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Fique em casa? Remoções forçadas e COVID-19

Stay home? Forced evictions and Covid-19

Resumo

O objetivo deste artigo é verificar se o STF, STJ, TRF2 e TJRJ consideraram a pandemia de Covid-19 ao julgar pedidos de reintegração de posse e imissão na posse entre 06/02/2020 e 06/02/2021, e se observaram os parâmetros internacionais sobre remoções forçadas. Após analisarmos 291 decisões, constatamos que a pandemia não foi mencionada na maioria dos casos e os parâmetros internacionais foram ignorados.

Palavras-chave:
Remoções forçadas; Direito à moradia; Covid-19

Abstract

The purpose of this paper is to verify if the Supreme Court, Superior Court of Justice, Federal Court of Appeals of the 2nd Circuit and the Rio de Janeiro State Tribunal considered the Covid-19 pandemic when judging repossession and possession lawsuits between 02/06/2020 and 06/02/2021, and whether international standards on forced eviction were observed. After analyzing 291 decisions, we observed that the pandemic was not mentioned in the majority of the decisions and that international parameters were ignored.

Keywords:
Forced evictions; Right to housing; Covid-19

Introdução

A pandemia de Covid-19 forçou o mundo a adotar vigorosas medidas para impedir a disseminação do novo coronavírus. Num esforço conjunto sem precedentes, a maioria dos países determinou o fechamento de fronteiras, limitou o comércio, restringiu eventos sociais, obrigou o confinamento da população e decretou lockdowns (FORMAN; KOHLER, 2020FORMAN, Lisa; KOHLER, Jillian Clare. Global health and human rights in the time of COVID-19: Response, restrictions, and legitimacy. Journal of Human Rights, v. 19, n. 5, p. 547-556, 19 out. 2020. https://doi.org/10.1080/14754835.2020.1818556.
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). Além disso, muitos garantiram a permanência das pessoas em suas casas com a suspensão de despejos, moratória de hipotecas e fornecimento de abrigos provisórios aos sem-teto (OCDE, 2020).

Os mais pobres foram desproporcionalmente afetados. A maior utilização do transporte público, o adensamento habitacional e a insegurança financeira decorrente da restrição de atividades profissionais são importantes barreiras ao distanciamento social para esse grupo (CARVALHO; PIRES; XAVIER, 2020). Não por acaso, desigualdades socioeconômicas estão mais correlacionadas à disseminação da Covid-19 no Brasil do que outros fatores de risco, como idade e condição de saúde (DEMENECH et al., 2020DEMENECH, Lauro Miranda; DUMITH, Samuel de Carvalho; VIEIRA, Maria Eduarda Centena Duarte; NEIVA-SILVA, Lucas. Desigualdade econômica e risco de infecção e morte por COVID-19 no Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 23, p. e200095, 5 out. 2020.).

Se anteriormente os pobres já estavam expostos a maior risco de morte pela exposição diferenciada a doenças, maior suscetibilidade e pior acesso aos serviços de saúde (FERRAZ, 2020FERRAZ, Octavio Luiz Motta. Pandemic Inequality. 2 abr. 2020. The Yale Review. Disponível em: https://yalereview.yale.edu/pandemic-inequality. Acesso em: 9 abr. 2021.
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), sua vulnerabilidade apenas se agravou com a emergência sanitária. Durante a pandemia, a desocupação forçada impede essas pessoas de cumprirem recomendações básicas de prevenção (CORBURN et al., 2020CORBURN, Jason; VLAHOV, David; MBERU, Blessing; RILEY, Lee; CAIAFFA, Waleska Teixeira; RASHID, Sabina Faiz; KO, Albert; PATEL, Sheela; JUKUR, Smurti; MARTÍNEZ-HERRERA, Eliana; JAYASINGHE, Saroj; AGARWAL, Siddharth; NGUENDO-YONGSI, Blaise; WERU, Jane; OUMA, Smith; EDMUNDO, Katia; ONI, Tolu; AYAD, Hany. Slum Health: Arresting COVID-19 and Improving Well-Being in Urban Informal Settlements. Journal of urban health : bulletin of the New York Academy of Medicine, United States, v. 97, n. 3, p. 348-357, jun. 2020. https://doi.org/10.1007/s11524-020-00438-6.
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), o que implica grave violação de direitos humanos.

No Brasil, embora as autoridades federais tenham sido renitentes1 1 O governo federal brasileiro não foi apenas omisso ou elusivo no combate à pandemia, mas atuou proativamente na disseminação do novo coronavírus por uma estratégia institucional que visava a imunização coletiva por contágio (VENTURA; BUENO, 2021; VENTURA; REIS, 2021). A resposta do governo federal à pandemia foi descrita como “uma perigosa combinação de inação e irregularidades” (CASTRO et al. , 2021). , governantes locais e sociedade civil mobilizaram campanhas em favor do distanciamento físico, cujo mote foi o pedido: “fique em casa”. Esse esforço coletivo, porém, não impediu a continuidade das remoções forçadas (despejos, reintegrações de posse e imissões na posse). Segundo dados da Campanha Despejo Zero (2021)2 2 A Campanha Despejo Zero é uma rede composta por mais de 100 entidades, entre elas a Habitat para a Humanidade Brasil — programa da Organização das Nações Unidas (ONU). , entre 01/03/2020 e 11/02/2021 mais de 9.000 famílias foram removidas no país e mais de 64.500 famílias estavam sob ameaça de remoção3 3 Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1XOJrD6FrVICtIE1-13ANQOgnGgvp9EEN/view. Acesso em 26 jul. 2020. .

Nesse contexto de risco sanitário e insegurança habitacional, o objetivo deste artigo é verificar se o Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) e Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) consideraram a pandemia de Covid-19 ao julgar pedidos de reintegração de posse e imissão na posse. Adicionalmente, verificaremos se os tribunais respeitaram os parâmetros sobre remoções forçadas indicados no Comentário Geral 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas. Para tanto, analisaremos as decisões relacionadas a pedidos de reintegração de posse e imissão na posse proferidas entre 6 de fevereiro de 2020 e 6 de fevereiro de 2021, e as compararemos aos parâmetros internacionais.

O artigo se dividirá em três partes, além desta introdução e das considerações finais. Primeiro, apresentaremos o quadro teórico sobre o direito à moradia - incluindo a segurança da posse e a proteção contra remoções forçadas. Em seguida, explicaremos o método de identificação, coleta e classificação das decisões judiciais. Por fim, apresentaremos e discutiremos os resultados.

Pretendemos com este estudo identificar o padrão decisório dos tribunais sobre remoções forçadas durante a maior crise sanitária enfrentada pelo país nos últimos 100 anos (INSFRAN; MUNIZ, 2020INSFRAN, Fernanda; MUNIZ, Ana Guimarães Correa Ramos. Maternagem e Covid-19: desigualdade de gênero sendo reafirmada na pandemia. Diversitates International Journal, v. 12, n. 2, p. 26-47, 2020.) e testar o grau de aderência dessas decisões aos parâmetros internacionais sobre o tema.

