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Legalidade discriminatória e direito à alimentação sagrada

Discriminatory legality and the right to sacred food

Resumo

O presente artigo aborda o histórico das limitações à livre expressão religiosa experimentados pelos povos e comunidades de terreiro a partir das criminalizações de suas práticas no contexto brasileiro. Visa-se compreender os meios jurídicos utilizados contemporaneamente para restringir a livre expressão religiosa desses grupos, os quais são classificados como formas de legalidade discriminatória.

Palavras-chave:
Direito; Liberdade; Religião; Matriz africana; Racismo; Perversão

Abstract

The present article approaches the history of the limitations to the free religious expression experienced by the peoples and communities of terreiro regarding the criminalization of their practices in the Brazilian context. It is intended to understand the juridical means used contemporaneously to restrict the free religious expression of these groups, which are classified as forms of discriminatory legality.

Keywords:
Law; Liberty; Freedom; African tradition; Racism; Perversion

Introdução

As expressões religiosas das tradições de matriz africana1 1 As expressões religiosas das tradições de matriz africana caracterizam-se a partir da conformação religiosa dos pressupostos civilizatórios oriundos dos grupos étnicos africanos que foram trazidos para o Brasil através do tráfico de negros e negras escravizados. Esses pressupostos civilizatórios não necessariamente foram reorganizados no Brasil a partir da religiosidade, existindo expressões culturais de matriz africana. Um exemplo é o maracatu, que assim como as expressões religiosas possui diversas nações, outro exemplo nesse sentido é a capoeira. Sendo assim, falar em tradições de matriz africana implica em um escopo maior que o escopo religioso, o utilizamos o termo “expressões religiosas das tradições de matriz africana” para evidenciar a complexidade das articulações desenvolvidas pelas comunidades negras brasileiras para a resistência e permanência das tradições africanas. no Brasil experimentam um histórico de limitações e criminalizações que estão diretamente conectados com o processo de colonialismo e escravização que integram a formação socioeconômica do Estado brasileiro. Os estudos destinados a compreender as cosmologias, liturgias e gênese das tradições de matriz africana encontram-se quase que na sua totalidade nas áreas das Ciências Humanas, principalmente na Antropologia, Sociologia e História. Contudo, analisar essas tradições a partir de uma perspectiva das Ciências Jurídicas visando apresentar as formas com que essas comunidades2 2 Utilizamos nesse artigo o termo comunidades de terreiro em consonância com o Decreto Nº 6.040 de fevereiro de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. No que pese divergências tanto no campo dos movimentos sociais quanto nas elaborações teóricas desenvolvidas sobre essa temática, acreditamos que para os fins desse artigo seja o termo mais adequado por estar inscrito dentro do sistema jurídico brasileiro e pelo reconhecimento que os sujeitos que vivenciam as religiosidades de matriz africana dão a esta norma, no sentindo de apresentar conceitos relevantes para a manutenção das expressões religiosas de matriz africana. Parte das divergências relativas ao uso do termo “comunidades tradicionais” são organizadas pelo Dr. Hédio Silva Júnior, o qual prestou contribuições à elaboração desse trabalho. Na opinião do Dr. Silva Júnior, obtida em conversa particular com a autora desse artigo, o fato desse decreto ser derivado de uma norma do direito ambiental (Lei 9.985/00) representa uma continuidade da resistência político-jurídico-institucional de reconhecer às expressões religiosas de matriz africana o status legal de religião. Dessa forma, cria-se óbices ao trato jurídico destinado as religiões hegemônicas, como é o caso do catolicismo. É nessa esteira, por exemplo, que se obstaculiza o acesso à imunidade tributária pelos espaços de cultos das expressões religiosas de matriz africana. foram e ainda são criminalizadas e limitadas no exercício de direitos é fundamental para compreender um fenômeno que tem adquirido cada vez mais força no campo jurídico: a judicialização do racismo religioso3 3 Utilizamos o termo racismo religioso em consonância com as contribuições teóricas (GROSFOGUEL,2012; NASCIMENTO, 2017; OLIVEIRA,2017) que apontam para a insuficiência da categoria intolerância religiosa para nomear o cenário de violência, limitação e desconstituição que experienciam as comunidades de terreiro historicamente.

Especialmente após a Constituição de 1988 e de uma série de decisões do STF que reconheceram direitos específicos para negros e negras, torna-se cada vez mais improvável encontrar leis e projetos de lei que se proponham a criminalizar ou discriminar aberta e explicitamente determinados grupos e suas práticas religiosas. Por mais paradoxal que isso possa soar, a maior parte de práticas discriminatórias tenderá a ser levada adiante ao menos sob a aparência de legalidade, ou seja, com fundamento em textos de lei, a princípio, constitucionais. E este não é um fenômeno novo, a despeito de ter sido pouco estudado: regimes autoritários, a começar do nazismo, e práticas autárquicas dos mais diferentes matizes têm se valido, para usar a expressão de um importante historiador do direito, de “máscaras constitucionais” (DIPPEL, 2007DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno. Novas Perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2007., p. 18) ou “máscaras legais” para se efetivar.

Raramente o poder tem se apresentado nu; um poder sem mais nada, que prescinda da gramática do direito, ou seja, que abdique de fazer referência a uma norma que o legitime, seja ela de direito público ou de direito privado, ou seja, nascida de obrigações e contratos privados (GUNTHER, 2003). Já vai longe o tempo em que era possível encontrar juízes como Lord Justice Farwell e Lord Justice Kennedy capazes de negar abertamente o direito ao habeas corpus aos habitantes das colônias inglesas diante do receio de que estes, em maior número, terminassem por eliminar os brancos (NEUMANN, 2014NEUMANN, Franz. A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, pp. 13-87, jul./dez. 2014., p. 36-37).

Por isso mesmo, identificar hoje situações de discriminação irá significar, muitas vezes, examinar e avaliar textos legais aparentemente de acordo com a Constituição e com as demais normas de mesma hierarquia. Não há espaço para desenvolver todo a arcabouço teórico que justifica esta construção aqui (v. RODRIGUEZ, 2016aRODRIGUEZ, José Rodrigo. Perversão do direito (e da democracia): seis casos. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 4, p. 261-294, 2016a. e 2016b), mas para os fins deste texto, chamaremos de “legalidade discriminatória”4 4 O conceito de legalidade discriminatória que utilizamos aqui foi criado por José Rodrigo Rodriguez (2016a e 2016b) em seus estudos sobre as crises do regime democrático e as mobilizações populares. A legalidade discriminatória seria uma forma de “perversão do direito”. Para uma análise mais profunda desses marcos teóricos recomenda-se a produção acadêmica do autor, principalmente os seguintes artigos: RODRIGUEZ, José Rodrigo. "As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica". Revista Prolegómenos Derechos y Valores, v. 19, n.37, pp.99-124, 2016a; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Perversão do direito (e da democracia): seis casos/Perversion of law (and democracy): six cases. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 4, p. 261-294, 2016b. a estratégia de discriminação que faz produzir textos legais que estatuem permissões e proibições abstratas e gerais, as quais sequer fazem referência expressa aos problemas e práticas os quais elas terminam, de fato, por regular e de forma discriminatória. Neste caso específico, como será visto a seguir, ao invés de produzir uma norma que ataque frontalmente as práticas religiosas de matriz africana, procura-se criar uma norma que, por exemplo, ao proibir o sacrifício de animais em nome da saúde pública ou da defesa do meio ambiente, atinge o coração de tais práticas a ponto de as inviabilizar.

A legalidade discriminatória opera nesse caso no desenho da perseguição religiosa, uma ação do Estado ou de seus agentes na perpetração do racismo religioso. A identificação de um caso de “legalidade discriminatória”, diga-se, é resultado de um ato de intepretação do contexto e do teor de uma determinada maneira de regular um problema social. O material utilizado para este fim consiste naqueles documentos por meio dos quais o problema social e a sua regulação podem ser conhecidos por uma pessoa estudiosa do Direito, a saber, a legislação pertinente, seus protagonistas - as pessoas que propuseram a legislação - e as pessoas afetadas pelos textos legais em suas ações no campo do Direito. Neste caso específico, a identificação do fenômeno decorre do simples exame do teor das normas e de seu contexto de aplicação. Explicamos.

