta. Entretanto, a complexidade da sociedade contemporânea inviabiliza, prima facie, uma democracia direta. A saída para contornar tais imperfeições seria adotar os referendos, leis de iniciativa popular e adotar o sistema de voto proporcional (KELSEN; VOLPICELLI, 1930KELSEN, Hans.; VOLPICELLI, Arnaldo. Parlamentarismo, democrazia e corporativismo. Roma: Tipografia Garroni, 1930., p. 141).

Outro ponto problemático na democracia era a incapacidade dos parlamentos ou Estados em gerenciar as economias dos países durante o turbulento período entre guerras. Na década de 1920, Kelsen discutia com o jurista italiano Arnaldo Volpicelli – influenciado por Giovanni Gentile – saídas para a reconstrução da Europa em crise. Nessa época, a Itália vivia sob o regime fascista que fora fortalecido a partir de 1925 por manobras de Benito Mussolini no parlamento italiano.56 56 Segundo Eric Hobsbawn, Giovanni Gentile era o filósofo de plantão de Mussolini. Alguns pontos da situação política italiana nesse período são apresentadas por Hobsbawn ao longo dos capítulos 4 e 5 em: HOBSBAWN, E. Era dos extremos...op. cit., p. 120. Dois anos depois (1927), o Partido Nacional Fascista apresentou as diretrizes que guiariam as relações de trabalho entre empregados e patrões submetidos ao controle do Estado.57 57 A Carta del lavoro, em pelo menos, dois de seus dispositivos formais estabelecidos, não deixa dúvidas da submissão das organizações sindicais diante do controle estatal: “III. A organização sindical ou profissional é livre. Mas somente o sindicato legalmente reconhecido e submetido ao controle do Estado tem o direito de representar legalmente a categoria dos empregadores ou trabalhadores para a qual é constituído [...] VI. As associações profissionais legalmente reconhecidas asseguram a igualdade jurídica entre os empregadores e os trabalhadores, mantendo a disciplina da produção e do trabalho e lhe promovendo o aperfeiçoamento. As Corporações constituem as organizações unitárias da força da produção e lhe representam integralmente os interesses. Em virtude desta representação integral, sendo os interesses nacionais, as Corporações são reconhecidas pela lei como órgãos do Estado”. CARTA DEL LAVORO. Disponível em <http://www.tie-brasil.org/Documentos/Carta%20del%20Lavoro.html>. Acesso em: 15 ago. 2015. A partir desse momento, o Estado italiano não se tornava apenas o agente supremo da reconstrução econômica do país, como também começava sua interferência na sociedade civil ferindo direitos duramente conquistados pelos trabalhadores e a dissolver a estrutura política clássica de Montesquieu de separação tripartida entre os poderes, colocando o Executivo – sob o comando de Mussolini – como ator central que tornava os demais poderes submissos às suas vontades.

Assumir a existência de valores absolutos é algo completamente estranho a Kelsen, principalmente que possa haver um homem iluminado capaz de encaminhar uma sociedade à salvação. Se essa concepção unívoca de bem-comum do regime fascista é rejeitada por Kelsen, parece, prima facie, que ele a estendesse ao modelo soviético. Afinal, Kelsen tecia várias críticas a Marx.58 58 Muitas das divergências de Kelsen com Marx e os marxistas se deve a uma incompreensão sua na forma como ler Marx. As críticas de Kelsen são essencialmente formalistas. Portanto, muitas das afirmações de Marx são interpretadas por Kelsen como antinomias lógicas. Um exemplo disso é o modo como ele interpreta as posições de Marx sobre o Estado: “I. O Estado é uma organização de domínio de classe, dirigida à conservação da exploração econômica em prejuízo da classe oprimida. II. Também no primeiro estágio da sociedade comunista haverá um Estado: a ditadura do proletariado, que é uma organização de domínio de classe cuja finalidade não será a exploração senão a superação dessa. [...] Se o Estado é, por definição, organização de uma classe para conservar a exploração de outra classe, como poderia a ditadura proletária tender a abolição da exploração e merecer, todavia, o nome de Estado? [Entretanto], para mim não há dúvida que no pensamento marxista, tal tese tem, ou pretende ter, caráter empírico [...] e não caráter analítico”. GUASTINI, Ricardo. “Kelsen y Marx”. In: CORREAS, Óscar. (Org.) El otro Kelsen. Ciudad Universitaria: Universidad Nacional Autónoma del México, 1989, p. 82. Mas não era exatamente assim que ele pensava. Para Kelsen, a forma jurídica soviética estendia a deliberação política para espaços antes não cogitados de participação política por parte dos trabalhadores, resultando em “um sistema de inumeráveis parlamentos sobrepostos em pirâmide, que se chamam conselhos ou ‘soviet’, mas que nada mais são que corpos representativos” (KELSEN; VOLPICELLI, 1930KELSEN, Hans.; VOLPICELLI, Arnaldo. Parlamentarismo, democrazia e corporativismo. Roma: Tipografia Garroni, 1930., p. 183). Em certo sentido, os soviéticos teriam hipertrofiado o parlamentarismo (KELSEN; VOLPICELLI, 1930KELSEN, Hans.; VOLPICELLI, Arnaldo. Parlamentarismo, democrazia e corporativismo. Roma: Tipografia Garroni, 1930., p, 184). Mas o que Kelsen diria da norma básica russa antes da tomada do poder pelos soviéticos? Após a tomada do poder pelos soviéticos, o Partido Comunista suprimiu a ordem jurídica anterior impondo uma nova ordem constitucional. Quanto a essa possibilidade, Kelsen responde da seguinte forma:

Suponha-se que um grupo de indivíduos tente conquistar o poder pela força, a fim de depor o governo legítimo de um Estado até então monárquico e introduzir uma forma republicana de governo. Se forem bem-sucedidos, se a velha ordem terminar e a nova ordem começar a ser eficaz, porque os indivíduos cuja conduta a nova ordem regula efetivamente se conduzem – de um modo geral – em conformidade com a nova ordem, então essa ordem é considerada válida. Agora, é de acordo com essa nova ordem que a conduta dos indivíduos é interpretada com lícita ou ilícita. Mas isso significa que se pressupõe uma nova norma fundamental.59 59 KELSEN, H. Teoria geral...op. cit., p. 173.

Aliás, em termos formais, a União Soviética não abandonou a sintaxe piramidal defendida por Kelsen:

A teoria do Estado e do direito soviéticos, assim como a prática legislativa soviética, estabelecem uma diferenciação bem fundamentada entre as leis constitucionais e as ordinárias. A lei constitucional, diferente da ordinária, compreende as normas jurídicas fundamentais e mais gerais e constituem a base jurídica de toda a função legislativa cotidiana dos órgãos correspondentes do Estado.60 60 DENISOV, A.; KIRICHENKO, M. Derecho constitucional sovietico. Moscou: Lenguas Extranjeras, 1959, p. 4.

O esqueleto do sistema soviético – afora, talvez, o rito procedimental defendido por Kelsen – não é muito diferente do que ele propôs, mas sob outras bases políticas (socialistas). Como visto acima, se a ordem instituída tornou-se eficiente para regular os litígios na antiga URSS, sendo aceita pela maioria da população, ela instituiu uma nova norma básica. A cadeia de justificações para a validade das normas não precisa retroceder a uma primeira Constituição historicamente outorgada ou promulgada. Se assim fosse, Kelsen engessaria seu sistema, tornando-o estático na base. Mas esse olhar positivo de Kelsen para elementos formais do modelo jurídico/estatal imposto na União Soviética é suficiente para torná-lo um socialista em potencial?

Em “A democracia como valor universal” (1984), Carlos Nelson Coutinho defendeu que não é possível pensar na construção do socialismo sem as bases formais da democracia. Por “socialismo”, Carlos Nelson não apresenta uma formulação nova. Ele continua se referindo a um modo de produção cujos mecanismos produtivos estejam sob o controle dos trabalhadores livremente organizados. Mas ele (socialismo) não se opõe à democracia:

A pluralidade de sujeitos políticos, a autonomia dos movimentos de massa e dos organismos da sociedade civil em relação ao Estado, a liberdade de organização, a legitimação da hegemonia através da obtenção permanente do consenso majoritário: todas essas conquistas democráticas, tanto as que nasceram com a sociedade burguesa quanto as que resultam das lutas populares no interior do capitalismo continuam a ter pleno valor numa sociedade socialista.61 61 COUTINHO, C.N. A democracia...op. cit., p. 24-25.

Carlos Nelson não pretende com isso defender que a democracia socialista seja uma simples continuação da democracia liberal: “a concepção segundo a qual a velha máquina estatal deve ser destruída para que se possa implantar a nova sociedade [...] continua a ter seu pleno valor de princípio” (COUTINHO, 1984COUTINHO, Carlos Nelson. “A democracia como valor universal”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 33-47., p. 25). Segundo Coutinho, as condições objetivas para a construção da democracia socialista já estão difundidas na sociedade. Para defender seus interesses, a própria burguesia teve de

criar organismos coletivos fora do Estado a fim de concorrer com as associações operárias e das demais classes: também ela [criou] [...] associações profissionais, partidos de massa etc. Com esse processo, deixa de existir uma situação típica dos primeiros Estados liberais: por um lado, indivíduos atomizados, puramente privados, lutando por seus interesses econômicos imediatos; por outro, os aparelhos estatais como único representante de um pretenso interesse “público”, de uma suposta vontade geral. Surge uma complexa rede de organizações, de sujeitos políticos coletivos. O pluralismo deixa de ser um pluralismo de indivíduos atomizados para se tornar um pluralismo de organismos de massa.62 62 Ibid., p. 28-29.

É dentro da pluralidade de interesses dispersos em uma sociedade que os organismos populares progressistas que representam os trabalhadores – sindicatos, movimentos sociais, partidos de esquerda – devem construir uma ampla frente em prol da construção de uma hegemonia que, na base, pressupõe a convivência plural e democrática. Sua estratégia será articular-se com os mecanismos tradicionais de participação indireta (COUTINHO, 1984COUTINHO, Carlos Nelson. “A democracia como valor universal”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 33-47., p. 30). A participação popular diretamente vinculada à democracia representativa deve ser firmemente buscada.63 63 O artigo de Carlos Nelson é anterior à experiência petista da prefeitura de Porto Alegre que instituiu o orçamento participativo nos anos 1990, experiência que vai ao encontro do que ele defendia. Lembrando que ele fez parte do PT desde sua fundação, migrando no início dos anos 2000 para o PSOL. Seria interessante saber, dentro das instâncias deliberativas do PT, como esse trabalho de Coutinho foi recepcionado na época.