I. Quadro teórico: direito à moradia, segurança da posse e remoções forçadas

O direito à moradia é amplamente reconhecido no direito internacional, especialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais4 4 O PIDESC entrou em vigor para o Brasil em 1992 e foi promulgado pelo Decreto 591/1992. (PIDESC). Segundo o Comentário Geral 45 5 O CG 4, que define o direito à moradia adequada, foi o primeiro comentário do CDESC a dispor sobre um direito material previsto no PIDESC. Embora os comentários gerais não sejam formalmente vinculantes, eles possuem “considerável autoridade informal” (DONNELLY, 2013, p. 168). (CG 4) do Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais das Nações Unidas6 6 O CDESC é um órgão composto por 18 especialistas independentes, criado para monitorar a implementação do PIDESC por seus Estados Partes. (CDESC), moradia adequada pressupõe sete elementos: (a) segurança da posse; (b) disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura; (c) economicidade; (d) habitabilidade; (e) acessibilidade; (f) localização; (g) adequação cultural.

Para o comitê, um dos efeitos do elemento “segurança da posse” é tornar as remoções forçadas7 7 A tradução literal de “forced evictions” para o português — evicções forçadas ou despejos forçados — pode gerar equívocos conceituais. Neste trabalho, utilizamos indistintamente as expressões “remoções forçadas” e “desocupações forçadas”. prima facie incompatíveis com o PIDESC. Dentre as diretrizes definidas para as remoções forçadas, destaca-se o Comentário Geral 7 (CG 7) do CDESC, dedicado exclusivamente ao tema. Conforme o CG 7, as remoções forçadas8 8 O CG 7 define remoção forçada como a “remoção permanente ou temporária contra a vontade dos indivíduos, famílias e/ou comunidades das casas e/ou terras que ocupam, sem a provisão e o acesso a formas adequadas de proteção jurídica ou de outra natureza”. somente podem ser realizadas: (a) em circunstâncias excepcionais, após serem exploradas todas as alternativas, em consulta com os afetados; (b) quando não resultarem em pessoas desabrigadas; (c) mediante compensação adequada por qualquer dano material ou moral; (d) em respeito ao devido processo legal, que inclui os direitos de consulta prévia aos atingidos, prévio aviso sobre a data da remoção, informação sobre o objetivo do ato, presença de autoridades, quando necessária, e assistência jurídica.

A excepcionalidade das remoções forçadas também vigora no sistema europeu de proteção dos direitos humanos. Em 2019, o Comitê Europeu dos Direitos Sociais9 9 Anistia Internacional c. Itália, n. 178/2019, 4 julho 2019. condenou a Itália a “garantir que as pessoas despejadas não fiquem desabrigadas”. Na mesma linha, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos entendeu ser ilícita a prática de remoções forçadas de grupos vulneráveis sem prévia consulta e sem garantia de assistência à moradia - seja pelo pagamento de auxílio financeiro, seja pela oferta de abrigo temporário10 10 P.H. e outros c. Itália (medidas provisórias), n. 25838/19, 20 maio 2019. .

Em resumo, remoções forçadas não são proibidas pelo direito internacional dos direitos humanos, mas somente devem ocorrer de modo excepcional, mediante prévia consulta aos afetados e não podem resultar em pessoas desabrigadas.

Essa proteção ganha contornos dramáticos em tempos de pandemia, pois as remoções aumentam consideravelmente o risco de morte para os removidos (JOWERS et al., 2021JOWERS, Kay; TIMMINS, Christopher; BHAVSAR, Nrupen; HU, Qihui; MARSHALL, Julia. Housing Precarity & the COVID-19 Pandemic: Impacts of Utility Disconnection and Eviction Moratoria on Infections and Deaths Across US Counties, n. w28394. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, jan. 2021. DOI 10.3386/w28394. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w28394.pdf. Acesso em: 29 mar. 2021.
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; NANDE et al., 2021NANDE, Anjalika; SHEEN, Justin; WALTERS, Emma L.; KLEIN, Brennan; CHINAZZI, Matteo; GHEORGHE, Andrei H.; ADLAM, Ben; SHINNICK, Julianna; TEJEDA, Maria Florencia; SCARPINO, Samuel V.; VESPIGNANI, Alessandro; GREENLEE, Andrew J.; SCHNEIDER, Daniel; LEVY, Michael Z.; HILL, Alison L. The effect of eviction moratoria on the transmission of SARS-CoV-2. Nature Communications, v. 12, n. 1, p. 2274, dez. 2021.). Em razão disso, diversos países promulgaram leis prevendo a moratória de despejos, tais como Alemanha, Argentina, Austrália, Canadá, Chipre, Colômbia, El Salvador, Emirados Árabes Unidos, Espanha, Estados Unidos da América, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Portugal e Reino Unido (KHOLODILIN, 2020KHOLODILIN, Konstantin A. Housing Policies Worldwide during Coronavirus Crisis: Challenges and Solutions, n. 2. Berlin: German Institute for Economic Research, 2020. Disponível em: https://www.econstor.eu/bitstream/10419/219095/1/1697310303.pdf. Acesso em: 11 abr. 2021.
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).

No Brasil, a única11 11 O Projeto de Lei 692/20 prevê a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, tanto na área urbana quanto rural, em caso de pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Embora apresentado à Câmara dos Deputados em 18/03/2020, o projeto não foi votado até a data de encerramento deste artigo. lei federal sobre o tema é a Lei 14.010/2020, que instituiu o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus. No entanto, seu escopo foi bastante limitado. A lei vedou apenas a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo - não dispôs sobre o cumprimento de sentença nas ações de despejo, nem sobre reintegrações de posse e imissões na posse.

No estado do Rio de Janeiro, a Lei 9.020/2021 foi além e suspendeu o cumprimento dos mandados de reintegração de posse, imissão na posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais até o término da calamidade pública estadual devido à pandemia causada pelo novo coronavírus.

No entanto, em 17/11/2020, o Desembargador Ferdinaldo Nascimento do TJRJ, nos autos da Representação de Inconstitucionalidade 0079151-15.2020.8.19.0000, suspendeu liminarmente a eficácia da lei e ela só voltou a vigorar em 23/12/2020, após decisão liminar do Ministro Ricardo Lewandowski na Reclamação 45.319, proposta pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro perante o STF. Mesmo com a reentrada em vigor da lei, a Campanha Nacional Pelo Despejo Zero (2021) identificou o cumprimento de mandados de reintegração de posse e remoção de pessoas no Rio de Janeiro.

Mais de um ano após o início da pandemia de Covid-19, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou recomendação12 12 Recomendação 90, de 2 de março de 2021, do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1256102021030560422a6ac453a.pdf. Acesso em 26 jul. 2021. sobre remoções forçadas, no entanto, limitou-se a sugerir aos juízes que avaliem “com especial cautela o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais”. Apesar de limitar-se às tutelas de urgência, o CNJ recomendou aos magistrados que verifiquem se foram atendidas as diretrizes da Resolução 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos antes de decidir pela expedição de mandado de desocupação coletiva13 13 A Resolução 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos recomenda aos agentes e instituições estatais a observância de garantias e medidas preventivas em conflitos fundiários coletivos. O documento incorpora as melhores práticas internacionais sobre remoções forçadas, inclusive o CG 7. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/outubro/resolucao-para-garantia-de-direitos-humanos-em-situacoes-de-conflitos-por-terra-e-aprovada-pelo-conselho-nacional-dos-direitos-humanos/copy_of_Resoluon10Resoluosobreconflitospossessriosruraiseurbanos.pdf. Acesso em: 26 jul. 2021. .

