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Os fantasmas se divertem: propriedade privada, expropriação e interdição ao direito à cidade

The ghosts are having fun: private property, expropriation and the limitation to the right to the city

Resumo

O artigo sugere uma reflexão a partir de duas problemáticas relacionadas: a centralidade da propriedade privada na produção do espaço e o diálogo com as questões trazidas pelo presente dossiê - o “direito à cidade”, as “tensões contemporâneas” e os “horizontes utópicos” -, o qual que se estabelece através da concepção da violência como espinha dorsal da reprodução capitalista. Analisa a centralidade da propriedade privada a partir da instituição de suas formas e dos seus títulos jurídicos como fantasmagoria, pondo luz na urbanização pelas formas de expropriação que interditam a realização do direito à cidade e da emergência do devir da sociedade urbana.

Palavras-chave:
Propriedade privada; Violência; Expropriação; Direito à cidade

Abstract

This article reflects on two related issues: the centrality of private property in the production of space and the dialogue between this centrality and the issues raised by the present dossier (the “right to the city”, the “contemporary tensions” and the “utopian horizons”). This dialogue is established through the conception of violence as the backbone of capitalist reproduction. It analyzes the centrality of private property from the institution of its forms and its legal titles as phantasmagoria, shedding light on urbanization and its forms of expropriation which prohibit the realization of the right to the city, the urban revolution and the emergence of the becoming of urban society.

Keywords:
Private property; Violence; Expropriation; Right to the city

Hoje, em Neuilly-sur-Seine, meu aluno de francês me ofereceu café e quis conversar um pouco sobre o Brasil. O bate-papo, de início besta, aos poucos rondou um assunto mais cabeludo, que logo ficou grave; para ir da gravidade ao terror político bastaram duas xícaras de café e uns biscoitos. (Milton Hatoum, O lugar mais sombrio: a noite da espera).

Introdução ou Da centralidade da propriedade privada

O presente artigo sugere uma reflexão a partir de duas problemáticas gerais relacionadas. A primeira refere-se à centralidade da propriedade privada na produção do espaço. A segunda, ao diálogo desta centralidade com os temas propostos pelo presente dossiê, tais como “direito à cidade”, “tensões contemporâneas” e “horizontes utópicos”. Contudo, esta relação se constitui e é aproximada a partir de uma dimensão: a violência do modo de produção e reprodução capitalista. Violência que, em tempos de crise, se faz crer como apenas exceção à regra - sendo inclusive justificada porque é assim tratada e insidiosamente veiculada - como “uma exceção”, “uma crise”. Porém, a violência constitui a espinha dorsal, a estrutura que, vista a partir do aqui e do agora, se explicita como tal. Ou, como Henri Lefebvre nos ensina, em chave de inversão analítica, o presente explica o passado - não o passado o presente - em seu método progressivoregressivo.

Fundamental assim ressaltar que a violência é constitutiva do próprio processo de urbanização, fundamentada na constituição dos marcos da propriedade privada capitalista. A violência não é a consequência da urbanização, um desvio pré-capitalista (contingente e/ou genético) ou uma excepcionalidade da formação crítica da sociedade urbana. Todo processo de urbanização é violento, mediado por processos de extermínio, genocídio, migrações e mobilizações da força de trabalho e operado pelo poder estatal e suas alegorias violentas como o Exército, a burocracia e a polícia. Ou ainda a partir de facções paraestatais, narcotráfico e milícias, que atuam como alegorias do Estado borrando ainda mais o que se entende como sociedade civil e suas - supostas - clivagens com o aparelho estatal.

A violência da urbanização se realiza pela necessidade imanente em se estabelecer os limites, fronteiras e cercas da propriedade privada. A produção do espaço urbano como meio, condição e produto da reprodução da vida e do capitalismo também é - e fundamentalmente o é - reprodução da violência. Ao planejamento do Estado tecnocrático, com bordas indeterminadas em relação ao mercado, cabe normalizar ao nível da vida cotidiana as relações proprietárias instituindo a sociedade burocrática de consumo dirigido e a segregação sócioespacial, as faces siamesas do Janus urbano. Opressão, repressão e terror da cotidianeidade são momentos imbricados de uma sociedade terrorista que naturaliza a violência nas relações sociais de produção e da reprodução do urbano.

O capitalismo na periferia figura a exceção e o Estado de exceção como expressões concretas da brutalidade excepcional e pós-mercantil da violência (OLIVEIRA, 2006) e revela sem embotamento a verdade do centro da reprodução capitalista. Em síntese: se toda a propriedade é um roubo, ela também é a realização da violência.

A centralidade da propriedade é aqui entendida como forma e como conteúdo social: mediações da produção do espaço. Enquanto forma, tanto no que concerne ao meio de análise, ou como sua forma jurídica, a propriedade entra no processo de produção e de reprodução sem ser efetivamente um meio produtivo, mas que, no entanto, apresenta-se como tal, representando a dimensão política e econômica do capitalismo. Forma, também, enquanto a morfologia específica dessa produção e reprodução - a superfície do globo terrestre, fragmentada e monopolizada a partir das fronteiras espaciais, reais ou fictícias - agindo e reagindo na constituição, desconstituição e reconstituição de uma preexistência, de uma resistência e de um porvir. Enquanto conteúdo, a contradição estabelecida entre os modos dominantes e predominantes de reprodução capitalista e a reprodução da vida condicionam e afetam a “presença humana (e além humana) no universo”1 1 “A presença humana no universo” é uma expressão do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que assinala a transformação do espaço como a necessidade e o desejo de construir as garantias da reprodução de nossa espécie, do possível do bem viver, aos moldes da segunda natureza. Expressão que se faz o presente desvio. .

A propriedade privada é, neste sentido, uma mediação necessária para a compreensão da dimensão espacial da reprodução capitalista, dado que sua forma moderna é condição da formação e da reprodução total dessas relações. Este lugar da dimensão espacial, por sua vez, é uma das grandes contribuições de Henri Lefebvre ao pensamento crítico, que se origina do diálogo entre a tradição da dialética marxista e a experiência - vivida, percebida e concebida (LEFEBVRE, 1974LEFEBVRE, H. La production de l'espace. Paris: Éditions Anthropos, 1974.) - do presente: os processos de transformação social, o fenômeno da urbanização intensificada e estendida em escala planetária. Isso aparece refletido em diversas obras da extensa produção teórica lefebvriana, notadamente naquelas que são identificadas como “obras espaciais” (1971a, 1972, 1974, 1976, 1981, 1983, 1999a, 1999b).

O modo capitalista de produção fundamenta em sua forma-conteúdo - e no próprio objetivo de sua reprodução contemporânea - que há um êxodo sem volta que caracteriza nosso tempo: o espraiamento do urbano e da urbanização como processo social mundializado, tendo a cidade como sua forma mais acabada. Lefebvre, ainda na década de 1970, já postulava a hipótese “da urbanização completa da sociedade. Hoje virtual amanhã real” (LEFEBVRE, 1999aLEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999a., p. 13). Podemos afirmar, assim, que nos encontramos no olho do furacão, isto é, no centro de um movimento de transformações que violentamente concentra as populações nas cidades, alterando os regimes de propriedade, a partir da centralidade da produção do espaço, e submetendo parcelas significativas deste contingente à sobrevivência em condições indignas (MENEGAT, 2003MENEGAT, E. Limites do Ocidente: um roteiro para estudo da crise de formas e conteúdos urbanos. 2003. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.) reproduzindo a privação do urbano (CARLOS, 2017CARLOS, A. F. A privação do urbano e o direto à cidade em Henri Lefebvre. In: Carlos, A. F. et al. (org.). Justiça espacial e o direto à cidade. São Paulo: Contexto, 2017, v. 1, p. 33-62.).