Nessa democracia de massas, os trabalhadores devem se colocar como atores centrais na luta pela hegemonia da cultura que perpetua dentro da sociedade buscando “a unidade na diversidade dos sujeitos políticos coletivos autônomos” (COUTINHO, 1984COUTINHO, Carlos Nelson. “A democracia como valor universal”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 33-47., p. 34).64 64 Para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, a luta em favor do socialismo deve incorporar atores não previstos pelo marxismo tradicional. Nesse momento, o projeto socialista deve ser redefinido em termos de “radicalização da democracia, [...] com articulação das lutas contra as diferentes formas de subordinação – de classe, sexo, de raça, assim como [...] movimentos ecológicos, anti nucleares e anti institucionais”. LACLAU. Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonía e estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Letra e, 1987, p. 6. Agora, o socialismo já não se resumiria ao projeto político de uma classe social específica. Incorporar tais bandeiras é também defendido por Coutinho. Mas fica a dúvida saber se haveria, na esfera de luta política da atualidade, um protagonismo dos trabalhadores organizados diante desses novos atores políticos (grupos LGBT, ONGs, grupos em defesa de etnias etc.) na condução do processo pela implantação do socialismo. O objetivo deve ser que as instâncias de deliberação política seja obra dos “de baixo”, o que não implica em romper com a estrutura estatal momentânea. Com isso em prática, o Estado tenderia, no longo prazo, a definhar, sendo desnecessário enquanto forma política. Afinal, “a apropriação social da política é [...] sinônimo de extinção do Estado” (COUTINHO, 1984COUTINHO, Carlos Nelson. “A democracia como valor universal”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 33-47., p. 35).

Essas formulações de Carlos Nelson não são incompatíveis com a perspectiva democrática de Kelsen. A relação direta entre participação popular e democracia representativa é aplaudida por Kelsen, como exposto anteriormente. Socializar as instâncias de deliberação é, por princípio, mais justo e democrático que o modelo tradicional de democracia indireta. Medidas como a criação do “Gabinete Digital” do governo do Rio Grande do Sul na gestão de Tarso Genro que habilitava a população a indicar ações possíveis ao governo ou a recente criação da plataforma digital “Dialoga Brasil” do governo federal que tem o mesmo intuito, fortalecem o processo democrático. Essa forma híbrida de participação popular coexistindo com a democracia indireta é o que exigia Carlos Nelson e que Kelsen endossaria. Já defender o fim do Estado do modo como Carlos Nelson coloca, em um horizonte de hipertrofiamento do processo democrático poderia ser aceito por Kelsen enquanto conteúdo, não enquanto forma; isto é, a coletivização da política – em outras palavras, a radicalização da democracia – poderia levar a um novo patamar o Estado, mas a forma continuaria exigível. Afinal, há o comércio internacional, a relação diplomática com os demais países, a soberania das fronteiras com os países vizinhos, por exemplo. Em relação ao modo de produção: se a coletivização se tornar funcionalmente superior à produção individual produzindo excedente a mais que o modelo capitalista e a distribuição da riqueza for eficaz, não há porque não adotar tal modelo. Todas essas possíveis congruências só soam plausíveis dentro da exigência racional reivindicada por Kelsen: se a estrutura deliberativa socialista funcionar, ela pode acabar sendo democraticamente superior ao modelo capitalista. Se a eficácia da coletivização da produção de bens e serviços tornar-se superior ao modelo capitalista, seria irracional não adotar o socialismo.65 65 Após as experiências socialistas passadas, o socialismo não pode ser pensado como um modo de produção dissociado do mercado capitalista: “um socialismo totalmente fora do mercado constitui uma fantasia, uma emergência ou um desastre”. HOBSBAWN, Eric. Estratégias para uma esquerda racional: escritos políticos 1977-1988. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 238. Além disso, Marx afirmava ser necessário que a riqueza produzida sob o modelo coletivo de produção fosse superior aos produzidos sob a égide da propriedade privada, gerando excedente material e eliminando sua escassez. Isso eliminaria as disputas por riquezas no interior do território comunista. Entretanto, “certos recursos (por exemplo, o espaço) são inerentemente limitados e a recente onda de crises ambientais revelou os limites empíricos de outros recursos de que dependemos (por exemplo, o esgotamento das reservas de petróleo). Além disso, certos tipos de conflitos e males podem surgir mesmo com a abundância de certos recursos. Um exemplo que surge por causa da incapacidade e desejo de ajudar os outros são os conflitos potenciais envolvidos no paternalismo. Portanto, mesmo que a justiça seja adequada apenas como resposta aos problemas na sociedade, pode não ser possível superar esses problemas”. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 212.

Entretanto, há uma ressalva: Kelsen só poderia vir a aceitar essas teses dentro de um Estado (território) determinado. Ele não aceitaria colocar o socialismo em um horizonte global – como defendia Trotski com sua tese da revolução permanente66 66 Ver: TROTSKI, Leon. A revolução permanente. São Paulo: Kairós: 1985. – uma vez que isso implicaria no abandono do pluralismo ideológico. Os países estão legitimados a elaborar suas regras e normas e o âmbito internacional tem de conviver com as divergências. Aliás, o próprio modelo socialista uma vez implantado em um território deveria ser propenso a retornar ao modelo capitalista, pois as forças sociais que por ventura não se viram contempladas com o novo modelo socialista, poderão construir plataformas com força o suficiente para disputar a hegemonia no interior da sociedade, colocando-se como força contrária para comandá-la.

