Acessibilidade / Reportar erro

2018: 50 Anos entre Permanências e o Recrudescimento da Violência de Estado

2018: 50 years between Continuities and the Intensification of State Violence

Resumo

A violência institucional no Brasil é um fenômeno condicionado por permanências do período ditatorial. A intervenção federal-militar no Rio de Janeiro e o espaço aberto aos militares na gestão golpista de Michel Temer apontam para um cenário de recrudescimento no campo dos direitos humanos e colocam em análise as perspectivas políticas para o pós 2018.

Palavras-chave:
Permanências da Ditadura; Direitos Humanos; Recrudescimento da Violência de Estado

Abstract

The state violence in Brazil is a phenomenon conditioned by the continuities of the dictatorial period. The federal-military intervention in Rio de Janeiro and the space opened to the military in the Michel Temer's illegitimate government point to a scenario of recrudescence in the field of human rights and call attention to the political perspectives for the post 2018.

Keywords:
Continuities of the Dictatorship; Human Rights; Intensification of State Violence

Introdução

O ano de 1968 no Brasil foi marcado, de um lado, por intensas manifestações estudantis que contaram com o apoio de setores da classe média e da Igreja, greves de metalúrgicos contra a política econômica da ditadura e o início insipiente de ações de organizações da chamada luta armada. De outro, a crescente repressão às manifestações, com violência direta e detenções arbitrárias, que tiveram o assassinato do estudante secundarista Edson Luís como resultado, em 28 de março de 1968. Essa dinâmica de manifestações estudantis e de repressão violenta e assassina, teve a Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho daquele ano, como ícone da resistência de amplos setores à ditadura. O ascendente recrudescimento da repressão contra mobilizações foi acompanhado de aumento da censura no meio cultural, jornalístico e estudantil e do controle político sobre sindicatos e organizações estudantis. O Ato Institucional n. 5 de 13 de dezembro de 1968, é o símbolo deste processo de aprofundamento da institucionalização da violência política.

O mês de maio de 2018 é o marco de cinquenta anos dos acontecimentos de maio de 1968. O presente artigo, partindo da análise das permanências da estrutura institucional da ditadura nos tempos de dita democracia, pretende apresentar a implicação institucional das polícias, do Ministério Público e do Judiciário na manutenção e no acirramento das graves violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado. A população negra e pobre é, tanto historicamente quanto atualmente, o principal alvo desta violência e o Estado é responsável por uma prática diária de verdadeiro genocídio.

Partindo dessa análise, entramos na problemática da defesa dos direitos humanos e na situação de vulnerabilidade e risco na qual vivem suas defensoras e defensores - passam de 60 o número de mortes registradas tanto em 2016 quanto em 2017. As manifestações de rua, nos últimos anos e principalmente a partir de 2013, ganharam espaço como forma de reação à contínua violação de direitos pelo Estado. A resposta que se consolidou frente à ocupação dos espaços públicos foi o acirramento da repressão policial e a atuação conjunta do Ministério Público e do Judiciário na persecução e criminalização dos manifestantes.

As ruas, em 2013, anunciavam um cenário de recrudescimento que se aprofundaria nos anos subsequentes. A apertada reeleição de Dilma Rousseff em 2014, a consolidação dos caminhos para o golpe em 2015 e 2016, a assustadora lista de retrocessos acumulados desde o primeiro dia do governo ilegítimo de Michel Temer. São esses os percursos que, partindo do simbólico ano de 1968, o presente artigo pretende traçar como forma de abrir a análise para os cenários que virão nesse pós 2018.

1. Permanências da Violência de Estado

Tratar das permanências da violência do Estado implica abordar questões estruturais, que constituem o modo de operar da máquina estatal produtora de barbárie, por meio de uma engrenagem institucional que permanece intacta no presente promovendo, a perpetração de graves violações aos direitos humanos. A violência de Estado não se restringe a atuação violenta das polícias, mas é exercida pelo sistema de justiça como um todo, tendo o Ministério Público e o poder judiciário como atores fundamentais. São estruturais também no sentido de que não houve ruptura na política estatal em termos da estrutura de funcionamento das forças policiais ( Zaverucha, 2010 ZAVERUCHA, Jorge. “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. ), com exceção da extinção formal de departamentos de polícia política e das estruturas dos DOI-Codis 1 1 Os Destacamentos de Operações Especiais (DOI) - Centros de Operação de Defesa Interna (CODI) foram criado especificamente durante a ditadura militar, entre 1969 e 1970, em diferentes zonas militares do país, para centralizar o combate e eliminar a resistência à ditadura. Originado pelo projeto piloto chamado Operação Bandeirantes (Oban), que teve financiamento de empresas como o Grupo Ultra Gás, Ford, a General Motors, entre outras, o sistema DOI-Codi articulava as instâncias governamentais estadual e federal, com arregimentação das polícias, bombeiros e das forças armadas. Constitui verdadeira máquina de tortura ininterrupta e assassinatos sistemáticos que, a partir do final de 1969, foi o grande temor da resistência à ditadura. . Outras agências menos óbvias foram criadas ou estas funções são exercidas de forma diluída nas práticas das forças de segurança que seguem, majoritariamente, atuando de forma racista, autoritária e militarizada. Neste sentido, pode-se afirmar a existência de uma “política de extermínio de estado” (Batista, 2012b _____. Adesão subjetiva à barbárie. In: BATISTA, Vera Malaguti (org.). Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2012b, pp 307-318. ; D’Elia Filho, 2015 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. ), cujo trabalho é dividido entre suas distintas agências. A política é determinada e tem sua prática chancelada pelo poder executivo; as polícias militar e civil estão à frente da execução seja pela ação violenta, seja pela seletividade de investigação; o Ministério Público reforça o modo de operar da polícia civil e o poder judiciário ratifica a atuação de todas as outras agencias estatais (D’Elia Filho, 2015 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. ; Alerj, 2016 Assembleia Legislativa Do Estado Do Rio De JANEIRO (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar os autos de resistência e mortes decorrentes de ações policiais no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 2016. ).

Em “Assassinatos em nome da Lei: uma prática ideológica do direito penal” ( Verani, 1996 VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei: uma prática ideological do dirieto penal. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996. ), Sérgio Verani, revela dados sobre casos de autos de resistência ocorridos na década 1980. Das quase quarenta ocorrências acompanhadas, todas terminaram em absolvição dos réus pelo I Tribunal do Júri à pedido do Ministério Público. Já na pesquisa “Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro: a atuação da Justiça Militar”, desenvolvida por Ignácio Cano (1998) CANO, Ignácio. Letalidade da Ação Policiais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER, 1997. , entre os anos de 1993 e 1996, de 301 inquéritos analisados, 295 foram arquivados pelo judiciário à pedido do promotor. As seis denúncias que viraram processo, não se referiam à crimes ocorridos em regiões de favelas, e, de toda forma, acabaram resultando na absolvição dos policiais também à pedido dos promotores. O índice de arquivamento das ocorrências revelado pela pesquisa foi de 98%.

Em uma pesquisa sobre casos de autos de resistência ocorridos em 2005, Michel Misse (Misse, et al, 2011) analisou que dos 707 casos ocorridos no estado do Rio de Janeiro foram lavrados 510 autos de registros de ocorrência (em diversos casos havia mais de uma vítima). Desses, ainda em 2005, apenas 355 inquéritos tinham sido instaurados e até o ano de 2007 apenas 19 desses inquéritos tinham concluído a passagem pelo Ministério Público e chegado ao Tribunal de Justiça. Daqueles que chegaram ao judiciário, 16 entraram com pedido de arquivamento pelo Ministério Público. Em relação aos outros três, dois aguardavam julgamento e um havia resultado em condenação. Assim, a pesquisa realizada já nos anos 2000, revelou uma taxa de arquivamento de 99,2%.