Quanto aos temas do dossiê, o “direito à cidade” é uma problemática urbana que na atualidade retém diversas camadas interpretativas e discursivas, convergentes e divergentes, potentes e impotentes, revolucionárias e reformistas, aproximadas e distanciadas do pensamento lefebvriano. Camadas que, por sua vez, se desdobram em concepções e em práticas políticas, em lutas pelo espaço, reproduzindo essas mesmas tensões e ambiguidades.

As “tensões contemporâneas” decorrem da percepção de que os conflitos sociais experimentados no presente também se intensificam e se diversificam, pondo luz na reprodução social como reflexo de formas dominantes e predominantes de produção e reprodução capitalista, com a intensificação da exploração da força de trabalho, da expropriação dos sujeitos viventes e da extração irreversível de matérias da natureza. Mas, também, reflexo dos rearranjos de forças políticas e suas coligações locais e globais, dando corpo a manifestações de intolerância, da intensificação da violência, da experimentação do fascismo, da hiper-repressão e da produção da sociedade terrorista (LEFEBVRE, 1968LEFEBVRE, H. La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris: Gallimard, 1968.). Ao lado deste recrudescimento, há a emergência de antigas e novas expressões culturais, formas de vida que, eventualmente, escapam ao padrão estabelecido pela norma dominante, no espaço público, na atuação política, na disputa de narrativas e na criação estética.

Além disso, a expectativa de “horizontes utópicos” encontra-se em questão. Ou seja, a necessidade e o desejo de se vislumbrar e iluminar novos caminhos e a exigência e a urgência de uma outra ação crítica, prática e teórica radicais envolvem resistir à sujeição, mas também o projetar do devir, da emancipação. No horizonte, portanto, está a dialética teórico-prática.

A percepção concreta é de que, em contextos de crise estrutural como o que estamos vivendo imersos, o desmanche, a degradação e a destruição se realizam como negatividade. Isto é, constata-se o moto-contínuo da ação perversa sobre as conquistas históricas resultantes de lutas sociais, espaciais e políticas que acentuam o aspecto recrudescente da erosão de direitos e do rebaixamento dos horizontes utópicos. E dialeticamente como positividade, ou seja, sobre a desconstituição das amarras, também teórico-práticas, que, porventura, nos prendem e nos permitiriam (permitirão?) a obra da liberdade, da criação e da experimentação de novas formas de vida. A crise é o negativo do capital (GRESPAN, 1996GRESPAN, J. L. S. A desmedida da crise. Discurso. São Paulo, v. 27, p. 117-139, 1996.), expressão concreta da dialética em si do movimento de reprodução do capitalismo como modo de produção, possibilidade superior de expropriação/acumulação e brecha (im)possível de realização do devir.

A poiesis, tão intuída por Henri Lefebvre, emerge como obra da “sociedade urbana” (em oposição ao produto da sociedade industrial-capitalista, o ponto crítico), como vir-a-ser, a partir da experiência do real. A utopia concreta, experimentada em sua fase germinal, que se faz necessária e desejada: se há frestas no horizonte, que elas sejam abertas; se há festa no resíduo, que dancemos.

O espaço como campo cego e a fantasmagoria proprietária

As reflexões de Henri Lefebvre, dos anos 1960-1970, que se movimentam em paralelo à concepção da emergência da sociedade urbana (Lefebvre, 1999a), iluminam a possibilidade de superação das relações capitalistas de produção, vislumbrando seu ponto crítico a partir da emergência da sociedade urbana como virtualidade já parcialmente experimentada, de modo residual, no presente. Porém, o que lá aparecia como o possível realiza-se na atualidade como seu avesso, como impossível: a intensificação da submissão das relações de produção e da reprodução da vida à expansão das fronteiras infernais do capitalismo.

O que teria mudado? Quais formas sociais foram capturadas ou (re)inventadas nesta expansão?

Lefebvre enfatiza os processos sociais que, aparentemente, eram resíduos de tempos passados: a ruralidade, a comunidade, os ciclos da natureza, a gratuidade, a festa, eventos que paulatinamente passam a ser reduzidos à abstração homogeneizante da sociedade industrial, anulados pela forma-mercadoria, estendidos à cidade, à vida e, bien sûr, mediados pela propriedade privada. Esta, embora condição de formação e reprodução das relações capitalistas, era lida como uma presença arcaica nas relações sociais modernas, como “barreira especulativa” ao “livre desenvolvimento das relações econômicas”, dada a ênfase posta na produção, a partir de uma visão centrada sobre a industrialização de tipo fabril que ofuscava - e ainda ofusca - a especificidade espacial da reprodução social. Lefebvre põe luz, portanto, à produção de coisas no espaço, mas, também, e aqui a grande novidade, na produção do próprio espaço, como uma “coisa capitalista”, sob seus domínios e, fora deles, os resíduos que lhe escapam. Uma luz que permanece no interior da reflexão sobre o fetichismo da mercadoria, sobre as formas de exploração e expropriação do trabalhador e do cidadão: a especificidade espacial. Lefebvre (1999a) busca compreender, deste modo, quais campos cegos se instauram na tradicional forma de refletir, cegueira que exacerba ilusões urbanísticas e suas reformas. O espaço é o campo cego das análises sobre a urbanização produzindo e reproduzindo a ilusão da opacidade e a ilusão da transparência (SOJA, 1993).

O espaço opaco é a realização reificada do espaço, induzindo a uma miopia que reduz e sintetiza o real à materialidade superficial, às formas concretizadas e aos elementos da paisagem que são passíveis de mensuração, contabilização e descrição fenomênica. O espaço aparece como um dado fixo, morto e não-dialético. Articuladamente se efetiva o espaço como um ente transparente em seu aspecto translúcido, supostamente revelado em uma mirada. As relações de poder e disciplina e a reprodução desigual do capital do espaço - na cegueira do espaço absoluto - são realizadas em interpretações míopes das espacialidades que desmaterializam o espaço em ideação e representação puras: brotam não-lugares, cenários, organização do espaço, ordenamento territorial e planejamento. Num modo de pensar intuitivo, a ilusão da transparência espacial nos impede de ver a construção social e a concretização das relações sociais pela produção do espaço, reificando os marcos das formas e títulos jurídicos da propriedade privada, interditando a interpretação do espaço produzido como problemática central da sociedade urbana e da radicalidade do direito à cidade.

De todo modo, a história segue. O movimento efetivo se realiza e em paralelo ao propalado fim da história à la Fukuyama e Castells. As fronteiras do capital avançam de um modo que parece não haver mais saídas. E as “saídas” são sempre espaciais: as relações de produção e reprodução capitalista avançam através da urbanização, ou seja, da dominação dos espaços pela propriedade privada e pela mercantilização. A urbanização como forma-específica da saída capitalista de atenuação das crises se concretiza como meio e instrumento de ampliação e reprodução do excedente de valor, de preços arbitrários, da dominação do capitalismo financeiro e do capital fictício. Nesse sentido, constitui-se uma marcha tendencial ao homogêneo, de expansão das relações capitalistas, mas que encontra uma miríade de “contramarchas”, de resistências, de especificidades sócioespaciais, de territórios, de experiências e organizações próprias a cada uma dessas situações em particular. Lutas.

Visto a partir do século XXI, sob domínio do neoliberalismo (DARDOT; LAVAL, 2009DARDOT, P.; LAVAL, C. La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale. Paris: La Découverte, 2009.) - doutrina e figuração capitalista - e predomínio da financeirização (CHESNAIS, 2005CHESNAIS, F. (org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005.), qual o lugar onde se situa a virtual superação empreendida pelo “direito à cidade”? O que interdita essa utopia concreta?

O possível tornado impossível, a generalização da forma-propriedade.