Conclusão

O debate entre Kelsen e Pachukanis evidencia um não-debate. Se o primeiro está preocupado com a forma, o segundo enfatiza que o direito é um derivado estrutural das “contradições sociais” que só justifica sua existência enquanto mecanismo racional de efetivação da justiça se conseguir decifrar as leis que governam o mundo dos homens; ou ele (direito) torna-se um mecanismo real de busca pela justiça ou já nasce morto. Em defesa de Kelsen, saliento que a orientação política/ideológica constitucional nunca fora questionada por Kelsen, tampouco suas causas sociais, apenas não foi objeto primeiro de sua análise. Já no caso das ações penais alternativas soviéticas, elas são aplicadas na atualidade, visando formular a equação razoável entre infração/pena adequada às circunstâncias – inclusive materiais – do réu. Essa prática já é comum nas democracias maduras. E certamente não há razão principiológica que faria Kelsen rechaçar essas medidas.

Por fim, se o objeto de estudo de Kelsen é claro, o de Pachukanis não o é, ao menos em termos sintáticos. Como o direito para Pachukanis é essencialmente derivativo, o estudo de seu conteúdo parece residir em outros departamentos de humanidades, como os de história e economia. Afinal, o direito só pode ser compreendido – segundo Pachukanis – em sua dimensão histórica e econômica. Isso causa certo embaraço prático, na medida em que, na atualidade, as academias jurídicas não habilitam os operadores do direito a avaliar essas matérias da forma crítica como gostaria um marxista, uma crítica aguçada do conteúdo do direito a qual Kelsen não se oporia. Mas o ensino jurídico poderia resolver esse problema inflacionando o curso com mais disciplinas de sociologia, história e economia. Requer vontade e empenho daqueles que detém o poder de alterar (nesse caso, ampliar) a grade curricular dos cursos de graduação, tornando a formação do jurista a mais ampla e plural possível. Todavia, no que diz respeito ao oferecimento de uma explicação sintática adequada do fenômeno jurídico, a contribuição de Pachukanis é bastante limitada.