O caso da chacina de Acari, ocorrida em 26 de julho de 1990, é um importante analisador dessa dinâmica institucional. O desaparecimento forçado de onze pessoas por um grupo que se identificou como policial, em um sítio em Magé, prescreveu em 2000, sem que o inquérito tivesse sido encaminhado pelo Ministério Público ao judiciário com o pedido de instauração de processo. O setor de inteligência da Polícia Militar chegou a identificar que policiais do 9° Batalhão da Polícia Militar e do Departamento de Roubo de Carga da 39° Delegacia da Polícia Civil estavam envolvidos no caso. Ainda, no livro Mães de Acari: uma história de luta contra a impunidade ( Nobre,1994 NOBRE, Carlos. Mães de Acari: Uma história de protagonismo social. Rio de Janeiro: Pallas Editora/Editora PUC-Rio, 1994. ) é relatado que alguns dos responsáveis pela chacina eram integrantes do grupo de extermínio Cavalos Corredores. Essa informação foi confirmada em testemunhos ouvidos pela Anistia Internacional em pesquisa publicada em 1994 2 2 “Além do desespero: uma agenda para os direitos humanos no Brasil” (Anistia Internacional, 1994) . O caso revela desde problemas na realização das perícias pelos institutos da polícia civil até uma atuação negligente do Ministério Público enquanto órgão de controle externo da atividade policial.

Como reação à omissão do Estado, as mães das vítimas da chacina fundaram o movimento “Mães de Acari” que buscou garantir tanto a visibilidade do caso nacional e internacionalmente, como o levantamento de informações para a descoberta do paradeiro de seus filhos e filhas. Em razão da repercussão alcançada pelo grupo e das informações que estavam sendo levantadas, Edméia da Silva Euzébio, mãe de Luiz Henrique da Silva Euzébio, uma das vítimas no caso, foi executada à luz do dia, próximo ao metrô do Estácio. A denúncia do caso de Edméia foi aceita pelo judiciário apenas em 2011, dois anos antes do prazo de sua prescrição.

Desde o final da década de 1980, constatou-se o crescimento do número de execuções atribuídas a esquadrões da morte ou grupos de extermínio 3 3 Os chamados “Esquadrões da Morte” tem sua formação e operação atribuída às décadas de 1950 e 1960, quando Amauri Kruel, General que foi Chefe de Polícia do Distrito Federal a partir de 1957, foi o responsável pela organização de agentes da polícia civil para agir na caça a “bandidos” e “marginais” (Huggins, 1998, 159). Esse grupo, além de ligado ao Chefe de Polícia, também tinha relação com outros militares, como Cecil Borer, que chefiaria o DOPS no ano de 1964. Utilizavam uma delegacia em Olaria como local de prisão e tortura de diferentes grupos perseguidos antes e durante a ditadura. Cfr. ULTIMA HORA. Edição de 05/10/1961. Página 07. Disponível em http://memoria.bn.br/pdf2/386030/per386030_1961_03461.pdf . , assim como a integração de policiais a estes grupos ( Anistia Internacional, 1990 ANISTIA INTERNACIONAL. Brazil: Torture and extrajudicial execution in urban Brazil. 1990. ). A Human Rights Watch (1993) HUMAN RIGHTS WATCH. Urban Police Violence in Brazil: Torture and Police Killings in São Paulo and Rio de Janeiro after five years. 1993. apontou a identificação de mais de 180 desses grupos na área da Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Grupos estes a quem foram atribuídas outras chacinas, como a de Vigário Geral, também em 1993. As chacinas executadas por policiais e membros de grupos para-policiais, assim como o cotidiano fenômeno do extermínio policial em áreas periféricas ou de favela, são situações exemplares e extremas da política de extermínio ainda em curso.

Atualmente, grupos de atuação similar, em grande parte compostos por integrantes das forças de segurança pública do Estado e por políticos, muitas vezes com mandatos em exercício, recebem a denominação de milícias. Inicialmente apoiados pela mídia e por integrantes do poder público, por exercerem uma suposta ação de segurança local frente às violências do tráfico de drogas, esses grupos se fortaleceram e se estabeleceram como verdadeiros proprietários de determinadas áreas do Rio de Janeiro. Essa propriedade era e é mantida, entre outros meios, através do controle do fornecimento de serviços essenciais mediante extorsão, de ameaças, da eliminação tanto da concorrência quanto de qualquer pessoa que se contraponha ou coloque em risco a hegemonia local dos grupos, do poderio bélico de seus integrantes, e da relação estreita com o poder público, garantindo, através de trocas de interesses, a impunidade necessária para o crescimento do poder e do lucro desses grupos. Na segunda metade dos anos 2000, frente ao aprofundamento do poder econômico e político das milícias, esses grupos passaram a ser alvo de investigações mais contundentes. A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Milícias, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (2008) Assembleia Legislativa Do Estado Do Rio De JANEIRO (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar a Ação de Milícias no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 2008. identificou diversos integrantes desses grupos e no total foram indiciadas mais de 200 pessoas, entre as quais policiais militares, policiais civis, ex-policiais, bombeiros, cabos do exército, agentes penitenciários, deputados e vereadores.

O extermínio cotidiano em áreas periféricas ou de favela promovido oficialmente pelo Estado ocorre por meio de incursões ou operações das polícias militar e civil, separadamente ou em conjunto, desde o início da década de 1990, quando se desencadeou o recrudescimento da militarização da chamada política de “segurança pública” por meio de recursos materiais (armamento e veículos policiais-militares) e humanos ( ALERJ, 2016 Assembleia Legislativa Do Estado Do Rio De JANEIRO (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar os autos de resistência e mortes decorrentes de ações policiais no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 2016. ). O contexto deste processo é a chamada “guerra às drogas” e o mecanismo de legitimação das execuções realizadas pelas polícias é o chamado e já largamente debatido, porém ainda em uso, “auto de resistência” 4 4 “procedimento administrativo no qual se registram mortes de civis por policiais e que tem a finalidade de salvaguardar o agente de uma prisão em flagrante. Esse instrumento parte da presunção de suposta resistência por parte das vítimas e da legítima defesa por parte do agente. Uma vez lavrado o auto de resistência, as circunstâncias devem ser apuradas no inquérito policial, a cargo da Polícia Civil, que precisa ser remetido ao Ministério Público em 30 dias para apreciação, suscitando pedido de arquivamento ou denúncia.” ( ALERJ, 2016 , p. 4) . Nesta figura de registro jurídico-administrativa, a legítima defesa do agente policial é presumida, em geral, sem investigações consistentes, em que provas básicas, como perícia e testemunhos de outras pessoas, que não os próprios policiais, não são produzidas no inquérito policial ( Human Rights Watch, 1997 HUMAN RIGHTS WATCH. Brutalidade Policial Urbana no Brasil. 1997. ; ALERJ, 2016 Assembleia Legislativa Do Estado Do Rio De JANEIRO (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar os autos de resistência e mortes decorrentes de ações policiais no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 2016. ).

Instituído por meio da Ordem de Serviço “N”, nº 803, da Superintendência da Polícia Judiciária do antigo estado da Guanabara 5 5 A cidade do Rio de Janeiro foi uma cidade-estado entre 1960 e 1975, quando a capital foi transferida para Brasília. O estado denominou-se Estado da Guanabara. , enquanto um procedimento administrativo interno à Polícia Civil, o auto de resistência consiste no que Orlando Zaccone chamou de “a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro” (D’Elia Filho, 2015 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. ). Em uma articulação que reúne os policiais (militares ou civis), inspetores e delegados de Polícia Civil, Promotores de Justiça do Ministério Público e juízes, forma-se a máquina de extermínio e de “esquecimento” (Idem).