Em abril de 2021, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou perante o STF a ADPF 828, na qual pediu a suspensão de remoção e/ou desocupação, reintegrações de posse ou despejos em todo o território nacional, enquanto perdurar no Brasil a crise sanitária da Covid-19. Até o encerramento da coleta de dados, o pedido liminar não havia sido apreciado.

Há ampla evidência de que os conflitos possessórios não são adequadamente resolvidos pelo Judiciário brasileiro, pois os juízes tendem a privilegiar a propriedade em detrimento do direito à moradia (ABREU, 2011ABREU, João Maurício Martins de. A moradia informal no banco dos réus: discurso normativo e prática judicial. Revista Direito GV, v. 7, n. 2, p. 391-416, 2011.; CARMONA, 2015CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. A tutela do direito de moradia e o ativismo judicial. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5, n. 2, 2015. Disponível em: http://www.publicacoes.uniceub.br/index.php/RBPP/article/view/3075. Acesso em: 3 out. 2020.
http://www.publicacoes.uniceub.br/index....
; GNANN, 2020GNANN, Ana Lúcia Valim. Direito à moradia" sub judice": uma análise da atuação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no contexto da Reforma Urbana. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020. Acesso em: 21 out. 2020.; LOPES, 2014LOPES, Roberta Castilho Andrade. A construção do direito à moradia no Brasil: da formação da norma à judicialização no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2014. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.; MILANO, 2018MILANO, Giovanna Bonilha. Crônicas de despejos anunciados: análise das decisões em conflitos fundiários urbanos. Revista Direito e Práxis, v. 9, n. 3, p. 1249-1283, set. 2018. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2017/29547.
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; NASSAR, 2011NASSAR, Paulo André. Judicialização do direito à moradia e transformação social: análise das ações civis públicas da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito e Desenvolvimento) - Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2011. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/9158?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 out. 2020.
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; QUINTANS, 2005QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. A Magistratura Fluminense: seu olhar sobre as ocupações do MST. 2005. Dissertação (Mestrado em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional) - PUC, Rio de Janeiro, 2005.). Considerando-se a premente necessidade de isolamento e distanciamento social durante a pandemia, é importante verificar se essa tendência decisória foi afetada de alguma forma.

Recentemente foram realizados alguns estudos para examinar a resposta judicial aos conflitos possessórios durante a pandemia de Covid-19. Oliveira (2021) examinou 5 decisões sobre reintegrações de posse em tribunais distintos. Ribeiro e Cafrune (2020RIBEIRO, Tarcyla Fidalgo; CAFRUNE, Marcelo Eibs. Direito à moradia e pandemia: análise preliminar de decisões judiciais sobre remoções e despejos. Revista Brasileira de Direito Urbanístico, v. 10, p. 111-128, 2020.) colheram 33 decisões e descreveram profundamente 3 delas. Não conhecemos estudo que tenha coletado ampla base de dados e confrontado as decisões aos parâmetros internacionais sobre remoção de pessoas no período da pandemia de Covid-19.

II. Metodologia

Foram examinadas decisões proferidas pelo STF, STJ, TRF2 e TJRJ, entre 06/02/2020 e 06/02/2021, relativas a pedidos de reintegração de posse ou imissão na posse. O marco inicial da pesquisa se refere à data de edição da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas de enfrentamento da pandemia.

Os dois primeiros tribunais (STF e STJ) foram selecionados em razão do seu papel na uniformização da interpretação constitucional e infraconstitucional em todo o território brasileiro. Já os dois últimos (TJRJ e TRF2), porque estão sediados no estado que apresenta um dos maiores índices de mortes per capita decorrentes da Covid-19 no Brasil14 14 A pandemia é dinâmica, por isso a relação dos estados com maior número de mortes per capita varia no tempo. No entanto, o Estado do Rio de Janeiro apresentou consistentemente um dos maiores números desde o início da pandemia. Em agosto de 2020, se o Estado do Rio de Janeiro fosse um país, seria o segundo do mundo com o maior número de mortes por Covid-19 (COVID-19 ANALYTICS, 2020). Em janeiro de 2021, antes do surgimento da “nova variante brasileira” (cepa P.1), o Rio de Janeiro ainda era o estado com maior índice de mortes per capita do Brasil (PAINEL COVID-19 | CONGRESSO EM FOCO, 2021). . O nível de descontrole da pandemia demonstra a importância de se analisar a atuação do Judiciário no enfrentamento - ou agravamento - do problema.

A inclusão de dois tribunais superiores, um tribunal de justiça e um tribunal regional federal, permite a formação de um panorama diversificado da jurisprudência brasileira, já que combina competências distintas. O STF e STJ orientam a jurisprudência em todo o território nacional, embora apreciem o mérito de poucos casos de reintegração de posse e imissão na posse. O TJRJ, por sua vez, julga com maior frequência pedidos desse tipo porque possui competência residual e abrangente. O TRF2 foi incluído porque a Justiça Estadual não é competente para ações nas quais figurem a União ou uma de suas entidades15 15 Isso é especialmente relevante no caso do Rio de Janeiro, pois, sendo sede da antiga capital federal, preserva muitos imóveis sob propriedade da União — mais de 1.200 apenas na capital fluminense (LYNCH, 2017). Há ainda o domínio federal sobre os terrenos de marinha, os terrenos marginais aos 21 rios federais (SEMADS, 2001) e sobre a faixa de domínio das rodovias e ferrovias federais que cortam o estado. .

As decisões foram coletadas entre janeiro e abril de 2021, mediante acesso aos repositórios de jurisprudência mantidos no sítio eletrônico de cada tribunal. Não foi possível a consulta das decisões de primeiro grau porque o TJRJ não as disponibiliza em seu sítio eletrônico. Para manter a homogeneização dos resultados, descartamos as decisões de primeiro grau também do TRF2.

Não foi possível utilizarmos as mesmas palavras-chave em todos os buscadores de jurisprudência. Primeiro, porque a diferença de competência dos tribunais implica variadas frequências do tema no universo de decisões - e.g. o STF aprecia muito menos pedidos de reintegração de posse do que o TJRJ. Assim, as expressões de busca tiveram de ser mais específicas no segundo tribunal do que no primeiro, sob pena de inviabilização do trabalho. Segundo, porque o site de cada tribunal apresenta diferentes limitações de pesquisa em seu repositório de jurisprudência. O do STJ, por exemplo, aceita diversos operadores booleanos, em contraste com o do TRF2.