Seguindo nesta trilha, a propriedade é aqui trabalhada a partir de uma dupla dimensão, mediação cujo movimento vislumbra a análise crítica da produção do espaço. Uma, a reconstituição do processo histórico de sua formação, a moderna propriedade privada, que se constitui desconstituindo as relações feudais, pré-capitalistas, nãocapitalistas ou extra-capitalistas. Produz-se sua forma jurídica associada à emergência do Estado moderno, liberal e burguês (MARX, 2017MARX, K. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo: Boitempo, 2017.). Da propriedade à industrialização.

Neste ínterim, “campo” e “cidade”, termos que representavam morfologias sócioespaciais em oposição em função da divisão social do trabalho, expressam novas camadas desta relação contraditória postas, especialmente, pela expansão mundial da propriedade privada especificamente capitalista e sua dominação em figurações como land grabbing, rentismo fundiário e a corrida mundial por terras. As formas camponesas e comunitárias são redefinidas em escala global emergindo, inclusive, novas formas dialéticas de lutas agrário-urbanas, reconfigurando a contradição campo-cidade e sua compartimentalização esquemática.

A fantasmagoria do título jurídico permite apresentar o domínio sobre uma parcela do globo terrestre e representar um poder político e econômico, a segunda dimensão da propriedade aqui ressaltada. Análogo ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, a terra, o espaço e, portanto, a urbanização como processo, apresentam-se como equivalentes, de um modo específico a ser decifrado. Parte deste fetichismo ganha corpo por meio da arbitrariedade (a mesma que confere preço a algo que não tem valor), mas de uma arbitrariedade que se funda na relação de poder e de violência proprietária.

A sociedade capitalista não pode deixar de consumir e produzir, por isso um processo de produção tem de percorrer, continuamente, sempre de novo as mesmas fases. Assim, em sua conexão contínua e fluxo constante de renovação, todo processo de produção social é, virtual e simultaneamente, processo de reprodução. A expropriação como par dialético da propriedade privada capitalista, portanto, não é apenas um momento devastador localizado no passado. Na origem. Articulado à exploração da força de trabalho, numa forma jurídica contratual de pagamento de salário e extração da mais valia do trabalhador, a expropriação se realiza na reprodução das relações de produção, no tempo do não-trabalho, na reprodução da força de trabalho, no cotidiano. Associa, portanto, a exploração da força de trabalho e a formas de expropriação do trabalhador, do cidadão, que são mediados e entramados pela propriedade privada.

A acumulação originária é um momento constitutivo do capital, mediação concreta de realização do título e da forma jurídica da fantasmagoria proprietária e uma tendência inscrita no processo de valorização do valor fundado na permanente e ampliada subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto (HARVEY, 2005HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.; GILLY E ROUX, 2009GILLY, A.; ROUX, R. Capitales, tecnologías y mundos de la vida. El despojo de los cuatro elementos. Herramienta, Buenos Aires, n. 40, 2009. Disponível em: <http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-40/capitales-tecnologias-ymundos- de-la-vida-el-despojo-de-los-cuatro-elemento>. Acesso em: 20 jan. 2020.
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). O processo de acumulação originária se recria incontáveis vezes. A acumulação por espoliação (ou despossessão) nos termos de Harvey (2005HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.) é reinterpretada de modo a enfatizar a reprodução, no interior do sistema especificamente capitalista, das práticas violentas que caracterizavam sua pré-história externa (ARANTES, 2007ARANTES, P. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.). Lefebvre reitera, e é fundamental ressaltar, que um dos motivos da sobrevivência do capitalismo às crises é a produção do espaço, daí o espaço se reproduzir como “o” campo cego da modernidade.

A grilagem, o roubo, a depredação, a conversão de várias formas de direito de propriedade (comum, coletiva, camponesa e estatal) em direitos exclusivos baseados na propriedade privada, a sujeição da terra (e da renda da terra), a pilhagem e a dominação privada de riquezas comunais, atravessam a história do capital. Remonta-se a invasão da América e do cercamento das terras extra-capitalistas na Grã-Bretanha dos séculos XVI ao XVIII passando pelo saque colonial e imperialista em África, América Latina e Ásia, pelo militarismo e pelos mecanismos tributários do sistema financeiro internacional analisado por Rosa Luxemburgo no início do século XX, às contínuas expropriações camponesas e indígenas durante todo o processo, até as figurações das privatizações do final do século XX e XXI (LUXEMBURG, 1985LUXEMBURG, R. A acumulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, 1985.; GILLY E ROUX, 2009GILLY, A.; ROUX, R. Capitales, tecnologías y mundos de la vida. El despojo de los cuatro elementos. Herramienta, Buenos Aires, n. 40, 2009. Disponível em: <http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-40/capitales-tecnologias-ymundos- de-la-vida-el-despojo-de-los-cuatro-elemento>. Acesso em: 20 jan. 2020.
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; PRIETO, 2011PRIETO, G. A sede do capital: o abastecimento de água em favelas da periferia da cidade do Rio de Janeiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.).

A expulsão de camponeses, indígenas e dos pobres urbanos de seus territórios, a declaração afirmativa da existência de um título jurídico e o poder de polícia e da política, definem o nascimento da “propriedade original” ou “primitiva”, expropriada, grilada, constituída como um “mito fundador” da moderna (e violenta) propriedade da terra. Neste movimento de integração-desintegração do espaço, da urbanização, a totalidade do globo terrestre pode ser virtualmente incorporada. Passos que a análise da experiência da urbanização diferencial vai iluminando.

Na tendência histórica da acumulação originária há um significado estrutural para o capital: a resolução de suas necessidades vitais de produção, o que é particularmente fundamental no momento de mundialização no qual seu tempo de reposição é cada vez mais avassalador e crítico. Isto é, a existência de uma reserva de força de trabalho livre, obrigada a vender seu dispêndio de trabalho nas cidades para reprodução da vida e a abertura de novas terras e territórios para a valorização do valor. Como condição complementar que possibilita essa acumulação (sempre em crise), há a violência propriamente estatal com a manutenção constitucional e jurídica da barbárie capitalista nas expropriações, num processo de acumulação no qual a destruição de relações comunitárias de vida substancia a inserção precária dos produtores autônomos nos meandros das relações salariais do mercado capitalista.

As formas contemporâneas da expropriação adquirem sua expressão abstratoconcreta nas ondas de privatização de bens, equipamentos, infraestruturas e serviços públicos que têm atingido o mundo nos últimos cinquenta anos: terras, água, ar, meios de comunicação e transporte, telecomunicações, bancos e serviços financeiros, sistemas de seguridade social (educação, saúde, moradia), saneamento (abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de resíduos sólidos e drenagem pluvial). Modos de viver, saberes e subjetividade. Tudo pode ser privatizado na cidade transformada em grande negócio capitalista.

Ressalta-se, assim, que as expropriações primárias (da terra) e secundárias (de direito das águas, da vida biológica e humana através das patentes, etc.) se aprofundaram em velocidade inédita nas últimas décadas, em proporções diversas segundo os países (FONTES, 2009FONTES, V. Imperialismo e crise. In: SAMPAIO JR., P. (org.). Capitalismo em crise: a natureza e dinâmica da crise mundial. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2009.), mas atingindo a todos, fundamentando um desenvolvimento geográfico desigual e combinado (SMITH, 1988). Essas expropriações não são um fenômeno meramente econômico, ainda que sejam impulsionadas pela expansão econômica do capital. Constituem a base da vida social e de uma sociabilidade altamente contraditória, pois dependente (e necessitada) da extensão e intensificação espacial para sua sobrevivência e, ao mesmo tempo, prova gritante de que essa expansão capitalista recompõe sem cessar a degradação que se imaginava superar (FONTES, 2009). É o que Mészàros (2002) chama de mecanismos de administração das crises, o qual realiza-se por intermédio da linha de menor resistência do capital.