Se a década de 1990, por um lado, consistiu em um período de oscilação de projetos em que algum espaço de disputa efetiva sobre a transformação das práticas policiais teve lugar ( Dornelles, 2003 DORNELLES, João Ricardo W. Segurança Pública e Direitos Humanos: Entre Pombos e Falcões. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003. ), as décadas de 2000 e 2010 constituem os períodos de consolidação e generalização dessa política de extermínio contraditoriamente articulada ao discurso da “segurança cidadã”. Entre 1993 e 2017, o Estado do Rio de Janeiro registrou 17.364 6 6 Segundo a soma dos dados oficiais existentes no Instituto de Segurança Pública (ISP) e os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015 e 2016, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também baseados em dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública. pessoas mortas em “autos de resistência” ou “intervenções policiais” 7 7 Segundo a soma dos dados oficiais existentes no Instituto de Segurança Pública (ISP), conforme ( Misse et. al., 2013 apud D’Elia Filho, 2015) e os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015 e 2016, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também baseados em dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública. . No entanto, é necessário ter atenção para o fato de que as cifras do extermínio são ainda maiores. Conforme nota o relatório da Human Rights Watch (2016) HUMAN RIGHTS WATCH. “O Bom Policial Tem Medo”: Os Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro. 2016. os números do Instituto de Segurança Pública (ISP) são incompletos, pois há casos que são registrados como homicídios comuns, outros em que os policiais admitem estar presentes mas negam a autoria dos disparos, e também incidências com ausência de registro da morte como homicídio, com aparecimento posterior do corpo da vítima.

O alvo dessa política de extermínio é a juventude negra. Na cidade do Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013, por exemplo, 99,5% das vítimas de autos de resistência eram homens, 79% negras e, embora não seja possível precisar, a estimativa é de que 75% possuía entre 15 e 29 anos. Em 2017, a cifra de execuções sumárias chegou à 1.1024. Frente ao cenário de racismo estrutural explícito e de uma prática instituída e legitimada de violência genocida por parte do Estado, são de extrema importância os movimentos de resistência e de oposição às políticas majoritárias e de defesa e luta por direitos humanos.

2. De 2013 ao Golpe - da ocupação das ruas à ameaça da luta por direitos

As eleições de 2014 formaram o Congresso Nacional mais conservador desde a ditadura militar e um dos desdobramentos dessa composição foi o acirramento da criminalização, pela via legislativa, da luta pelos direitos humanos. O golpe de 2016 aprofundou este cenário de retrocesso, e em junho do mesmo ano, antes mesmo da concretização do impeachment contra Dilma Rousseff, já havia 29 projetos de decretos legislativos para a suspensão de decretos anteriores, uma proposta de reforma do ensino médio e do programa “escola sem partido”, e uma proposta de reforma trabalhista que, na prática, acabava com garantias conquistadas nas últimas décadas. Essas mudanças - propostas ou já instituídas - influenciam diretamente o campo da luta por direitos humanos e consequentemente determinam uma situação de maior risco e vulnerabilidade para suas defensoras e defensores 8 8 “Defensores de direitos humanos: indivíduos, grupos, organizações, povos, movimentos sociais que atuam pela eliminação das violações de direitos e liberdades fundamentais dos povos e indivíduos. Incluindo os que buscam a conquista de novos direitos individuais, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais que ainda não assumiram forma jurídica ou definição conceitual específica. São contemplados ainda aqueles que resistem politicamente aos modelos de organização do capital, às estratégias de deslegitimação e criminalização do Estado e à ausência de reconhecimento social de suas demandas. No tocante à coletividade, consideramos, por exemplo, que os movimentos sociais, sindicatos, associações, comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhos são DDHs enquanto entes coletivos. Com isso, percebe-se a necessidade de ampliação, em determinados casos, da compreensão individualizada do defensor para a coletividade da qual faz parte, e que pode estar diretamente vulnerável no processo de luta de direitos humanos.” http://www.global.org.br/wp-content/uploads/2016/09/guia-DDHs-final.pdf .

No ano de 2016, 67 pessoas foram mortas no Brasil tendo como causa da morte a luta por direitos e a oposição à interesses hegemônicos 9 9 ”No ano de 2016, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi registrado o maior número de conflitos no campo dos últimos 32 anos, pois “foram contabilizados 1.079 conflitos, uma média de 2,9 registros por dia. Os assassinatos tiveram um aumento de 22% em comparação com o ano de 2015 e é o maior número de casos desde 2003”. Esse cenário desolador de violência já não se restringe apenas a algumas pessoas, mas adquiriu caráter de chacinas e massacres brutais. Por exemplo, apenas em 2017, ocorreu o massacre de Colniza, MT, no dia 19 de abril, quando 09 vidas foram ceifadas; um ataque brutal contra indígenas do povo Gamela em Viana, MA, no dia 30 de abril que deixou 22 feridos; e o assassinato de 10 trabalhadores no município de Pau d´Arco, no Pará, no dia 24 de maio.” http://comiteddh.org.br/wp-content/uploads/2017/07/terra-de-direitos_dosie_040717_web.pdf ; em setembro de 2017, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos declarou que já chegava à 62 o número de assassinatos com esta motivação. A utilização de ameaças à integridade física até a efetiva prática de violência letal, seja por agentes e órgãos do Estado diretamente seja por grupos privados alinhados aos interesses do grande capital (grandes proprietários de terras, a mídia hegemônica, empresas e grandes empreendimentos e setores bancários nacionais e internacionais), são estratégias utilizadas em larga escala em tempos de dita democracia.

A via judiciária é outro importante caminho de fragilização das lutas e de criminalização da defesa dos direitos humanos. Nesse âmbito, ganha destaque o cenário das manifestações de rua, intensificado a partir de 2013. Foram diversas prisões por desacato, para averiguação e por delito de associação criminosa. Em 17 de março de 2016, a ainda presidenta Dilma Rousseff sancionou a lei 13.260/2016 que, definindo a conduta de terrorismo a partir de noções amplas, abriu espaço para um uso extremamente arbitrário da mesma com o intuito de cercear o direito de livre manifestação. Cumpre lembrar, nesse contexto, que continua em vigor a Lei de Segurança Nacional, remanescente da ditadura militar e que abre caminhos para uma grave restrição dos direitos de luta a partir do vago conceito de “ato de terrorismo por inconformismo político”. Essa permanência ditatorial é extremamente preocupante em um cenário de aprofundamento da violência de Estado.

No dia 23 de setembro de 2016, o Exército declarou ser possível o uso de operações de inteligência em manifestações. Tal medida, inaceitável na vigência de um regime democrático, se torna possível sob a gestão de um governo golpista que criou, através de decreto presidencial de 29 de junho de 2016, a Política Nacional de Inteligência (PNI) 10 10 http://comiteddh.org.br/wp-content/uploads/2017/07/terra-de-direitos_dosie_040717_web.pdf . Outro episódio marcante e que mostra visivelmente a histórica força dos setores militares no processo de redemocratização do país foi a utilização por Temer, através de um decreto presidencial de 24 de maio de 2017, do instituto de “Garantia da Lei e Ordem (GLO)”, previsto na Constituição Federal e que possibilita o recurso às Forças Armadas quando supostamente houve um esgotamento no uso das forças de segurança pública. Naquela ocasião, Temer autorizou que o exército atuasse na contenção de manifestantes que protestavam pela sua saída do governo. É importante lembrar que esse instituto já havia sido utilizado por outros governos em diferentes situações, sendo emblemática, por exemplo, sua utilização pela então presidenta Dilma Rousseff para a violenta ocupação do Complexo da Maré pelo Exército em 2014 e 2015.