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  • PACHUKANIS, Evegeny. Teoria geral do direito e marxismo São Paulo: Acadêmica, 1988.
  • ROSS, Alf. Imperatives and logic. Philosophia Scientiae, v. 11, n. 1, p. 30-46, 1944.
  • SÁ, Alexandre Franco de. Poder, direito e ordem: ensaios sobre Carl Schmitt. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.
  • SENIOR, Nassau William. “Outline of the science of political economy”. In: Methodology of economics: 19th Century British Contributions. Routledge: Thoemmes Press, 1997, v. 4.
  • TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. “Princípios jurídicos e positivismo jurídico: as críticas de Dworkin a Hart se aplicam a Kelsen?”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; TRIVISONNO, A. (Org.) Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 187-212.
  • TROTSKI, Leon. A revolução permanente São Paulo: Kairós, 1985.
  • 1
    Meus agradecimentos aos pareceristas pelas valiosas contribuições e também a Frank Sautter (UFSM), Juliele Sievers (UFSM), Marcos Palermo (UNIFRA) e Rogério Severo (UFSM) pela leitura minuciosa e pelos comentários sobre o presente trabalho.
  • 2
    Para dados de mortos em virtude das guerras deste período, ver: HOBSBAWN, ERIC. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 32-34.
  • 3
    Mesmo que a primeira edição da Teoria pura tenha sido publicada dez anos após a obra de Pachukanis, Kelsen já havia publicado as bases nucleares de seu positivismo em 1911. Ver: JESTAEDT, Matthias. (Org.). Hans Kelsen werke. Tübingen: Mohr, 2008, v. 2/1-2, p. 49-878.
  • 4
    Uma descrição interessante sobre o contexto histórico da Viena da época de Kelsen e sua relação intelectual com os positivistas do Círculo de Viena pode ser encontrada em: BAPTISTA, Fernando. O Tractatus e a Teoria pura do direito. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. Já com relação à influência do marxismo no movimento operário da segunda metade do séc. XIX e durante boa parte do séc. passado, é extensa a literatura sobre o assunto. Um bom resumo do tópico pode ser encontrado em: ELEY, Geoff. Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.
  • 5
    Um resumo dessas concepções pode ser encontrado em: INGRAM, David. Filosofia do direito: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 28-33.
  • 6
    Um tema central daquela que foi uma das principais discussões da filosofia jurídica da segunda metade do séc. XX – o debate entre Herbert Hart e Ronald Dworkin – foi antecipado por Kelsen. O problema da discricionariedade judicial e da possibilidade de haver uma única resposta correta para todo caso jurídico, foi por ele assim abordado: “Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como ‘correta’”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 391. Já a crítica de Dworkin à discricionariedade judicial pode ser encontrada em: DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 217-268. E dentre as diversas respostas a Dworkin – muitas defendendo Hart – uma importante resposta encontra-se em: ENDICOTT, Timothy. Vagueness in law. New York: Oxford University Press, 2000, p. 159-182.
  • 7
    Apud KAUFMANN, Eric. Critica della filosofia neokantiana del diritto. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992, p. 103.
  • 8
    Segundo John Finnis, o jusnaturalismo não é necessariamente refratário ao positivismo. Para Kelsen, essa discussão só é relevante na medida em que o jusnaturalismo se apresente como um método diferente do modelo por ele proposto de sistema jurídico. Kelsen nunca negou que o conteúdo das leis possa remeter a direitos intrínsecos ou básicos dos homens. O que nega é haja uma sintaxe – ou estrutura – distinta do positivismo por ele formulado. Ver: FINNIS, John. Natural law theories. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2011. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/natural-law-theories/>. Acesso em: 10 jul. 2015.
  • 9
    Kelsen abre a Teoria pura da seguinte maneira: “Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. [...] Esse é o princípio metodológico fundamental”. KELSEN, H. Teoria pura...op.cit. p.1.
  • 10
    HUME, DAVID. A treatise of human nature. Oxford: Clarendon Press, 2007, p. 244-245.
  • 11
    Tal estrutura evidencia o ganho explicativo – além de prático – em assumir a distinção humeana na esfera legal: uma coisa é a existência e a validade de uma regra de direito; outra coisa é a sua aplicação nos casos concretos.
  • 12
    KELSEN, H. Teoria Pura...op. cit., p. 217.
  • 13
    Em sua fase inicial, Kelsen pensou na norma básica como uma hipótese. Posteriormente, ele prefere tratá-la como ficção, já que uma hipótese tende a ser confirmada ou refutada pela experiência, o que é inviável para a norma fundamental (e não-condizente com seu intuito). Diz ele em sua obra póstuma: “Deveria ser notado que a norma básica não é uma hipótese no sentido da filosofia de Vaihinger do ‘como se’ – como eu mesmo tenho às vezes a caracterizado – mas uma ficção. Uma ficção difere de uma hipótese em que ela é acompanhada – ou deve ser acompanhada – de uma consciência de que a realidade não acorda com ela”. KELSEN, Hans. The general theory of norms. Oxford: Clarendon Press, 2001, p. 256.
  • 14
    MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. “Norma fundamental: ficção, hipótese ou postulado?”. In: KELSEN, Hans. Sobre a teoria das ficções jurídicas: com especial consideração da filosofia do “como se” de Vaihinger. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012, p. 30.
  • 15
    Esta discussão, no entanto, remete a um problema já clássico, tanto no âmbito da filosofia prática quanto na teoria do direito, a saber, o chamado “dilema de Jorgensen”. Sobre isso, ver: ROSS, Alf. Imperatives and logic. Philosophia Scientiae, v. 11, n. 1, 1944, p. 30-46. E também: CABRERA, Carlos Alarcón. Imperativos y logica en Jorgen Jorgensen. Isegoría, v. 20, 1999, p. 207-215.
  • 16
    LOSANO, Mario. “Introdução”. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. XVI.
  • 17