Em razão disso, as palavras-chave16 16 A busca no TRF2 apresentou inconsistência no uso de operadores booleanos e exigiu duas pesquisas distintas, uma para as decisões registradas no sistema Apolo (“reintegração de posse” e “imissão na posse”) e outra no sistema eProc ("reintegração de posse" AND morada OR moradia OR casa OR habitação OR habita OR reside OR ocupa -consumidor -veículo -automóvel). variaram conforme (i) a quantidade de decisões proferidas pelos tribunais durante o período examinado e (ii) as características do sistema de busca do site de cada tribunal. As expressões utilizadas resultaram de tentativa e erro podem ser visualizadas na Tabela 1:

Tribunal Parâmetro de busca STF e STJ ("imissão na posse" ou "reintegração de posse") não ("não conhecido" ou "nega seguimento" ou "não conheço" ou "nego seguimento") TRF2 “reintegração de posse” e “imissão na posse” / "reintegração de posse" AND morada OR moradia OR casa OR habitação OR habita OR reside OR ocupa -consumidor -veículo -automóvel TJRJ ("imissão na posse" ou "reintegração de posse") e (morada ou moradia ou casa ou habitação ou habita ou reside ou ocupa) não consumidor não veículo não automóvel

Foram lidas as ementas de todas as decisões indicadas nos resultados de busca. Nos casos em que a ementa indicava a adequação do julgado ao escopo da pesquisa ou não fornecia elementos suficientes para excluí-lo, o acórdão foi lido na íntegra.

Classificamos em planilha17 17 A planilha com todas as decisões examinadas pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico: https://docs.google.com/spreadsheets/d/18d3lBmaAbrVodmmhhc-hUSV3MmQFpNvGAWVHdMFiK-M/edit#gid=482401742. apenas as decisões que examinaram o mérito de pedidos18 18 A pesquisa compreendeu não apenas as ações de reintegração de posse e imissão na posse, mas também os pedidos dessa natureza formulados em outras ações, como ordinárias, demolitórias, de desapropriação e de inventário. O critério de inclusão, portanto, foi o pedido, não a classe processual. de reintegração de posse ou imissão na posse de imóveis residenciais. Excluímos as que se limitaram a questões processuais - por exemplo, não conheceram dos recursos ou decidiram sobre conexão e vícios procedimentais -, trataram de assunto diverso - como pedido de reintegração de posse de imóvel comercial - ou cujo acórdão não fosse suficiente para confirmar sua aderência ao escopo da pesquisa - por exemplo, quando não era claro se o imóvel disputado era utilizado com fins residenciais ou comerciais.

As decisões foram classificadas de acordo com as seguintes variáveis: (i) tribunal; (ii) número do processo; (iii) recurso; (iv) parte19 19 Como delimitamos o estudo às decisões que se referiam a imóveis residenciais, uma das partes necessariamente deve ser pessoa física. Em razão disso, classificamos apenas a contraparte. ; (v) resultado em relação ao ocupante atual do imóvel.

Quantos aos fundamentos, a classificação observou as seguintes categorias: (i) propriedade20 20 Menção direta ou indireta ao direito de propriedade. ; (ii) contrato21 21 Menção direta ou indireta a descumprimento de contrato (p. ex. comodato ou contrato vinculado ao Programa de Arrendamento Residencial). ; (iii) posse22 22 Menção direta ou indireta apenas à posse prévia do requerente, desvinculada do direito de propriedade. ; (iv) proteção ao meio ambiente; (v) interesse público; (vi) direito à moradia; (vii) função social da posse ou da propriedade; (viii) pandemia; (ix) outros.

Ainda sobre a classificação de fundamentos, os parâmetros internacionais do CG 7 para a remoção de pessoas foram assim categorizados: (i) inevitabilidade23 23 Menção à inexistência de alternativa à remoção. ; (ii) garantia de acomodação temporária, auxílio financeiro ou reassentamento; (iv) indenização; (v) devido processo legal24 24 Menção a consulta prévia aos atingidos, prévio aviso sobre a data da remoção, informação sobre o objetivo do ato, presença de autoridades, quando necessária, e assistência jurídica. .

Para medir o impacto do direito à moradia sobre os julgamentos de reintegração de posse e imissão na posse durante a pandemia, utilizamos um método de análise de jurisprudência que separa duas características distintas do direito em relação a cada julgado: visibilidade e eficácia. Por visibilidade entendemos o atributo do direito que é mencionado expressamente na decisão, independentemente do resultado; por eficácia, a capacidade de o direito determinar o resultado de um julgamento a seu favor, independentemente do fundamento expressamente invocado.

Há direitos que são visíveis, ou seja, são mencionados frequentemente, mas não interferem no resultado do julgamento. Aproximam-se mais de símbolos que de normas jurídicas, pois só corroboram valores sociais, assumem uma fórmula de compromisso dilatório ou constituem álibi para os governantes (NEVES, 2016, p. 31-42).

Por outro lado, há direitos que não são expressamente mencionados, mas ainda assim determinam o resultado de um litígio, pois são protegidos indiretamente por outras normas. É o caso de um princípio que, embora não invocado diretamente, é protegido por regras que o concretizam.

Trazendo essa ideia para o direito à moradia, podemos imaginar quatro cenários: a) alta visibilidade e alta eficácia: o direito é muito mencionado e impõe um julgamento favorável a sua proteção; b) baixa visibilidade e alta eficácia: o direito é pouco mencionado, mas os julgamentos lhe são favoráveis porque prestigiam normas que o materializam indiretamente; c) alta visibilidade e baixa eficácia: o direito normalmente é mencionado, mas preterido; d) baixa visibilidade e baixa eficácia: o direito é pouco mencionado e normalmente preterido.

Além de permitir a identificação de fundamentos ignorados25 25 Por ser comum a utilização de mais de um fundamento pelo julgador e nem sempre ser possível identificar aquele que prevalece, a simples menção a um deles foi considerada suficiente para sua inclusão na planilha. Assim, por exemplo, um acórdão que mencionou o direito à moradia apenas para dizer que ele não prevalece diante do direito de propriedade foi incluído na lista das decisões que mencionam ambos os argumentos. , esse método permite identificar argumentos que são mobilizados, mas não alteram o resultado do julgamento. Por exemplo, a menção ao direito à moradia não significa o reconhecimento da sua força normativa se isso ocorre em decisões que o afastam. Nesses casos, o direito é mencionado apenas para ser rejeitado. Se confirmado esse padrão decisório, será um indício de que, para os tribunais, o direito à moradia é desprovido de conteúdo obrigatório - ou de que os juízes não reconhecem a segurança da posse como elemento central do direito à moradia, em descompasso com os CGs 4 e 7 do CDESC.

É importante ressaltar algumas limitações da pesquisa. Não foram analisadas as razões recursais, isto é, consideramos apenas a fundamentação das decisões dos tribunais. Não foi possível identificar, por exemplo, se o direito à moradia e a pandemia foram invocados ou não pelas partes e, se invocados, foram ignorados pelos julgadores.

Além disso, analisamos apenas decisões em grau de recurso. É possível que alguns requisitos do CG 7 tenham sido observados pelos juízes de primeiro grau - por exemplo, determinando a identificação das autoridades responsáveis ao expedir o mandado de reintegração de posse.

Outra limitação é de ordem quantitativa. As palavras-chave foram escolhidas não para identificar todo o universo de decisões sobre reintegrações de posse e imissão na posse, mas para permitir a colheita de uma amostra grande o suficiente para permitir a identificação do padrão decisório de cada tribunal.