É importante localizar como momento de dobra nos processos de resistência e como momento impulsionador dos movimentos de ocupações que vemos hoje o ano de 2013. As manifestações que tomaram as ruas em junho daquele ano, tiveram como momento disparador a indicação de Marco Feliciano, deputado federal contrário à diferentes pautas do campo dos direitos humanos, para ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Assumindo posteriormente a luta contra o aumento das passagens dos ônibus, e muito impulsionadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), as manifestações foram crescendo em diferentes cidades, com destaque para São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro, ao longo do primeiro semestre daquele ano. Tais manifestações, que ganharam força a partir da pauta contrária ao aumento das tarifas, passaram progressivamente a visibilizar diferentes pautas de luta, sem uma agenda definida e sem um grupo centralizador do movimento.

O ano de 2013 viu também ser colocada em questão a centralização da luta pelas estruturas partidárias e a lógica de governo por representação política, inclusive com a aparição no cenário público de grupos com características reacionárias que pediam o fim dos partidos e recorriam à violência contra manifestantes identificados por suas filiações partidárias. Não nos cabe, neste texto, desenvolver o debate aprofundado sobre 2013, mas localizar as manifestações e a ocupação dos espaços públicos naquele ano como um momento de virada nos processos de luta - à esquerda e, infelizmente, à direita. Seus desdobramentos permanecem ressoando nos dias de hoje.

Pela proporção que as manifestações de 2013 ganharam no cenário nacional, tendo levado às ruas milhares de pessoas, ganhou visibilidade, também, a potência e a violência das forças repressivas do Estado. Dentre as principais violações ocorridas em 2013, foram recorrentes as detenções arbitrárias, incluindo detenções para averiguação - prática cujo uso foi comum no período ditatorial -; ações violentas com o uso abusivo de armas menos letais e o emprego de armas letais; a presença massiva de policiais trabalhando sem identificação e de “P2” 11 11 Tropas do setor de inteligência da Polícia Militar que agem à paisana com o intuito de monitorar as ações dos manifestantes. nas manifestações; uma lógica de censura prévia, através do monitoramento das redes sociais para o controle de postagens de manifestantes, realizada pelas polícias, pela Abin e pelo Exército; entre outras.

Os dados disponibilizados pela organização Artigo 19 em levantamento sobre os protestos de 2013 dão conta dos seguintes números: ocorreram ao todo no Brasil 696 protestos, entre os quais quinze contavam com mais de 50 mil manifestantes. Dessa totalidade, 16 manifestações tiveram um saldo de mais de dez feridos em cada uma delas; em doze foram utilizadas armas menos letais e em dez houve o uso de arma de fogo. Foram contabilizadas no total 837 pessoas feridas, 2.608 pessoas detidas e oito mortes. À época, Maria do Rosário, ministra de Direitos Humanos do governo Dilma Rousseff - mesmo governo que nada fez no sentido de coibir tal atuação violenta - declarou: “Continuamos com um modelo de polícia que herdamos da ditadura - e os manuais com os quais os policiais são formados, bem como as práticas de abordagem das pessoas nas manifestações e nas ruas, são resquícios daquele regime 12 12 http://protestos.artigo19.org/ ”.

Um dos casos mais emblemáticos da repressão autoritária contra as manifestações em 2013, mas também da arbitrariedade e da seletividade penal existente no Brasil, foi a prisão e a condenação de Rafael Braga. O jovem foi detido por portar produtos de limpeza no centro do Rio de Janeiro, em um dia em que ocorria uma manifestação, e foi acusado por policiais civis de portar produtos explosivos. Rafael foi levado para 5ª DP, do centro da cidade, a delegacia que funciona no interior do prédio da atual Chefia de Polícia. Rafael se tornou mais um dos milhares presos provisórios no Brasil. Condenado inicialmente a cinco anos de reclusão, teve sua pena reduzida em apenas 4 meses, após recurso, em agosto de 2014. Em setembro do mesmo ano, Rafael passou a cumprir pena em regime semiaberto e em dezembro 2015 passou ao regime aberto, mediante o uso de tornozeleira eletrônica. No entanto, em janeiro de 2016, Rafael foi novamente detido por policiais militares, supostamente por portar 0,6 gramas de maconha, 9,3 gramas de cocaína e um rojão, quando estava na vizinhança de sua casa, no Complexo do Alemão. Rafael foi condenado em primeira instância a 11 anos e três meses de pena de reclusão e a pagamento de multa, em 20 de abril de 2017. O caso de Rafael, jovem, negro, morador de favela e trabalhador informal, incriminado por dois flagrantes que afirma terem sido forjados tornou-se, recentemente, objeto de campanha internacional por ser símbolo da seletividade racista e elitista do sistema penal, assim como de seu autoritarismo para a militância contra a violência de Estado.

Nos anos que se seguiram, em 2014 e 2015, foram contabilizados pela mesma organização 13 13 Os dados são referentes ao período de janeiro de 2014 à junho de 2015. https://drive.google.com/file/d/0B91LK4RQx5DadVZrUmNqaHlMU2M/view , nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, 740 manifestações com 849 prisões, a maior parte preventivas. Segundo o relatório publicado, as violações e as ferramentas utilizadas pelas forças de segurança pública permaneceram similares ao ano de 2013. O relatório indicou também a falta de punição aos agentes do estado que atuaram de maneira violenta e abusiva, tendo alguns deles sido premiados com promoções internas. Nesse período, nas manifestações, foram contabilizadas sete mortes em todo o país.

Chama a atenção a morte de Edilson Silva dos Santos, de 27 anos, executado durante um protesto contra a execução pela polícia de Douglas Pereira no Pavão-Pavãozinho em abril de 2014. Edilson foi atingido por um tiro na cabeça e o policial militar Herbert Nobre foi indiciado por homicídio doloso. No relatório, a Artigo 19 destaca a presença de armamento letal e de uma repressão mais violenta a manifestações ocorridas em localidades periféricas e em favelas - em geral manifestações motivadas pela resistência à própria atuação violenta da polícia. Cabe lembrar, nesse sentido, a operação realizada pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar na noite do dia 24 de junho de 2013, no Complexo da Maré, após a realização de uma manifestação em Bonsucesso contra o aumento da tarifa dos ônibus. Essa operação, nitidamente em represália a mobilização popular, resultou no morte de um sargento do BOPE e de pelo menos nove moradores.

A criminalização das lutas sociais se dá através de uma articulação institucional entre os três poderes do Estado e a mídia hegemônica. Assim como pudemos constatar quando abordamos especificamente a violência letal do Estado, o Ministério Público e o Judiciário têm uma atuação decisiva na repressão às manifestações e no controle dos movimentos de defesa dos direitos humanos. O primeiro, por exemplo, na coordenação de inúmeros inquéritos com irregularidades e o segundo proferindo decisões judiciais que vão na contramão da garantia de livre atuação e expressão dos movimentos sociais e nas quais sobressaem as perspectivas ideológicas dos juízes em prol da criminalização de manifestantes e grupos.

No dia 26 de outubro de 2014, a presidenta Dilma Rousseff foi reeleita para seu segundo mandato, quarto mandato do governo PT. Sua apertada vitória, com 51,64%, frente ao candidato Aécio Neves (PSDB), já indicava o cenário político de polarização no país e o movimento de forças que estruturavam-se em torno da retirada do PT do governo. É importante relembrar que tais forças ganharam campo político e influência econômica nos próprios governos PT que, apesar de importantes avanços sociais, não hesitaram na consolidação de uma política econômica neoliberal, baseada no favorecimento das grandes empresas e do mercado financeiro, com o investimento em grandes empreendimentos e na privatização dos serviços e recursos brasileiros. Não foram poucas as alianças políticas espúrias realizadas e não foram poucas as críticas formuladas pelos setores à esquerda aos governos Lula e Dilma. No entanto, os governos do PT foram apáticos a tais críticas e investiram no favorecimento dos grandes setores da economia brasileira como moeda de troca para sua manutenção no poder. Antes do final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma, já era possível ver claramente que tais setores cobravam a conta e se articulavam não mais para ter fatias de poder, mas sim para tomar o poder.

