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A legitimação da autoridade secular e a teorização do “Direito de Resistência” na filosofia da Reforma Protestante

The legitimation of secular authority and the theorization of “civil desobedience” in reformist philosophy

Resumo

Este artigo examina as mais relevantes teorias desenvolvidas durante a Reforma Protestante no que diz respeito ao que futuramente passou a ser conhecido como direito de resistência. Focando nos escritos de Martinho Lutero e João Calvino, a nossa preocupação em investigar como a teorização protestante da separação entre fé e governo civil contribuíram com a conceituação do direito de resistência, categoria que terá grande relevância nos séculos seguintes.

Palavras-chave:
História do Direito; Teoria política; Reforma protestante; Direito de resistência

Abstract

This article examines the most relevant theories during the Protestant Reformation on what is now known as civil disobedience. Focusing on the writings of Martin Luther and John Calvin, we are concerned about investigating how protestant theorization on the separation of faith and civil governance contributed to the conception of civil disobedience, that will have a strong relevance later on.

Keywords:
Legal History; Political theory; Protestant reformation Civil disobedience

1. Introdução

O conceito de desobediência civil, com esta denominação, aparece normalmente atrelado a texto escrito por Henry Thoureau que, em sua clássica obra Desobediência Civil, de 1849, sustenta que o cidadão, por objeção de consciência, pode legitimamente decidir por não cumprir leis que repute injustas, uma vez que sua única obrigação seria fazer a qualquer momento aquilo que julgasse correto. A desobediência civil, por sua vez, nada mais é que espécie do gênero “direito de resistência”, instituto há muito presente na História e cuja importância contemporânea ainda é evidente, à luz dos acima mencionados exemplos de seu emprego recente.

A maioria dos estudos voltados para a trajetória histórica do “direito de resistência”, ao tratar da Idade Média e do início da Idade Moderna, se debruça tão somente sobre as ideias de São Tomás de Aquino e, posteriormente, Locke, Hobbes e Rousseau, promovendo um salto no exame do período que envolveu o desabrochar e adensamento da reforma protestante, como se nada de relevante, sob os pontos de vista político e legal, tivesse advindo do século XVI. A importância da colaboração da reforma para a conceituação do direito de resistência é bastante negligenciada.

Esta não valorização política e jurídica da filosofia reformista, tão evidente quando da análise do instituto do direito de resistência, a ele, no entanto, não se limita. Ela decorre da equivocada adoção da premissa de que a reforma protestante estava confinada a matérias de cunho religioso, a partir de uma também inadequada interpretação do critério dos dois reinos, sob os quais ela se assentou, o qual será analisado ao longo do texto.

O fato de Martinho Lutero (1483-1546) e os demais reformistas terem estabelecido distinção entre a existência de um reino divino e um reino terreno, submetido a uma autoridade civil e regido pelo direito positivo, fez com que intérpretes contemporâneos defendessem que a reforma tratava o Direito e a religião como elementos mutuamente irrelevantes, sem qualquer espécie de interpenetração, reduzindo todo o embate reformista tão somente a uma guerra de religião (BERMAN, 2006). Esta visão reducionista impediu a verificação de que a concepção luterana da existência dos dois reinos e, por conseguinte, da relação existente entre direito e fé, estava em verdade fazendo surgir, no século XVI, não apenas uma nova teologia, mas propriamente uma nova ciência política e uma nova forma de se pensar o Direito (BERMAN, 2006), apta a modificar o conceito de “autoridade política” e os fundamentos de sua legitimidade. É nesse sentido que Quentin Skinner (2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004., p. 113) afirma que não há dúvida de que a maior influência da teoria política luterana na recente Europa moderna advém do seu direcionamento para encorajar e legitimar o surgimento das monarquias absolutistas unificadas.

Visando suprir, ainda que minimamente, esta lacuna, o presente artigo tem por objetivo evidenciar os contornos a partir dos quais se construiu, no seio da reforma protestante, a teorização do denominado “direito de resistência”. Para tanto, o texto desenvolve os fundamentos da filosofia reformista, conferindo especial atenção à concepção dos dois reinos. A partir da sua correta compreensão, é possível construir a noção de “autoridade política” no seio da reforma e fundamentar sua legitimidade, fazendo surgir a ideia de “dever de obediência”, a partir da análise dos textos Sermão sobre as duas espécies de Justiça”, de 1519, “À nobreza cristã da nação alemã acerca da reforma do Estado Cristão”, de 1520, e “Da autoridade secular: até que ponto devemos obedecê-la”, de 1523, todos escritos por Lutero, e “Instituições para a vida cristã”, Tomo II, livro IV, capítulo XX, “Do governo civil”, de 1559, de João Calvino (1509-1564).

Estabelecido ser o dever de obediência a regra a ser seguida, o artigo avança em direção ao estudo do “direito de resistência”, procurando demonstrar o contexto histórico e político no qual ele se desenvolve, seu fundamento e seus limites, fazendo, ainda, a devida distinção entre a concepção luterana e a concepção calvinista do exercício do direito, que o flexibilizou a partir da construção de concessões a sua utilização.

Procura-se, ainda, demonstrar como já há, no âmbito da filosofia reformista, uma evidente utilização da ideia de pacto/contrato/acordo, posteriormente desenvolvida por Locke e Rousseau para fundamentar o direito de resistência, tendo contribuído, portanto, para a formação de um cenário à sua favorável à difusão do direito de resistência, como a historiografia tem alegado1 1 SCHEIBLE, 1969; STRAUSS, 1986; WHITFORD, 2002; GORSKI, 2003; WITTE JR, 2004. . Do mesmo modo, há uma nítida preocupação com a necessidade de que a autoridade política seja limitada pelo seu escopo, devendo ser objeto de controle, a partir de uma estrutura fundamentada no conceito de soberania das esferas, que auxiliou a construção das noções modernas de liberdade ordenada e separação dos poderes.

2. Sobre o que se assenta a Filosofia Reformista.

Para que se possa compreender como a noção de autoridade política se modifica com o advento da reforma protestante, e, posteriormente, como se constrói, em determinadas circunstâncias, o direito de resistência a esta autoridade, faz-se necessário, de antemão, analisar o impacto que a superveniência dos escritos de Lutero e Calvino, bem como dos demais reformadores, provocaram sob o ponto de vista da relação do indivíduo para com Deus. É a modificação da natureza desta relação, de como se dá o acesso do homem ao âmbito do divino, que permitirá, no aspecto político, a completa modificação da dinâmica da relação entre a Igreja e o Estado em construção, através da deslegitimação do até então inquestionável Poder Papal.

2.1 O impacto da reforma protestante na dinâmica da relação do indivíduo com Deus: a submissão da razão à consciência e o surgimento dos cinco sola.

Em suas 95 teses, publicadas em 1517, Lutero constrói as premissas da reforma, exteriorizadas nos cinco “sola”, a partir de uma subversão da concepção católica, até então reinante, de submissão da consciência à razão (BERMAN, 2006, p. 73-75,).

Na concepção católica, defendia-se existir uma distinção entre a capacidade de aprender, de natureza intelectual, denominada de Synderesis, e a chamada Conscientia, caracterizada como a habilidade de pôr em prática, em determinadas circunstâncias concretas, os princípios de direito natural de que se tinha conhecimento abstrato. A primazia era conferida à razão, entendida como instrumento de acesso ao âmbito do direito natural (BERMAN, 2006, p. 75). Com a superveniência da reforma protestante abandona-se a primazia da razão em detrimento do elemento da consciência, passandose a adotar a concepção luterana de que a capacidade racional do homem de distinguir o bem do mal depende essencialmente do seu espírito.

No entanto, se o espírito, se a consciência humana é essencialmente pecadora - o que seria inquestionável em virtude da consumação da queda ocorrida quando do pecado original - não há como não se concluir que também a razão humana estaria necessariamente envolta na escuridão, tratando-se, portanto, de instrumento deficiente e incapaz de promover a adequada compreensão, por parte do indivíduo, do “direito natural” que busca acessar (BERMAN, 2006, p. 73). Sendo impossível utilizar-se da razão, ante a verificação de um cenário no qual a consciência e, portanto, também ela, encontram-se maculados pelo pecado, Lutero conclui que é apenas por meio da fé que se torna aceitável ao homem compreender os princípios de direito natural e então aplicá-los (BERMAN, 2006, p. 74).

Há, no entanto, em Lutero, uma distinção relevante. Embora ele preconize ser a fé a estrutura a ser utilizada para que se conheça o direito natural, é importante ressaltar que sob a ótica da filosofia luterana não é preciso que o indivíduo compreenda esses princípios nem os aplique efetivamente nas suas relações interpessoais para que obtenha a salvação. Na concepção reformada, a salvação decorre, única e exclusivamente, do ato de fé, porquanto está regida pelo “reino do divino”.

O direito natural e seus princípios, por sua vez, assim como o direito civil, teriam sido ordenados diretamente por Deus para regular um reino distinto, qual seja o “reino terreno”, não funcionando, nenhum deles, como caminhos de acesso dos indivíduos a Cristo. A obediência ao direito natural e ao direito civil não resgata os homens de seus pecados, nem promove a salvação. À pergunta acerca do que os leva à Cristo, Lutero responde que é apenas a fé.

Surge então o conceito protestante de “Sola fide”, de que só a fé salva, pondo-se por terra a doutrina católica da possibilidade de salvação pelas obras, em decorrência da conduta concreta do indivíduo. Em conjunto à ideia de que só a fé salva, desenvolve-se a concepção de que só há salvação em Cristo (Solus Christus), de que esta salvação, oriunda do ato de fé, decorre da Graça divina, da qual o homem não é merecedor (Sola Gratia) e de que as Escrituras - em especial os dez mandamentos - são a única regra de fé e prática.