    Até o séc. XVIII, o estudo da economia não era distinguido de uma apreciação valorativa. Isso muda no séc. XIX com o avanço do olhar científico sobre a disciplina. Nesse novo cenário, as questões relativas à felicidade dos indivíduos e como melhor prover suas necessidades não são mais abordadas: o que importa é o estudo estrito da riqueza. Disse um dos pais do pensamento ortodoxo, Nassau William Senior: “As questões, em que medida e em que circunstâncias a possessão da riqueza é, no conjunto, benéfica ou penosa a seu possuidor, ou à sociedade da qual ela é membro? Qual a distribuição da riqueza mais desejável em cada estágio da sociedade? E quais os meios pelos quais um país pode facilitar sua distribuição? São questões de grande interesse e dificuldade, mas não mais formam parte da ciência da economia política”. SENIOR, Nassau William. “Outline of the science of political economy”. In: Methodology of economics: 19 Century British Contributions. Routledge: Thoemmes Press, 1997, v. 4. Sobre um resumo acerca do nascimento da escola ortodoxa em economia, ver: MAZZUCCHELLI, Frederico. Senior, Jevons e Walras: a construção da ortodoxia econômica. Economia e Sociedade, v. 12, n. 1, 2003, p. 137-146.
  • 18
    MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 54.
  • 19
    MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 113.
  • 20
    O exemplo mais cristalino disso é que enquanto ao capitalista o salário do trabalhador é custo, para o assalariado é renda.
  • 21
    Segundo Gerald Cohen, Marx explica as estruturas não-econômicas a partir das estruturas econômicas: “[...] as explicações centrais de Marx são funcionais, o que significa, grosso modo, que o caráter do que é explicado está determinado pelo seu efeito sobre o que o explica”. COHEN, Gerald Allan. A teoria da história de Karl Marx: uma defesa. Campinas: Unicamp, 2013, p. 325-326. Isso fica evidente em trechos que Marx diz que “as relações de produção correspondem às forças produtivas; a superestrutura legal e política se eleva sobre a base real; o processo da vida social, política e intelectual está condicionado pelo modo de produção material”. Apud COHEN, G. A. A teoria da história...ibid., p. 325. Isso é de profunda importância, pois a explicação funcional forneceu o fio condutor teórico necessário para Pachukanis justificar a forma jurídica como efeito da forma mercantil (ponto que exponho logo adiante).
  • 22
    PACHUKANIS, Evgeny. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 19.
  • 23
    Marx abre o capítulo 2 do livro 1 d’O capital do seguinte modo: “As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode toma-las à força; para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica é dado pela própria relação econômica”. MARX, K. O capital...op. cit. p. 159.
  • 24
    PACHUKANIS, op. cit., p. 54.
  • 25
    Sobre os pilares da Revolução Francesa – os conceitos de “liberdade” e “igualdade” prescritos na Carta de 1791 – disse Marx: “[...] o direito humano à liberdade não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao contrário, na separação entre um homem e outro. Trata-se do direito a essa separação, o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo. A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada. [...] A egalité, aqui em seu significado não político, nada mais é que a igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesma. [...] Nenhum dos direitos dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho e separado da comunidade. Muito longe de conceberem o homem como um ente genérico, esses direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta”. MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49-50.
  • 26
    Mesmo que o marxismo clássico não use, de modo geral nas suas formulações os conceitos de “causa” e “efeito”, preferindo o conceito de “dialética”, pode-se compreender, sem perda de sentido, que Pachukanis interprete as regras jurídicas como efeitos das relações econômicas na sociedade, cuja causa nuclear é econômica, encontrando respaldo teórico na teoria do valor de Marx, o que fica explícito na seguinte passagem: “Para que surgisse a ideia da possibilidade de expiar o delito com a privação de uma quantidade predeterminada de liberdade abstrata, foi necessário que todas as formas concretas de riqueza social estivessem reduzidas à forma mais abstrata e mais simples – o trabalho humano medido em tempo”. Apud NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 61. Esse exemplo do critério penal fixado enquanto tempo de reclusão foi um dos elementos concretos que permitiu a Pachukanis compreender a forma jurídica em função da forma mercantil. Afinal, Marx defendia que “é apenas a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso que determina a grandeza de seu valor”. MARX, K. O capital...op. cit., p. 117.
  • 27
    NAVES, M. B. Marxismo e direito...op. cit., p. 58-59.
  • 28
    HEAD, Michael. Evgeny Pashukanis: a critical reappraisal. Abingdon: Routledge, 2008, p. 5.
  • 29
    Ibid, p. 6.
  • 30
    Ver: PACHUKANIS, E. Teoria geral...op. cit., p. 24. Obviamente que o direito precede o capitalismo. Entretanto, o direito romano, por exemplo, estava inserido em um modo de produção escravagista. Logo, não havia a ideia de “igualdade” ou “liberdade” entre os homens. O direito a que se reporta Pachukanis está inserido na conjuntura de um modo de produção que reivindica uma relação de equivalência entre sujeitos tão díspares no mundo capitalista. Portanto, a extinção da sociedade de classes terminaria com o direito tal como conhecemos hoje. O que viria a seguir seria um outro tipo de instância normativa de regulação que até poderia ser chamada de “direito”, mas com um conteúdo (e forma) diverso.
  • 31
    Entende-se por “socialismo” a tese clássica da necessidade de coletivização dos meios de produção.
  • 32
    HEAD, M. Evgeny Pachukanis...op. cit., p. 14.
  • 33
    Como bem aponta Elza Afonso: “Somente a ação humana pode impedir ou exigir que determinados conteúdos sejam acolhidos pela norma do Direito positivo”. AFONSO, Elza Maria Miranda. “Passos da teoria de Kelsen rumo à construção da teoria do direito”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de.; TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes (Org.). Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 61.
  • 34
    GREEN, Leslie. Legal positivism. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2003. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/legal-positivism/>. Acesso em: 11 jul. 2015.
  • 35
    Dados sobre a história e a forma política do Canadá estão disponíveis em: <http://www.canadainternational.gc.ca/brazil-bresil/about_a-propos/organization-organisation.aspx?lang=por>. Acesso em: 15 ago 2015.
  • 36
    INGRAM, David. Filosofia do direito...op. cit., p. 100-101.
  • 37