Como vimos, a eleição de 2014 que reelegeu Dilma, elegeu o Congresso mais conservador desde a ditadura militar. As bancadas parlamentares ligadas ao agronegócio, à indústria armamentista e à setores religiosos reacionários ganharam espaço na configuração congressual. Tal quadro expressa de maneira evidente a construção dos governos Lula e Dilma a partir da conciliação de classes, materializada na aliança com partidos como o PMDB e na renúncia às políticas de maior radicalização à esquerda e aos movimentos sociais. Nesse cenário político, o golpe foi arquitetado pelos interesses de setores conservadores e reacionários com o apoio imprescindível - principalmente através da operação Lava Jato - de um judiciário autoritário.

O mapa dos votos dos deputados federais favoráveis ao impeachment, na votação do dia 17 de abril de 2017, revela a estrutura conservadora da Câmara dos Deputados e os interesses em jogo na destituição da presidenta. “Em ordem decrescente, votaram pelo impeachment as bancadas da bala (88,24%), empresarial (85,32%), evangélica (83,85%), ruralista (82,93%), da mineração (79,12%) e dos parentes (74,49%), formada por deputados com familiares na política.” 14 14 https://apublica.org/2016/04/truco-boi-bala-e-biblia-contra-dilma/ Com 367 votos à favor, apenas 137 contrários e sete abstenções, a Câmara aprovou o relatório favorável ao impeachment, encaminhando ao Senado Federal o julgamento de Dilma por crime de responsabilidade. No dia 31 de agosto de 2016, o Senado aprovou o impeachment com 61 votos favoráveis e 20 contrários, destituindo com base na prática de um crime de responsabilidade inexistente (as ditas “pedaladas fiscais”), ou seja, através de um golpe político-institucional, a presidenta eleita.

Temer havia assumido provisoriamente o governo no dia 12 de maio de 2016, após a aprovação da instauração do procedimento do impeachment pelo Senado e o consequente afastamento de Dilma. A lista de retrocessos consolidados desde então por Temer teve início em menos de 24 horas de sua gestão e não parou de crescer até hoje. Ao assumir provisoriamente, Temer reduziu de 32 para 23 a quantidade de ministérios e, no que tange a pauta dos direitos humanos, se desde 2015 esta já se encontrava prejudicada pela fusão das Secretarias de Política para Mulheres, de Direitos Humanos e de Promoção da Igualdade Racial em apenas uma, a situação se tornou mais crítica com a destituição do status de ministério e sua transferência para o novo Ministério de Justiça e Cidadania. Com essa mudança 12,9 milhões de reais em dotações orçamentárias das pastas extintas foram direcionadas para a Presidência da República. Tais ações representaram uma grave fragilização da luta por direitos humanos em um cenário de violência já consolidada contra defensoras e defensores e de perseguição política e cerceamento da liberdade de expressão dos grupos de oposição ao governo.

Em meio à reconfiguração ministerial, Temer montou uma equipe sem qualquer representação de mulheres, fato que não ocorria desde 1979, após o fim da gestão do general Ernesto Geisel em plena ditadura militar. Dentre os principais retrocessos do governos Temer até o atual momento, podemos destacar o final de programas como o Ciência sem Fronteiras e a Farmácia Popular; o corte de gastos com programas como o Minha Casa Minha Vida; o final da exigência de participação da Petrobrás na exploração do pré-sal e consequentemente a abertura irrestrita do mesmo para o capital estrangeiro; a aprovação da PEC 55 que congela por 20 anos os gastos sociais do governo nas áreas da saúde, educação e assistência social, medida sem precedentes em todo o mundo; a aprovação da reforma do ensino médio, retirando a obrigatoriedade de disciplinas como filosofia e sociologia e estabelecendo uma hiper flexibilização do currículo escolar; também houve a retirada da base curricular, pelo Ministério da Educação, das expressões identidade de gênero e orientação sexual; o enfraquecimento da FUNAI com a gestão do ruralista Osmar Serraglio no Ministério da Justiça; anteriormente, na gestão de Alexandre de Moraes no mesmo Ministério (posteriormente Moraes assumiu a vaga de Teori Zavascki, morto em janeiro de 2017 em um ainda não esclarecido acidente de avião, no Supremo Tribunal Federal) já havia sido editada uma portaria que mudava as regras para a demarcação de terras indígenas. Foi aprovada a Reforma Trabalhista que, entre outras medidas, destitui a obrigatoriedade do pagamento do salário mínimo em trabalhos por produção, libera a negociação de formas de remuneração entre trabalhadores e empresas e do plano de carreira sem a obrigatoriedade de homologação do mesmo por registro ou contrato, permite que acordos coletivos, entre os sindicatos e as empresas, prevaleçam sobre a legislação trabalhista, libera o trabalho de mulheres grávidas em ambientes insalubres mediante atestado médico, entre outras medidas. Consolidou-se o projeto de Reforma da Previdência ainda não votado no Congresso e que se aprovado significará, na prática, o fim do direito à aposentadoria para milhões de trabalhadores.

Outro gravíssimo sinal de retrocesso foi a assinatura por Temer, em julho de 2017, do decreto para o emprego da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Estado do Rio de Janeiro, com prazo até o final do ano de 2018, sob a justificativa de “combate ao crime organizado”. A regulamentação do emprego das Forças Armadas na chamada “garantia da lei e da ordem” previsto no artigo 142 da Constituição Federal, foi realizada pela Portaria Normativa n. 3.461, publicada pelo Ministro da Defesa Celso Amorim, em 19 de dezembro de 2013.Tal portaria foi empregada algumas vezes no governo de Dilma Rousseff, inclusive na ocupação militar do Complexo da Maré em março de 2014. Esses são importantes antecedentes da intervenção federal decretada por Temer em fevereiro de 2018 no estado do Rio de Janeiro.

Ainda, o governo ilegítimo de Michel Temer promoveu o retorno do julgamento dos crimes praticados por militares em serviço contra civis para a Justiça Militar. Em outubro de 2017, o Plenário do Senado aprovou o projeto de Lei Complementar 44/2016 que determina tal procedimento 15 15 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1927409-temer-aprova-projeto-e-justica-militar-passa-a-julgar-crimes-contra-civis.shtm . Esses órgãos, segundo parecer da Procuradoria da República, não são dotados de autonomia funcional em relação às Forças Armadas.

Um triste exemplo da repercussão dessa mudança foi anunciado pelos desdobramentos da chacina ocorrida no dia 11 de novembro de 2017, no Salgueiro em São Gonçalo. A chacina vitimou oito pessoas, sete no local e uma posteriormente no hospital, e a informação oficial prestada pela Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (CORE) e pelo Exército, ambos presentes na localidade naquela madrugada, foi que ao chegar à Estrada das Palmeiras teriam encontrado as pessoas já baleadas. Em maio de 2018, a Human Rigths Watch publicizou relatório 16 16 https://www.hrw.org/pt/news/2018/05/11/317779 com elementos que revelaram que tanto as vestimentas quanto os equipamentos das pessoas que estariam envolvidas nas execuções correspondiam a de integrantes do Exército que chegaram ao local do crime logo após o ocorrido. Um dos sobreviventes e outras testemunhas relataram que, após o grupo ser alvejado, pessoas saíram da mata vestidas de preto, com o rosto coberto, com luvas, lanterna nos capacetes e armamento com visão à laser. A descrição fornecida corresponde ao uniforme utilizado pelas forças do Exército.

As testemunhas relataram, também, a prática de omissão de socorro pelos agentes que estiverem no local, a não manutenção da cena do crime e a criação de dificuldades para a prestação de socorro pelos familiares das vítimas. “Um perito criminal disse no laudo de perícia do local que, ao chegar, cerca de três horas após o tiroteio, 'alguns corpos tinham sido movidos de lugar e a cena do crime não estava preservada' “ 17 17 https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/11/politica/1525990886_023820 . .