Como aduz Quentin Skinner (2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004., p.12) “Lutero chega à conclusão de que se um pecador é detentor de fé em Cristo Jesus, ele será salvo sem a participação da Igreja; se ele não possui fé, não há nada que a Igreja possa fazer para ajudá-lo”. Seguindo esse entendimento, sendo a salvação algo que depende única e exclusivamente do indivíduo, impossível de ser garantida pela Igreja, cai por terra o instituto da venda das indulgências e destrói-se o fundamento da legitimidade universal do Poder Papal. Por meio dos cinco Sola, a reforma protestante põe fim à tradição da Igreja Católica de se considerar apta a reclamar quaisquer espécies de direitos na Sociedade Cristã.

Ao defender a existência de uma natureza espiritual na verdadeira Igreja de Cristo, enquanto componente do Reino do Divino, bem como que todo e qualquer indivíduo é consagrado pastor através do batismo, tendo acesso direto e irrestrito a Deus pelo mero ato de fé, Lutero repudia a ideia de que o clero pudesse vir a constituir uma classe diferenciada dotada de privilégios e jurisdição especial (SKINNER,2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004.).

Partindo-se da premissa, a partir de então acatada, de que a Igreja nada mais é que uma congregação de fé, tornava-se impossível sustentar que ela devesse ter qualquer espécie de jurisdição que lhe fosse própria, o que, por sua vez, fez com que Lutero passasse a defender a submissão da Igreja, no que diz respeito às questões seculares, à jurisdição da autoridade política constituída, ou seja, ao Estado, estrutura que é então empoderada, a partir do desenvolvimento da teoria dos dois reinos (SKINNER, 2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004.).

Nesse sentido, a reforma protesta acabou contribuindo decisivamente para a criação de uma publicística laica que definiu os contornos do Estado na Idade Moderna. No Sacro Império, onde a Reforma teve lugar, essa publicística encontrou terreno fértil para a sua propagação, como demonstrou Michael Stolleis (1988STOLLEIS, Michael. Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland. Band 1 (Reichspublizistik und Policeywissenschaft, 1600-1800). München: C.H. Beck, 1988.; 2017). Lutero e outros reformadores, como Philip Melanchthon (1497-1560), foram decisivos para a dessacralização da soberania, nos termos de Mathias Schmoeckel (2014SCHMOECKEL, Mathias. Das Recht der Reformation: die epistemologische Revolution der Wissenschaft und die Spaltung der Rechtsordnung in der Frühe Neuzeit. Tübingen: Mohr Siebeck, 2014., p. 146-159).

2.2 O impacto da reforma sob o ponto de vista da relação entre a Igreja e o Estado Absolutista em construção: a concepção dos “dois reinos” como premissa para a compreensão e legitimação da noção de “autoridade política”

A doutrina dos dois reinos, essencial para que se compreenda a noção de autoridade política no seio da reforma protestante, deve ser analisada a partir dos textos “Sermão sobre as duas espécies de Justiça”, de 1519, “À nobreza cristã da nação alemã acerca da reforma do Estado Cristão”, de 1520, e “Da autoridade secular: até que ponto devemos obedecê-la”, de 1523, todos escritos por Lutero, em continuidade cronológica.

No escrito intitulado “Sermão sobre as duas espécies de Justiça” (Sermo de duplici justitia) Lutero constrói, de forma embrionária, a teorização acerca da existência de um dever de obediência à autoridade política instituída ao discorrer acerca das duas espécies de justiça a que todo cristão está submetido.

A primeira espécie de justiça é alheia ao homem, infundida de fora sobre ele. É uma justiça primária, que é a base, a causa, a fonte de toda justiça real própria. Essa justiça alheia, em nós infundida tão somente pela graça, independentemente de obras, é contraposta ao pecado original, herdada e causada apenas pelo nascimento, ainda que marcada pelo batismo (LUTERO, 1519______. Sermo de Duplici iustitiae castigatus. Wittenberg: s.e., 1519., fol. 1v-2). Fica clara uma correlação com o conceito predominante de direito natural, seguindo as matrizes tomistas que estiveram em voga até meados do século posterior.

A segunda espécie de justiça é a justiça do próprio homem, a pautar sua conduta. Segundo Lutero, esta justiça avança para completar a primeira, pois ela está persistentemente empenhada em extinguir o velho Adão e destruir o corpo do pecado, fazendo com que o homem odeie a si mesmo e ame o próximo; não busque o seu próprio bem, mas o de outrem (LUTERO, 1519______. Sermo de Duplici iustitiae castigatus. Wittenberg: s.e., 1519., fol 2-3). É a justiça da conduta concreta e individual, que impõe a necessidade que todo cristão utilize a sabedoria, o poder, a prudência não para se tornar arrogante ou impiedoso, mas para levantar e defender os oprimidos.

Surge no texto, no entanto, a seguinte pergunta: “Então não é permitido castigar o mal? Não é adequado punir o pecado? Quem não deveria defender a justiça?”2 2 “An non licet malos castigare? Non decet peccata punire? Quis non tenetur iusticiam defendere? Hoc enim esset occasionem piebere deinquenti?”. LUTERO, 1519, fol. 3. . Para responder a esses questionamentos, Lutero estabelece a distinção entre os homens públicos e os indivíduos privados, que será melhor desenvolvida nos seus escritos posteriores, começando a delinear a base de fundamentação da noção de autoridade política. Defende que os ensinamentos até então desenvolvidos voltam-se tão somente aos indivíduos privados, que podem ser divididos em três grupos: 1) aqueles que buscam a vingança e o julgamento por parte dos representantes de Deus; 2) os que não querem a vingança e que estão dispostos a “dar também a capa ao que lhes tira o manto”3 3 “(...) sunt qui non cupiunt vindictamimo parati sunt (scom Euangelium) tollenti pallium et tunicam dare et non resistunt vlli malo”. LUTERO, 1519, fol. 4. ; 3) aqueles que desejam a vingança, mas não como mecanismo de obtenção de vantagem, e sim, com sentimento altruísta, porque concebem que ela é necessária para promover a melhoria daquele que os roubou ou ofendeu (LUTERO, 1519______. Sermo de Duplici iustitiae castigatus. Wittenberg: s.e., 1519., fol. 3-4). O reino dos céus é destinado aos indivíduos do segundo e do terceiro grupo, posto que capazes de silenciar, dentro de si, os vestígios do pecado, sendo os indivíduos do primeiro grupo apenas tolerados com o propósito de se evitar um mal maior, decorrente do exercício da violência privada.

Lutero é enfático, todavia, ao afirmar que os ensinamentos exteriorizados neste texto - no sentido da busca pela não penalização do outro - limitam-se ao âmbito das relações privadas, e não se aplicam aos homens incumbidos de função pública, “que foram colocados por Deus em postos de responsabilidade”. A eles foi delegada por Deus “a função necessária de punir e julgar o mal, pois não são eles que o fazem, mas o próprio Deus”4 4 “(...) idest in officio dei constituti”. LUTERO, 1519, fol. 3. . (LUTERO, 1519______. Sermo de Duplici iustitiae castigatus. Wittenberg: s.e., 1519., fol. 4). Aparece, de forma clara, a premissa de que o poder estatal instituído possui natureza especial e se legitima na medida em que é considerado delegação do poder divino.

O pressuposto de que o poder secular se legitima exatamente por ser ordenado por Deus é desenvolvido, com maior profundidade por Lutero, no ano seguinte, em 1520LUTERO, Martinho. An den Christlichen Adel deutscher Nation. Wittenberg: s.e., 1520., no texto À nobreza cristã da nação alemã acerca da reforma do Estado Cristão (An den Christlichen Adel deutscher Nation).

Escrito quando da ascensão ao trono do imperador Carlos V, o texto de Lutero pontua que os romanistas, ou seja, a Igreja Católica Apostólica romana, criou mecanismos de defesa (por ele denominados “muros”) que impedem sua reforma, os quais podem ser exteriorizados nas constatações de que: 1) nos termos da lei canônica, o poder secular não teria jurisdição alguma sobre a Igreja; ao contrário, o poder espiritual teria posição de vantagem sobre o Poder secular; 2) a interpretação das escrituras não compete a ninguém a não ser ao Papa, o que faz com que seja a própria Igreja Católica a definidora das regras a que se submete; 3) a convocação de Concílios, essenciais para que se debatam as questões que afligem a Igreja, é, sob a ótica da visão tradicional, prerrogativa exclusiva da figura do Papa, o que evidentemente impede a superveniência de mudanças (LUTERO, 1520LUTERO, Martinho. An den Christlichen Adel deutscher Nation. Wittenberg: s.e., 1520., fol. 4). Protegido por esses três “muros”, o Clero estaria seguro para “praticar todas as artimanhas e perversidades que hoje vemos”5 5 “Also haben sie die drey Rutten uns beymlich gestolen, dassie mugen ungestrafft sein, und sich in sicher Befestung dieser dreyer Maur gesetzt (...)”. LUTERO, 1520, fol. 4 . Trata-se de poderosa crítica às estruturas derivadas do chamado Dictatus Papae, documento editado pelo Papa Gregório VII que levantou as bases da teoria da supremacia do poder papal.

Lutero subverte o status quo ao passar a defender, em um primeiro momento, que não há, sob o ponto de vista religioso, qualquer espécie de distinção entre os membros do Clero e os demais cristãos, fundamentando sua concepção na Primeira carta de Paulo aos Coríntios 12:12, que estabelece sermos todos os cristãos um único corpo em Cristo (LUTERO, 1520LUTERO, Martinho. An den Christlichen Adel deutscher Nation. Wittenberg: s.e., 1520., fol. 4v). Nesse sentido, sustenta que todo aquele que venha a ser batizado em Cristo Jesus é em si mesmo um legítimo sacerdote sob o ponto de vista espiritual, razão pela qual eventuais diferenças entre o Clero e os demais cristãos se operam tão somente no âmbito da ocupação que exercem no reino secular (LUTERO, 1520, fol. 5-5v).