Por fim, embora tenhamos escolhido tribunais com competências diversas, o resultado da pesquisa não pode ser extrapolado para todo o país. Outros tribunais podem ter sido mais ou menos sensíveis à pandemia e apresentado padrão decisório mais ou menos hostil aos parâmetros internacionais sobre remoções forçadas.

III. Resultados

A pesquisa nos repositórios de jurisprudência dos tribunais retornou 894 decisões, das quais 291 atenderam aos critérios de inclusão, isto é, examinaram o mérito de pedido de reintegração de posse ou imissão na posse. A composição da amostra pode ser vista na tabela abaixo:

Tabela 1
Composição da amostra

b) Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça

A busca no STF retornou 55 resultados, dos quais 15 se inseriam no escopo da pesquisa. Todas as decisões selecionadas foram monocráticas. Não houve menção ao PIDESC nem aos CGs 4 ou 7. Houve apenas 226 26 Rcl 45319, STF; Pet 9382, STF. menções ao direito à moradia (7%) e 327 27 RE 1017365, STF; Rcl 45319, STF; Pet 9382, STF. à pandemia (20%).

Todas as decisões foram favoráveis ao ocupante atual do imóvel. Apesar disso, a maioria dos fundamentos foi alheia ao direito à moradia. Com exceção de dois casos, todos se referiam a disputas territoriais indígenas. Em 9 decisões28 28 SL 1151, STF; SL 926, STF; SL 1111, STF; SL 1156, STF; SL 1037, STF; SL 749, STF; SL 1197, STF; SL 1396, STF; SL 1218, STF. , o STF determinou a suspensão de reintegrações de posse em terras indígenas por entender que a situação já estava consolidada e a remoção apresentaria risco social. Em outras 329 29 Rcl 43907, STF; Rcl 38570, STF; Rcl 43058, STF. , apenas se cumpriu a decisão proferida no RE 1.017.365, na qual o ministro Edson Fachin determinou a suspensão nacional das ações possessórias vinculadas a disputas indígenas até o término da pandemia da Covid-19.

Os dois casos alheios a disputas indígenas foram a Reclamação 45319 e a Petição 9382. No primeiro, o ministro Ricardo Lewandowski determinou o restabelecimento da Lei 9.020/2021, do estado do Rio de Janeiro, que suspendeu o cumprimento dos mandados de reintegração de posse, imissão na posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais até o término da calamidade pública estadual devido à pandemia do coronavírus. O fundamento foi a possível violação de decisões anteriores do STF que reconheceram a competência concorrente dos entes federativos para adotar medidas de proteção à saúde pública durante a pandemia.

No segundo caso (Pet 9382), o ministro Alexandre de Moraes suspendeu os efeitos de decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que determinava a reintegração de posse contra cerca de 800 famílias. Ao deferir o efeito suspensivo ao recurso extraordinário30 30 O TJSP negou seguimento ao recurso extraordinário interposto pela Defensoria Pública em 05/11/2020. Não foi possível identificar a interposição de agravo em recurso extraordinário contra essa decisão do TJSP. , o ministro destacou a possível existência de violações processuais (ofensa à reserva de Plenário31 31 A ofensa à reserva de plenário decorreria da suposta inobservância pelo TJSP da Resolução 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que recomenda aos agentes e instituições estatais o cumprimento de diversas garantias em conflitos fundiários coletivos. Essa norma reproduz as diretrizes estabelecidas no CG 7. e ao princípio do devido processo legal) e materiais (discussão sobre a função social da propriedade e o direito à moradia). Além disso, mencionou a existência de risco de dano irreparável às famílias que seriam removidas, tendo em vista o recrudescimento da pandemia de Covid-19.

No STJ a busca retornou 254 resultados, dos quais 28 se inseriam no escopo da pesquisa. Quatro decisões foram colegiadas (3 da 3ª Turma e 1 da 4ª Turma) e 23 monocráticas.

Quanto ao resultado em relação ao ocupante atual do imóvel, 17 (61%) foram favoráveis e 11 (39%) desfavoráveis. Nenhuma mencionou expressamente o PIDESC ou os CGs 4 ou 7. Dos 4 requisitos do CG 7 para remoção forçada, apenas a indenização foi mencionada - e, em todos os casos, afastada. Os demais requisitos não foram considerados nem implicitamente. O direito à moradia foi mencionado em 232 32 Rcl 40798, STJ; MS 26691, STJ. decisões e a pandemia, em 333 33 MS 26691, STJ; Rcl 40798, STJ; Pet 13626, STJ. .

Das três decisões que citaram a pandemia, duas se referiam ao mesmo processo de origem. Trata-se das decisões proferidas no Mandado de Segurança 26691 e na Reclamação 40798, ambas do ministro Napoleão Nunes Maia Filho. O mandado de segurança foi impetrado para suspender uma ordem de reintegração de posse proferida em agravo de instrumento pelo TJSP, referente a uma propriedade rural. O ministro, embora tenha reconhecido sua incompetência para julgamento da ação mandamental, suspendeu a ordem de reintegração, pois os ocupantes eram pessoas vulneráveis e moravam e tiravam seu sustento daquela terra. O ministro compreendeu que a suspensão da ordem de reintegração de posse era uma medida humanitária, considerada a emergência sanitária causada pela Covid-19. Essas razões foram repetidas na Reclamação 40798, apresentada contra decisão de juiz de primeiro grau que determinou a expedição de mandado de reintegração de posse.

A outra decisão que citou a pandemia, proferida na Petição 13626, tratava de caso em que foi determinada a reintegração de posse de imóvel rural, onde a requerente residia e realizava atividade agropastoril. Na origem, deferiu-se a reintegração porque o contrato de comodato havia sido extinto, porém, deixou-se de analisar conjuntamente duas ações (usucapião e declaração de nulidade de escritura de compra e venda) reunidas ao processo de reintegração de posse. Ao apreciar o pedido, a ministra Nancy Andrighi deferiu a tutela de urgência no agravo em recurso especial, considerando a questão processual - pendência das ações conexas - e o perigo de a requerente, pessoa idosa, ser retirada do imóvel onde reside e de onde retira seu sustento no momento da pandemia, enfatizando os efeitos financeiros da crise que vivenciamos.