Após a chacina, foi publicizado que o Comando Militar do Leste impediu o Ministério Público Estadual (MP-RJ) de ouvir os soldados que poderiam ter relação com as execuções no Salgueiro 18 18 https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/02/politica/1520020793_508644.html . Passados seis meses da chacina, nem o MP-RJ nem o Ministério Público Militar indicaram caminhos contundentes para a conclusão das investigações e encaminhamento de denúncia dos suspeitos.

É nesse cenário de retrocessos que caminhamos para 2019, novo período que se iniciará marcado pelas configurações que serão definidas nas eleições de outubro de 2018 e que definirão os cenários do poder executivo e do poder legislativo para os próximos anos.

3. Cenários de Recrudescimento e perspectivas 2018

O ano de 2018, 50 anos depois do marcante ano de 1968, nos coloca diante de mais um cenário político voltado para eleições presidenciais e para o Congresso Nacional, desta vez, com o retorno do poder militar ao primeiro plano. Temer, ao longo de seu governo ilegítimo, tem garantido através de diferentes ações o crescimento do espaço político ocupado por militares. O golpe de 2016, ao lado da implementação de um projeto de retrocessos, revela-se também marcado pelo aumento do espaço ocupado por militares dentro da estrutura do Estado. Em um primeiro ato simbólico neste sentido, Temer recriou o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, revinculou a ele a Agência Brasileira de Informações (ABIN), órgão que sucedeu o Serviço Nacional de Informações criado em 1964, e nomeou Sérgio Etchegoyen como ministro do GSI, general da ativa que questionou publicamente o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, por apontar seus familiares como responsáveis por graves violações de direitos humanos na ditadura. 19 19 http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,primeiro-general-da-ativa-chama-relatorio-da-comissao-da-verdade-de-leviano,1605521 Além desta nomeação, o gabinete de chefia da Casa Civil também passou a estar sob o comando de um general, Roberto Severo Ramos. 20 20 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/03/temer-da-a-militares-controle-sobre-areas-sensiveis-do-governo.shtml

Na gestão de Temer, a Garantia da Lei e da Ordem foi utilizada pelo menos em quatro estados, sendo inclusive utilizada, como mencionamos anteriormente, contra a grande manifestação organizada por centrais sindicais pelo “Fora Temer” na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em 24 de maio de 2017, tendo como justificativa a “depredação de patrimônio público, vandalismo e violência” 21 21 http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/05/temer-aciona-forcas-armadas-apos-vandalismo-em-protesto-em-brasilia.html . Em 16 de fevereiro de 2018, Temer decretou uma Intervenção Federal Militar 22 22 O Título III, Capítulo VI, Artigo 34 da Constituição Federal de 1988 determina que: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”. No Decreto de intervenção, Temer estabelece que: “Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018. § 1º A intervenção de que trata o caput se limita à área de segurança pública, conforme o disposto no Capítulo III do Título V da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. § 2º O objetivo da intervenção é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro.” no Rio de Janeiro, utilizando pela primeira vez este instituto e nomeando como interventor o general Walter Braga Netto, Comandante Militar do Leste. Dez dias depois, em 26 de fevereiro, com a ida de Raul Jungmann para o Ministério da Segurança Pública, Temer nomeou o general da reserva Joaquim Silva e Luna para a pasta da Defesa, sendo este o primeiro militar a ocupar o cargo desde sua criação em 1999.

A presença de militares no governo federal não se inaugura com Temer, mas certamente tem se aprofundado com ele em uma clara estratégia de se contar com o apoio militar, seja para garantir a permanência deste governo até o fim do mandato presidencial do período 2014-2018 e implementar todo o projeto de reformas, seja para garantir apoio nas próximas eleições presidenciais. Fato é que está em curso uma abertura ao poder militar inédita desde a transição para o regime formalmente democrático.

A intervenção federal militar no Rio de Janeiro é a efetivação do dispositivo da Constituição que garantiu a tutela militar da segurança interna, resultado da presença e lobby de militares na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988. A Assembleia foi caracterizada pelo dissenso e pela mobilização intensa de atores internos e externos, por votações polarizadoras e, ao mesmo tempo, por buscas de acordo entre as lideranças ( Pilatti, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Lumen Iuris e Editora PUC-Rio: Rio de Janeiro, 2008. ). Em sua análise acerca desse processo, Pilatti (2008) PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Lumen Iuris e Editora PUC-Rio: Rio de Janeiro, 2008. o apresenta que formaram-se blocos parlamentares, de um lado, o “bloco progressista” formado pelos partidos de esquerda, naquela conjuntura, e por uma fração minoritária do PMDB; 23 23 Pilatti aponta que nas questões relativas à Ordem Econômica, os partidos que se situavam à esquerda no espectro ideológico eram: PCB, PC do B, PDT, PSB e PT. Além do PSB, a partir de 1988. ( Pilatti, 2008 , 3). e, de outro, os conservadores, que reuniam os partidos à direita e a fração conservadora do PMDB, que se autodenominou “centrão” e que era majoritário. 24 24 Segundo o autor, o bloco conservador foi a expressão do “partido da ordem” e da defesa do status quo nas questões materiais estratégicas. E o bloco progressista, no entanto, construiu maioria pontual a qual derrotou os conservadores em questões de grande relevância que, no entanto, passaram a sofrer modificações propostas no período seguinte, a partir de 1995 ( Pilatti, 2008 ).

Os capítulos da nova constituição sobre as Forças Armadas e segurança pública foram objeto da Subcomissão sobre Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, no âmbito da Comissão de Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, composta por membros do bloco do PMDB e do PFL e presidida pelo senador Jarbas Passarinho, coronel da reserva, ex-ministro em três governos militares e um dos signatários do Ato Institucional nº 5 de 1969 ( Pilatti, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Lumen Iuris e Editora PUC-Rio: Rio de Janeiro, 2008. ; Zaverucha, 2010 ZAVERUCHA, Jorge. “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. ).

Jorge Zaverucha (2010) ZAVERUCHA, Jorge. “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. , em “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”, nota que, embora descentralizando poderes e determinando benefícios sociais democráticos avançados, em parte a Constituição de 1988 continuou fiel à Constituição autoritária de 1967, assim como à emenda de 1969, em relação às Forças Armadas, às Polícias Militares estaduais, ao sistema judiciário militar e à segurança pública em geral. O autor aponta ainda que houve lobby pelos interesses das Forças Armadas exercido por uma comissão de 13 oficiais superiores frente aos constituintes. A Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança ficou entregue ao deputado Ricardo Fiuza, que apoiou as demandas militares nos debates constitucionais. Foi a favor do controle do Exército sobre as Polícias Militares estaduais e apoiou a autonomia das Forças Armadas, sob o argumento de que o governo precisaria de todas as suas forças para o controle da ordem social ( Zaverucha, 2010 ZAVERUCHA, Jorge. “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. ). Iniciou-se, assim, o período de normalização institucional da democracia (após 1989) sob a tutela dos interesses militares e empresariais, com avanços em garantias constitucionais relativas a direitos sociais.

O modo militarizado de atuação permanente das forças de segurança, com seus grupamentos de elite e suas divisões de inteligência, o recurso permanente à violência de Estado, articulados à colocação em prática do instituto da intervenção federal em sua modalidade militar e à designação da competência jurisdicional militar sobre crimes dolosos contra a vida, consolida a ingerência prática do poder militar. O exercício prático do poder militar em situação democrática se dá, portanto, sem a necessidade de dispositivos ostensivamente ditatoriais como o recurso Lei de Segurança Nacional, a polícia política - o DOPS, e o dispositivo ditatorial militar montado para a tortura científica e massiva, execuções e desaparecimentos, o DOI-CODI.