Como consequência, conclui que “pessoa alguma pode se autopromover e incumbir-se de fazer o que todos temos condição de realizar, sem nosso consentimento e eleição”, razão pela qual “o padre na cristandade não deveria ser nada mais do que um funcionário público: enquanto estiver no cargo, tem precedência; mas quando deposto, é um camponês ou um cidadão como qualquer outro” 6 6 “Dann weil wir alle gleich Priester sein, muss sich niemand selb erfur thun, und sich unterwinden, ahn unser Bewilligen und Erwählen das zu thun, dess wir alle gleichen Gewalt haben. Denn was gemeine ist, mag niemand ohn der Gemeine Willen und Befehle an sich nehmen. Und wo es geschähe, dass jemand erwählet zu solchem Ampt, und durch seinen Missbrauch wurd abgesetzt, so wäre er gleich wie vorhin. Drumb sollt ein Priesterstand nit anders sein in der Christenheit, dann als ein Amptmann; weil er am Ampt ist, geht er vor; wo er abgesetzt, ist er en Baur oder Burger, wie die andern”. LUTERO,1520, fol. 5-5v. .

Assentada neste entendimento que a todos iguala, a filosofia reformista de Lutero sustenta que assim como a administração da palavra de Deus e dos sacramentos é o ofício desempenhado pelo Clero, cabe às autoridades seculares, porque é este o seu legítimo ofício, fazer uso da espada e da vara para punir os que fazem mal e proteger os piedosos7 7 “Gleichwie nu die, so man itzt geistlich heisst, oder Priester, Bischof oder Päpst sein, von den andern Christen nit weiter noch würdiger gescheiden, dann dass sie das Wort Gottis und die Sacrament sollen handeln, das ist ihr Werk und Ampt: also hat die weltlich Ubirkeyt das Schwerdt und die Ruthen in der Hand, die Bosen damit zu strafen, die Frummen zu schutzen”. LUTERO, 1520, fol. 5v-6. . Ao se contrapor à ideia de que o clero constitui uma classe separada dotada de privilégios legítimos, Lutero chega à tese central por ele defendida no texto escrito em 1520, qual seja a de que não é bíblico impedir que o poder secular puna, se necessário, inclusive o próprio Clero. Este entendimento se sustenta na visão de que “se o poder secular é ordenado por Deus para punir os malfeitores e proteger os que fazem o bem, ele deve ter liberdade completa para cumprir sua função sem impedimentos em todo o corpo da cristandade”, ainda que isso signifique exercer coerção sobre o papa, os bispos, os padres, os monges, as freiras ou qualquer outra pessoa8 8 “Drumb sag ich: dieweil weltlich Gewalt von Gott geordnet ist, die Bosen zu strafen, und die Frummen zu schutzen, so soll man ihr Ampt lassen frei gehen unvorhindert, durch den ganzen Korper der Christenheit, niemands angesehen, sie treff Papst, Bischof, Pfaffen, Munch, Nonnen, oder was es ist”. LUTERO, 1520, fol. 6. .

A tese defendida por Lutero em “À nobreza cristã” faz ruir por terra o dogma da infalibilidade do Papa, ao lhe retirar o poder de ser o legítimo interprete da lei de Deus, uma vez que se passa a defender estar a lei divina única e exclusivamente no texto das Escrituras, passíveis de serem interpretadas por todo e qualquer cristão, enquanto membro do corpo de Cristo. Nas palavras do próprio Lutero, “se somos todos sacerdotes, como afirmamos anteriormente, e todos temos uma fé, um evangelho, o mesmo sacramento; por que não deveríamos também ter o poder de sentir e discernir o que é correto e incorreto em questões de fé?”9 9 “(...) doch alle gleich geweihet Priester und Bischoffe; und ein iglich soll mit seinem Ampt oder Werk den andern nutzlich und dienstlich sein: dass also vielerlei Werk alle in eine Gemein gerichtet sein, Leib und Seelen zu fodern; gleichwie die Gliedmass des Korpers alle eins dem andern dienet”. LUTERO, 1520, fol. 6. .

Com base em passagens do próprio texto das Escrituras, Lutero exalta os cristãos a se tornarem “ousados e livres, e não permitir que o Espírito da liberdade, como Paulo o denomina, seja inibido pelas palavras inventadas pelos papas”, cabendo-lhes, inclusive, se o Papa agir contra as Escrituras, “repreendê-lo e constrangê-lo de acordo com a Palavra de Cristo” (LUTERO, 1520LUTERO, Martinho. An den Christlichen Adel deutscher Nation. Wittenberg: s.e., 1520., fol. 6v).

Uma vez repudiada a ideia de que o Clero pudesse constituir uma classe distinta dotada de privilégios e jurisdição intocável, constrói-se o cenário adequado para que Lutero defenda, em 1523______. Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei. Witttenberg: s.e., 1523., em um de seus mais célebres escritos, denominado “Da autoridade secular: até que ponto devemos obedecê-la” (Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei) teoria dos dois reinos e a necessidade de obediência, por parte de todo cristão, à autoridade secular.

No que é relevante para o presente artigo, o texto de 1523 alerta acerca da necessidade de que se fundamente, de forma sólida, “a lei secular e a espada”, para que ninguém duvide de que a autoridade secular está no mundo única e exclusivamente por permissão e vontade de Deus10 10 “Auffs erst müssen wyr das welltlich recht und Schwert gut begründen, daß nicht jemand dran zweyffel, es sey von Gottis Willen und Ordnung ynn der Wellt”. LUTERO, 1523, fol. 127. , o que se faz com fulcro nos versículos de Romanos 13:1,211 11 Que cada alma se sujeite à autoridade e ao governo, pois não há autoridade que não venha de Deus: a autoridade, porém, quando existir, é sempre ordenada por Deus. Quem pois resiste à autoridade opõe-se à ordem de Deus, e os que fazem isso trarão condenação sobre si mesmos. , Primeiro Pedro 1: 13, 1412 12 Sujeitai-vos à autoridade humana de todos os tipos, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como por ele enviados para punir os praticantes do mal e recompensar os que fazem o bem. e Mateus 26:5213 13 Quem toma a espada será morto pela espada. . Nos termos desse arcabouço bíblico, a partir do qual se depreende que não há autoridade que não venha de Deus, bem como que há expressa autorização para o uso da “espada”, Lutero sustenta não existirem dúvidas de que é a vontade de Deus que a espada e a lei secular sejam usadas para punir os perversos e proteger os justos (LUTERO, 1523______. Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei. Witttenberg: s.e., 1523., fol. 127-127v). Em assim o sendo, defende que todo cristão vive simultaneamente em dois reinos, o reino divino e o reino secular, ambos criação de Deus, e ambos sob o seu governo.

Ao passo em que o reino divino é regido pela Lei de Deus, encontrada basicamente no âmbito dos 10 mandamentos, e vincula-se à figura da Igreja, o reino terreno encontra-se relacionado às normas de direito positivo estabelecidas, comandado por uma autoridade civil/política que nada mais é que o legítimo representante de Deus na Terra (BERMAN, 2006). A necessidade de diferenciação entre os dois reinos decorre da dupla função desempenhada por Cristo, ora atuando como Salvador, ora como Criador do universo.

Acaso o mundo fosse formado tão somente por cristãos verdadeiros, indivíduos que se relacionassem com Deus em sua função de Salvador, não haveria qualquer razão que justificasse a existência da autoridade secular e o uso da espada. É que os cristãos, porquanto pertencentes ao reino do divino, não necessitam do poder temporal, do poder dos governantes, na medida em que são guiados pelo Espírito Santo. Assim, tudo o que fazem é determinado pelo amor e pela disposição ao sofrimento, de modo que já exercitam, em termos de comportamento, muito mais do que quaisquer leis ou doutrinas pudessem exigir (LUTERO, 1523______. Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei. Witttenberg: s.e., 1523., fol. 130v).

No entanto, há, no mundo terreno, muito mais não cristãos que cristãos. Esses indivíduos não se relacionam com Deus enquanto Salvador, mas tão somente como Criador, e precisam, para fins de condicionamento de suas condutas, que seja possível o exercício do poder de coerção, de modo a que haja a manutenção da paz. É propriamente para controlar o pecado e a maldade do mundo que Deus proporcionou para os não cristãos um governo diferente à parte do Estado cristão e do reino de Deus, que refreia os não cristãos e os perversos, assegurando que seja possível a manutenção da paz e da tranquilidade exteriormente, ainda que contra a sua vontade, através de sua sujeição à espada (LUTERO, 1523______. Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei. Witttenberg: s.e., 1523., fol. 130v-131).

Deus governa sobre todas as pessoas, seja de forma espiritual, na condição de Salvador, seja de forma temporal, enquanto Criador que legitima a existência e o exercício do Poder secular. Lutero deixa claro que ambos os governos não são mutuamente excludentes, mas, ao contrário, devem estar em exercício simultaneamente, um deles para gerar pessoas justas, o outro para trazer paz externa e prevenir ações perversas, não sendo nenhum dos dois suficientes no mundo sem o outro (LUTERO, 1523______. Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei. Witttenberg: s.e., 1523., fol. 130v-131). Inseridas no reino secular, é por causa do amor ao próximo que as pessoas cristãs, que a rigor não precisariam da autoridade política, participam tanto ativa quanto passivamente do governo temporal. Elas intervêm em favor da paz e, eventualmente, participam do poder secular, desempenhando funções públicas, por amor (DREHER, 2017DREHER, Martin. Da autoridade Secular - Martinho Lutero. 2017. Disponível em: <http://www.luteranos.com.br/textos/confessionalidade-luteranos-em-contexto/daautoridade-secular-martim-lutero> Acesso em 07/05/2018.
http://www.luteranos.com.br/textos/confe...
).

A distinção entre o reino divino e o reino secular retira do âmbito da Igreja a possibilidade do exercício da coerção. Se, no Reino Divino, no qual a Igreja se encontra, o comportamento adequado do cristão decorre da própria existência e exercício de sua fé, a conclusão a que se chega é a de que todo poder de coerção deve ser compreendido, em essência, como um poder temporal, civil, voltado à manutenção da paz entre não cristãos, razão pela qual “qualquer tentativa do Papa ou da Igreja de exercer qualquer jurisdição em virtude de sua função representa uma usurpação dos direitos da autoridade temporal” (SKINNER, 2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004., p. 14).