Marx, no movimento de sua obra, interpreta a acumulação capitalista através das suas contradições sociais, ao contrário da concepção clássica liberal, baseada restritamente nas limitações naturais. A continuidade do modo de produção capitalista, orientada prioritariamente pelo sobre-lucro (maximização dos lucros), conduz tendencialmente a uma crescente exploração, alienação e expropriação da força de trabalho, por um lado, e por outro, à deterioração da base de produção econômica, da fonte da riqueza, ou seja, da natureza. Novamente, daí decorre a centralidade da propriedade privada e do sobre-lucro realizado a partir da produção do espaço.

O espaço, separado do processo de humanização do homem, torna-se não apenas meio de vida, mas meio de produção e reprodução capitalista, tendo em vista sua transformação em mercadoria e propriedade privada. O espaço é central nos circuitos de valorização do valor e na renda da terra quando alterado seu caráter de uma relação de intercâmbio homem-natureza para o de uma relação de troca mercantil, numa orientação que descola a relação metabólica do processo de humanização do homem para ligá-la ao processo de produção de mercadorias. Trocando em miúdos, a sobrevivência do capitalismo está baseada na produção de uma espacialidade cada vez mais abrangente, instrumental, e também socialmente mistificada, escondida da perspectiva crítica sob véus espessos de ilusão, ideologia da transparência e opacidade do espaço e da fantasmagoria proprietária. Essa força que ergue e destrói coisas belas - e desiguais - produz a propriedade privada capitalista e interdita o virtual direito à cidade.

Elementos da interdição ao direito à cidade

A problemática da violência do processo de urbanização capitalista e a interdição ao direito à cidade - este, aproximado como projeto utópico e não como um programa tecnocrático - são aqui novamente objetos de desvendamento no processo que envolve a teoria e a prática. Tal processo busca estabelecer uma síntese dialética - nos fundamentos da totalidade aberta - e não na autonomização desses termos. Com isso, o conhecimento que se pretende produzir acerca dos fundamentos do urbano objetiva a busca pela perspectiva crítica, e não pelo enfoque nos marcos da fantasmagoria proprietária, nos limites do crescimento, no desenvolvimento urbano e na ideologia do progresso. Frente a isso, o caminho é a análise das situações expressas na segregação sócioespacial, em direção ao desvendamento das contradições que a sustentam: a centralização da propriedade privada da riqueza, negando a apropriação; a colagem entre os setores econômicos e o Estado contra o social; as políticas públicas como expressão da sociedade de classe.

A urbanização capitalista é compreendida como um processo de concentração violenta de homens, de produtos e de coisas, capaz de articular os sistemas hierarquizados das cidades, através de fluxos materiais e imateriais, numa convergência que produz a morfologia da metrópole (SEABRA, 2005), da dialética espacial (SANTOS, 2019) e sua reprodução econômica como negócio (PRIETO, 2011PRIETO, G. A sede do capital: o abastecimento de água em favelas da periferia da cidade do Rio de Janeiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.). Tal processo de urbanização, definido por Damiani (2003DAMIANI, A. L. O urbano no mundo da mercadoria. In. CARLOS, A. F. A. e LEMOS, A. I.G. (orgs.). Dilemas urbanos: novas abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2003.; 2009) como crítico, cujo fundamento subjetivo negado é a massa proletária das periferias metropolitanas (imersos na uberização, na viração, rappização e outros substantivos sinônimos da precarização do trabalho), está sujeita aos avanços do capital do setor imobiliário e de outras formas, financeirizadas, sob incentivo estatista.

Nas imensas periferias, as dos centros históricos e expandidos das cidades, ou as do seu entorno, cada vez mais amplo e distanciado, metropolitano, prevalece a baixa composição orgânica do espaço, que aparece como ausência de infraestrutura urbana (DAMIANI, 2009DAMIANI, A. L. A urbanização crítica na metrópole de São Paulo a partir de fundamentos da Geografia Urbana. Revista da ANPEGE, v. 5, p. 51 - 70, 2009.). Inscreve-se o movimento da urbanização crítica: o distanciamento dos espaços periféricos e a construção de novas centralidades econômicas metropolitanas, em um fenômeno em curso aparentemente paradoxal; ao lado de crises recorrentes do capital, assiste-se a uma das maiores expansões mundiais das relações sociais capitalistas e da segregação sócioespacial, convertendo a maioria da população do planeta em força de trabalho periferizada, disponível para o mercado e dele dependente. O processo é coetâneo: produção do espaço, segregação, crise social e expansão do capital.

Mészáros (2002; 2009) enfatizou o caráter de uma crise estrutural, demonstração da impotência atual do capital de acomodar as forças sociais que desperta e de frear a destruição social que a expansão das relações capitalistas conduz. O autor emprega o termo crise estrutural para contrapor-se à noção clássica das crises conjunturais do capital. Isso pode induzir a confundi-las, pois tais crises recorrentes integram a própria estrutura capitalista. A crise estrutural é a forma-conteúdo da reprodução ampliada do capital. Contudo, Mészáros procura superar o sentido acoplado dos dois termos: crise estrutural não remete a um momento ou um ciclo conjuntural, nem característica estrutural da produção periódica de crises pelo capital, mas sim assinala uma virada qualitativa na qual a expansão capitalista passa a configurar-se como crescentemente destrutiva, aniquilando sua potencialidade - se é que algum dia existiu - de “destruição criativa”, tornada “destruição destrutiva”, conforme Fontes (2009FONTES, V. Imperialismo e crise. In: SAMPAIO JR., P. (org.). Capitalismo em crise: a natureza e dinâmica da crise mundial. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2009.) percebeu ao analisar a obra do autor.

Assumindo essa interpretação do trabalho de Mészáros, estamos diante de uma nova qualidade do capital contemporâneo, violentamente devastador. Ou em outros termos, a violência não está mais escondida, mistificada ou borrada como excrescência do processo de modernização, desenvolvimento e produção do espaço. Essa abordagem permite ir além das crises clássicas (conjunturais) do capital e do capitalismo, apontando para uma nova situação permanentemente crítica do conjunto da vida social (MÉSZÁROS, 2002; 2009; FONTES, 2009FONTES, V. Imperialismo e crise. In: SAMPAIO JR., P. (org.). Capitalismo em crise: a natureza e dinâmica da crise mundial. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2009.). Constata-se que o tempo de reposição do capital é (im)possível, e que há uma aceleração exponencial cada vez mais intensa da reprodução do capital. A crise estrutural não significa redução ou enfraquecimento do capital, mas resulta da expansão do metabolismo social sob o capital. O cerne dessa reflexão aponta para o fato de que a generalização da reprodução do capital lança a humanidade em permanente espoliação/despossessão/desamparo: risco de aniquilação do homem, destruição ambiental, crescente perda do valor de uso da produção material, financeirização da vida cotidiana, crise do trabalho, subordinação de massas crescentes de trabalhadores ao capital, mal-estar e sofrimento, resultante de múltiplas expropriações que lançam regularmente enormes setores da população para uma situação crítica.