O cenário político de 2018, em meio à crise pós golpe de 2016 traz um novo ingrediente a esta complexa fórmula da democracia brasileira. Uma possível intervenção militar já foi ventilada publicamente e de forma direta por generais da reserva, sendo aventada em tom de ameaça pelo general Eduardo Villas Bôas em tuíte na véspera do julgamento do Habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela Supremo Tribunal Federal: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.” A manifestação do general recebeu crítica da Procuradoria da República e menções laterais de ministros da Corte constitucional. Mas não recebeu nenhuma repreensão da Presidência, ao contrário, teve sua ação respaldada pelo Ministro da Defesa, general da reserva Joaquim Silva e Luna e o silêncio do presidente, sucedido por uma visita uma semana depois do ocorrido. 25 25 [1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/04/politica/1522878909_793429.html .

Os último anos veem a ascensão pública de grupos de extrema direita em diferentes pautas e espaços, assim como a projeção de militares da ativa e da reserva na política nacional. O ano de 2018 registra o desdobramento desse processo com o lançamento de pré-candidaturas de diversos militares para as eleições de outubro. A candidatura do capitão da reserva e deputado federal, Jair Bolsonaro (PSL), à presidência da república é o que une estes grupos.

4. Conclusão

É no atual cenário de recrudescimento, materializado também na autorização da intervenção federal militar no Rio de Janeiro, que Marielle Franco, vereadora pelo partido Socialismo e Liberdade (PSOL), eleita em 2016 com quase 50 mil votos, foi executada. O crime político ocorreu no bairro do Estácio, na cidade do Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018. Mulher negra, favelada, bissexual, Marielle representava, em um cenário de infindáveis retrocessos, vetores de luta que ganharam força nos últimos anos. Pautas feministas, pautas contra o racismo, pela diversidade, contra a homofobia, a lesbofobia, a transfobia, pautas direcionadas à garantia de maior espaço político nos partidos e nos mandatos de mulheres, de mulheres negras. A execução de Marielle é um crime complexo e que revela diferentes camadas de nossa realidade 26 26 Apesar das investigações do crime ainda não terem sido concluídas, outra dimensão que voltou fortemente ao debate após a morte de Marielle, e que é uma das principais linhas da investigação em curso na polícia civil, se refere ao poder das milícias no Rio de Janeiro. Apesar do êxito da CPI em trazer à público as violentas e lucrativas dinâmicas de controle territorial exercidas em diferentes regiões periféricas do Rio de Janeiro e em apontar como integrantes desses grupos criminosos tanto integrantes das forças de segurança pública do Estado quanto políticos com mandatos em curso, nos anos que seguiram sua conclusão, o tema foi recebendo cada vez menos atenção por parte dos governos. Uma das testemunhas que prestou depoimento durante as investigações afirmou ter trabalhado coercitivamente para um grupo de milicianos e ter tido acesso à informações que indicavam planos para a execução de Marielle. Um dos acusados pela testemunha, o vereador Marcello Siciliano, aparece em um relatório da Polícia Civil sobre as eleições de 2014 e a influência das milícias em Jacarepaguá. . Ela foi morta a caminho de casa após um encontro intitulado “Mulheres Negras Movendo as Estruturas”. Marielle, as mulheres negras, a luta contra a racismo, a exigência de protagonismo daqueles que foram e são as principais vítimas da violência de Estado, o crescimento da força das pautas identitárias minoritárias, estava movendo estruturas de poder que desejam, a qualquer custo, se manterem intactas, estabelecidas em configurações que não colocassem em risco seus interesses. Como disse o vereador Tarcísio Motta, companheiro de Marielle na Câmara do Rio de Janeiro, Marielle não havia recebido ameaças, ela era uma ameaça.

O ano de 2018 marca os cinquenta anos de 1968 trazendo à tona a fragilidade de nossa democracia, marcada por um aparato repressivo que se não se estabelece a partir do aparato ditatorial, se concretiza em uma dinâmica institucional complexa que articula uma estrutura técnica e bélica produzida e acumulada ao longo do tempo à ações e omissões, mais ou menos explícitas, de variados órgãos. Como apontado anteriormente, na produção da barbárie, há uma divisão do trabalho entre diferentes agências penais e as três instâncias de poder estatal, executivo, judiciário e legislativo. Na operatividade deste dispositivo securitário, as permanências institucionais, de práticas e discursos incorporados ao processo de acumulação da violência de Estado contra a população jovem de periferia ou favela, enquanto novo inimigo social (Foucault, 1973 FOUCAULT, Michel. La société punitive. Cours au Collège de France (1972-1973). Paris: Gallimard/Seuil/EHESS, 2013. ; Batista, 2003a BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan. 2003ª. ; Teles & Safatle, 2010 TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. Apresentação. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. ), assim como os espectros da violência colonial contra a população negra, são a regra e não a exceção. Não se trata de equiparação, senão de compreensão das articulações de permanências e tendências no tempo e no espaço, guardadas as especificidades qualitativas, de intensidade e de escala, as quais são diretamente condicionadas pela natureza da ordem a ser garantida e pelo inimigo a ser combatido.

Frente a essa estrutura genocida, criam-se formas de resistência. Se a simbólica execução de Marielle deixa um recado claro de tentativa de neutralização dos movimentos de resistência que surgiram e se fortaleceram nos últimos anos e aponta para um cenário de fragilização da luta por direitos humanos, ela pode abrir novo caminhos para o aprofundamento dessa luta, do desejo de resistência e de enfrentamento do triste e revoltante cenário político atual que vivemos. Os percursos que serão traçados nesse ano de 2018 ainda estão em aberto.