Assim, na filosofia reformista, autoridade política passa a ser aquela apta a exercer coerção no âmbito do reino secular, para fins de manutenção da paz e da tranquilidade, sobre todo e qualquer um que perturbe a ordem estabelecida, sem quaisquer espécies de restrição, inclusive sobre o Clero, por autorização expressa de Deus, como expressão de sua providência (SKINNER, 2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004.).

3. A OBEDIÊNCIA À AUTORIDADE SECULAR COMO OBEDIÊNCIA AO PRÓPRIO CRISTO: OS LIMITES DE SUA LEGITIMIDADE E A RESISTÊNCIA PASSIVA, NA MODALIDADE OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA.

Se a autoridade secular existe por autorização e providência divina, a consequência lógica, segundo Lutero, no que posteriormente será seguido também por Calvino, é que o cristão tem para com ela, a princípio, dever de obediência, uma vez que, ao segui-la, obedece ao próprio Cristo, numa comunicação com o pensamento medieval, notadamente com Santo Agostinho e a sua Cidade de Deus.

Este dever de obediência exsurge, no entanto, vinculado ao exercício da autoridade secular dentro dos limites de legitimidade que decorrem da própria concepção da existência dos dois reinos, o que faz com que o governo secular só deva produzir leis que não se estendam para além da vida, propriedade e das coisas externas da vida terrena (LUTERO, 1523______. Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei. Witttenberg: s.e., 1523.). Segundo Lutero, onde o poder secular presume prescrever leis para a alma, ele invade a autoridade de Deus e somente corrompe e destrói a alma (1523, fol. 135v-136), porque a autoridade humana não pode estender sua jurisdição para o céu e sobre a alma das pessoas, devendo legislar somente em relação ao âmbito do externo, do relacionamento entre os indivíduos, voltando-se ao corpo e aos bens, ou seja, sobre as esferas nas quais seja possível ver, reconhecer, julgar, condenar, punir e salvar, não podendo avançar sobre as consciências.

Evidenciando existir confusão a esse respeito, Lutero exige que haja uma clara distinção, não separação, entre as duas maneiras de Deus governar o mundo (DREHER, 2017DREHER, Martin. Da autoridade Secular - Martinho Lutero. 2017. Disponível em: <http://www.luteranos.com.br/textos/confessionalidade-luteranos-em-contexto/daautoridade-secular-martim-lutero> Acesso em 07/05/2018.
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). Se a autoridade secular avançar sobre o âmbito da consciência, procurando legislar acerca de questões de fé, a orientação do reformista é a de que o cristão efetue objeção de consciência, preservando sua alma.

Em “Da autoridade secular: até que ponto devemos obedecê-la”, Lutero é explícito ao afirmar que

Prezado senhor, Se me ordenardes dentro dos limites de vossa autoridade sobre a terra, obedecerei. Se, no entanto, me ordenardes a crer determinadas coisas e a entregar certos livros, não obedecerei, pois nesse caso sois tirano, e estabeleceis ordens onde não tendes direito, nem autoridade14 14 “Lieber Herr, ich bin euch schuldig zu gehorchen mit Leib und Gut; gebietet mir nach dem Maß eurer Gewalt auf Erden, so will ich folgen. Heißt ihr mich aber glauben und Bücher von mir zu tun, so will ich nicht gehorchen. Denn da seid ihr ein Tyrann und greift zu hoch, gebietet, wo ihr weder Recht noch Macht habt usw”. LUTERO, 1523, fol. 141. .

Duas conclusões podem ser obtidas a partir do texto do próprio Lutero. A primeira, a de que o cristão não deve obediência à autoridade civil quando ela transborda a legitimidade que recebe de Deus para regular tão somente os fatos da vida terrena, mas não a consciência. Se o príncipe procura se tornar pastor, ao invés de soberano, cabe ao cristão desobedecê-lo em respeito à própria fé e, em última instância, ao próprio Deus. Perceba-se que, em Lutero, até então, se trata de uma desobediência passiva e individual, nunca de uma autorização para a resistência ativa.

A autorização para a mera resistência passiva, enquanto objeção de consciência, resta evidente quando Lutero afirma que ao descumprir a ordem da autoridade política deve o cristão se sujeitar a sofrer a coerção por ela estabelecida, o que fica claro no seguinte trecho do texto Da autoridade secular:

Se ele confiscar a tua propriedade por causa disso e punir essa desobediência, és bem-aventurado. Agradece a Deus por seres digno de sofrer por causa da palavra divina. Deixa que o tolo esperneie; certamente um dia ele estará diante de seu juiz. Pois afirmo: se não lhe resistires e cederes à pressão dele a ponto de ele tirar de ti a fé ou os livros, de fato, negaste a Deus15 15 “Nimmt er dir darüber dein Gut und straft solchen Ungehorsam: selig bist du und danke Gott, daß du würdig bist, um göttlichen Worts willen zu leiden. Laß ihn nur toben, den Narren, er wird seinen Richter wohl finden. Denn ich sage dir, wo du ihm nicht widersprichst und ihm Raum gibst, daß er dir den Glauben oder die Bücher nimmt, so hast du wahrlich Gott verleugnet”. LUTERO, 1523, fol. 141. .

É importante frisar que, neste contexto histórico, a liberdade de consciência deve ser respeitada pela autoridade secular não pelo reconhecimento de que exista um direito subjetivo do indivíduo de decidir questões éticas de acordo com sua própria consciência. O respeito à liberdade de consciência é requerido em função da necessidade de que se mantenha submissão ao governo espiritual de Deus, de quem decorre a própria legitimidade da autoridade secular, ante a adoção da premissa de que apenas Deus pode governar o espírito, e não o Imperador (FORST, 2003FORST, Rainer. Toleranz im Konflikt: Geschichte, Gehalt und Gegenwart eines umstrittenen Begriffs. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003.).

A segunda conclusão que decorre da leitura de Lutero é a de que, se a resistência passiva só é autorizada quando a autoridade secular transborda os limites de sua atuação, invadindo o âmbito da consciência, ela não pode ser aplicada na hipótese em que a autoridade política esteja agindo dentro da sua esfera de poder, ainda que ela atue de forma que o cristão/súdito considere injusta ou inadequada. Nesses casos, ele defende que

é da vontade de Deus que denominemos seus carrascos de prezados senhores, caiamos a seus pés e nos sujeitemos a eles em completa humildade, desde que não estendam demais sua atividade e procurem se tornar pastores em vez de carrascos16 16 “Es gefällt seinem göttlichen Willen, daß wir seine Henker »gnädige Herrn« nennen, ihnen zu Füßen fallen und mit aller Demut Untertan sind, sofern sie ihr Handwerk nicht zu weit erstrecken, so daß sie Hirten aus Henkern werden wollen”. LUTERO, 1523, fol. 141v. .

Para Lutero, a sujeição a príncipes com tendências tirânicas é bíblica, nos termos do que estabelece Isaias 3:4, segundo o qual “Eu lhes darei crianças por príncipes, e bebês serão os seus senhores” e Oseias 13.11: “Eu te darei um rei na minha ira, e o tirarei no meu furor”, cabendo ao próprio Deus afastá-los.

A mesma linha é seguida por Calvino ao adotar a visão Luterana de que a legitimidade do poder dos Príncipes advém de autorização divina, fazendo com que a eles seja devida obediência como se deve ao próprio Deus. No capítulo XX (“De politica administratione”, traduzido para o português como “Do governo civil) das Instituições para a vida cristã (Institutio christianae religionis), cuja primeira edição saiu em 1536, Calvino afirma que “reis e magistrados exercem sobre a terra a sua autoridade, não por conta da perversidade humana, mas por próvida e santa ordenação de Deus, a quem pareceu bem conduzir assim o governo dos homens”17 17 “Perindc enim iftud valet acti dictum essct, non humana perucrsitate fieri vt penes Rcgcs & Praefcctos alios sit in terris rerum omnium arbitrium, sed diuina prouidcntia & sancta ordinatione”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 4, p. 550. , sendo o poder civil “uma vocação, não somente santa e legítima diante de Deus, mas também a mais sagrada e honrosa de todas as vocações”18 18 “Quare nulli iam dubium esse debet quin ciuilis potestas, vocatio sit, non modo coram Deo sancta & legitima, sed facerrima etiam, & in tota mortalium vita longe omnium honestissima”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 4, p. 550. , razão pela qual “embora haja diversos tipos e formas de autoridade, devemos contudo aceitá-las como ministérios instituídos por Deus”19 19 “Praeterea inter ipsos magistratus tametsi variae sunt formae, nullum tamen diserimen hac in parte est quin pro Dei ordinibus suspiciendae a nobis omnes sint”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 7, p. 551. .

Por esta razão, Calvino sustenta ser necessário “tributar toda obediência às autoridades, seja acatando suas ordens e constituições, seja pagando os impostos, seja aceitando algum encargo público destinado à defesa do povo”20 20 “Ex eo & alterum deinde scquitur, vt propensis in eorum obseruationem animis, suam illis obedientiam approbent: siue edictis parendum, siue tributa soluenda, siue subeunda publica muncra atque onera quae ad communcn defensionem spectent, siue qua alia iusta capessenda”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 23, p. 558. , obediência que deve ser mantida ainda que o Príncipe atue de forma injusta, na medida em que a Palavra de Deus impõe obediência “não somente aos príncipes que cumprem o seu dever e mandato, mas a todos os que ocupam uma posição eminente, embora não façam aquilo que sua condição exige”21 21 “Vcrum si in Dei vcrbum respicimus, longius nos deducet, vt non eorum modo principum imperio subditi simus qui probc, & qua debent fide, munere suo erga nos dcfunguntur: sed omnium qui quoquo modo rerum potiuntur, etiamsi nihil minus praestent quam quod cx officio erat principum”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 25, p. 559. .