Uma norma que afirme “são proibidos sacrifícios animais no território X”, se aprovada e efetivada pelas autoridades competentes, impedirá, objetivamente, a realização de rituais em que haja sacrifícios de animais, posto que praticar tais rituais significaria praticar ato ilícito. A menos que uma pessoa juíza, em um caso concreto examinado pelo Judiciário, considere que é possível excepcioná-la. Seja como for, o simples exame do texto legal e de sua tramitação, caso não leve em conta a liberdade de religião dos praticantes das religiões afro-brasileiras, já permite afirmar seu potencial efeito discriminatório.

Em sua formulação mesma, o texto legal pode ser classificado como discriminatório por não excepcionar as práticas religiosas de matriz africana. Afinal, como será mostrado a seguir, não é razoável, a esta altura da História do Brasil, imaginar que uma pessoa que viva neste país ignore que existam certas práticas religiosas no Brasil que incluem o sacrifício de animais, que estas práticas sejam de origem africana e que haja um histórico de repressão e perseguição em relação a elas. Ainda mais em se tratando de parlamentares, pessoas envolvidas diretamente com a questão, na linha de frente do processo político, em contato com agentes sociais em conflito e com as autoridades responsáveis por executar as leis que irão votar e auxiliados por assessorias em seus Gabinetes e da própria casa Legislativa. Mais ainda, em se tratando de uma instituição, a qual fala uma voz uníssona ao aprovar um texto legal e pode ser avaliada por esta voz, que tem o dever constitucional de proteger as minorias políticas e respeitar a liberdade de religião.

Para pensar de maneira analógica, a partir de um caso hipotético, vamos tomar a seguinte norma “todas as pessoas voluntárias no trabalho de mutirão terão direito a um almoço que consistirá em arroz, feijão e carne”. Neste caso, é evidente, a norma não leva em conta a eventual existência de pessoas vegetarianas e veganas, ou seja, pessoas que não se alimentam de carne. E o efeito desta norma, caso efetivada pelas pessoas responsáveis, será oferecer para determinadas pessoas uma alimentação inadequada, pobre nos nutrientes necessários para que elas sigam trabalhando, afinal, elas estarão impedidas de comer a refeição inteira. Pior do que isso, uma alimentação que viola a sua liberdade individual, sua liberdade de consciência de se alimentar como quiser.

Neste caso, e por isso que ele é útil a nosso argumento nesse texto, pode-se afirmar que a existência de tantas pessoas veganas e vegetarianas é um fenômeno relativamente recente. De fato, a partir de uma avaliação de senso comum, não era tão usual encontrar pessoas com estes hábitos alimentares há dez ou quinze anos atrás. Dessa forma, portanto, alguém poderia afirmar que não houve intenção de discriminação, apenas esquecimento ou ignorância do fato, o que não elide o efeito discriminatório objetivo da norma e a possibilidade de alegar, inclusive judicialmente, que ocorreu um caso de discriminação, tendo em vista o contexto social atual. Não seria razoável que uma entidade que, ainda por cima, está se beneficiando do trabalho voluntário das pessoas, deixar de considera-las em sua diversidade de hábitos alimentares caso decida oferecer-lhes o almoço.

Justamente para demonstrar a ocorrência da referida legalidade discriminatória, este artigo será dividido em três partes. Primeiramente procuramos desconstruir uma ideia homogeneizada sobre as expressões religiosas das tradições de matriz africana, discorrendo brevemente sobre os candomblés, os batuques e as umbandas em perspectiva histórica e sociológica. Abordar as particularidades das expressões religiosas das tradições de matriz africana pode parecer um esforço teórico pouco relevante para o campo do Direito, porém ele é necessário, uma vez que segue vigente uma ideia de religiosidade que suprime as práticas religiosas que não estão em conformidade com pressupostos culturais europeus(NASCIMENTO, 2017NASCIMENTO, Wanderson Flor do. O fenômeno do racismo religioso: Desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Eixo, Brasília, v. 6, n. 2, p.51-56, 28 nov. 2017. Disponível em: <http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/RevistaEixo/article/view/515>. Acesso em: 08 ago. 2019.
http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/...
) No decorrer dos estudos sobre os conflitos jurídicos experimentados pelas expressões religiosas de matriz africana5 5 Este texto baseia-se no material de pesquisa recolhido por Winnie Bueno em seu trabalho de conclusão de curso na Universidade Federal de Pelotas, a saber “Aspectos sócio- jurídicos sobre intolerância religiosa, laicidade do Estado e direito ao culto frente às tradições de matriz- africana."v: BUENO, Winnie de Campos. Aspectos sócio-júridicos sobre intolerância religiosa, laicidade do Estado e direito ao culto frente às tradições de matriz africana. Pelotas, 2015. 62 f. TCC (Graduação em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Pelotas, 2015. Disponível em: <http://pergamum.ufpel.edu.br:8080/pergamumweb/vinculos/00009e/00009e67.jpg> ficou evidente que não é incomum a existência de publicações em periódicos de grande prestígio em que prevalece um reducionismo do que sejam essas religiosidades, destacadamente quando o tema abordado é a questão da alimentação sagrada que integra os pressupostos civilizatórios de alguns destes cultos. A ideia estabelecida a partir dos observadores externos de que “tudo é macumba” precisa ser desarticulada, principalmente quando mobilizada numa perspectiva de “ataque”6 6 Os ataques pelos quais as expressões religiosas das tradições de matriz africana são afrontadas nas mais variadas esferas é tratado com detalhamento por Vagner Gonçalves da Silva (2007) no trabalho intitulado Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132007000100008. Além deste material, também é perceptível o aumento de materiais eletrônicos como blogs e sites que objetivam compilar os números de ataques que os sujeitos e os territórios de terreiro são vítimas. Um exemplo nesse sentido é o blog “Dossiê Intolerância Religiosa”, disponível no endereço http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br/ e o projeto, projeto OLIR- Observatório da Liberdade Religiosa, no endereço: https://pt-br.facebook.com/olirbrasil/ (NASCIMENTO,2017) e perseguições à essas tradições, algo que se pode perceber, justamente, pelo exame do contexto brasileiro desta perspectiva.

No segundo momento apresentamos aspectos das supressões e limitações do livre exercício da expressão religiosa que impactam essas coletividades no que diz respeito a legitimação de sua presença na esfera pública (GIUMBELLI,2008GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Religião & sociedade, v. 28, n. 2, p. 80-101, 2008.). Na terceira parte discorremos sobre as estratégias de resistência organizadas por estas tradições religiosas, principalmente aquelas que se propõe a enfrentar a legalidade discriminatória mobilizada pelos membros do legislativo visando a edição de leis que em última análise eliminam a possibilidade do exercício da alimentação de cunho sagrado que integra as cosmologias dessas expressões religiosas, especialmente no que tange os candomblés e os batuques.

1. A diáspora africana7 7 Segundo Nei Lopes (2011, p. 242): “A Diáspora Africana compreende dois momentos principais. O primeiro, gerado pelo comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos africanos tanto pelo Atlântico quanto pelo oceano Índico e mar Vermelho, caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do século XV- quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados, por traficantes europeus, principalmente para as Américas. O segundo momento ocorre a partir do século XX, com a emigração, sobretudo para a Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais. O termo ‘diáspora’ serve também para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram.” e a conformação religiosa de pressupostos civilizatórios que vieram de além-mar.

As tradições religiosas de matriz africana no território brasileiro são reflexo de um processo de resistência sociocultural e identitária da população negra-africana escravizada e seus descendentes.