  • 1
    Os Destacamentos de Operações Especiais (DOI) - Centros de Operação de Defesa Interna (CODI) foram criado especificamente durante a ditadura militar, entre 1969 e 1970, em diferentes zonas militares do país, para centralizar o combate e eliminar a resistência à ditadura. Originado pelo projeto piloto chamado Operação Bandeirantes (Oban), que teve financiamento de empresas como o Grupo Ultra Gás, Ford, a General Motors, entre outras, o sistema DOI-Codi articulava as instâncias governamentais estadual e federal, com arregimentação das polícias, bombeiros e das forças armadas. Constitui verdadeira máquina de tortura ininterrupta e assassinatos sistemáticos que, a partir do final de 1969, foi o grande temor da resistência à ditadura.
  • 2
    “Além do desespero: uma agenda para os direitos humanos no Brasil” (Anistia Internacional, 1994)
  • 3
    Os chamados “Esquadrões da Morte” tem sua formação e operação atribuída às décadas de 1950 e 1960, quando Amauri Kruel, General que foi Chefe de Polícia do Distrito Federal a partir de 1957, foi o responsável pela organização de agentes da polícia civil para agir na caça a “bandidos” e “marginais” (Huggins, 1998, 159). Esse grupo, além de ligado ao Chefe de Polícia, também tinha relação com outros militares, como Cecil Borer, que chefiaria o DOPS no ano de 1964. Utilizavam uma delegacia em Olaria como local de prisão e tortura de diferentes grupos perseguidos antes e durante a ditadura. Cfr. ULTIMA HORA. Edição de 05/10/1961. Página 07. Disponível em http://memoria.bn.br/pdf2/386030/per386030_1961_03461.pdf .
  • 4
    “procedimento administrativo no qual se registram mortes de civis por policiais e que tem a finalidade de salvaguardar o agente de uma prisão em flagrante. Esse instrumento parte da presunção de suposta resistência por parte das vítimas e da legítima defesa por parte do agente. Uma vez lavrado o auto de resistência, as circunstâncias devem ser apuradas no inquérito policial, a cargo da Polícia Civil, que precisa ser remetido ao Ministério Público em 30 dias para apreciação, suscitando pedido de arquivamento ou denúncia.” ( ALERJ, 2016 Assembleia Legislativa Do Estado Do Rio De JANEIRO (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar os autos de resistência e mortes decorrentes de ações policiais no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 2016. , p. 4)
  • 5
    A cidade do Rio de Janeiro foi uma cidade-estado entre 1960 e 1975, quando a capital foi transferida para Brasília. O estado denominou-se Estado da Guanabara.
  • 6
    Segundo a soma dos dados oficiais existentes no Instituto de Segurança Pública (ISP) e os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015 e 2016, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também baseados em dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública.
  • 7
    Segundo a soma dos dados oficiais existentes no Instituto de Segurança Pública (ISP), conforme ( Misse et. al., 2013 MISSE et al. Quando a polícia mata: homicídios por “auto de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Ed. NECVU/ Booklink, 2013. apud D’Elia Filho, 2015 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. ) e os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015 e 2016, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também baseados em dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública.
  • 8
    “Defensores de direitos humanos: indivíduos, grupos, organizações, povos, movimentos sociais que atuam pela eliminação das violações de direitos e liberdades fundamentais dos povos e indivíduos. Incluindo os que buscam a conquista de novos direitos individuais, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais que ainda não assumiram forma jurídica ou definição conceitual específica. São contemplados ainda aqueles que resistem politicamente aos modelos de organização do capital, às estratégias de deslegitimação e criminalização do Estado e à ausência de reconhecimento social de suas demandas. No tocante à coletividade, consideramos, por exemplo, que os movimentos sociais, sindicatos, associações, comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhos são DDHs enquanto entes coletivos. Com isso, percebe-se a necessidade de ampliação, em determinados casos, da compreensão individualizada do defensor para a coletividade da qual faz parte, e que pode estar diretamente vulnerável no processo de luta de direitos humanos.” http://www.global.org.br/wp-content/uploads/2016/09/guia-DDHs-final.pdf
  • 9
    ”No ano de 2016, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi registrado o maior número de conflitos no campo dos últimos 32 anos, pois “foram contabilizados 1.079 conflitos, uma média de 2,9 registros por dia. Os assassinatos tiveram um aumento de 22% em comparação com o ano de 2015 e é o maior número de casos desde 2003”. Esse cenário desolador de violência já não se restringe apenas a algumas pessoas, mas adquiriu caráter de chacinas e massacres brutais. Por exemplo, apenas em 2017, ocorreu o massacre de Colniza, MT, no dia 19 de abril, quando 09 vidas foram ceifadas; um ataque brutal contra indígenas do povo Gamela em Viana, MA, no dia 30 de abril que deixou 22 feridos; e o assassinato de 10 trabalhadores no município de Pau d´Arco, no Pará, no dia 24 de maio.” http://comiteddh.org.br/wp-content/uploads/2017/07/terra-de-direitos_dosie_040717_web.pdf
  • 10
  • 11
    Tropas do setor de inteligência da Polícia Militar que agem à paisana com o intuito de monitorar as ações dos manifestantes.
  • 12
  • 13
    Os dados são referentes ao período de janeiro de 2014 à junho de 2015. https://drive.google.com/file/d/0B91LK4RQx5DadVZrUmNqaHlMU2M/view
  • 14
  • 15
  • 16
  • 17
  • 18
  • 19
  • 20
  • 21
  • 22
    O Título III, Capítulo VI, Artigo 34 da Constituição Federal de 1988 determina que: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”. No Decreto de intervenção, Temer estabelece que: “Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018. § 1º A intervenção de que trata o caput se limita à área de segurança pública, conforme o disposto no Capítulo III do Título V da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. § 2º O objetivo da intervenção é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro.”
  • 23
    Pilatti aponta que nas questões relativas à Ordem Econômica, os partidos que se situavam à esquerda no espectro ideológico eram: PCB, PC do B, PDT, PSB e PT. Além do PSB, a partir de 1988. ( Pilatti, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Lumen Iuris e Editora PUC-Rio: Rio de Janeiro, 2008. , 3).
  • 24
    Segundo o autor, o bloco conservador foi a expressão do “partido da ordem” e da defesa do status quo nas questões materiais estratégicas. E o bloco progressista, no entanto, construiu maioria pontual a qual derrotou os conservadores em questões de grande relevância que, no entanto, passaram a sofrer modificações propostas no período seguinte, a partir de 1995 ( Pilatti, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Lumen Iuris e Editora PUC-Rio: Rio de Janeiro, 2008. ).
  • 25
  • 26
    Apesar das investigações do crime ainda não terem sido concluídas, outra dimensão que voltou fortemente ao debate após a morte de Marielle, e que é uma das principais linhas da investigação em curso na polícia civil, se refere ao poder das milícias no Rio de Janeiro. Apesar do êxito da CPI em trazer à público as violentas e lucrativas dinâmicas de controle territorial exercidas em diferentes regiões periféricas do Rio de Janeiro e em apontar como integrantes desses grupos criminosos tanto integrantes das forças de segurança pública do Estado quanto políticos com mandatos em curso, nos anos que seguiram sua conclusão, o tema foi recebendo cada vez menos atenção por parte dos governos. Uma das testemunhas que prestou depoimento durante as investigações afirmou ter trabalhado coercitivamente para um grupo de milicianos e ter tido acesso à informações que indicavam planos para a execução de Marielle. Um dos acusados pela testemunha, o vereador Marcello Siciliano, aparece em um relatório da Polícia Civil sobre as eleições de 2014 e a influência das milícias em Jacarepaguá.

Referências Bibliográficas

  • ANISTIA INTERNACIONAL. Brazil: Torture and extrajudicial execution in urban Brazil. 1990.
  • Assembleia Legislativa Do Estado Do Rio De JANEIRO (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar a Ação de Milícias no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 2008.
  • Assembleia Legislativa Do Estado Do Rio De JANEIRO (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar os autos de resistência e mortes decorrentes de ações policiais no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 2016.
  • D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
  • DORNELLES, João Ricardo W. Segurança Pública e Direitos Humanos: Entre Pombos e Falcões. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.
  • BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan. 2003ª.
  • _____. O alemão é muito mais complexo. In: BATISTA, Vera Malaguti de Sousa W. (Org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2012.
  • _____. Adesão subjetiva à barbárie. In: BATISTA, Vera Malaguti (org.). Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2012b, pp 307-318.
  • CANO, Ignácio. Letalidade da Ação Policiais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER, 1997.
  • FOUCAULT, Michel. La société punitive. Cours au Collège de France (1972-1973). Paris: Gallimard/Seuil/EHESS, 2013.
  • GOMEZ, José María (Coord.). Lugares de Memoria: ditadura e resistencias no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2018.
  • HUMAN RIGHTS WATCH. Urban Police Violence in Brazil: Torture and Police Killings in São Paulo and Rio de Janeiro after five years. 1993.
  • HUMAN RIGHTS WATCH. Brutalidade Policial Urbana no Brasil. 1997.
  • HUMAN RIGHTS WATCH. “O Bom Policial Tem Medo”: Os Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro. 2016.
  • MISSE et al. Quando a polícia mata: homicídios por “auto de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Ed. NECVU/ Booklink, 2013.
  • NOBRE, Carlos. Mães de Acari: Uma história de protagonismo social. Rio de Janeiro: Pallas Editora/Editora PUC-Rio, 1994.
  • PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Lumen Iuris e Editora PUC-Rio: Rio de Janeiro, 2008.
  • PRADAL, Fernanda Ferreira. A “justiça de transição” no Brasil: o caso do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2017.
  • TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. Apresentação. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei: uma prática ideological do dirieto penal. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996.
  • ZAVERUCHA, Jorge. “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
  • Data do Fascículo
    Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2018
  • Aceito
    21 Maio 2018
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com