A necessidade de obediência ao soberano que, atuando em matérias do reino secular, ou seja, sem transbordar os limites de sua legitimidade, age de forma que o súdito considera inapropriada torna-se inquestionável quando Calvino sustenta que

Quando estiver bem clara e estabelecida em nosso entendimento que a vontade de Deus, em virtude da qual se firma a autoridade dos reis, é a mesma que escolhe os soberanos elevando-os à posição de autoridade, jamais nos virão à mente essas ideias insanas e sediciosas de que um rei deve ser tratado segundo seus méritos, e que é razoável nos revoltarmos contra aquele que não age como bom rei em relação a nós22 22 “Hoc nobis si assidue ob animos & oculos obuersetur, eodem decreto constitui etiam nequissimos Reges quo Regum authoritas statuitur: nunquam in animum nobis seditiosae illae cogitationes venient, tractandum esse pro meritis Regem: nec aequum esse vt súbditos ei praestemus qui vicissim Regem nobis non praestet”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 27, p. 560. .

À pergunta acerca do que deve fazer o cristão ao ser submetido a uma autoridade secular de índole tirânica, Calvino responderá que “não cabe a nós remediar tais males, e que nada nos resta senão implorar a ajuda do Senhor, em cujas mãos está o coração dos reis e as mudanças dos reinos”23 23 “Hoc tantum esse reliquum, vt Domini opum imploremos, cuiús in manu sunt Regum corda, & regnorum inclinationes”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 29, p. 560. .

4. DA RESISTÊNCIA PASSIVA À RESISTÊNCIA ATIVA: DO LUTARNO FILIPE DE HESSE À ATUAÇÃO DOS MAGISTRADOS INFERIORES NO PENSAMENTO DE CALVINO E AO VINDICAE CONTRA TYRANOS

A visão reformista de que o direito de resistência só poderia ser exercido mediante objeção de consciência, nunca pelo emprego de armas, e apenas se constatado que a autoridade secular transbordou os limites de sua atuação, invadindo o âmbito da fé, começa a ser flexibilizada a partir do final das décadas de 30 e 40 do século XVI, primeiro no pensamento luterano do landgrave Felipe de Hessen (1504-1567) e do Duque João da Saxônia (1468-1532), também príncipe eleitor (Kurfürst) do Sacro Império, mas especialmente no bojo do pensamento calvinista.

Na primeira edição das “Instituições da Vida Cristã”, de 1536, já se encontra clara autorização para a objeção de consciência, na medida em que Calvino sustenta que a obediência ao soberano não deve afastar o indivíduo de sua obediência à Deus. “Se as autoridades ordenam algo contra o mandamento de Deus, devemos desconsiderá-la completamente, seja quem for o mandante”. A partir da edição de 1539, no entanto, e nas edições subsequentes, o texto “Do governo civil” passa a fazer menção paulatinamente, e de forma cada vez mais aberta, a situações de concessão nas quais torna-se admissível a resistência ativa, com efetivo emprego da força.

Segundo Camila Medeiros Hochmüller (2008HOCHMÜLLER, Camila. Obediência, desobediência e resistência no pensamento civil de João Calvino. Controvérsia, v. 4, 2008, p. 36-43., p. 42)

Nas edições seguintes da Instituição (datadas de 1539, em latim; 1541, em francês; 1543, em latim; 1559, em latim e 1560, em francês) foram surgindo gradativamente acréscimos e mais acréscimos, inclusive em sua parte final

(...)

Cada vez mais, ao longo de suas várias edições, tornava-se clara a indisposição de Calvino com respeito ao regime monárquico, o qual, para ele, era especialmente propenso ao autoritarismo e à impossibilidade de controle e fiscalização”.

A flexibilização das situações nas quais se torna possível o exercício do direito de resistência em sua feição ativa não tem origem, no entanto, em Calvino, embora seja comum correlacionar prioritariamente o pensamento calvinista, e não o luterano, à possibilidade da resistência armada.

Antes de Calvino, a possibilidade da resistência ativa já havia sido suscitada nos pensamentos dos luteranos Filipe de Hesse e João, príncipe da Saxônia (SKINNER, 2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004.). Em 1529 os luteranos precisaram enfrentar o desejo - nunca abandonado, desde o Édito de Worms24 24 O Édito de Worms foi o decreto outorgado em 26 de maio de 1521 pelo imperador Carlos V que declarou criminosos todos os que "seja por atos ou palavras, defendessem, sustentasse ou favorecessem o que foi dito por Martinho Lutero". - do imperador Carlos V de compeli-los a retornarem à unidade da Igreja Católica. Já não mais ameaçado pelo perigo de ser invadido por Francisco I, Carlos V voltou-se contra os reformistas, cassando todas as concessões antes feitas ao direito dos reformadores de propagarem sua fé. Os luteranos revidaram com um protesto que reuniu 6 Príncipes e 14 cidades, liderados pelos príncipes João da Saxônia e, especialmente, Felipe de Hesse (SKINNER, 2004). Não tendo havido recuo por parte de Carlos V, que se manteve no propósito de fazer valer o Édito de Worms, Felipe de Hesse e João da Saxônia se depararam com a necessidade de terem de debater a possibilidade da resistência ativa contra seu próprio Imperador, que, enquanto líder da maioria católica, agora os atacava (SKINNER, 2004).

É nesse contexto que Filipe de Hesse passa a defender a efetiva possibilidade de resistência armada. A teoria de Hesse sustentava-se na concepção de que o poder concedido por Deus à autoridade do Imperador o foi para um propósito específico, no bojo do qual encontrava-se incluído o dever de observar um número de obrigações legais em relação aos outros, bem como assegurar o bem-estar e a integridade de seus súditos imediatos (SKINNER, 2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004.).

Surge, ainda que de forma embrionária, a ideia da existência de um acordo (tratado, contrato) entre o Imperador e os príncipes, o que conduz, por fim, à conclusão de que

se o Imperador ultrapassa os limites de seu ofício através da prática de perseguição aos fiéis ou atua de forma violenta em relação a qualquer dos príncipes, ele o faz em violação às obrigações a ele impostas quando de sua eleição (por Deus), e então pode sofrer oposição sob o ponto de vista legal (SKINNER, 2004SKINNER, Quentin. The foundations of modern political though. Volume Two: The Age of reformation. Cambridge: Cambridge Press, 2004., p.196).

Nesse sentido, em Felipe de Hesse, “os eleitores e príncipes territoriais (magistrados inferiores), como autoridade também divinamente instituídas, poderiam empunhar o ius gladii em seu interesse, mesmo contra o Imperador” (CARVALHO, 2005CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho. A cosmovisão calvinista e a resistência ao Estado. Fides Reformata, v. 10, n. 2, 2005, p. 21-44., p. 23).

Simultaneamente à teoria de Hesse, João da Saxônia apresentou uma teoria da resistência baseada numa doutrina de direito privado, segundo a qual “o imperador não tinha jurisdição em questões de fé, de modo que suas interferências ilegais o tornavam um infrator privado da lei” (CARVALHO, 2005CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho. A cosmovisão calvinista e a resistência ao Estado. Fides Reformata, v. 10, n. 2, 2005, p. 21-44., p. 24). É exatamente a ideia de uma resistência advinda dos príncipes, dos “magistrados inferiores”, já presente no luterano Felipe de Hesse, que Calvino retoma e desenvolve no capítulo “Do governo civil”, das Instituições para a fé Cristã, na edição latina de 1559 e francesa de 1560.

Nas últimas edições do texto, Calvino suscita a existência de determinadas pessoas públicas, eleitas por Deus, para fins de controle da autoridade política, as quais denomina de “magistrados do povo” (ou magistrados inferiores), em oposição às próprias autoridades seculares “superiores”, ou seja, os reis, príncipes, duques. A essas pessoas, dizia Calvino, que “estão investidas de autoridade, não posso de modo algum proibir, segundo as exigências de seu ofício, que façam oposição e resistam à excessiva licença dos reis”. Assim, aos magistrados do povo era reconhecido o direito de legitimamente resistir contra a autoridade secular, tal como outrora o faziam os éforos entre os espartanos e os tribunos da plebe entre os romanos, ou os demarcas atenienses25 25 “Nam siqui nunc sint populares magistratus ad moderandum Regum libidinem constituti (quales olim erant, qui Lacedaemoniis Regibus oppositi erant, Ephori: aut Romanis Consulibus, Tribuni plebis: aut Atheniensium senatui, Demarchi: & qua etiam forte potestate, vt nunc res habent, sunguntur in singulis regnis tres ordines, quum primarios conuentus peragunt) adeo illos ferocienti Regum licentiae pro officio intercedere non veto, vt si Regibus impotentcr grassantibus & humuli plebeculae insultantibus conniueant, eorum dissimulationem nesaria perfídia non carere afirmem: quia populi libertatem, eu ius se Dei ordinatione tutores positos norunt, fraudulenter produnt”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 31, p. 561. .

De acordo com Camila Medeiros Hochmüller (2008HOCHMÜLLER, Camila. Obediência, desobediência e resistência no pensamento civil de João Calvino. Controvérsia, v. 4, 2008, p. 36-43., p. 42), é na edição latina de 1559 e na francesa de 1560 “que se nota mais claramente a mudança de Calvino de uma postura de desobediência passiva para uma de resistência ativa”. A mudança não se relacionava apenas ao modo como a resistência deveria ocorrer, mas sim à própria existência da legitimidade conferida às autoridades políticas (imperadores, reis, duques).