O solo urbano de uma economia extremamente financeirizada revela tal situação, envolvendo inclusive, se não especialmente, negócios urbanos. É a urbanização como negócio e o urbano como mercadoria. Realizados, inclusive, nas periferias urbanas formadas por loteamentos clandestinos, favelas, precários conjuntos habitacionais, loteamentos populares autoconstruídos, estruturalmente deficitários quanto às condições urbanas, que só assim se reproduzem (DAMIANI, 2003DAMIANI, A. L. O urbano no mundo da mercadoria. In. CARLOS, A. F. A. e LEMOS, A. I.G. (orgs.). Dilemas urbanos: novas abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2003.). Em uma estrutura que passou da urbanização como resistência contra os processos de remoção até a realização da urbanização como negócio e forma-conteúdo de expulsão do proletariado urbano e de sua inserção precária no urbano do mundo da mercadoria, vêse que a integração precária e perversa não é mais descartada como forma de reprodução (crítica) da vida dos trabalhadores, ela é transformada em política pública pelo Estado tecnocrático. Assim, as fronteiras de acumulação do capital, a partir da produção do espaço, da urbanização, se estendem para territórios antes percebidos à margem desta acumulação e para serviços, formas de viver, condições de reprodução que se reduzem à forma da mercadoria. Uma expansão da fronteira infernal de acumulação (PETRELLA, 2017PETRELLA, G. A fronteira infernal da renovação urbana em São Paulo: região da Luz no século XXI. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).

É certamente nas grandes cidades da periferia do capitalismo que a crise - a crise estrutural como crise urbana - adquire sua face mais perversa, submetendo gigantescas massas de pobres e miseráveis à crise do trabalho, transmutação do habitar à habitat e a naturalização do homem (PRIETO, 2011PRIETO, G. A sede do capital: o abastecimento de água em favelas da periferia da cidade do Rio de Janeiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.). Este parece ser o elemento central da crise urbana atual: o futuro, como possível-impossível, é absolutamente negado para uma parcela cada vez maior de moradores pobres da cidade (MENEGAT, 2003MENEGAT, E. Limites do Ocidente: um roteiro para estudo da crise de formas e conteúdos urbanos. 2003. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.). A violência da vida cotidiana é expressão concreta desse processo. A análise dos conflitos em torno do domínio das frações do território, expresso na militarização da questão urbana e no domínio das milícias, tornou-se chave para a explicação da atual configuração da realidade social.

Para coibir tais ações, compreendemos como Lefebvre (1976LEFEBVRE, H. Espacio y política: el derecho a la ciudad II. Barcelona: Península, 1976.) que se produz um espaço instrumental que permite tanto impor uma certa coesão pela violência, quanto dissimular as contradições da realidade sob uma aparente coerência racional e objetiva. Aqui os termos coesão e coerência significam regulação buscada, pretendida, projetada, o que não quer dizer obtida. Leituras da contradição urbana sob a espessa camada de ilusão da opacidade e de transparência que refletem como espelho convexo, deturpam a realidade e reduzem o possível-impossível ao planejamento e ao direito à cidade como acesso às políticas urbanas.

Assim, é preciso considerar que o conceito de espaço não é um a priori, pois seus conteúdos devem ser construídos pela análise. O espaço não se reduz ao construído. Portanto, faz-se necessário ressaltar os conteúdos e contradições do processo de produção do espaço, que sob o capitalismo estão submetidos à lógica do processo de valorização (visto que a cidade é uma mercadoria), colocando em confronto os interesses de classes diferenciadas na sua produção, o que (re)produz conflitos. Em outro plano de análise, localizam-se os conflitos que precisam ser desvendados nesta lógica, a partir de sua especificidade, e em um terceiro plano o projeto que surge do processo de alienação constitutivo da produção do espaço capitalista.

Neste sentido, a compreensão dos processos de produção do espaço coloca a centralidade da discussão sobre o “direito à cidade”, que localiza-se em Lefebvre, no plano utópico que questiona o Estado, as relações de classe, a propriedade privada e a política. Em sua obra, Lefebvre também não oculta o papel ideológico do urbanismo, apesar deste reivindicar para si a “ciência do urbano”. O autor avançou na direção de elevar o conceito de produção do espaço de sua dimensão objetal àquela de produto histórico e social, contribuindo assim para a construção utópica do direito à cidade. Reduzir a produção do espaço ao ambiente construído e/ou aos assentamentos urbanos impede e interdita a compreensão de seu caráter social, e por isso mesmo, contraditório.

Essa impossibilidade (momentânea?), contudo, não reside na ausência da afirmação de seus possíveis. Ela está no campo da negatividade da fantasmagoria, isto é, na substituição da prática social efetiva por uma representação. A propriedade, seja ela privada ou estatal, ocupa o lugar da produção de relações sociais na sua identidade com a produção do espaço, uma mediação que se insere através de sua instrumentalização político-econômica, ou a redução da “segunda natureza” às formas dominantes e predominantes de reprodução capitalista. Essa mediação recoloca a “dança das cadeiras sobre nossas cabeças” (MARX, 1985MARX, K. O capital - crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Abril Cultural, 1985.) em função do modo de representação da propriedade (GRESPAN, 2019GRESPAN, J. L. S. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019.), que resulta das relações de poder e de violência, combinando opressão, repressão e terror com as formas fictícias e arbitrárias de acumulação capitalista, expropriação e capitalização da renda. Esta fantasmagoria, situada no campo cego, em função da totalização das relações fabris de produção que ofuscam a compreensão da experiência do presente, se expressa no simulacro da urbanidade, nos signos da pretendida sociedade urbana reduzidos às formas construídas. Os fantasmas (que se divertem) apresentam a propriedade em suas múltiplas formas e figurações e em sua generalização como tendência única; forma concreta de realização global da dominação capitalista. Neste sentido, a urbanização, capturada apenas a partir das suas expressões formais, torna-se uma coleção monstruosa de “signos opacos” da interdição ao direito à cidade, sem conflitos e contradições.

Esta combinação entre violência e acumulação do capital - o modo de representação da economia política da propriedade - é experimentada como a intensificação das “tensões contemporâneas”. O mal-estar que emerge da cotidianidade e que precisa ser nomeado, com as palavras que escapam às formulações já consagradas, resíduos teórico-práticos. Esta relação, iluminada pela especificidade espacial, é aqui aproximada como níveis e dimensões de expropriação, isto é, a busca da compreensão da totalidade da reprodução social que se submete aos imperativos da reprodução do capital, notadamente, explicitada em sua presença contemporânea.

Níveis e dimensões de análise das tensões contemporâneas da urbanização: a expropriação em questão

A sugestão de Henri Lefebvre dos níveis e dimensões de análise (1999aLEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999a.) permite dar ênfase a distintos processos de produção e reprodução social no e do espaço, bem como, por outro lado, estabelecer a compreensão da simultaneidade dos processos de produção e reprodução social mais amplos. Estes níveis são caracterizados como imediato, global e total (PEREIRA, 2018PEREIRA, P.C.X. (org.). Imediato, global e total na produção do espaço: a financeirização da cidade de São Paulo no século XXI. São Paulo: FAUUSP, 2018.). É a partir desta sugestão que se busca a aproximação à experiência contemporânea, mediada pela propriedade privada em sua dimensão negativa. Uma manifestação (nesses níveis e dimensões diferentes e relacionados) da violência estrutural da reprodução capitalista: a violência instituída por processos de opressão, repressão e terror, que se realizam como condição de reprodução do capital, cujas formas experimentadas de sofrimento - e privação do urbano - são vividas e narradas de modos distintos e específicos.

Neste sentido, propõe-se níveis e dimensões de análise da expropriação, meio de aproximação da experiência contemporânea da urbanização, entendendo a expropriação como a dimensão negativa daquilo que é próprio - ou daquilo que é mediado pela propriedade. Contudo, estas dimensões próprias-proprietárias não se resumem ao título jurídico de um imóvel ou espaço, mas sim à fantasmagoria de sua representação que medeia a relação entre a produção do espaço e a produção de relações sociais. A expropriação é aproximada ao nível do imediato como predominância da espoliação, do global como despossessão e do total como desamparo.