Embora o percentual de decisões favoráveis ao ocupante atual do imóvel tenha sido excepcionalmente alto no STF (100%) e relativamente alto no STJ (61%), isso não revela um padrão decisório favorável à manutenção da posse em geral. Excluindo-se os casos que envolviam disputas indígenas, a quantidade de decisões favoráveis cai para 2 no STF e 11 no STJ. Não é possível afirmar a existência de um padrão favorável à segurança da posse para além de disputas que envolvam direitos territoriais indígenas.

b) Tribunal Regional Federal da 2ª Região

A busca no TRF2 retornou 344 resultados, dos quais 101 se inseriam no escopo da pesquisa. Todas as decisões selecionadas foram colegiadas. Não houve menção ao PIDESC nem aos CGs 4 ou 7. Houve apenas 334 34 AI 5011984-97.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5008351-15.2019.4.02.0000, TRF2; AC 0049390-93.2016.4.02.5105, TRF2. menções à pandemia (3%) e 3235 35 AC 5003313-85.2019.4.02.5120, TRF2; AC 5005434-95.2019.4.02.5117, TRF2; AC 5007439-90.2019.4.02.5117, TRF2; AC 0038672-24.2017.4.02.5001, TRF2; AI 5001770-47.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5000889-07.2019.4.02.0000, TRF2; AC 0110211-27.2016.4.02.5117, TRF2; AI 5008352-97.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5002600-13.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5005558-06.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5004364-68.2019.4.02.0000, TRF2; AC 0028572-29.2016.4.02.5006, TRF2; AI 5006878-91.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5002529-11.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5001793-27.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5010771-90.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5007626-26.2019.4.02.0000, TRF2; AC 5064391-40.2019.4.02.5101, TRF2; AC 0130649-75.2014.4.02.5107, TRF2; AC 0027111-22.2016.4.02.5006, TRF2; AI 5005864-38.2020.4.02.0000, TRF2; AC 0027662-80.2017.4.02.5001, TRF2; AC 0000881-97.2013.4.02.5118, TRF2; AC 0130850-51.2015.4.02.5101, TRF2; AI 5009211-16.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5000619-46.2020.4.02.0000, TRF2; ED 0068506-29.2018.4.02.5101, TRF2; AC 0129482-07.2015.4.02.5101, TRF2; AC 0063548-17.2016.4.02.5118, TRF2; AC 0000763-48.2004.4.02.5115, TRF2; AC 0000207-37.2013.4.02.5113, TRF2; AC 0028348-44.2009.4.02.5101, TRF2. ao direito à moradia (32%).

Quanto ao resultado em relação ao ocupante atual do imóvel, 39 (39%) decisões foram favoráveis e 62 (61%) desfavoráveis. O direito à moradia foi mencionado em 32 decisões (32%), sendo que em apenas 7 a menção a esse direito resultou na manutenção do ocupante atual do imóvel.

A maioria das decisões do TRF2 tratou de reintegração de posse de imóveis no âmbito do Programa de Arrendamento Residencial ou de demolição de imóveis situados em faixa de domínio de rodovia. No primeiro caso, o direito à moradia geralmente foi invocado pelo tribunal para privilegiar o administrador do Programa de Arrendamento Residencial (Caixa Econômica Federal), em detrimento do ocupante/arrendatário. Entendeu-se que admitir a permanência do inadimplente no imóvel desestimularia a quitação por outros mutuários e impediria o acesso ao programa por pessoas que poderiam quitar as prestações. No segundo caso, os argumentos relacionados à propriedade ou interesse público prevaleceram sobre a segurança da posse.

Das decisões do TRF2 que citaram a pandemia, duas foram favoráveis ao atual ocupante e uma, desfavorável. O Agravo de Instrumento 5011984-97.2020.4.02.0000 consistiu em agravo de instrumento interposto contra decisão que indeferiu a imissão na posse em ação de desapropriação de imóvel residencial. O tribunal determinou a imissão na posse pelo DNIT, mas concitou o juiz de primeiro grau a analisar a necessidade de suspender temporariamente a medida em razão da pandemia de Covid-19.

No Agravo de Instrumento 5008351-15.2019.4.02.0000, o TRF2 determinou a reintegração da posse em favor da Caixa Econômica Federal de imóvel adquirido pelo PAR, caso frustrada a audiência de conciliação. Entretanto, condicionou a expedição do mandado de reintegração de posse ao fim da pandemia.

Na Apelação Cível 0049390-93.2016.4.02.5105, o tribunal manteve a sentença, assegurando à CEF a imissão na posse de imóvel leiloado para quitação de hipoteca, porém também condicionou a expedição do mandado de imissão na posse ao término da calamidade pública.

c) Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

A busca no TJRJ retornou 241 resultados, dos quais 147 se inseriam no escopo da pesquisa. Das decisões selecionadas, apenas 3 foram monocráticas. Quanto ao resultado em relação ao ocupante atual do imóvel, 71 (48%) foram favoráveis e 76 (52%) desfavoráveis. Houve menção ao PIDESC em 1 caso36 36 AI 0072332-62.2020.8.19.0000, TJRJ. , porém não foram mencionados os CGs 4 ou 7.

A pandemia foi mencionada em 1337 37 AI 0072332-62.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0059699-19.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0050654-88.2020.8.19.0000, TJRJ; AC 0018852-95.2018.8.19.0209, TJRJ; AI 0035059-49.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0039223-57.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0050816-83.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0075587-62.2019.8.19.0000, TJRJ; AI 0021512-39.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0083437-70.2019.8.19.0000, TJRJ; AC 0035798-42.2013.8.19.0202, TJRJ; AC 0035181-62.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0034578-86.2020.8.19.0000, TJRJ. decisões (9%), sendo que 10 delas foram favoráveis ao ocupante. Ou seja, em 3 decisões o TJRJ mencionou expressamente a pandemia, mas entendeu que isso não seria suficiente para postergar a remoção forçada.

Num desses casos38 38 AI 0050654-88.2020.8.19.0000, TJRJ. , o tribunal manteve a desocupação da recorrente porque ela se limitou a ”invocar a impossibilidade momentânea de deixar o imóvel diante do risco para sua saúde e também para o seu marido, portador de diversas comorbidades e quase octogenário”. Para o tribunal, naquela data “a pandemia já se mostra[va] bem mais controlada e previsível, viabilizando assim o prosseguimento da vida normal, com todas as cautelas recomendadas pelas autoridades sanitárias”. A decisão foi proferida em 05/11/2020. Segundo dados oficiais, naquela data a média móvel de novos casos por dia no estado do Rio de Janeiro era de 1.290. Ao final daquele mês, a média móvel foi de mais de 1.900 novos casos apenas no estado do Rio de Janeiro (BRASIL, 2021), o que demonstra a incorreção do argumento, pois a pandemia não estava controlada nem era previsível.

O direito à moradia foi citado em 16 decisões (11%), das quais 11 foram favoráveis ao ocupante. A maioria dos casos do TJRJ versou sobre contrato de comodato e sobre direitos sucessórios e de família. Em 89% dos casos envolvendo comodato, o tribunal privilegiou a propriedade e o cumprimento contratual39 39 O contrato de comodato é interpretado em prejuízo do comodante. Embora o art. 581 do Código Civil preveja que, não havendo prazo determinado, “presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido” e proíba que o comodante suspenda o uso e gozo da coisa emprestada “salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz”, a jurisprudência admite a retomada injustificada do imóvel a qualquer tempo pelo comodante. A interpretação conferida pelo judiciário esvazia a proteção garantida pelo Código Civil à segurança da posse do comodante. em detrimento da segurança da posse. Nos casos envolvendo direitos sucessórios e de família é difícil estabelecer uma tendência das decisões, pois as soluções variaram conforme o quadro fático de cada ação. Outro assunto frequente foi a imissão na posse em favor de adquirente de imóvel arrematado em leilão extrajudicial. Na maioria desses casos, a propriedade foi usada como argumento para deferir a imissão na posse, a despeito da menção ao direito à moradia.