Nas últimas edições “Do governo civil” constata-se que:

Quando a autoridade superior deixava de cumprir seus deveres de acordo com a vontade de Deus, passando a cometer toda a sorte de desvarios contrários à boa ordem do povo e à religião, então ela perdia sua condição de representante de Deus, de autoridade genuína, bem como de pessoa pública, passando a ser tratada e culpabilizada tal como qualquer outra pessoa privada, perdendo, portanto, suas distinções e benefícios. Nessas

circunstâncias, os responsáveis por tal resistência são os magistrados inferiores (ou populares, ou Petit Conseil). (HOCHMÜLLER, 2008HOCHMÜLLER, Camila. Obediência, desobediência e resistência no pensamento civil de João Calvino. Controvérsia, v. 4, 2008, p. 36-43., p. 42-43)

Há um avanço evidente. Enquanto nas primeiras edições de “Do governo civil” tem-se uma tímida autorização para a resistência às autoridades seculares superiores mediante objeção de consciência, nas últimas edições já se encontra explícita menção à possibilidade de uma resistência ativa ao tirano pela atuação dos magistrados do povo. Essa possibilidade de resistência se fundamenta na perda da própria legitimidade da autoridade secular como consequência do desvirtuamento de sua conduta. É, no entanto, uma resistência que não deve ser diretamente exercida por todo e qualquer indivíduo isoladamente considerado, mas sim pelos representantes eleitos para este fim, os magistrados do povo ou inferiores26 26 A ideia de que o direito de resistência não deveria ser exercido diretamente pelos indivíduos, mas sim por representantes eleitos surge em um contexto no qual Calvino lidava com a revolta dos anabatistas que, de linha radical, haviam questionado toda e qualquer submissão à autoridade secular, defendendo o direito à resistência armada individual. .

A ideia de uma resistência a ser exercida por uma “parte qualificada do povo”, e não por qualquer um de seus componentes, aparece de forma ainda melhor desenvolvida no texto Vindiciae Contra Tyrannos, ou “concernente ao poder legítimo do príncipe sobre o povo e do povo sobre o príncipe”, obra publicada em 1579, de autoria incerta, atribuída a Philippe Du Plessis-Mornay (1549-1623), assinada com o pseudônimo de Stephanius Junius Brutus27 27 Sobre a autoria da obra, cf. BAKER, 1930. .

Ao tentar responder se é legítimo resistir a um governante que está oprimindo ou arruinando o Estado, bem como quem deve realizar a resistência e até que extensão, o autor de Vindiciae Contra Tyrannos desenvolve a ideia da existência de um duplo contrato. Haveria então um primeiro contrato de caráter religioso, estabelecido entre Deus, os Reis e o povo, que cria obrigações e privilégios para todas as partes envolvidas. No bojo desse primeiro contrato, Deus promete cuidar do povo através de seu representante na Terra (o Rei), devendo o povo a ele obediência. No segundo contrato, de caráter temporal, estabelece-se uma relação entre o Rei e o povo, na qual o povo se compromete a obedecer ao Rei instituído a partir do estabelecimento de uma relação de fidelidade (MORAES, 2015MORAES, Gerson Leite de. O direito de resistência e o tiranicídio no Calvinismo. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 27, 2015, p. 53-71.).

Neste sentido, especialmente no âmbito do segundo contrato, “o povo é um elemento ativo na aliança, pois apesar de ficar claro o dever de obediência ao Rei, isso só subsiste enquanto o Rei for fiel a Deus. Se porventura este deixar de seguir a Deus e descumprir sua parte na aliança, é dever do povo, pautado na aliança estabelecida, resistir ao tirano” (MORAES, 2015MORAES, Gerson Leite de. O direito de resistência e o tiranicídio no Calvinismo. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 27, 2015, p. 53-71., p. 66)

Mas quem pode resistir? Quem é o povo em Vindiciae Contra Tyrannos? Assim como em Calvino, em Vindiciae Contra Tyrannos a resistência se dá através da atuação de uma parcela “qualificada” do povo, através dos denominados Oficiais do Reino, ou seja, dos “magistrados”. Todo o povo, no texto, é, portanto, sinônimo tão somente de “Oficiais do Reino”. Essa visão restritiva fica clara na seguinte passagem (1579, seção 21):

Quando falamos de todo o povo, queremos dizer aqueles que receberam autoridade do povo, evidentemente os magistrados, que são inferiores ao rei e escolhidos pelo povo, ou constituídos de alguma outra forma eram, por assim dizer, sócios no comando [imperii Consortes] e éforos dos reis, e representam todo o povo reunido [universus populi coetus]. Também queremos dizer que as Assembléias [comitia], não são nada mais que o epítome de cada reino ao qual todos os negócios públicos se referem. (...) setenta anciãos (...) líderes ou príncipes das tribos, um de cada; depois os juízes e prefeitos das cidades individuais, isto é, os capitães de milhares, de centenas, e outros que presidiram sobre tantas famílias quantas haviam. Por fim, haviam comandantes militares, dignitários e outros, dos quais o concílio reuniu. Vimos que foi mais frequentemente proclamado nestes termos: ‘E os anciãos se reuniram em Ramá’, para a eleição de Saul; ‘E todo o Israel se reuniu’; ou ‘toda a Judá e Benjamin, etc., quando é improvável que toda a multidão havia se reunido28 28 “Cum de vniuerso Populo loquimur, intelligimus eos, qui à Populo authoritatem acceperunt, magistratus, nempe, Rege inferiores, à Populo delectos, aut alia ratione constitutos, quasi imperij Consortes & Regum Ephoros, qui vniuersum Populi coetum representant. Intelligimus etiam Comitia, quae nil aliud sunt, quam Regni cuiusque Epitome, ad quae publica omnia negotia referuntur. Eiusmodi erant septuaginta in Regno Israelitico, quibus quodãmodo prae erat sumus Sacerdos, qui de rebus summis iudicabant, e LXX.familiis, quae in AEgyptum descenderant, seni primum electi. Tum Duces, seu Principes Tribuum, in singulis singuli. Demum Iudices & Praefecti singularum vrbium, id est, Chiliarchae, Centuriones & ceteri,qui toti dem familiis prae erant. Denique fortes, Purpurati, & ceteri, è quibus constabatur Concilium publicum, quod saepissime indictum legimus, his verbis”. BRUTO, 1579, p. 46-47. .

Não há, em Vindiciae Contra Tyrannos, autorização ou menção à possibilidade de exercício de resistência armada por parte de particulares ou pessoas privadas, já que esses não têm o poder, não exercem cargos públicos, não governam ninguém, razão pela qual não têm o direito de desembainhar a espada (BRUTO, 1579BRUTO, Stephano Ivnio. Vindiciae contra tyrannos: sive de principis in populum, populique in principem, legitima potestate. Edimbvrgi: s.e., 1579.). É que, “se tudo começa com uma afronta à religião, onde o contrato é quebrado, culmina com a defesa da propriedade dos nobres, pois ao homem comum é vedada a possibilidade de resistência” (MORAES, 2015MORAES, Gerson Leite de. O direito de resistência e o tiranicídio no Calvinismo. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 27, 2015, p. 53-71., p. 68).

5. O que justifica o protagonismo do pensamento calvinista em relação ao luterano no âmbito da esfera político-jurídica?

Embora não seja possível identificar diferenças significativas entre o pensamento calvinista e o dos luteranos que o antecederam no que concerne especificamente ao direito de resistência, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho (2005CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho. A cosmovisão calvinista e a resistência ao Estado. Fides Reformata, v. 10, n. 2, 2005, p. 21-44.) defende que o fato de se conferir maior precedência ao calvinismo quando se trata de dinamismo político advém da constatação de que há, no pensamento calvinista, o reconhecimento de uma soberania plena à esfera político-jurídica, antes não verificada no luteranismo.

No pensamento de Lutero, assentado na visão dos dois reinos, o cristão não necessitaria do reino terreno, nele atuando, inclusive via assunção de encargos políticos, por amor e caridade. Assim, “a obediência à lei é uma necessidade formal e não essencial; a vida sob a graça torna à sujeição à lei desnecessária, exceto na medida em que ela serve à expressão do amor cristão” (CARVALHO, 2005CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho. A cosmovisão calvinista e a resistência ao Estado. Fides Reformata, v. 10, n. 2, 2005, p. 21-44., p. 40). Neste contexto, a expressão do amor a Deus seria a única razão a partir da qual o cristão deveria se sujeitar ao poder secular, de modo que na visão luterana “as esferas ético-religiosa e políticojurídica permanecem sem ponto de contato justamente porque a vida sob a graça não contém em si a vida sob a lei” (CARVALHO, 2005, p. 40).

É exatamente por isso que Lutero sustenta em seus escritos, como em “As duas espécies de Justiça”, que o cristão não deve atuar no âmbito dos Tribunais para fins de obtenção de benefício próprio, mediante a cultivação de sentimento de vingança, o que é apenas tolerado, mas antes agir sempre a partir da busca pela maximização do bemestar do outro, sendo-lhe lícito utilizar-se da estrutura política secular apenas em benefício alheio.

Essa visão se modifica em Calvino. No calvinismo, o homem é visto como absolutamente sujeito às leis de Deus, que criou também a própria estrutura política secular. Em assim o sendo, “não há espaço para a tese de que a graça envolve uma superação da lei ou da ordem natural”, razão pela qual “é inconcebível para Calvino que possa existir incompatibilidade de princípio entre a esfera ético-religiosa e a esfera política” (CARVALHO, 2005CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho. A cosmovisão calvinista e a resistência ao Estado. Fides Reformata, v. 10, n. 2, 2005, p. 21-44., p. 41), devendo haver coerência e harmonia estrutural entre elas.

Por esta razão, Calvino defende, no texto “Do governo civil”, contrapondo-se à Lutero, ser legítimo ao cristão litigar judicialmente contra outrem, ainda que o faça em defesa própria, ao assentar que

Os cristãos devem renunciar a seu direito antes de iniciar um processo que dificilmente poderão conduzir sem ânimo exacerbado e inflamado de ira contra seu irmão. Quando, porém, alguém vê que pode defender seus bens sem causar dano e ferir a caridade, não estará contrariando o ensinamento de Paulo, sobretudo quando se tratar de questões de grande importância cuja perda representaria um grande prejuízo29 29 “Id sanè Christianis agendum eft, vt de suo iure decedere semper malint quam in forum progredi: vnde vix exire possint nisi commo tiore animo & in fratris odium accenso. Verum vbi quis citra charitatis dispendium rem suam se posse tueri viderit, cuius iactura graui sibi dispendio futura sit, id si faciat, nihil in istam Pauli sententiam delinquit”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 21, p. 558. .