[...] pelas condições históricas em que se acharam, as religiões trazidas da África tiveram que sofrer aclimatações e adaptações, muitas vezes com a perda de elementos essenciais. Mesmo assim, passados vários séculos desse processo, muitos elementos permanecem. Através deles podemos perceber que, da mesma forma que outros traços culturais determinantes da africanidade brasileira, as formas religiosas baseadas no sistema acima esboçado e transplantadas para o Brasil, provieram basicamente de duas regiões: as da bacia do rio Congo e da atual Angola; e a do golfo da Guiné. Da primeira região chegaram aqui os elementos e aspectos bantos da religiosidade afro-brasileira; e da segunda, os conhecidos como nagôs, jejes e minas, também referidos genericamente como “sudaneses” (LOPES,2010LOPES, Nei. Religiões afro-brasileiras: Um novo olhar. Afro-Hispanic Review, p. 197-210, 2010., p.199)

Nota-se, portanto, que os candomblés, os batuques, as umbandas8 8 Usamos as variadas expressões das tradições religiosas de matriz africana no plural em virtude da ocorrência de multiplicidades nas formas de culto de cada uma delas. Todas essas expressões religiosas não se apresentam de maneira única. Conforme explicitado no corpo deste texto as adequações resultaram na configuração de experiências religiosas distintas e frequentemente ligadas com os processos de miscigenação, sincretismo e branqueamento que ocorreram no Brasil. , e outras expressões religiosas de matriz africana não se apresentam de forma homogênea, havendo diferenciações no interior de cada uma dessas formas de culto. Mesmo no continente africano não há a ocorrência de uma uniformização das experiências cosmológicas ligadas aos Orixás. Pierre Verger (1981VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Editora Corrupio Comércio, 1981.), estudioso europeu das tradições religiosas de matriz africana, já apontava para esse fator na metade do século XX.

[...] ainda não há, em todos os pontos do território chamado Iorubá, um panteão dos orixás bem hierarquizado, único e idêntico. As variações locais demonstram que certos orixás, que ocupam uma posição dominante em alguns lugares, estão totalmente ausentes em outros. O culto de Xangô, que ocupa o primeiro lugar em Oyó, é oficialmente inexistente em Ifé, onde um deus local, Oramfé, está em seu lugar com o poder do trovão. Oxum, cujo culto é muito marcante na região de Ijexá, é totalmente ausente na região de Egbá. Iemanjá que é soberana na região de Egbá, não é sequer conhecida na região de Ijexá. A posição de todos estes orixás é profundamente dependente da história da cidade onde figuram como protetores[...] (VERGER,1981VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Editora Corrupio Comércio, 1981., p.17)

Essas singularidades se darão de forma semelhante para as expressões religiosas das tradições de matriz africana no Brasil, estando constantemente relacionadas com as rotas do tráfico negreiro. As nações africanas foram reformuladas a partir do comércio de escravos, sendo utilizadas com fim de controle administrativo pelos senhores. Em muitos casos as nações referiam-se ao porto de embarque, mas não necessariamente havia uma correspondência com as designações feitas pelos africanos de suas próprias origens (PARÉS,2007).

O tráfico de negros e negras africanas não promoveu apenas um sequestro de corpos, mas também buscou a supressão das identidades dos escravizados, como uma estratégia de legitimação da prática da escravização. Ao buscar desconstituir os pressupostos civilizatórios dos grupos étnicos africanos escravizados, criava-se uma justificava para a brutalidade da escravidão. Logo, recompor parte de suas vivências, costumes, tradições e memórias constituiu-se como uma estratégia de resistência. Essa perspectiva está inclusive organizada na noção de diáspora africana, que se refere não apenas aos fluxos migratórios forçados ou não da população negra do continente africano como também ao processo de resistência às sistemáticas tentativas de eliminação dos povos descendentes da África. Essa tentativa de eliminação integra aspectos de violência fática e simbólica, as quais podem estar institucionalizadas pelo Estado ou não (VARGAS,2017VARGAS, João Costa. Por uma Mudança de Paradigma: Antinegritude e Antagonismo Estrutural. Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 2, pp. 83-105, 2017.; VARGAS,2010). As cosmologias religiosas, portanto, são relevantes tanto na manutenção dos pressupostos civilizatórios dos povos negro-africanos da diáspora como na organização da resistência e resignação contra as violências do racismo antinegro.

Fenômenos muito estudados pelas ciências sociais e, normalmente, percebidos apenas como experiência religiosa, as tradições de matrizes africanas vivenciadas nos terreiros envolvem um complexo modo de conservação, manutenção e transformação das heranças africanas aportadas no Brasil durante o processo escravagista, aliadas a alguns elementos indígenas. No contexto das chamadas “religiões” de matrizes africanas, os terreiros surgem como espaços de uma articulação brasileira de um modo de vida complexo, que carrega consigo algo que podemos chamar de um conjunto de espiritualidades herdadas dos povos africanos e reconstruída aqui, de modo a tornarem-se afro diaspóricas (NASCIMENTO, 2017NASCIMENTO, Wanderson Flor do. O fenômeno do racismo religioso: Desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Eixo, Brasília, v. 6, n. 2, p.51-56, 28 nov. 2017. Disponível em: <http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/RevistaEixo/article/view/515>. Acesso em: 08 ago. 2019.
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, p. 53)

O marco histórico da gênese das expressões religiosas de matriz africana no Brasil remonta a metade do século XVI, havendo um contingente vasto de formas de manifestação dessas expressões religiosas. Embora no imaginário popular pareçam uma unicidade, o que se dá é um pluralismo religioso robusto no que tange as expressões religiosas das tradições de matriz africana no Brasil. Considerando apenas a cidade de Salvador, na Bahia, o levantamento etnográfico desenvolvido pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA identificou 1.408 terreiros9 9 “Terreiro” é a mais comum designação dada pelos adeptos das tradições religiosas de matriz africana ao espaço em que se realizam os cultos. Outras denominações utilizadas são: “casa”; “ilê”, “tenda”, “terreira”. . O projeto Mapeando o Axé, promovido pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome em 2010 mapeou as expressões religiosas das tradições de matriz africana nas regiões metropolitanas de 4 capitais, quais sejam: Belém, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, computando um total de 4.045 comunidades de terreiro. O Mapeamento das Casas de Religião de Matriz Africana do Rio de Janeiro, desenvolvido pela Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro em parceria com o Conselho Griot10 10 Conselho político religioso desenvolvido com a finalidade de atuar como gestor dos processos de articulação política, definição de nomenclaturas e formas de representação da pesquisa. Maiores informações disponíveis em: http://www.nima.puc-rio.br/index.php/pt/mapeamentocrma-rj/mapeamento-crma-rj/4585-sobre-o-conselho-griot.html e apoio da Secretaria de Políticas Públicas para a Igualdade Racial entre 2008 e 2011 estimou a presença de aproximadamente 5 mil terreiros no estado do Rio de Janeiro. O projeto Lugares do Axé, desenvolvido em Curitiba, evidencia a presença das expressões religiosas de matriz africana no Paraná desde o século XVIII. A partir da análise desses estudos foi possível perceber que há um contínuo histórico de resistência dessas coletividades.

A revisão bibliográfica dessas pesquisas permitiu a identificação das seguintes expressões religiosas das tradições de matriz africana: batuques, candomblés, catimbó, encantado ou pajelança, jurema, linha cruzada, mina de caboclo, nagô, omolocô, pena e maracá, quimbanda, tambor de mina, toré, umbandas, umbandonblé, vodum e Xangô. Cada uma dessas tradições religiosas apresenta cosmologias próprias, sendo que ainda existem manifestações religiosas de matriz africana que não se identificam em nenhum destes grupamentos. Em alguns terreiros, não obstante, ocorre uma classificação dupla ou hibrida. Existem ainda subdivisões dentro de uma mesma manifestação, como é o caso dos candomblés, dos batuques e das umbandas.

Nesse artigo, contudo, será desenvolvida uma pequena síntese acerca dos candomblés, umbandas e batuques. Essa opção se dá pelas seguintes razões: são as expressões religiosas de matriz africana que apresentam o maior número de referenciais bibliográficos considerados no cânone acadêmico bem como os conflitos jurídicos relevantes para a formulação deste artigo estão mais diretamente relacionados com as práticas desenvolvidas nos candomblés e batuques. Obviamente que o descrito nas linhas que seguem, no que diz respeito a especificação de cada expressão religiosa, não dá conta do imenso complexo que cada uma delas representa. A ideia é apenas realizar uma síntese que dê conta de demonstrar a pluralidade dessas tradições, possibilitando uma abertura para o aprofundamento daqueles que procuram investigar essas questões no campo da pesquisa acadêmica em Direito.