O PIDESC foi citado no Agravo de Instrumento 0072332-62.2020.8.19.0000, interposto contra decisão de primeiro grau que determinou a expedição de mandado de imissão na posse em favor de adquirente do imóvel. O tribunal decidiu que no confronto entre os direitos de propriedade e à moradia, o último deveria prevalecer, pois é um direito fundamental que integra o mínimo existencial. A fundamentação citou ainda a pandemia, dificuldades financeiras da família e o fato de ela ser integrada por um bebê.

Chamou atenção também a decisão proferida no Agravo de Instrumento 0039223-57.2020.8.19.0000, que tratava de reintegração de posse movida por uma mulher em face de seu ex-companheiro. Ambos continuaram a coabitar no imóvel dela, mesmo após a dissolução da união estável. Depois de notificado para deixar o imóvel, o ex-companheiro alegou que, por ser idoso, seria vulnerável durante a pandemia e que possuía direito de retenção com relação a benfeitorias. Entretanto, o TJRJ manteve a decisão de primeira instância, considerando que, embora idoso, o recorrente exercia a profissão de médico e sua ex-companheira não poderia ser obrigada a conviver com ele.

Em resumo, constatamos uma relevante diferença entre os padrões decisórios do TRF2 e TJRJ, em harmonia com os achados de Ribeiro e Cafrune (2020RIBEIRO, Tarcyla Fidalgo; CAFRUNE, Marcelo Eibs. Direito à moradia e pandemia: análise preliminar de decisões judiciais sobre remoções e despejos. Revista Brasileira de Direito Urbanístico, v. 10, p. 111-128, 2020.). O direito de propriedade foi mais frequente nas decisões do TJRJ (42%) do que nas do TRF2 (17%). Em contraste, argumentos relacionados a descumprimento contratual foram mais presentes no TRF2 (50%) do que no TJRJ (19%).

A posse, discutida como direito autônomo, foi mencionada pelo TJRJ (38%), mas não pelo TRF2 (0%). Argumentos relacionados à proteção ao meio ambiente foram ausentes no TRF (0%) e raros no TJRJ (2%). Fundamentos relacionados à proteção do interesse público foram mais frequentes no TRF2 (16%) do que no TJRJ (5%).

O direito à moradia foi mais mencionado no TRF2 (32%) do que no TJRJ (11%), embora naquele a menção ao direito tenha resultado em julgamento favorável ao ocupante atual do imóvel em apenas 7 casos (7%). Nos demais 25 casos, o direito à moradia foi invocado apenas para se afirmar que ele não é absoluto ou para privilegiar o proprietário. A função social da posse ou da propriedade foi mencionada em proporções aproximadas no TJRJ (16%) e TRF2 (14%). A pandemia foi amplamente ignorada tanto pelo TJRJ (9%) quanto pelo TRF2 (3%). A usucapião foi encontrada em mais decisões do TJRJ (5%) do que do TRF2 (1%). As decisões envolveram outros fundamentos em 24% dos casos do TRF2 e 5% do TJRJ. A diferença do padrão decisório de ambos os tribunais está representada nas Figuras 1 e 2:

Figura 1
Distribuição dos fundamentos por tribunal

Figura 2
Resultado dos julgamentos em relação ao ocupante atual do imóvel (TJRJ x TRF2)

IV. Discussão

a) Decisões imunes à pandemia

Embora todas as 15 decisões do STF tenham sido favoráveis ao ocupante atual do imóvel, a pandemia foi citada em apenas 3 casos, sendo utilizada como fator de influência na decisão em 2 deles - Rcl 45319 e Pet 9382, já comentados. No STJ, das 28 decisões analisadas apenas 3 citaram a pandemia, todas favoráveis ao atual ocupante. Entretanto, duas dessas decisões que citaram a pandemia se referem ao mesmo processo de origem; a outra decisão cita a repercussão econômica da crise da Covid-19, não propriamente os riscos à saúde individual e coletiva.

No TRF2, de 101 decisões, apenas 3 citaram a pandemia, sendo que uma delas autorizou a reintegração de posse, ressalvando que no momento do cumprimento da ordem o juiz deveria analisar a situação concreta. As outras duas condicionaram o cumprimento da reintegração de posse ao fim da pandemia ou estado de calamidade pública.

O TJRJ também teve poucas menções à pandemia: apenas 13 em 147 (9%). Entretanto, em 3 desses casos a reintegração de posse foi mantida a despeito da menção à Covid-19, com argumentos que minimizaram a gravidade da epidemia.

No total de 291 decisões examinadas, a pandemia da Covid-19 somente foi mencionada em 22, ou seja, em 7,5% dos casos. Isso demonstra que, de modo geral, os tribunais foram pouco sensíveis aos impactos, já documentados (Nande et al. 2021NANDE, Anjalika; SHEEN, Justin; WALTERS, Emma L.; KLEIN, Brennan; CHINAZZI, Matteo; GHEORGHE, Andrei H.; ADLAM, Ben; SHINNICK, Julianna; TEJEDA, Maria Florencia; SCARPINO, Samuel V.; VESPIGNANI, Alessandro; GREENLEE, Andrew J.; SCHNEIDER, Daniel; LEVY, Michael Z.; HILL, Alison L. The effect of eviction moratoria on the transmission of SARS-CoV-2. Nature Communications, v. 12, n. 1, p. 2274, dez. 2021.), das desocupações forçadas sobre a disseminação do novo coronavírus.

A ausência de previsão legal para a suspensão das reintegrações de posse e imissão na posse não justifica a omissão judicial, pois compete aos juízes zelar para que o processo não se converta em instrumento de violação de direitos humanos. Novos estudos podem verificar se a Recomendação 90/2021 do Conselho Nacional de Justiça, que sugeriu cautela aos juízes ao analisar pedidos de tutela de urgência relacionados a desocupação coletiva de imóveis, produziu o efeito esperado.

b) Parâmetros internacionais invisibilizados

Das 291 decisões, apenas 1 mencionou o PIDESC, porém nenhuma fez menção aos Comentários Gerais 4 ou 7 do CDESC. Também não encontramos menção à expressão “segurança da posse” ou à inevitabilidade da remoção forçada. Não haveria desrespeito aos parâmetros internacionais se os tribunais os considerassem de maneira implícita, mas isso tampouco ocorreu. Com exceção dos casos relacionados a disputas indígenas e de uma40 40 AC 0006424-29.2012.8.19.0068, TJRJ. decisão do TJRJ, nenhuma examinou a inevitabilidade da remoção ou o risco de se colocar o removido em situação de rua.

As normas do Código de Processo Civil (CPC) foram aplicadas rigorosamente, ou seja, as reintegrações foram deferidas sempre que provadas a perda injusta da posse. Como regra geral, não se examinou se havia alternativas para a remoção (p. ex. a possibilidade de regularização da posse no caso de irregularidades fundiárias) e nem se a família removida seria atendida por alguma política pública de habitação.