O reconhecimento dessa autonomia da esfera política, vista em Calvino, é essencial à posterior reorganização do Estado que culmina com a formação do Estado moderno, no bojo do qual o elemento político-jurídico se dissocia estruturalmente do religioso, mas dele recebe influência. Assim, a concepção calvinista, que mantém a origem divina da esfera política - da qual ela retira também sua legitimidade - adquire preeminência sobre a visão luterana, porque confere ao aspecto político autonomia relativa, reconhecendo sua importância individual.

Esta autonomia se desenvolve inicialmente no calvinismo a partir da doutrina da soberania das esferas. Pelo princípio das soberanias das esferas, “todas as esferas da sociedade - incluindo o Estado, a família, as escolas, as corporações, como também as associações profissionais e voluntárias - não estão sob a Igreja, mas diretamente sob a autoridade de Deus” (COLSON; PEARCEY, 2006COLSON, Charles; PEARCEY, Nancy. O cristão na cultura de hoje. Rio de Janeiro: CPAD, 2006., p. 198), razão pela qual “nenhuma esfera pode propriamente dominar as outras e todas respondem diretamente a Deus, por meio da consciência dos indivíduos envolvidos” (COLSON; PEARCEY, 2006, p. 199).

Em assim o sendo, a soberania do Estado está limitada por outra soberania, que é igualmente divina na sua origem, qual seja a soberania das demais esferas da sociedade. Ao preservar a ordem social, o Estado garante que a liberdade floresça; se a turba, deve enfrentar a legítima reação das demais esferas. Estado e sociedade são, portanto, esferas distintas, ambas situadas abaixo da soberania de Deus, que se controlam mutuamente, evitando que o exercício da autoridade política secular se degenere em despotismo. A ideia das soberanias das esferas, assentada na necessidade de mútuo controle, auxilia no posterior desenvolvimento da moderna noção de separação dos poderes, essencial para a construção do Estado de Direito.

6. Considerações finais.

Como se demonstrou, a reforma protestante fez surgir, no bojo do século XVI, não apenas uma nova teologia, mas propriamente uma nova ciência política e uma nova forma de se pensar o Direito, apta a modificar o conceito de “autoridade política” e os fundamentos de sua legitimidade, tendo contribuído diretamente para a criação de um cenário propício para a difusão, tempos depois, de teses fundamentais para a ordem jurídica moderna.

Sob o ponto de vista da dinâmica da relação do indivíduo com Deus, a reforma submeteu a razão à consciência e construiu uma doutrina assentada na existência de cinco sola, no bojo dos quais se passou a defender que só a fé salva, pondo-se por terra a doutrina católica da possibilidade de salvação pelas obras; só há salvação em Cristo (Solus Christus); de que esta salvação, oriunda do ato de fé, decorre da Graça divina, da qual o homem não é merecedor (Sola Gratia) e de que as Escrituras - em especial os dez mandamentos - são a única regra de fé e prática. Ao sustentar que todo aquele que venha a ser batizado em Cristo Jesus é em si mesmo um legítimo sacerdote sob o ponto de vista espiritual, podendo ter relação direta com Cristo, o movimento reformista questionou a possibilidade de que a Igreja Católica pudesse ter qualquer espécie de jurisdição que lhe fosse própria, defendendo a sua submissão, no que diz respeito às questões seculares, à jurisdição da autoridade política constituída, ou seja, ao Estado.

A partir do desenvolvimento da doutrina dos “dois reinos”, Lutero asseverou que a autoridade secular (“a lei e a espada”) está no mundo única e exclusivamente por permissão e vontade de Deus, e deve exercer seu ofício, qual seja o de “punir os malfeitores e proteger os justos”, com absoluta liberdade, dentro de sua esfera de atuação. Para isso, à autoridade política deve ser dada a prerrogativa de exercer coerção no âmbito do reino secular, para fins de manutenção da paz e da tranquilidade, sobre todo e qualquer um que perturbe a ordem estabelecida, sem quaisquer espécies de restrição, inclusive sobre o Clero, por autorização expressa de Deus, como expressão de sua providência.

Na filosofia reformista, é da origem divina da autoridade política secular que decorre o dever dos cristãos de obedecê-la, porquanto a obediência à autoridade política é obediência ao próprio Cristo. Esse dever de obediência, no entanto, pode ser afastado em determinadas circunstâncias, dando origem ao surgimento de um direito de resistência. Em um primeiro momento, o direito de resistência surge em sua feição passiva, atrelada à denominada objeção de consciência. Se a autoridade secular avançar sobre o âmbito da consciência, procurando legislar acerca de questões de fé, cabe ao cristão efetuar objeção de consciência, preservando sua alma. Trata-se, no entanto, de resistência tão somente passiva, nunca ativa, o que resta evidente quando Lutero determina que ao descumprir a ordem da autoridade política deve o cristão se sujeitar a sofrer a coerção por ela estabelecida.

A visão reformista de que o direito de resistência só poderia ser exercido mediante objeção de consciência, nunca pelo emprego de armas, e apenas se constatado que a autoridade secular transbordou os limites de sua atuação, invadindo o âmbito da fé, começa a ser flexibilizada a partir do final das décadas de 30 e 40 do século XVI. Nas últimas edições de “Do Governo Civil”, em “Instituições para a fé Cristã”, Calvino, influenciado pelos luteranos Felipe de Hessen e João, da Saxônia, suscita a existência de determinadas pessoas públicas, eleitas por Deus, para fins de controle da autoridade política, as quais denomina de “magistrados do povo” (ou magistrados inferiores), em oposição às próprias autoridades seculares “superiores”, ou seja, os reis, príncipes, duques, a quem era reconhecido o direito de legitimamente resistir contra a autoridade secular.

Enquanto em Lutero e nas primeiras edições de “Do governo civil” de Calvino temse uma tímida autorização para a resistência às autoridades seculares superiores apenas mediante objeção de consciência, nas últimas edições de “Do Governo Civil” já se encontra explícita menção à possibilidade de uma resistência ativa ao tirano pela atuação dos magistrados do povo, a qual se fundamenta na perda da própria legitimidade da autoridade secular como consequência do desvirtuamento de sua conduta. Todavia, trata-se ainda de uma resistência que não deve ser diretamente exercida por todo e qualquer indivíduo isoladamente considerado, mas sim pelos representantes eleitos para este fim.

A ideia de uma resistência a ser exercida por uma “parte qualificada do povo”, e não por qualquer um de seus componentes, aparece de forma ainda melhor desenvolvida no texto Vindiciae Contra Tyrannos. Ao tentar responder se é legítimo resistir a um governante que está oprimindo ou arruinando o Estado, bem como quem deve realizar esta resistência e até que extensão, o autor de Vindiciae Contra Tyrannos desenvolve a ideia da existência de um duplo contrato, um religioso, pactuado entre Deus, o Rei e o povo, e um outro temporal, que vincula o Rei ao seu povo a partir de um mútuo dever de fidelidade.

Assim como em Calvino, em Vindiciae Contra Tyrannos a resistência se dá através da atuação de uma parcela “qualificada” do povo, através dos denominados Oficiais do Reino, ou seja, dos “magistrados”. Essa restrição evidencia existir, na reforma, uma preocupação com a manutenção da estabilidade e da ordem, a demandar que a reação se dê pela atuação de pessoas qualificadas, e não de forma desordenada, pela conduta individual de qualquer cidadão, sem controle ou limites, o que poderia levar à revolução, receio decorrente da experiência vivida com os anabatistas. Percebe-se, assim, a visualização do direito de resistência como um instrumento, a ser utilizado por aqueles qualificados para tanto, para fins de reorganização da turbação provocada pela autoridade secular ilegítima.

A legitimação da autoridade política e a teorização do direito de resistência na filosofia reformista geraram ganhos significativos sob o ponto de vista político e, especialmente, para o âmbito do Direito. Ao promoverem a legitimação da autoridade secular, as teses luteranas contestatórias dos poderes da Igreja acabaram propiciando a construção política acerca da existência de uma autoridade secular central com jurisdição unitária para exercer todos os poderes coercitivos, inclusive sobre a própria Igreja. Como consequência, a reforma auxiliou na erosão da concepção de existência de dois poderes paralelos absolutos e universais (o do papa e o do imperador), permitindo o desenvolvimento paulatino de um monismo político/jurídico, ideia sob a qual se construiu posteriormente o Estado de Direito.

Em adendo, o desenvolvimento de doutrinas como a da soberania das esferas permitiu o desenvolvimento da concepção de que a liberdade dessa autoridade política, ou seja, do Estado, não é absoluta, e que cabe à sociedade controlá-la, evitando que o exercício da autoridade política secular se degenere em despotismo. Visualiza-se, já aqui, a raiz da moderna concepção da separação dos poderes. No bojo da teorização do direito de resistência como mecanismo de insurgência contra a autoridade secular que transborda sua esfera de atuação, a filosofia reformista assegurou o fortalecimento da ideia de objeção de consciência, ajudando a moldar a visão moderna de liberdade religiosa e de individualismo.

Por fim, a menção à existência de um contrato temporal, que fundamentaria a relação da autoridade política com o Povo, e que, se violado, autorizaria o exercício de um direito de resistência, já presente em Vindiciae Contra Tyrannos, e em outros textos reformistas não examinados em função dos limites deste artigo, é uma inovação significativa para o século XVI, evidenciando a impropriedade de considerar-se a reforma um mero embate de ordem religiosa. Estudar a filosofia reformista se mostra, portanto, essencial para a compreensão das bases sobre as quais se desenvolve o estado moderno.