    Com bem apontaram Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi: “a norma fundamental que impõe se conduzir de acordo com a Constituição Federal Brasileira de 1988 não é diferente, em sua função, daquela que impunha se conduzir de acordo com as Ordenações Filipinas. Por que hoje vale a primeira e não a segunda? Em razão do grau de eficácia social de cada uma no momento presente no Brasil”. DIMOULIS, Dimitri.; LUNARDI, Soraya. “A validade do direito na perspectiva juspositivista. Reflexões em torno de Hans Kelsen”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de.; TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. (Org.). Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 224.
  • 38
    Nesse quesito, é leitura obrigatória Carl Schmitt. Um bom resumo sobre sua obra e as relações entre direito, ordem e poder, ver: SÁ, Alexandre Franco de. Poder, direito e ordem: ensaios sobre Carl Schmitt. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.
  • 39
    COHEN, G.A. A teoria da história...op. cit., p. 276-277.
  • 40
    Na verdade, Cohen elencou quatro casos possivelmente distintos da mútua relação de dependência entre modo de produção e relações legais. O caso (II) não foi mencionado pois pode ser interpretado como um sub-caso de I, que aqui é apresentado como caso (a). Ver: COHEN, G. A. A teoria da história...ibid., p. 272-276.
  • 41
    Ibid., p. 274.
  • 42
    Ibid., p. 292-293.
  • 43
    Dados sobre distribuição e o aumento do consumo de drogas (lícitas e ilícitas) nas mais diversas camadas sociais estão dispostas no recente relatório da Comissão Interamericana para o Controle e Abuso de Drogas. Disponível em: <http://www.cicad.oas.org/apps/Document.aspx?Id=3209>. Acesso em: 20 ago. 2015.
  • 44
    Sobre a autonomia relativa das superestruturas à infraestrutura econômica, ver: COUTINHO, Carlos Nelson. “A democracia como valor universal”. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 21.
  • 45
    Concordo com Alexandre Trivisonno quando ele afirma que, para Kelsen, as “normas que possuem as propriedades lógicas atribuídas por Dworkin aos princípios, ou seja, princípios no sentido lógico de Kelsen, não estão excluídas do sistema normativo de Kelsen, mas, ao contrário, fazem parte dele, desde que produzidas em conformidade com uma norma superior e por uma autoridade determinada por essa norma superior, ou seja, por uma autoridade competente”. TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. “Princípios jurídicos e positivismo jurídico: as críticas de Dworkin a Hart se aplicam a Kelsen?”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; TRIVISONNO, A. (Org.) Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 198.
  • 46
    KELSEN, H. A teoria pura...op. cit., p. 389.
  • 47
    Um bom resumo das diversas concepções de “igualdade” – em sentido político e ético – pode ser conferido em: GOSEPATH, Stefan. Equality. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2007. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/equality/>. Acesso em: 21 ago. 2015.
  • 48
    Para Maurice Dobb, o nascimento do capitalismo deve ser situado entre a segunda metade do século XVI e início do século XVII. DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 31. Entretanto, a mudança qualitativa ao final do século XVIII com a revolução têxtil na Inglaterra transformou os rumos globais do capitalismo, marcando uma “ruptura na economia mundial da época, [representando] uma mudança de natureza qualitativa, ao mesmo título da descoberta do fogo, da roda ou a do método experimental”. FURTADO, Celso. “Elementos de uma teoria do subdesenvolvimento”. In: FURTADO, Celso. Essencial Celso Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 114. Portanto, mesmo que o surgimento do capitalismo possa ser demarcado no século XVII, o mundo que Marx descreve no séc. XIX não é idêntico aos momentos anteriores à Revolução Industrial.
  • 49
    O clássico Vigiar e Punir de Foucault abre da seguinte forma: “[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999, p.9. Contrários a esse tipo de tratamento desumano aos apenados, autores como Montesquieu e Césare Beccaria defendiam que os ordenamentos jurídicos deveriam instituir normas penais humanizatórias. A defesa da humanização das penas, sustentadas por Beccaria, pode ser vista em seu, hoje clássico: BECCARIA, CÉSARE. Dos delitos e das penas. Bauru: Edipro, 1993. A obra de Beccaria foi originalmente publicada em 1764.
  • 50
    Dentre os autores que sustentam haver uma derivação direta entre regras jurídicas e relações mercantis estão: MASCARO, Alysson. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2014. E também: JÚNIOR, Celso Naoto Kashiura. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Para uma das mais recentes contribuições à literatura secundária concernente ao tema, ver: BATISTA, Roberto Flávio. O conceito de ideologia jurídica em Teoria Geral do direito e marxismo: uma crítica a partir da materialidade das ideologias. Verinotio, n. 19, 2015.
  • 51
    Sobre isso ver: HART, Herbert. The concept of law. Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 124-154. E também: FONSECA, Alexandre Müller. O externalismo com rosto humano: interpretando a semântica de Hilary Putnam e suas aplicações. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Maria, 2016, p. 46-86. Disponível em: <http://w3.ufsm.br/ppgf/wp-content/uploads/2011/10/Alexandre-Muller-Fonseca.pdf>.
  • 52
    No prefácio da Teoria geral, Pachukanis diz que “o presente trabalho não pretende ser de modo algum o fio de Ariadne marxista no domínio da teoria geral do direito, ao contrário, pois em grande parte foi escrito com o fim de esclarecimento pessoal. De onde a abstração e a forma concisa e mesmo assim apenas esboço de exposição [...] a crítica marxista da teoria geral do direito ainda está no início”. PACHUKANIS, E. Teoria geral...op. cit., p. 7.
  • 53
    É importante frisar que Marx não tinha uma teoria sobre o direito. Concordo com Cohen quando ele afirma que “não podemos levar ao pé da letra as descrições legais que Marx faz das relações de produção”. COHEN, G. A. A teoria da história...op. cit., p. 293. Mas por que Marx utilizou termos legais em diversos momentos de sua produção intelectual? Bem, talvez porque não houvesse nenhuma alternativa mais atraente: “Marx empregou regularmente termos legais em um sentido não legal”. COHEN, G. A. Ibid., p. 269.
  • 54
    A preferência de Kelsen pela democracia parlamentar e pelas bases nucleares do liberalismo político não estão comprometidas com o liberalismo econômico: “na medida em que a opinião pública só pode surgir onde são garantidas a liberdade intelectual, a liberdade de expressão, imprensa e religião, a democracia coincide com o liberalismo político – embora não necessariamente com o econômico”. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins 2000, p. 411-412.