O imediato dá ênfase à especificidade imobiliária da urbanização. Uma dimensão “próxima” e além da morfologia. Ao se iluminar esta especificidade, busca-se reconhecer e explicitar o “duplo monopólio” (LENIN, s.d.; LEFEBVRE, 1983LEFEBVRE, H. La renta de la tierra. Ciudad Del Mexico, Editorial Tlaivalli: 1983.) que lhe é constituinte: o monopólio de produção e o monopólio de propriedade. Como se sabe, a monopolização de algo permite ao seu detentor um poder sobre ele, seja um objeto tangível, seja um fenômeno intangível. Porém, ambos, imbricados na produção do espaço, condicionam as relações do produzir (de trabalho e de uso de materiais e energias) e do reproduzir o produzido (o consumo, o uso e a comercialização), sua circulação ampliada. No imobiliário, portanto, a propriedade é constituinte do produto, a parte “imóvel que circula”, cuja circulação se realiza antes, pelos meios e materiais de construção que se imobilizam no canteiro de obras e, depois, através do título jurídico de propriedade que faz a representação. Neste imbricamento, custos de produção não são inteiramente investidos como forças produtivas, pois parte deles deve remunerar a propriedade: à priori, como condição de uso do espaço para a produção e, à posteriori, como a expectativa de sua “valorização”, sua reprodução ampliada na forma capitalizada. No caso específico da terra metamorfoseada em propriedade privada capitalista, por exemplo, a dominação privada garante ao proprietário, a partir da monopolização, o abocanhamento de fração da massa de mais valia global. Esta expectativa, que, eventualmente, se realiza no futuro, condiciona as relações de produção no presente.

Este imbricando também se dá na relação entre a “valorização-real”, através da exploração da força de trabalho imediata, e a “valorização-fictícia”, através da capitalização futura que é pressuposta. Esta capitalização decorre da espoliação do cidadão (em complemento à exploração do trabalhador), já que se situa para além das relações imediatas de produção. Ela constitui a renda capitalizada, que privatiza parte da riqueza socialmente constituída. A especificidade imobiliária, portanto, põe em relevo a dimensão espoliativa e fictícia do capital global na urbanização, pois baseia-se na circulação de um título jurídico - de algo que é imóvel - e que pressupõe uma equivalência futura de rendimento financeiro, fazendo da experiência (inautêntica?) do presente um momento de realização e confirmação da expectativa do futuro, explorando e espoliando o trabalhador-cidadão em um movimento que se orienta para a concentração da renda, aproximando-se dos mecanismos de reprodução do capital financeiro, da financeirização da produção e da reprodução capitalista como um todo.

Neste imobiliário-financeiro convivem formas fictícias de reprodução do capital (uma dimensão global iluminada pela dimensão imediata). A partir de uma propriedade que se “desabsolutiza”, isto é, cujo domínio do título jurídico sobre um bem (ação ou espaço) passa a ser equivalente à parcela do investimento financeiro em relação à afirmação da “totalidade-proprietária”. Contudo, essa “desabsolutização” permanece no interior da forma-propriedade, intensificando-a e estendendo-a para outras dimensões da reprodução social. A “ficção” da propriedade consiste em seu título jurídico descolarse e deslocar-se do bem que representa, ganhando “vida” e “movimento” próprios, aumentando sua capacidade de circulação (e, consequentemente, de fetichização). Porém, esse domínio se fragmenta em função do montante financeiro que constitui a “cota-parte” ou a “fração-ideal” condominial (domínio comum). Fragmentos que são organizados sob uma estrutura hierárquica de relações que se instituem a partir da totalização da propriedade. Evidentemente, esta “totalização” exclui a parte nãoproprietária da relação, e, também, desloca, ao menos na forma de representação econômica, o centro da remuneração: da produção e exploração da força de trabalho imediatas para a renda capitalizada, que decorre do título jurídico. Neste sentido, o imediato se apresenta no global e o global representa o imediato, em alusão ao processo de equivalência exposto em Grespan (2019GRESPAN, J. L. S. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019.).

No particular da urbanização, ofuscar a dimensão imobiliária, na metrópole ou além dela, é relegar ao campo cego a forma espoliativa e fictícia da reprodução do capital na produção do espaço. Movimento análogo ao apagamento da renda absoluta, o rendimento da pura propriedade por ela mesma, em benefício das rendas diferenciais, o rendimento da propriedade em relação às vantagens de produção, como elemento dominante da compreensão dos fenômenos contemporâneos de urbanização (o “pois, francamente, não acho que funcione” de HARVEY, 2011HARVEY, D. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 72). A forma pura da propriedade se reproduz, permitindo a acumulação capitalista sem, necessariamente, ter imediatamente “as lambidas do trabalho vivo”. Neste sentido, analisar formas sociais de produção do espaço como a “forma-condomínio” (TONE, 2017) e a de sua virtual projeção para os domínios da “cidade” e do “território”, a “condominialização da cidade” (PETRELLA, 2017PETRELLA, G. A fronteira infernal da renovação urbana em São Paulo: região da Luz no século XXI. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), constituem movimentos que põem luz à composições sócioespaciais de generalização da propriedade em sua forma “desabsolutizada” explícitas na contemporaneidade.

No particular da “condominialização”, são projetados também conflitos, contradições e estruturas hierárquicas, nascidos no interior de lotes e glebas “privados”, para espaços “públicos”, diversificando e estendendo a negatividade da propriedade. Evidentemente, “público” e “privado” são aqui anotados entre aspas, pois denotam a fragilidade da fronteira que os separa atualmente sob dominância da financeirização e do neoliberalismo. Esta construção da “crítica à economia-política” a partir do imediato, de um espaço-tempo determinados, indica que parte significativa da reprodução ampliada do capital é assentada sobre a produção do espaço e esta, por sua vez, se realiza como uma “plataforma imobiliária de valorização” (PAULANI, 2008PAULANI, L. Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. São Paulo: Boitempo, 2008.; HARVEY, 2013HARVEY, D. Para entender O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.) e a produção de um território economizado reduzido à logística (PRIETO; BARROS, 2018PRIETO, G.; BARROS, J. Há terra para financiar nesse verão: a reposição da expropriação e da violência nos grandes projetos de desenvolvimento econômico no Brasil e uma crítica ao debate sobre a financeirização. In: SHIMBO, L.; RUFFINO, M. B. (Org). Anais do Seminário Internacional Financeirização e Estudos Urbanos: Olhares Cruzados Europa e América Latina. São Carlos: IAU - USP, 2018. v. 1. p. 1-18.) a partir da centralização da propriedade, que se apropria de parte do excedente de valor oriundo da produção.

Estes processos, no interior da metrópole, podem ser identificados como encarecimento das condições de vida: a espoliação imobiliária, ou o alto preço pago para uso de um produto imobiliário, e a espoliação financeira, a dilapidação da reprodução da vida em função do endividamento, dos juros, das taxas e da mercantilização de serviços. Eles buscam mobilizar propriedades imobiliário-financeiras dispersas, a partir de um contexto onde a relação “siamesa” entre Estado e Mercado, duas cabeças de um mesmo corpo capitalista, pautam a “(re)produção” em função da expectativa de valorização-capitalização da “propriedade” centralizada sob forma da “desabsolutização”. Isso constitui a forma, a estrutura e a função, das renovações urbanas (PETRELLA, 2017PETRELLA, G. A fronteira infernal da renovação urbana em São Paulo: região da Luz no século XXI. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), tais como as que vêm ocorrendo atualmente. As renovações são organizadas em função das condições de captura do excedente de renda, o rent gap, e a consequente substituição da população moradora e “usadora” - como nas palavras de Lefebvre, para se diferenciar do “usuário-consumidor” - em função da valorização imobiliária, a gentrification (SMITH, 1996). Processos que se diferenciam e se generalizam na metrópole, para além da falsa-dualidade entre “centro” e “periferia”, uma visão linear e “fabril” da urbanização (PETRELLA, 2018): se apropriam e intervêm, de modo também diferenciado, através de “vocações e oportunidades”; enfrentam embates e resistências (sociais, ambientais, legais), também diferenciadas, de cada lugar.