7. Referências Bibliográficas

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  • 1
    SCHEIBLE, 1969; STRAUSS, 1986; WHITFORD, 2002; GORSKI, 2003; WITTE JR, 2004.
  • 2
    “An non licet malos castigare? Non decet peccata punire? Quis non tenetur iusticiam defendere? Hoc enim esset occasionem piebere deinquenti?”. LUTERO, 1519, fol. 3.
  • 3
    “(...) sunt qui non cupiunt vindictamimo parati sunt (scom Euangelium) tollenti pallium et tunicam dare et non resistunt vlli malo”. LUTERO, 1519, fol. 4.
  • 4
    “(...) idest in officio dei constituti”. LUTERO, 1519, fol. 3.
  • 5
    “Also haben sie die drey Rutten uns beymlich gestolen, dassie mugen ungestrafft sein, und sich in sicher Befestung dieser dreyer Maur gesetzt (...)”. LUTERO, 1520, fol. 4
  • 6
    “Dann weil wir alle gleich Priester sein, muss sich niemand selb erfur thun, und sich unterwinden, ahn unser Bewilligen und Erwählen das zu thun, dess wir alle gleichen Gewalt haben. Denn was gemeine ist, mag niemand ohn der Gemeine Willen und Befehle an sich nehmen. Und wo es geschähe, dass jemand erwählet zu solchem Ampt, und durch seinen Missbrauch wurd abgesetzt, so wäre er gleich wie vorhin. Drumb sollt ein Priesterstand nit anders sein in der Christenheit, dann als ein Amptmann; weil er am Ampt ist, geht er vor; wo er abgesetzt, ist er en Baur oder Burger, wie die andern”. LUTERO,1520, fol. 5-5v.
  • 7
    “Gleichwie nu die, so man itzt geistlich heisst, oder Priester, Bischof oder Päpst sein, von den andern Christen nit weiter noch würdiger gescheiden, dann dass sie das Wort Gottis und die Sacrament sollen handeln, das ist ihr Werk und Ampt: also hat die weltlich Ubirkeyt das Schwerdt und die Ruthen in der Hand, die Bosen damit zu strafen, die Frummen zu schutzen”. LUTERO, 1520, fol. 5v-6.
  • 8
    “Drumb sag ich: dieweil weltlich Gewalt von Gott geordnet ist, die Bosen zu strafen, und die Frummen zu schutzen, so soll man ihr Ampt lassen frei gehen unvorhindert, durch den ganzen Korper der Christenheit, niemands angesehen, sie treff Papst, Bischof, Pfaffen, Munch, Nonnen, oder was es ist”. LUTERO, 1520, fol. 6.
  • 9
    “(...) doch alle gleich geweihet Priester und Bischoffe; und ein iglich soll mit seinem Ampt oder Werk den andern nutzlich und dienstlich sein: dass also vielerlei Werk alle in eine Gemein gerichtet sein, Leib und Seelen zu fodern; gleichwie die Gliedmass des Korpers alle eins dem andern dienet”. LUTERO, 1520, fol. 6.
  • 10
    “Auffs erst müssen wyr das welltlich recht und Schwert gut begründen, daß nicht jemand dran zweyffel, es sey von Gottis Willen und Ordnung ynn der Wellt”. LUTERO, 1523, fol. 127.
  • 11
    Que cada alma se sujeite à autoridade e ao governo, pois não há autoridade que não venha de Deus: a autoridade, porém, quando existir, é sempre ordenada por Deus. Quem pois resiste à autoridade opõe-se à ordem de Deus, e os que fazem isso trarão condenação sobre si mesmos.
  • 12
    Sujeitai-vos à autoridade humana de todos os tipos, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como por ele enviados para punir os praticantes do mal e recompensar os que fazem o bem.
  • 13
    Quem toma a espada será morto pela espada.
  • 14
    “Lieber Herr, ich bin euch schuldig zu gehorchen mit Leib und Gut; gebietet mir nach dem Maß eurer Gewalt auf Erden, so will ich folgen. Heißt ihr mich aber glauben und Bücher von mir zu tun, so will ich nicht gehorchen. Denn da seid ihr ein Tyrann und greift zu hoch, gebietet, wo ihr weder Recht noch Macht habt usw”. LUTERO, 1523, fol. 141.
  • 15
    “Nimmt er dir darüber dein Gut und straft solchen Ungehorsam: selig bist du und danke Gott, daß du würdig bist, um göttlichen Worts willen zu leiden. Laß ihn nur toben, den Narren, er wird seinen Richter wohl finden. Denn ich sage dir, wo du ihm nicht widersprichst und ihm Raum gibst, daß er dir den Glauben oder die Bücher nimmt, so hast du wahrlich Gott verleugnet”. LUTERO, 1523, fol. 141.
  • 16
    “Es gefällt seinem göttlichen Willen, daß wir seine Henker »gnädige Herrn« nennen, ihnen zu Füßen fallen und mit aller Demut Untertan sind, sofern sie ihr Handwerk nicht zu weit erstrecken, so daß sie Hirten aus Henkern werden wollen”. LUTERO, 1523, fol. 141v.
  • 17
    “Perindc enim iftud valet acti dictum essct, non humana perucrsitate fieri vt penes Rcgcs & Praefcctos alios sit in terris rerum omnium arbitrium, sed diuina prouidcntia & sancta ordinatione”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 4, p. 550.
  • 18
    “Quare nulli iam dubium esse debet quin ciuilis potestas, vocatio sit, non modo coram Deo sancta & legitima, sed facerrima etiam, & in tota mortalium vita longe omnium honestissima”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 4, p. 550.
  • 19
    “Praeterea inter ipsos magistratus tametsi variae sunt formae, nullum tamen diserimen hac in parte est quin pro Dei ordinibus suspiciendae a nobis omnes sint”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 7, p. 551.
  • 20
    “Ex eo & alterum deinde scquitur, vt propensis in eorum obseruationem animis, suam illis obedientiam approbent: siue edictis parendum, siue tributa soluenda, siue subeunda publica muncra atque onera quae ad communcn defensionem spectent, siue qua alia iusta capessenda”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 23, p. 558.
  • 21
    “Vcrum si in Dei vcrbum respicimus, longius nos deducet, vt non eorum modo principum imperio subditi simus qui probc, & qua debent fide, munere suo erga nos dcfunguntur: sed omnium qui quoquo modo rerum potiuntur, etiamsi nihil minus praestent quam quod cx officio erat principum”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 25, p. 559.
  • 22
    “Hoc nobis si assidue ob animos & oculos obuersetur, eodem decreto constitui etiam nequissimos Reges quo Regum authoritas statuitur: nunquam in animum nobis seditiosae illae cogitationes venient, tractandum esse pro meritis Regem: nec aequum esse vt súbditos ei praestemus qui vicissim Regem nobis non praestet”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 27, p. 560.
  • 23
    “Hoc tantum esse reliquum, vt Domini opum imploremos, cuiús in manu sunt Regum corda, & regnorum inclinationes”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 29, p. 560.
  • 24
    O Édito de Worms foi o decreto outorgado em 26 de maio de 1521 pelo imperador Carlos V que declarou criminosos todos os que "seja por atos ou palavras, defendessem, sustentasse ou favorecessem o que foi dito por Martinho Lutero".
  • 25
    “Nam siqui nunc sint populares magistratus ad moderandum Regum libidinem constituti (quales olim erant, qui Lacedaemoniis Regibus oppositi erant, Ephori: aut Romanis Consulibus, Tribuni plebis: aut Atheniensium senatui, Demarchi: & qua etiam forte potestate, vt nunc res habent, sunguntur in singulis regnis tres ordines, quum primarios conuentus peragunt) adeo illos ferocienti Regum licentiae pro officio intercedere non veto, vt si Regibus impotentcr grassantibus & humuli plebeculae insultantibus conniueant, eorum dissimulationem nesaria perfídia non carere afirmem: quia populi libertatem, eu ius se Dei ordinatione tutores positos norunt, fraudulenter produnt”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 31, p. 561.
  • 26
    A ideia de que o direito de resistência não deveria ser exercido diretamente pelos indivíduos, mas sim por representantes eleitos surge em um contexto no qual Calvino lidava com a revolta dos anabatistas que, de linha radical, haviam questionado toda e qualquer submissão à autoridade secular, defendendo o direito à resistência armada individual.
  • 27
    Sobre a autoria da obra, cf. BAKER, 1930.
  • 28
    “Cum de vniuerso Populo loquimur, intelligimus eos, qui à Populo authoritatem acceperunt, magistratus, nempe, Rege inferiores, à Populo delectos, aut alia ratione constitutos, quasi imperij Consortes & Regum Ephoros, qui vniuersum Populi coetum representant. Intelligimus etiam Comitia, quae nil aliud sunt, quam Regni cuiusque Epitome, ad quae publica omnia negotia referuntur. Eiusmodi erant septuaginta in Regno Israelitico, quibus quodãmodo prae erat sumus Sacerdos, qui de rebus summis iudicabant, e LXX.familiis, quae in AEgyptum descenderant, seni primum electi. Tum Duces, seu Principes Tribuum, in singulis singuli. Demum Iudices & Praefecti singularum vrbium, id est, Chiliarchae, Centuriones & ceteri,qui toti dem familiis prae erant. Denique fortes, Purpurati, & ceteri, è quibus constabatur Concilium publicum, quod saepissime indictum legimus, his verbis”. BRUTO, 1579, p. 46-47.
  • 29
    “Id sanè Christianis agendum eft, vt de suo iure decedere semper malint quam in forum progredi: vnde vix exire possint nisi commo tiore animo & in fratris odium accenso. Verum vbi quis citra charitatis dispendium rem suam se posse tueri viderit, cuius iactura graui sibi dispendio futura sit, id si faciat, nihil in istam Pauli sententiam delinquit”. CALVINO, 1559, Lib. IV, Cap. XX, 21, p. 558.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2019
  • Aceito
    04 Jun 2019
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