1.1 Os candomblés no Brasil

As pesquisas acadêmicas desenvolvidas sobre as tradições de matriz africana no Brasil indicam que o primeiro terreiro de candomblé organizado no Brasil foi a Casa Branca, fundado por três mulheres africanas no bairro do Engenho Velho na cidade de Salvador (CARNEIRO, 1948; DA COSTA LIMA, 1974; LOPES, 2010LOPES, Nei. Religiões afro-brasileiras: Um novo olhar. Afro-Hispanic Review, p. 197-210, 2010.; PRANDI,1996PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil-Para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros. Revista USP, n. 28, p. 64-83, 1996.; THEODORO, 2009THEODORO, Helena. Guerreiras do samba. Textos escolhidos de cultura e arte populares, v. 6, n. 1, p. 223-235, 2009.). A massiva concentração dos povos nagôs na capital da Bahia influenciou as práticas religiosas desenvolvidas na região e colaborou para a fixação de um léxico comum a uma pluralidade de expressões religiosas das tradições de matriz africana desenvolvidas principalmente nas regiões sudeste e nordeste do território brasileiro. Assim, tanto os cultos jeje-nagôs como outras expressões religiosas ficaram genericamente conhecidas como "candomblés". Conforme Nei Lopes:

[...] o vocábulo “candomblé” designa genericamente não só oculto aos orixás jeje-nagôs como outras formas dele derivadas. Assim temos, por exemplo, os candomblés ditos puramente jejes; os que se conhecem como “de Congo e Angola”; o candomblé “de caboclo”, variante do candomblé “de Angola”, marcado por elementos da religiosidade indígena e de práticas do espiritismo popular etc. (LOPES, 2010LOPES, Nei. Religiões afro-brasileiras: Um novo olhar. Afro-Hispanic Review, p. 197-210, 2010., p.200)

De maneira sintética podemos dizer que os diversos candomblés que se organizam no território brasileiro se dividem em três grandes grupos, conectados a uma região específica do continente africano, conforme exposto acima. São os cultos iorubás, fons e bantos (BOTELHO e NASCIMENTO,2012)).

É interessante observar que as dinâmicas internas dos candomblés se apresentam de forma bastante diferenciada das tradições religiosas de base cristã, as quais até hoje influenciam o conteúdo das normas e ordenamentos jurídicos brasileiros. Os binarismos de bem/mal; sagrado/profano; certo/errado, não se inscrevem nas cosmologias organizadas nos candomblés (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Wanderson Flor do. Sobre os candomblés como modo de vida: Imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis. Ensaios Filosóficos, Volume XIII, pp. 153-170, 2016). Compreender essa concepção de mundo é fundamental para entender a percepção das comunidades de terreiro sobre os conflitos jurídicos e religiosos que dizem respeito a questão da alimentação sagrada exercida pela quase totalidade das expressões religiosas de matriz africana. Ademais, essas dinâmicas também irão se apresentar de forma diferenciada entre as diversas configurações dos cultos. Ou seja, os candomblés apresentam liturgias complexas, visões de mundo diferenciadas, linguagens próprias e específicas que irão manifestar compreensões diversas de pressupostos morais e filosóficos que não necessariamente estarão em conformidade com os ditames estabelecidos pelos complexos de normas que se inscrevem no mundo jurídico ocidental, essa característica também está inscrita em outras expressões religiosas das tradições de matriz africana, como é o caso do batuque, que nos deteremos na seção que segue.

1.2 O axé no Sul do Brasil: as particularidades dos Batuques.

O Rio Grande do Sul é, segundo os dados do Censo de 2010, o estado em que há o maior índice de indivíduos que se declaram pertencentes a algum tipo de expressão religiosa das tradições de matriz africana. Em números absolutos há 157.999 residentes do estado que se identificam enquanto pertencentes dos cultos afro-brasileiros. Esse número, que representa 1,47% da população total, supera os números dos estados da Bahia e do Rio de Janeiro (ORO, 2012ORO, Ari Pedro. O atual campo afro-religioso gaúcho. Civitas: revista de ciências sociais. Porto Alegre. Vol. 12, n. 3 (set./dez. 2012), p. 556-565, 2012., p. 558). Esses índices são bastante relevantes no que tange a óbvia resistência das expressões religiosas das tradições de matriz africana no contexto sulista. Considerando o histórico social de invisibilidade e apagamento da população negra no Rio Grande do Sul, um estado marcado pelo silenciamento acerca da participação da negritude na composição sociocultural do estado, é fundamental destacar que a mobilização e organização política das comunidades de terreiro11 11 Em 20 de novembro de 2009 o Coletivo de Entidades Negras (CEN) lançou a campanha “Quem é de Axé, diz que é!” visando fortalecer a identidade religiosa dos vivenciadores das expressões religiosas das tradições de matriz africana. A campanha significou o incremento dos números entre o CENSO de 2000 e 2010, bem como foi propulsora de uma série de políticas públicas que visavam combater a intolerância religiosa. consubstanciou-se enquanto traço preponderante para a composição destes números.

O batuque é considerado enquanto a primeira expressão religiosa de matriz africana inscrita no contexto territorial do estado do Rio Grande do Sul, que atualmente também apresenta a chamada “linha cruzada12 12 A linha cruzada é uma expressão religiosa afro-gaúcha cuja gênese se dá por volta da década de 1960. A designação é mais acadêmica do que fática. Muito raramente os adeptos da tradição que é cunhada academicamente como linha cruzada se identificam dessa forma. O que os estudos sobre religiões afro-brasileiras indicam como “linha cruzada” na realidade diz respeito a manifestação do quimbanda no Rio Grande do Sul, o culto dos exus e pomba-giras. ” e as umbandas. A historiografia da formação do batuque no Rio Grande do Sul indica a presença dessa expressão religiosa no estado desde o início do século XIX (MELLO,1995). Existe uma pluralidade de versões sobre qual teria sido o fato que inaugurou o batuque no Rio Grande do Sul, narrativas que vão sendo repassadas nos terreiros de forma oral durante gerações. As etnografias mais citadas (BRAGA,1998; CORREA, 2006CORRÊA, Norton Figueiredo. O batuque do Rio Grande do Sul: antropologia de uma religião afro-rio-grandense. São Luís: CA, Cultura & Arte, 2006.; ORO, 1994ORO, Ari Pedro et al. As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Ed. UFRGS, 1994.) apontam a preponderância de duas dessas narrativas. A primeira indica que a tradição religiosa teria chegado ao estado através de uma escravizada do Recife, a segunda relaciona os batuques as etnias africanas que teriam trazido cada uma de suas vertentes para o território gaúcho.

Os batuques dividem-se basicamente em cinco vertentes, as chamadas “nações”, as quais designam-se em: oyó, ijexá, jeje, cabinda e nagô. É importante destacar que essas nações não têm equivalência com as divisões dos candomblés, sendo uma expressão religiosa que apresenta convergências com eles, mas que se configura em cosmologias distintas e específicas (ORO, 2002).

1.3 A religião brasileira: considerações sobre as umbandas.

As expressões religiosas das tradições de matriz africana se conectam diretamente a uma narrativa que as relaciona com o contente africano. As narrativas e etnografias que versam sobre os candomblés e os batuques, conforme visto anteriormente, sempre indicam alguma forma de relação com o processo de diáspora africana como fator fundante das aclimatações necessárias para a manutenção dos pressupostos civilizatórios de matriz africana que se reconfiguram enquanto religiosidade no território brasileiro. As umbandas, entretanto, podem ser consideradas enquanto uma tradição religiosa eminentemente brasileira, composta por elementos de resistência indígenas e africanos. Conforme Giumbelli: “O Brasil pode aparecer como o lugar da própria fundação da Umbanda. Lembremos que tão comum quanto a reivindicação da imemoriabilidade da Umbanda é sua designação como ‘religião autenticamente brasileira.’ (GIUMBELLI, 2003, p.186):

Seja pelo fato das cosmologias das umbandas integrarem pressupostos religiosos de religiões europeias, indígenas e africanas, que no imaginário social da formação do Brasil enquanto nação seriam as três raças responsáveis pela “brasilidade”, seja pela existência de registros históricos de congressos e encontros que fundaram a umbanda, essa expressão religiosa ficou reconhecida academicamente enquanto uma religião genuinamente brasileira. Nas palavras do antropólogo Ari Pedro Oro:

A Umbanda representa o lado mais “brasileiro” do complexo afro-religioso, pois se trata de uma religião nascida neste país, fruto de um importante sincretismo entre catolicismo popular, espiritismo kardecista, concepções religiosas indígenas e africanas. Seus rituais são celebrados em língua portuguesa e as entidades veneradas são, sobretudo, os “caboclos” (índios), “pretos-velhos” e “bejis” (crianças), além das “falanges” africana. (ORO, 2008, p. 12)

Contudo, no que pese os aspectos sincréticos dessa tradição, ela segue inscrita enquanto uma religião afro-brasileira e, portanto, também sujeita ao racismo religioso e aos efeitos da legalidade discriminatória que, no que tange os conflitos religiosos que estão implicados as expressões religiosas das tradições de matriz africana e aos cultos afro-brasileiros, apresentam um conteúdo de ódio anti-negritude e preconceito de classe.