Já nos territórios exteriores à metrópole, notadamente naqueles onde não se figura a morfologia típica da urbanização, a propriedade é mobilizada para garantir insumos produtivos, para os próprios locais ou como matéria-prima para outros. Aqui, a renda imobiliária cede lugar para aquelas que decorrem de outros ramos de produção, tais como a de extração e a fundiária. Neste momento, cabe destacar que esta produção imediata é destinada à produção de elementos que se “exteriorizam” dos limites das respectivas propriedades, as quais, por sua vez, condicionam o uso produtivo (e também especulativo) em função de sua monopolização. Reproduz-se a aliança de classes terracapital fundamentando um projeto político de cunho eminentemente oligárquico dissimulado de modernidade, de desenvolvimento do capitalismo assentado na dominação fundiária e no abocanhamento da massa de mais valia global a partir da renda fundiária (PRIETO, 2019PRIETO, G. Fincando as raízes do rentismo à brasileira: os ruralistas na Assembleia Nacional Constituinte. Revista de Geografia. Recife, v. 36, p. 40-74, 2019.).

Cabe destacar, também, por instante, que se acentua a interdependência entre territórios muito distintos e distantes, mediados pelas relações de produção e de reprodução: uma “urbanização planetária” (BRENNER, 2014BRENNER, N. Theses on urbanization. In: BRENNER, N. (org.). Implosions/Explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlim: Jovis, 2014, p. 181-202.) que redefine a contradição “campo” e “cidade”, a produção industrial, a urbanização, a renda imobiliária, fundiária e extrativista, mediados pelo duplo monopólio.

Essa “urbanização planetária” poderia ser também identificada como um nível global da produção e reprodução social do espaço. Neste momento, dá-se ênfase então às formas que assume a acumulação capitalista mundial, que combina processos de produção e de circulação de capital específicos e que se apropria de parcelas do mais valor produzido socialmente, em diversas de suas esferas. Aqui, a acumulação por espoliação ganha novos contornos, como o predominante da reprodução capitalista, que submete as diversas formas de viver e sua relação diferencial com seus respectivos territórios (a dimensão sócioespacial) à tendência de homogeneização empreendida pela mercadoria: as relações imediatas passam a ser representadas a partir da circulação de capitais e de mercadorias, necessariamente em um nível global, equalizando lucro industrial, lucro comercial, juros, rendas (GRESPAN, 2019GRESPAN, J. L. S. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019.).

Esta urbanização poderia ser entendida como a provisão de “condições gerais” de reprodução capitalista, isto é, apesar de transformar territórios imediatamente, ela explicita a “função global” desta reprodução, uma “ordem distante”. Ela se estabelece como provisão de conexões sistêmicas, de infraestruturas de mobilidade, de pessoas, mercadorias, capitais, informações, cujos “fluxos espoliativos” são produzidos para dar corpo a esta circulação. Incidem sobre especificidades espaciais, transformando-as, “reconvertendo-as” e as expropriando. Neste sentido, vêm se somar às formas de espoliação, orientadas pela e para a acumulação capitalista, os modos de despossessão da vida, ou a expropriação de formas de organizações comunitárias, historicamente determinadas, no imbricamento entre produção do espaço e produção de relações sociais. Uma despossessão que se realiza para além das coisas objetivas e tangíveis, próprias a conjuntos sociais; mas também à “substâncias”, a valores intangíveis como formas de organização, de experiências de reconhecimento, de práticas sócioespaciais que emergem da experiência histórica, da narrativa do passado, do presente e da concepção do futuro.

Deste modo, o nível global explicita a reprodução do capital a partir das formas de expropriação, como risco objetivo à reprodução da vida. A dimensão fictícia de sua reprodução, que estende a margem de reprodução de modo arbitrário e nãoverdadeiro, encontra um lastro “negativo” na expropriação da vida, seja na intensificação da exploração da força de trabalho e da espoliação do cidadão, seja na intensificação da extração irreversível dos elementos da natureza, a base produtivaespacial das rendas fundiária e extrativista. Como até o desastre se figura como fronteira infernal de reprodução capitalista: mercado de carbono, water grabbing, securitização, destruição criativa (CHESNAIS; SERFATI, 2003CHESNAIS, F.; SERFATI, C. “Ecologia”‖ e condições físicas de reprodução social: alguns fios condutores marxistas. São Paulo. Crítica Marxista, n. 16, p. 39-75, 2003.; PRIETO, 2011PRIETO, G. A sede do capital: o abastecimento de água em favelas da periferia da cidade do Rio de Janeiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.), apenas a ameaça efetiva à vida pode, eventualmente, fazer emergir uma derrocada do capital, que se reproduz de modo fictício, dispensando, aparentemente, o trabalho, a produção - um paradoxo, pois sem vida nem “lambidas de trabalho vivo” não há produção de mais valor a ser distribuído nem centralizado.

O capital tem uma potência a se expandir e a dominar outras formas de sociabilidade, mas também uma determinação negativa, auto-destrutiva, que impede a dominação completa e definitiva. É nas fissuras que ele cria para si mesmo que a transformação pode ocorrer. A reprodução do capital porta então, a negatividade crítica da resistência, o capitalismo avança e se expande contendo no seu movimento contraditório, expansionista e desmedido, as lutas anticapitalistas que nascem de sua negação e portam a possível revolução e superação do modo de produção. A dimensão materialista histórica dessa relação é a luta de classes.

Neste sentido, ilumina-se a necessidade de expansão das formas de luta social contra o capital: essa despossessão global que age de modo diferenciado sobre corpos e ambientes (territórios, localizações, lugares). Uma interseccionalidade que ilumina a necessidade de reflexão sobre a noção clássica de classe social. Constituída historicamente a partir da experiência fabril, operária, como “classe trabalhadora” genérica (europeia, masculina, branca), a “classe social” é afetada pela diversidade da experiência de sofrimento, nascida nas especificidades de gênero, de raça, de formas de amor e de concepções de vida. Portanto, germina uma noção de classe social que emerge da experiência urbana, espacial (e não exclusivamente fabril), cujas formas diferenciadas de ser - viver, perceber, conceber como nos ensina Lefebvre (1974LEFEBVRE, H. La production de l'espace. Paris: Éditions Anthropos, 1974.) - orientam a uma compreensão de uma “unidade-diferenciada”, teórica e prática, de classe sócioespacial, identidade entre produção do espaço e produção de relações sociais: o “hábito de habitar”, o “comum”, a “autogestão”, o “autogoverno”, o “direito à cidade”. Em suma, a emergência da sociedade urbana, da revolução urbana. Algo de aproximação com o total, intuído e pensado a partir das formas (pré)dominantes de reprodução social.

A totalidade, contudo, só pode ser intuída. Não pode ser afirmada, a não ser como hipostasia. De todo modo, é uma virtual totalidade crítica, teórico-prática, que emerge da experiência concreta do presente, de suas múltiplas formas, concebidas, reconhecidas e narradas. Um enfrentamento indivíduo-coletivo constituinte de um “sujeito histórico” “diverso e unitário”, do vir-a-ser que nasce dos conflitos urbanos (espaço) e cotidianos (tempo), contra as formas de expropriação das condições e da efetividade da vida, já realizadas ou concebidas. A totalidade, da experiência contemporânea de expansão fictícia e infernal do capitalismo, põe à prova estruturas e instituições sociais, suspendendo-as, desmanchando em ar sua solidez histórica. Uma “passagem” dos fatos objetivos às interpretações subjetivas e ampliação das necessidades concretas da superação radical da sociedade capitalista.