  • 55
    “[...] Herdeiro das ideias iluministas [...] [Kelsen] era um adepto do relativismo filosófico, que, no plano político, se traduzia no regime que não admite valores absolutos, ou seja, na democracia parlamentar, na qual se alternam valores diversos, representados pela maioria e pela minoria. Visão fundada na igualdade e na liberdade individuais”. LOSANO, Mario. “Kelsen teórico da democracia e o corporativismo dos anos 1930”. In: OLIVEIRA, Júlio Aguiar de.; TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. (Org.) Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 300.
  • 56
    Segundo Eric Hobsbawn, Giovanni Gentile era o filósofo de plantão de Mussolini. Alguns pontos da situação política italiana nesse período são apresentadas por Hobsbawn ao longo dos capítulos 4 e 5 em: HOBSBAWN, E. Era dos extremos...op. cit., p. 120.
  • 57
    A Carta del lavoro, em pelo menos, dois de seus dispositivos formais estabelecidos, não deixa dúvidas da submissão das organizações sindicais diante do controle estatal: “III. A organização sindical ou profissional é livre. Mas somente o sindicato legalmente reconhecido e submetido ao controle do Estado tem o direito de representar legalmente a categoria dos empregadores ou trabalhadores para a qual é constituído [...] VI. As associações profissionais legalmente reconhecidas asseguram a igualdade jurídica entre os empregadores e os trabalhadores, mantendo a disciplina da produção e do trabalho e lhe promovendo o aperfeiçoamento. As Corporações constituem as organizações unitárias da força da produção e lhe representam integralmente os interesses. Em virtude desta representação integral, sendo os interesses nacionais, as Corporações são reconhecidas pela lei como órgãos do Estado”. CARTA DEL LAVORO. Disponível em <http://www.tie-brasil.org/Documentos/Carta%20del%20Lavoro.html>. Acesso em: 15 ago. 2015.
  • 58
    Muitas das divergências de Kelsen com Marx e os marxistas se deve a uma incompreensão sua na forma como ler Marx. As críticas de Kelsen são essencialmente formalistas. Portanto, muitas das afirmações de Marx são interpretadas por Kelsen como antinomias lógicas. Um exemplo disso é o modo como ele interpreta as posições de Marx sobre o Estado: “I. O Estado é uma organização de domínio de classe, dirigida à conservação da exploração econômica em prejuízo da classe oprimida. II. Também no primeiro estágio da sociedade comunista haverá um Estado: a ditadura do proletariado, que é uma organização de domínio de classe cuja finalidade não será a exploração senão a superação dessa. [...] Se o Estado é, por definição, organização de uma classe para conservar a exploração de outra classe, como poderia a ditadura proletária tender a abolição da exploração e merecer, todavia, o nome de Estado? [Entretanto], para mim não há dúvida que no pensamento marxista, tal tese tem, ou pretende ter, caráter empírico [...] e não caráter analítico”. GUASTINI, Ricardo. “Kelsen y Marx”. In: CORREAS, Óscar. (Org.) El otro Kelsen. Ciudad Universitaria: Universidad Nacional Autónoma del México, 1989, p. 82.
  • 59
    KELSEN, H. Teoria geral...op. cit., p. 173.
  • 60
    DENISOV, A.; KIRICHENKO, M. Derecho constitucional sovietico. Moscou: Lenguas Extranjeras, 1959, p. 4.
  • 61
    COUTINHO, C.N. A democracia...op. cit., p. 24-25.
  • 62
    Ibid., p. 28-29.
  • 63
    O artigo de Carlos Nelson é anterior à experiência petista da prefeitura de Porto Alegre que instituiu o orçamento participativo nos anos 1990, experiência que vai ao encontro do que ele defendia. Lembrando que ele fez parte do PT desde sua fundação, migrando no início dos anos 2000 para o PSOL. Seria interessante saber, dentro das instâncias deliberativas do PT, como esse trabalho de Coutinho foi recepcionado na época.
  • 64
    Para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, a luta em favor do socialismo deve incorporar atores não previstos pelo marxismo tradicional. Nesse momento, o projeto socialista deve ser redefinido em termos de “radicalização da democracia, [...] com articulação das lutas contra as diferentes formas de subordinação – de classe, sexo, de raça, assim como [...] movimentos ecológicos, anti nucleares e anti institucionais”. LACLAU. Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonía e estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Letra e, 1987, p. 6. Agora, o socialismo já não se resumiria ao projeto político de uma classe social específica. Incorporar tais bandeiras é também defendido por Coutinho. Mas fica a dúvida saber se haveria, na esfera de luta política da atualidade, um protagonismo dos trabalhadores organizados diante desses novos atores políticos (grupos LGBT, ONGs, grupos em defesa de etnias etc.) na condução do processo pela implantação do socialismo.
  • 65
    Após as experiências socialistas passadas, o socialismo não pode ser pensado como um modo de produção dissociado do mercado capitalista: “um socialismo totalmente fora do mercado constitui uma fantasia, uma emergência ou um desastre”. HOBSBAWN, Eric. Estratégias para uma esquerda racional: escritos políticos 1977-1988. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 238. Além disso, Marx afirmava ser necessário que a riqueza produzida sob o modelo coletivo de produção fosse superior aos produzidos sob a égide da propriedade privada, gerando excedente material e eliminando sua escassez. Isso eliminaria as disputas por riquezas no interior do território comunista. Entretanto, “certos recursos (por exemplo, o espaço) são inerentemente limitados e a recente onda de crises ambientais revelou os limites empíricos de outros recursos de que dependemos (por exemplo, o esgotamento das reservas de petróleo). Além disso, certos tipos de conflitos e males podem surgir mesmo com a abundância de certos recursos. Um exemplo que surge por causa da incapacidade e desejo de ajudar os outros são os conflitos potenciais envolvidos no paternalismo. Portanto, mesmo que a justiça seja adequada apenas como resposta aos problemas na sociedade, pode não ser possível superar esses problemas”. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 212.
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    Ver: TROTSKI, Leon. A revolução permanente. São Paulo: Kairós: 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2015
  • Aceito
    23 Jun 2016
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