2.Limitações à liberdade religiosa e as criminalizações das expressões religiosas das tradições de matriz africana.

Já discorremos brevemente sobre aspectos particularizados dos candomblés, dos batuques e das umbandas, expressões religiosas que possuem enquanto característica comum cosmologias que se relacionam com a presença negra em suas práticas, fundamentos e/ou pressupostos civilizatórios. Contudo, para além dessa similaridade, existe uma outra que irá aproximar essas religiosidades distintas: o histórico de limitações a expressão pública de seus ritos, cultos e prática e a perseguição religiosa experimentada por estes durante todo o histórico da sociedade brasileira.

A história de nosso direito pátrio no que diz respeito ao trato jurídico destinado a questão religiosa inicia-se ainda no projeto de colonização do Brasil. Os objetivos da colonização incluíam a expansão da fé católica, um dos motivos pelos quais as expedições marítimas capitaneadas pelos portugueses no século XVI obtiveram o apoio político e financeiro da Santa Sé (CASAMASSO, 2010CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Um breve panorama das relações entre política e religião no contexto do Estado Moderno. Lex Humana, v. 2, n. 1, p. 45, 2010., p.6167). Portanto, o poder político e ideológico exercido pela Igreja católica é marca fundante do Direito brasileiro, a qual permanece ainda que mitigada em face da necessidade de separação formal da Igreja e do Estado para a persecução dos objetivos da burguesia. Inscrito também em uma lógica binária que é o sustentáculo dos sistemas de dominação. O pensamento binário tem um papel central à criminalização das expressões religiosas de matriz africana uma vez que é responsável pela construção das ideologias que sustem as imagens de controle a respeito dos sujeitos que vivenciam essas religiosidades. As imagens de controle são “parte de uma ideologia generalizada de dominação” (COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo. Boitempo. São Paulo. 2019, p. 135), constituindo-se enquanto uma importante ferramenta de poder, vez que manipulam ideias a respeito da condição da população negra (COLLINS, 2019). A construção das imagens de mulheres negras como “macumbeiras”, de homens negros como “vadios”, sustentou a criminalização de uma série de práticas que ainda hoje são lidas segundo as diferenças que existem entre elas. Por exemplo, as expressões religiosas de matriz africana não são consideras enquanto religião a partir da ausência ou presença de símbolos que são cotidianos nas religiosidades de cunho euro centrado. A ausência de um livro orientador é um exemplo nesse sentido.

Podemos dizer que para a criminalização das expressões religiosas das tradições de matriz africana ocorre um processo de objetificação da mesma, na qual essa religiosidade passa a ser lida de forma diferenciada para justificar concepções dessas expressões religiosas como primitivas e atrasadas, devendo portanto ser combatidas para que não destruam ou obstaculizem as culturas ditas civilizadas (COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo. Boitempo. São Paulo. 2019). As expressões religiosas das tradições de matriz africana são objetificadas enquanto Outro, um processo que suprime as possibilidades desses grupos definirem a própria realidade, nomearem suas práticas e definirem suas relações , é uma forma de dominação recorrente para os grupos racializados que, nesse caso, também abarca dimensões simbólicos que historicamente estivaram relacionadas à negritude.

Considerando que nesta parte do artigo estamos analisando as limitações à liberdade religiosa, abordaremos o período republicano da história do Brasil. A criminalização das expressões religiosas das tradições de matriz africana, contudo, se deu desde o período colonial, porém nesse período não havia a inscrição da liberdade religiosa enquanto um pressuposto constitucional; ao contrário a “Constituição Política do Império do Brazil” estabelecia a nação enquanto um estado confessional católico.

A instituição da República em 1889 significou a separação formal da Igreja do Estado. O Decreto nº 119-A de janeiro de 1890 proibiu a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa. Em tese, consagrava-se a plena liberdade de cultos. Porém, na prática, as expressões religiosas das tradições de matriz africana receberam um tratamento criminalizante desde os primeiros códigos penais da história do Direito brasileiro.

A criminalização expressa dessas tradições religiosas propiciou um cenário de criação de estereótipos e de perseguição pelas instituições. Os frequentes vilipêndios que os templos de candomblé, umbanda, batuque e outras expressões religiosas das tradições de matriz africana experienciam não estão deslocados desse trato jurídico, o qual foi justificado ideologicamente. Considerando o direito enquanto um campo de legitimação da hegemonia e a lei enquanto um instrumento de disciplina, controle e legitimação (PINTO, 2011, p.2) conforme o ideário de justiça e moral vigente no Estado moderno brasileiro, a sociedade sente-se autorizada a manifestar repúdio e intolerância às experiências sociais que não estão em conformidade com aquelas legitimadas pelas ordens normativas preeminentes. Nesse sentido, conforme Nascimento:

Essa disputa muitas vezes se expressa na forma da violência contra o diferente, assumindo ora um gesto de recusa radical, que quer extirpar o diferente do convívio, ora assume um caráter educativo, apostando que uma punição ao diferente o fará se submeter aos valores impostos pelos contextos sociais hegemônicos. Nessa dupla ambiência dos gestos de violência, encontra-se uma justificação para violentar, de tal maneira que o sofrimento de quem seja atingido por tais gestos seja uma espécie de provação necessária para um adequado funcionamento das sociedades em função de seus valores prevalentes e em detrimento de outras crenças, saberes, práticas e valores (NASCIMENTO, 2017NASCIMENTO, Wanderson Flor do. O fenômeno do racismo religioso: Desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Eixo, Brasília, v. 6, n. 2, p.51-56, 28 nov. 2017. Disponível em: <http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/RevistaEixo/article/view/515>. Acesso em: 08 ago. 2019.
http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/...
, p. 52)

O Código Penal de 1890, editado a partir da necessidade de organizar um conjunto de normas penais em consonância com a nova conformação do Estado, o qual deixava de ser um Império para se tornar uma República, não acompanhou a expressão da liberdade religiosa contida na nova Carta Magna. Podemos dizer que aqui se constituí a gênese de uma série de perversões do direito (RODRIGUEZ, 2016aRODRIGUEZ, José Rodrigo. Perversão do direito (e da democracia): seis casos. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 4, p. 261-294, 2016a., 2016b) que irão acompanhar a trajetória das expressões religiosas de matriz africana, por negar às práticas religiosas de matriz africana proteção na condição de conteúdo da liberdade de religião constitucionalmente garantida. A diferença, portanto, passa a ser punida criminalmente, há uma recusa radical em reconhecer essas práticas enquanto religiosas e uma punição explícita que visa coagir o diferente a uma normatividade que opere dentro do hegemônico.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891) instituía o estado laico, ou seja, o Estado ficava impedido de interferir nas questões de ordem religiosa. O art.11, 2° da carta vedava o estabelecimento, subvenção ou embaraço dos cultos religiosos, assim como o art.72, §3º estabelecia o livre exercício de culto (NETO, 2003, p. 114). Logo, numa primeira leitura, parece incompreensível que as expressões religiosas das tradições de matriz africana tenham experimentado violações tão graves nesse período. Porém, como essas expressões religiosas não eram consideradas religiões, justificava-se a utilização do aparato penal para coibi-las.