A negatividade da dimensão total relaciona às formas dominantes e predominantes de reprodução social às dimensões da subjetividade, isto é, aos meios subjetivos de como os agentes oprimidos pelo processo de expansão das relações capitalistas de produção se entregam voluntariamente ao opressor. Uma espécie de “servidão voluntária” revisitada sob a racionalidade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2009DARDOT, P.; LAVAL, C. La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale. Paris: La Découverte, 2009.), que faz crer que somos livres nas escolhas e que os sucessos e fracassos são exclusivamente resultantes desta ação individual, que se arrisca ou se acomoda. Ao nível da totalidade, pensar a dimensão do desamparo, como algo que, contraditoriamente, se situa na experiência do salto no abismo, a perda total do “chão das referências”, e a vertigem da liberdade, que a ausência desse chão permite se abrir.

Também se faz necessário indagar sobre a noção de identidade, pois se estamos nos aproximando de um germe de classe sócioespacial, que virtualmente emerge contra a reprodução capitalista “neoliberal e financeirizada”, e que decorre da experiência de luta espacial e cotidiana, a experiência de expropriação em sua dimensão objetiva e subjetiva, como se constituiria o reconhecimento de si desta classe? Talvez, ao invés da afirmação de princípios identitários, que excluem o outro não-idêntico, o foco na “unidade diferenciada” da experiência do sofrimento, os níveis e dimensões da expropriação. Neste sentido, a vertigem de liberdade “promovida” pelo desamparo, poderia fazer com que a diferenciação de experiências de sofrimento, seus corpos e ambientes, se orientassem a uma “política indiferente à diferença” (SAFATLE, 2015). A superação da negação determinada da identidade parcial. A classe “socioespacial”, que emerge da experiência diferenciada do espaço e da vida, da virtual identidade entre produção do espaço e produção de relações sociais (portanto, concepção de classe com relação ao lugar da produção, mas uma de produção do espaço - e não fabril), que se opõe, resiste, luta e projeta (concebe o vir-a-ser) contra a marcha do capital, da mercantilização do corpo, da natureza, da cidade e da vida. Contra a propriedade - em suas diversas formas - como mediação, intermediação.

Considerações finais: horizontes utópicos?

Marx, ainda no século XIX, reiterava que a propriedade fundiária por parte de uns, o que implica a não-propriedade por parte de outros, é o fundamento do modo capitalista de produção. O capital não pode existir sem a propriedade de terras, visto que faltaria um elemento fundamental para a produção do capital. Os sentidos coletivos (comunais e comunitários) e os processos de humanização do homem em sua relação com o espaço se encontram cada vez mais subsumidos à propriedade privada, efetivação da concepção liberal burguesa do individualismo proprietário e do império da vontade individual.

A urbanização, expressão da violência constitutiva que o capitalismo engendra, baseia-se no fundamento da realização dos negócios urbanos e na expansão do mundo da mercadoria via propriedade privada capitalista, pois a “viabilidade” dos projetos urbanos é um eufemismo para saber em quais fragmentos do espaço produzido se possibilita o sobre-lucro. O Estado tecnocrático atua na mitigação, na pacificação e na postergação dos problemas urbanos na tentativa de gerir e apartar os conflitos. Porém, o conflito sempre aparece, pois não é possível sua resolução nas condições postas pelo modo de produção capitalista.

A reprodução do capital cada vez mais acelerada, consegue, todavia, cada vez menos a expansão exponencial de seus sobrelucros e obter as mesmas taxas de mais valia e os mesmos índices de consumo de antanho. A reprodução necessita então de níveis ainda maiores de expropriação/exploração. Os pobres da urbanização crítica, ao invés de descartáveis (pois na aparência do processo é assim que se apresentam na política de morte seletiva, racializada, classista e de gênero) são partes indispensáveis da reprodução das relações de produção, visto que são consumidores precários de mercadorias e estão cada vez mais inseridos no processo geral de exploração desmedida.

Os elementos da reprodução da vida estão sendo cada vez mais mercantilizados, os usos coletivos cada vez mais criminalizados e as populações pauperizadas ao menos servem como exército uberizado de reserva ou como desempregados consumidores da viração, que cada vez mais não conseguem realizar-se na troca, no “mercado”. Porém, ainda há a possibilidade de endividamento da massa de trabalhadores precários através dos inúmeros tentáculos da financeirização.

Todavia, certamente é na periferia do capitalismo, e nas periferias das periferias, em que se explicitam as contradições. São nesses fragmentos que o capitalismo e suas telescopagens2 2 Segundo ponderações de Damiani (2009) o termo foi configurado por Henri Lefebvre. A télescopage está no plano da produção de uma ilusão, de uma confusão, de um misto de realidade e representação, potencializado por transferência e redefinição de conteúdos, terrivelmente ativas. apontam os limites da acumulação e da reprodução desmedida e violenta. É nas periferias que o discurso da igualdade mostra mais escancaradamente a igualação dos desiguais, demonstração de que a igualdade é jurídica e formal e atende aos interesses dos proprietários fundiários e de capital. É nas periferias que a liberdade mostra-se como a expropriação dos meios de produção e revela-se como liberdade do trabalhador para vender sua força de trabalho de modo cada vez mais precário. E é nas periferias que a fraternidade se coloca pela imposição do empreendendorismo e/ou desenvolvimento local de caráter ongueiro, que apazigua as lutas sociais e que coloca todos como “atores sociais” em “redes sociais”, tanto os opressores quanto os oprimidos.

Essas tessituras, todavia, tem reentrâncias, e não são de modo algum uma lei geral, uma tendência de mão única. Dialeticamente, é nesses lugares que a vida cotidiana e a resistência acontecem, que as lutas se expressam de modo possívelimpossível, portadoras de caráter revolucionário.

O direito à cidade é uma pauta revolucionária, utopia real em movimento. Portanto, é uma ação revolucionária do nível do político que possui a virtualidade de transformar radicalmente a sociedade, a economia e o espaço, não sendo assim uma pauta reduzida ao reformismo, pois envolve uma transformação completa da sociedade.

Escapar das amarras que interditam o direito à cidade impõe uma crítica radical a fantasmagoria da lógica da reificação da propriedade privada como pensamento e tática únicos, saída espacial da violenta produção do espaço como negócio urbano. O modo capitalista de pensar do direito à cidade apenas como urgência confina a utopia à reprodução dos marcos da propriedade privada capitalista e reduz o possível-impossível aos programas de gestão da pobreza e política urbana. A emergência real da privação do urbano coloca a necessidade de retomar o duplo caráter do direito à cidade como urgência e como utopia (CARLOS, 2019CARLOS, A. F. Henri Lefebvre: a problemática urbana em sua determinação espacial. Geousp - Espaço e Tempo, São Paulo, v. 23, n. 3, p. 458-477, dez. 2019). A utopia do direito à cidade se realiza no próprio movimento de constituição de uma outra sociedade no qual a destruição da propriedade privada capitalista, a negação da dimensão jurídica do direito e o direito à diferença sejam fundamentos do devir diante da espoliação, despossessão e desamparo.

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  • 1
    “A presença humana no universo” é uma expressão do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que assinala a transformação do espaço como a necessidade e o desejo de construir as garantias da reprodução de nossa espécie, do possível do bem viver, aos moldes da segunda natureza. Expressão que se faz o presente desvio.
  • 2
    Segundo ponderações de Damiani (2009) o termo foi configurado por Henri Lefebvre. A télescopage está no plano da produção de uma ilusão, de uma confusão, de um misto de realidade e representação, potencializado por transferência e redefinição de conteúdos, terrivelmente ativas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2020
  • Aceito
    11 Fev 2020
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