A perversão do direito caracteriza-se enquanto “comportamentos institucionais que se utilizam da aparência jurídica para criar espaços de puro arbítrio nos quais é possível agir sem o controle da sociedade civil, em função apenas dos interesses dos poderosos” (RODRIGUEZ, 2016, p.620). No caso descrito, a instituição da laicidade e da liberdade religiosa vai atender a uma demanda social coletiva, inscrita nos ideais de liberdade, fraternidade e igualdade esposados pelo Iluminismo. A necessidade de modernização do estado brasileiro e da instituição da democracia, sugere a adoção do modelo de estado secular, livre das interferências das religiões. Contudo, por outro lado, as expressões religiosas das tradições de matriz africana representam uma possibilidade de autonomia e organização política da população negra, a qual possuía um sem fim de reivindicações de cidadania, especialmente ao fim do regime escravocrata.

Os terreiros tinham um potencial de associativismo negro organizativo que não era interessante aos propósitos da época que foi marcada por um projeto de embranquecimento e desafricanização do território brasileiro (FERREIRA FILHO, 1998). As formas de socialização dos negros, portanto, representavam um impeditivo para o alcance do positivismo expresso no lema “ordem e progresso”, tão relevante para a elite política e intelectual da época (SAAD, 2013SAAD, Luísa Gonçalves. "Fumo de negro": a criminalização da maconha no Brasil (c. 1890-1932). Dissertação de Mestrado: UFBA, 2013.) e, por isso mesmo, foi necessário vedar o acesso desse grupo e de suas formas de organização da proteção e da possibilidade de influir sobre a formação do direito estatal.

Frise-se que, ao mesmo tempo em que se instituí a laicidade e a liberdade religiosa no Brasil, se opera uma deslegitimação das expressões religiosas de matriz africana, as quais não são abrangidas pelas prerrogativas protetivas inscritas no instituto da liberdade religiosa. Não estando protegidas da intervenção estatal, portanto, são passíveis de criminalização. Essa criminalização, contudo, apresenta-se, em seu valor de face, como um mecanismo de proteção à saúde pública: ao criminalizar as práticas de curandeirismo, aparentemente está se tutelando a saúde e não interferindo em práticas religiosas. No entanto, o que teremos, de fato, a partir dessa criminalização, é o encarceramento de sacerdotes e sacerdotisas dos cultos de matriz africana e a perseguição policialesca dos terreiros, casas de santo e dos territórios simbólicos para essas tradições religiosas. Uma perseguição de cunho estatal, organizada pelo próprio Estado e executada por seus agentes.

O historiador Josivaldo Pires de Oliveira (2016), a partir da análise de processos criminais nos quais figuravam sacerdotes e sacerdotisas de matriz africana, aponta para como a repressão do curandeirismo implicou na criminalização do candomblé. A narrativa de um processo criminal enfrentado por sacerdotes da época ilustra o argumento articulado nesse texto:

Ao aflorar o século XX, a imprensa feirense registrou a prisão de algumas pessoas envolvidas com prática de candomblé, acusadas também de “feitiçaria”. Atente-se para a empolgada narrativa do articulista: Prisões em Penca. No Limoeiro, povoação da freguesia dos Humildes, deste termo, em noite de 16 para 17 do corrente Victorino Araújo da Silva, ali residente, Pedro Alves de Almeida e mais vinte e tantas pessoas, que foram já soltas, ficando detidos os dois primeiros. O motivo da prisão constatamos, ter sido dança do “candomblé” e feitiçaria. A prisão ocorreu em maio de 1901, ainda no calor do novo Código Penal, sancionado em 1890. A notícia informou que das pessoas recolhidas pela polícia, naquela batida, apenas duas foram encarceradas. De fato, o crime foi lavrado pela justiça feirense como “curandeirismo”, sendo indiciado os senhores Victorino Araújo da Silva e Pedro Alves de Almeida, como informou o articulista. A acusação: “dar remédios e tocar candomblé”. (DE OLIVEIRA, 2016DE OLIVEIRA, Josivaldo Pires. Na Busca da Curanderia: Relações de Poder e Repressão do Candomblé no Interior Baiano. Revista Veredas da História, v. 5, n. 2, pp. 55-63, 2016., p.57)

A deslegitimação das expressões religiosas das tradições de matriz africana e dos cultos mediúnicos, não se estabelece apenas por meio do direito. A medicina teve papel relevante na formulação de uma imagem deturpada do que seriam essas expressões religiosas, pois as instituições são o cerne da formulação das imagens de controle que visam a desumanização de negros e negras e articulam justificativas para que os mesmos não sejam considerados enquanto sujeitos de direito (BUENO,2019BUENO, Winnie de Campos. Processos de resistência e construção de subjetividades no pensamento feminista negro: uma possibilidade de leitura da obra Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment (2009) a partir do conceito de imagens de controle. Porto Alegre, 2019. 167 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 2019.) O médico sanitarista Nina Rodrigues (1935RODRIGUES, Raymundo Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1935.), por exemplo, atua de maneira decisiva em implicar à essas tradições religiosas a característica de histeria. A partir de uma sustentação que relaciona pertença racial, com hábitos culturais e ancestralidade cunha-se uma ideia institucionalizada de uma predisposição dos negros ao crime sendo, portanto, recomendável a proibição das práticas mediúnicas porque elas seriam um espaço que proporcionariam a alienação mental (GIUMBELLI,1997GIUMBELLI, Emerson. Heresia, doença, crime ou religião: o espiritismo no discurso de médicos e cientistas sociais. Revista de Antropologia, v. 40, n. 2, p. 31-82, 1997.).

A criminalização das práticas de curandeirismo não tinha apenas um objetivo de deslegitimação das expressões religiosas das tradições de matriz africana. Havia também a intenção de garantir a exclusividade da classe médica no trato das doenças. Conforme explica Giumbelli (2003, p. 254):

A criminalização do espiritismo, alegando-se a proteção à saúde pública, deve ser entendida no contexto da ação da categoria médica que visava resguardar em termos legais o monopólio do exercício da “arte de curar”. Além da condenação ao espiritismo, à magia e outras práticas, o Código Penal previa punições para o simples exercício da medicina sem títulos acadêmicos (art. 156) e o crime de curandeirismo, ou seja, a aplicação ou prescrição de substâncias com fins terapêuticos (art. 158) (GIUMBELLI 2003, p. 254):.

Ou seja, há toda uma lógica inserida nos contornos no sistema capitalista que explica a maneira com que as expressões religiosas das tradições de matriz africanas serão tratadas pelos dispositivos jurídicos. A evidente anti-negritude, o corporativismo das elites e a persecução dos objetivos de modernização do estado brasileiro estão intimamente relacionadas ao histórico de violência, perseguição religiosa e racismo estrutural experienciado por essas tradições.

Na segunda metade do século XX, os códigos de postura municipal vão desempenhar o papel de controle das expressões religiosas das tradições de matriz africana. Conjuntamente, as regulamentações sanitárias, os códigos posturas e as legislações penais serão os instrumentos normativos que irão fundamentar ações que criminalizarão as tradições religiosas de matriz africana a partir de imagens de controle que estereotipam as mesmas, associando-as à barbárie e involução (GIUMBELLI, 2008GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Religião & sociedade, v. 28, n. 2, p. 80-101, 2008.. p.84). Essa caracterização permanece na atualidade nos discursos que visam criminalizar a alimentação sagrada exercida nas cosmologias dos batuques, candomblés e umbandas, no que pese essas últimas não destinarem uma morte sagrada aos animais cujo a carne é consumida em suas celebrações. A maneira com que essas tradições resistem a esses ataques é o que abordaremos na próxima seção.

3. As estratégias de resistência das expressões religiosas das tradições de matriz africana frente à legalidade discriminatória.

As expressões religiosas das tradições de matriz africana resistem a uma série de mecanismos históricos que visam sua eliminação desde a configuração delas no território brasileiro. As formas de resistência não são estáticas, pois não é estática a maneira com que se organiza o racismo religioso através da história. Mais do que isso, a complexidade do momento contemporâneo, onde os ataques aos territórios e pessoas que se identificam as expressões religiosas têm aumentado significativamente13 13 Segundo dados do Disque 100, 59% do total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram referentes a religiões como a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas; 11% a espíritas; 8% a católicos; e 2% a ateus (v. http://www.generonumero.media/terreiros-na-mira/) , mas também aumentam as denúncias e reivindicações jurídicas por proteção a estes espaços. Pois, apesar da permanência histórica do racismo religioso, o trato injusto destinado às expressões religiosas de matriz africana também fomenta a resistência e persecução por justiça dessas comunidades (COLLINS,2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo. Boitempo. São Paulo. 2019).

O que será discutido aqui a seguir, contudo, são as formas contemporâneas de legalidade discriminatória que atingem essas expressões religiosas, analisando dois conflitos jurídicos recentes que ocorreram no estado do Rio Grande do Sul: a aprovação do Código Estadual de Proteção aos Animais (2003) e a proposição do Projeto de Lei 21/2015.

Como demonstrado nas seções anteriores, o Direito atuou historicamente uma perspectiva de deslegitimação e criminalização das expressões religiosas das tradições de matriz africana. Contudo, é também através da manipulação dos institutos jurídicos que essas coletividades vão exigir que suas demandas sejam atendidas pelo poder político. A judicialização dos conflitos religiosos na perspectiva de reconhecimento dessas expressões religiosas nas esferas públicas é um fenômeno recente, mas que se inscreve junto a um panorama de reivindicações de direitos por parte dos movimentos sociais que caracteriza as primeiras décadas do século XXI. A consolidação do Estado Democrático de Direito, portanto, proporciona um espaço para que aqueles e aquelas que sempre ocuparam uma posição subalterna possam lutar pelo reconhecimento estatal de suas formas de vida e organização em nome da igualdade de tratamento diante da lei (RODRIGUEZ, 2013RODRIGUEZ, José Rodrigo. A desintegração do status quo: direito e lutas sociais. Novos Estudos - CEBRAP, São Paulo, n. 96, p. 49-66, July 2013.).

No que tange as expressões religiosas das tradições de matriz africana é perceptível que a presença delas na esfera pública sempre esteve colocada como um problema. O reconhecimento dessas expressões religiosas esteve constantemente nas “zonas de autarquia”, as quais se constituem enquanto “espaços de decisão autárquica, livres da influência do debate público e despidos de qualquer racionalidade que se possa identificar, ainda que sob a aparência de legalidade” (RODRIGUEZ, 2016aRODRIGUEZ, José Rodrigo. Perversão do direito (e da democracia): seis casos. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 4, p. 261-294, 2016a., p.265). Esse cenário pouco se altera na contemporaneidade, o que temos é a inserção de novos atores que irão utilizar o direito nessa perspectiva pervertida para obstaculizar a presença pública das expressões religiosas das tradições de matriz africana.

A configuração do neopentecostalismo e o aumento de sua atuação nos campos decisórios do Direito, significou uma politização do proselitismo religioso. A bancada evangélica, nas mais variadas esferas, irá se utilizar dos mecanismos políticos enquanto ferramentas relevantes para a conversão em massa de fiéis. O sucesso do proselitismo religioso neopentecostal, contudo, não se resumo apenas na conversão de fiéis, mas em uma disputa de poder e legitimidade, cujo principal algoz são as expressões religiosas das tradições de matriz africana.

Os dois cenários que são analisados nesse artigo são úteis para compreender como que a hegemonia valorativa cunhada pelos pressupostos civilizatórios judaicos cristãos em conjunto com os discursos de modernidade serão uteis para uma atuação racista, a partir da perversão do direito operada pela legalidade discriminatória, que visa a eliminação das expressões religiosas das tradições de matriz africana.

A edição do Código Estadual de Proteção Animal não significava expressamente nenhum impeditivo para a manutenção das práticas civilizatórias alimentares das expressões religiosas das tradições de matriz africana, porém, a norma em contento apresentava uma forma que poderia vir a ser utilizada para obstaculizar essas práticas. O art.2º do texto original da norma vedava as práticas de sacralização de animais, ainda que não de forma expressa:

Art. 2º - É vedado: I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência; II - manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade; III - obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força; IV - não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo; V - exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal; VI - enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem; VII - sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS -, nos programas de profilaxia da raiva.

Como se vê, o que aparentemente se apresenta como uma norma que visa a proteção dos animais, poderia acabar por ser utilizada com fins de perseguir as expressões religiosas de matriz africana no que tange a questão dos rituais destinados a obtenção da carne que é consumida nos cultos. Frisa-se que o proponente do Código Estadual de Proteção aos Animais era um deputado ligado à Igreja do Evangelho Quadrangular, o qual exerce a função de pastor nessa congregação religiosa.

A articulação das lideranças das expressões religiosas das tradições de matriz africana explicitou a discriminação velada e defendeu uma redação de emenda à lei, proposta pelo deputado Edson Portilho, incluída pela lei a Lei nº 12.131/04. A emenda acrescentou o parágrafo único ao art.2º, explicitando que a vedação expressa na norma não teria aplicabilidade para o livre exercício dos cultos e liturgias de matriz africana. Nesse caso, portanto, o direito é utilizado diretamente por uma minoria social visando garantir o exercício de um direito fundamental constitucional, que historicamente é negado para eles, conforme demonstrado nos capítulos anteriores. Essa emenda resultou no Recurso Extraordinário (RE) 494601, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2019, reconhecendo a constitucionalidade da emenda por unanimidade.

O PL 21/2015 tinha por objetivo alterar a situação jurídica criada pela lei 12.123/04, alterando o Código Estadual de Proteção aos Animais. A proposta, que foi arquivada em junho de 2015 graças a grande mobilização das lideranças das expressões religiosas das tradições de matiz africana, revogava o parágrafo único da lei. A justificativa do projeto deixa bastante claro a existência da legalidade discriminatória, uma vez que a lei é manipulada para atingir um grupo específico com a aparência de universalidade (RODRIGUEZ,2016, p.104). A lei, nesse caso, estava expressamente sendo colocada em prol dos interesses do neopentecostalismo, uma vez que atingia apenas as expressões religiosas das tradições de matriz africana. A estratégia utilizada pelas expressões religiosas de matriz africana nesse caso foi a denúncia e mobilização. O arquivamento do projeto só foi possível porque a comunidade colocou-se de forma incisiva no campo público, organizando audiências, passeatas, protestos e articulações com juristas, acadêmicos e outros atores.

A questão da alimentação sagrada de matriz africana, entretanto, segue sendo alvo de questionamentos jurídicos, os quais geralmente se apresentam em função da valoração do direito à vida dos animais não humanos. Contudo, nesse caso, há uma indisposição em analisar essa questão a partir dos pressupostos civilizatórios enunciados por essas religiosidades. O Direito, nesse caso, olvida-se que “em um mundo onde tudo é vivo, a prática da alimentação é sempre uma questão delicada, pois implica em decidir pela suspensão da vida de uns para a continuidade da vida de outros” (NASCIMENTO, 2015, p. 62). Resta saber se seguirão sendo alvos de propostas legislativas criminalizantes apenas aqueles que fazem essa decisão levando em consideração pressupostos civilizatórios de matriz africana, ou se a defesa da vida dos animais não humanos levará a suspensão da alimentação carnívora por parte de toda a sociedade.

Considerações finais

Ainda que os institutos da liberdade religiosa e da laicidade do estado no Brasil não tenham sido constituídos a partir da experiência da pluralidade de expressões religiosas que conformam o país e que durante um período significativo de tempo tenham estado disponibilizados para as expressões religiosas de matriz africana devido a criminalização de seus cultos através de normas penais e da deslegitimação dos pressupostos civilizatórios de matriz africana enquanto religiões, atualmente as coletividades que representam os interesses dos sujeitos que integram as umbandas, batuques e candomblés tem se utilizado dessas normas para garantir a permanência dos seus cultos.

Por outro lado, fica evidente que a força política do neopentecostalismo tem se utilizado das figuras de perversão do direito para impedir a permanência da existência das expressões religiosas de matriz africana que se constituem enquanto aquelas religiosidades que devem ser combatidas segundo as ideologias incutidas nas liturgias das igrejas neopentecostais. Esse cenário, portanto, enseja um enfrentamento teórico mais comprometido do que sejam as expressões religiosas das tradições de matriz africana, objetivando compreender as formas com que elas sempre estiveram alijadas de um tratamento jurídico isonômico.

O racismo religioso tem violentado simbólica e fisicamente os adeptos das expressões religiosas de matriz africana, os discursos hegemônicos higienistas, academicistas e elitistas acerca das formas com que estas coletividades manipulam seus pressupostos civilizatórios certamente fortalecem as ações proselitistas do “exército de Deus” frente aos candomblés, batuques, quimbandas e umbandas.

A arbitrariedade do poder político das bancadas neopentecostais é um cenário indesejável para a democracia brasileira e para o Estado de Direito. A devida atenção, portanto, às maneiras com que as ferramentas jurídicas têm sido manipuladas com fins discriminatórios e racistas se faz necessária, sendo recomendável analisar em uma perspectiva interdisciplinar os reflexos da anti-negritude no cotidiano do legislativo, executivo e judiciário, uma tarefa de comprometimento com o fim da intolerância religiosa e do ódio anti-negritude.

Referências Bibliográficas

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  • VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Editora Corrupio Comércio, 1981.
  • 1
    As expressões religiosas das tradições de matriz africana caracterizam-se a partir da conformação religiosa dos pressupostos civilizatórios oriundos dos grupos étnicos africanos que foram trazidos para o Brasil através do tráfico de negros e negras escravizados. Esses pressupostos civilizatórios não necessariamente foram reorganizados no Brasil a partir da religiosidade, existindo expressões culturais de matriz africana. Um exemplo é o maracatu, que assim como as expressões religiosas possui diversas nações, outro exemplo nesse sentido é a capoeira. Sendo assim, falar em tradições de matriz africana implica em um escopo maior que o escopo religioso, o utilizamos o termo “expressões religiosas das tradições de matriz africana” para evidenciar a complexidade das articulações desenvolvidas pelas comunidades negras brasileiras para a resistência e permanência das tradições africanas.
  • 2
    Utilizamos nesse artigo o termo comunidades de terreiro em consonância com o Decreto Nº 6.040 de fevereiro de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. No que pese divergências tanto no campo dos movimentos sociais quanto nas elaborações teóricas desenvolvidas sobre essa temática, acreditamos que para os fins desse artigo seja o termo mais adequado por estar inscrito dentro do sistema jurídico brasileiro e pelo reconhecimento que os sujeitos que vivenciam as religiosidades de matriz africana dão a esta norma, no sentindo de apresentar conceitos relevantes para a manutenção das expressões religiosas de matriz africana. Parte das divergências relativas ao uso do termo “comunidades tradicionais” são organizadas pelo Dr. Hédio Silva Júnior, o qual prestou contribuições à elaboração desse trabalho. Na opinião do Dr. Silva Júnior, obtida em conversa particular com a autora desse artigo, o fato desse decreto ser derivado de uma norma do direito ambiental (Lei 9.985/00) representa uma continuidade da resistência político-jurídico-institucional de reconhecer às expressões religiosas de matriz africana o status legal de religião. Dessa forma, cria-se óbices ao trato jurídico destinado as religiões hegemônicas, como é o caso do catolicismo. É nessa esteira, por exemplo, que se obstaculiza o acesso à imunidade tributária pelos espaços de cultos das expressões religiosas de matriz africana.
  • 3
    Utilizamos o termo racismo religioso em consonância com as contribuições teóricas (GROSFOGUEL,2012; NASCIMENTO, 2017; OLIVEIRA,2017) que apontam para a insuficiência da categoria intolerância religiosa para nomear o cenário de violência, limitação e desconstituição que experienciam as comunidades de terreiro historicamente.
  • 4
    O conceito de legalidade discriminatória que utilizamos aqui foi criado por José Rodrigo Rodriguez (2016a e 2016b) em seus estudos sobre as crises do regime democrático e as mobilizações populares. A legalidade discriminatória seria uma forma de “perversão do direito”. Para uma análise mais profunda desses marcos teóricos recomenda-se a produção acadêmica do autor, principalmente os seguintes artigos: RODRIGUEZ, José Rodrigo. "As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica". Revista Prolegómenos Derechos y Valores, v. 19, n.37, pp.99-124, 2016a; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Perversão do direito (e da democracia): seis casos/Perversion of law (and democracy): six cases. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 4, p. 261-294, 2016b.
  • 5
    Este texto baseia-se no material de pesquisa recolhido por Winnie Bueno em seu trabalho de conclusão de curso na Universidade Federal de Pelotas, a saber “Aspectos sócio- jurídicos sobre intolerância religiosa, laicidade do Estado e direito ao culto frente às tradições de matriz- africana."v: BUENO, Winnie de Campos. Aspectos sócio-júridicos sobre intolerância religiosa, laicidade do Estado e direito ao culto frente às tradições de matriz africana. Pelotas, 2015. 62 f. TCC (Graduação em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Pelotas, 2015. Disponível em: <http://pergamum.ufpel.edu.br:8080/pergamumweb/vinculos/00009e/00009e67.jpg>
  • 6
    Os ataques pelos quais as expressões religiosas das tradições de matriz africana são afrontadas nas mais variadas esferas é tratado com detalhamento por Vagner Gonçalves da Silva (2007) no trabalho intitulado Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132007000100008. Além deste material, também é perceptível o aumento de materiais eletrônicos como blogs e sites que objetivam compilar os números de ataques que os sujeitos e os territórios de terreiro são vítimas. Um exemplo nesse sentido é o blog “Dossiê Intolerância Religiosa”, disponível no endereço http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br/ e o projeto, projeto OLIR- Observatório da Liberdade Religiosa, no endereço: https://pt-br.facebook.com/olirbrasil/ (NASCIMENTO,2017)
  • 7
    Segundo Nei Lopes (2011, p. 242): “A Diáspora Africana compreende dois momentos principais. O primeiro, gerado pelo comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos africanos tanto pelo Atlântico quanto pelo oceano Índico e mar Vermelho, caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do século XV- quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados, por traficantes europeus, principalmente para as Américas. O segundo momento ocorre a partir do século XX, com a emigração, sobretudo para a Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais. O termo ‘diáspora’ serve também para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram.”
  • 8
    Usamos as variadas expressões das tradições religiosas de matriz africana no plural em virtude da ocorrência de multiplicidades nas formas de culto de cada uma delas. Todas essas expressões religiosas não se apresentam de maneira única. Conforme explicitado no corpo deste texto as adequações resultaram na configuração de experiências religiosas distintas e frequentemente ligadas com os processos de miscigenação, sincretismo e branqueamento que ocorreram no Brasil.
  • 9
    “Terreiro” é a mais comum designação dada pelos adeptos das tradições religiosas de matriz africana ao espaço em que se realizam os cultos. Outras denominações utilizadas são: “casa”; “ilê”, “tenda”, “terreira”.
  • 10
    Conselho político religioso desenvolvido com a finalidade de atuar como gestor dos processos de articulação política, definição de nomenclaturas e formas de representação da pesquisa. Maiores informações disponíveis em: http://www.nima.puc-rio.br/index.php/pt/mapeamentocrma-rj/mapeamento-crma-rj/4585-sobre-o-conselho-griot.html
  • 11
    Em 20 de novembro de 2009 o Coletivo de Entidades Negras (CEN) lançou a campanha “Quem é de Axé, diz que é!” visando fortalecer a identidade religiosa dos vivenciadores das expressões religiosas das tradições de matriz africana. A campanha significou o incremento dos números entre o CENSO de 2000 e 2010, bem como foi propulsora de uma série de políticas públicas que visavam combater a intolerância religiosa.
  • 12
    A linha cruzada é uma expressão religiosa afro-gaúcha cuja gênese se dá por volta da década de 1960. A designação é mais acadêmica do que fática. Muito raramente os adeptos da tradição que é cunhada academicamente como linha cruzada se identificam dessa forma. O que os estudos sobre religiões afro-brasileiras indicam como “linha cruzada” na realidade diz respeito a manifestação do quimbanda no Rio Grande do Sul, o culto dos exus e pomba-giras.
  • 13
    Segundo dados do Disque 100, 59% do total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram referentes a religiões como a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas; 11% a espíritas; 8% a católicos; e 2% a ateus (v. http://www.generonumero.media/terreiros-na-mira/)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2018
  • Aceito
    24 Set 2019
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