Quanto à indenização aos removidos, somente se reconheceu o direito à retenção previsto no art. 1.219 do Código Civil (CC). Esse reconhecimento, porém, é insuficiente por várias razões: a) abrange apenas as benfeitorias necessárias e úteis41 41 O art. 1.220 do CC limita a indenização do possuidor de má-fé pelas benfeitorias necessárias, havendo ainda a escolha ao reivindicante de pagar o preço de custo ou seu valor atual. , excluindo a perda de renda e danos extrapatrimoniais decorrentes da remoção forçada; b) exclui os possuidores de imóvel erigido sobre terrenos públicos, em contraste com o CG 7.

As decisões dos tribunais ignoraram amplamente os parâmetros internacionais sobre direito à moradia e remoção de pessoas ao aplicarem as normas nacionais sobre o procedimento da reintegração de posse em detrimento do PIDESC, tal como interpretado nos CGs 4 e 7 do CDESC. Esse achado é compatível com pesquisas anteriores que indicam o afastamento do Brasil em relação ao direito internacional. Como observou Ana Paula de Barcellos (2019BARCELLOS, Ana Paula de. Constituição e pluralismo jurídico: a posição particular do Brasil no contexto latino-americano. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 9, n. 2, 18 out. 2019. Disponível em: https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/article/view/6053. Acesso em: 14 out. 2020.
https://www.publicacoes.uniceub.br/RBPP/...
), “os Tribunais brasileiros tendem a apresentar certa resistência à aplicação das normas de origem internacional, mesmo devidamente internalizadas, sobretudo quando haja algum aparente conflito com normas de origem interna”. As causas desse fenômeno merecem ser aprofundadas em futuras pesquisas.

c) Invisibilidade e ineficácia do direito à moradia

Apenas 1 decisão do STF mencionou o direito à moradia, havendo 2 menções dentre as decisões do STJ. No âmbito do TJRJ e TRF2, 16 e 32 decisões, respectivamente, mencionaram esse direito. Ou seja, do total de 291 decisões, apenas 17% mencionaram o direito à moradia. Esse baixo percentual de menções ao direito à moradia demonstra sua invisibilidade. Em casos envolvendo reintegrações de imóveis residenciais, era esperado que o direito à moradia fosse invocado frequentemente, ainda que para dizer que ele não garantia ao ocupante o direito de permanecer no imóvel.

Entretanto, o direito à moradia teve eficácia diferente em cada tribunal. À primeira vista, o STF e STJ poderiam se revelar particularmente sensíveis a esse direito, já que em todos os casos nos quais ele foi mencionado (1 no STF e 2 no STJ) o resultado foi favorável ao ocupante atual. No entanto, a diminuta quantidade de casos não permite extrair um padrão decisório sobre o tema.

No TJRJ, dos 16 casos que mencionaram o direito à moradia, 11 foram favoráveis ao atual ocupante. Contudo, em apenas 1 deles esse foi o fundamento principal. Nos demais casos, a fundamentação se concentrou na ausência de posse prévia do autor42 42 AC 0006737-81.2017.8.19.0078, TJRJ; AC 0074818-85.2018.8.19.0001, TJRJ. , falta de urgência da liminar43 43 AI 0065064-54.2020.8.19.0000, TJRJ. , possibilidade de aquisição da propriedade pelos ocupantes por usucapião44 44 AC 0007533-71.2011.8.19.0211, TJRJ. , ausência de prova de servidão administrativa sobre o imóvel45 45 AC 0045113-38.2015.8.19.0004, TJRJ. , longevidade e mansidão da posse dos ocupantes46 46 AC 0410153-05.2012.8.19.0001, TJRJ. , dúvida sobre a posse prévia do autor47 47 AI 0075587-62.2019.8.19.0000, TJRJ. , pandemia48 48 AI, 0021512-39.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0083437-70.2019.8.19.0000, TJRJ. e dúvida sobre a desapropriação ou sobre a servidão pública sobre o bem49 49 AC 0044026-47.2015.8.19.0004, TJRJ. . A menção ao direito à moradia serviu apenas como reforço argumentativo.

No TRF2, apenas 7 de 32 casos com menção ao direito à moradia foram favoráveis ao atual ocupante. Assim como no TJRJ, na maioria das vezes o direito à moradia foi citado como reforço argumentativo. O fundamento principal foi a quitação total50 50 AC 5007439-90.2019.4.02.5117, TRF2. ou substancial51 51 AI 5005558-06.2019.4.02.0000, TRF2. das prestações do Programa de Arrendamento Rural52 52 O PAR é uma política pública de acesso à moradia para a população de baixa renda. Nele o beneficiário paga uma prestação mensal pelo arrendamento do imóvel e, ao final, pode exercer a opção de compra do bem. (PAR) ou ausência de prova do inadimplemento53 53 AI 5002529-11.2020.4.02.0000, TRF2. . O direito à moradia só foi o fundamento claramente preponderante em 454 54 AI 5008352-97.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5006878-91.2019.4.02.0000; AI 5001793-27.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5010771-90.2019.4.02.0000, TRF2. decisões. Nas outras 25 das 32 vezes em que o direito foi mencionado, isso ocorreu não para privilegiar os atuais ocupantes, mas potenciais beneficiários do PAR55 55 As ações de reintegração de posse ou imissão na posse de imóveis integrantes do PAR costumam ter dois contextos fáticos. No primeiro, a ação é movida pela CEF e busca a reintegração da posse em razão do inadimplemento das prestações do arrendamento. No segundo, a ação é movida pelo adquirente do imóvel - a CEF já recuperou a posse indireta do bem e o levou a leilão. Em ambos os contextos os tribunais costumam privilegiar o direito à moradia não do ocupante atual, mas do arrematante presente ou futuro do imóvel. .

Embora o percentual de decisões favoráveis no TJRJ não tenha sido desprezível (39%), isso não significa que o direito à moradia tenha sido adequadamente protegido. Nossa amostra foi composta preponderantemente por pedidos de reintegração de posse. Muitas decisões favoráveis foram motivadas por um aspecto processual: ausência de prova da posse prévia pelo autor. Sendo o autor proprietário do imóvel ocupado, nada impede que ele ajuíze uma ação reivindicatória e expulse, assim, o ocupante atual. Dessa forma, além de invisibilizado, o direito à moradia possui baixa ou nenhuma eficácia por si só.

d) Legislação infraconstitucional inadequada

O Código Civil e Código de Processo Civil conferem baixa efetividade à participação processual dos não-proprietários. Não há no direito brasileiro dispositivo semelhante ao art. 26(3) da Constituição da República da África do Sul, que condiciona as ordens de desalojamento à análise de “todas as circunstâncias relevantes”. A posse é entendida como manifestação da propriedade, em contraste com a orientação internacional para a proteção jurídica das diversas modalidades de posse.

A aplicação acrítica do CPC leva à conclusão de que bastam a perda da posse para sua reintegração ou prova da propriedade para sua imissão. Embora o CPC de 2015 tenha avançado no tratamento das ações possessórias coletivas, prevendo a obrigatoriedade de audiência de mediação antes da apreciação de pedido de medida liminar em ações de posse velha (art. 565) e a intimação do Ministério Público (art. 565, § 2º) e dos órgãos responsáveis pelas políticas agrárias ou urbanas (art. 565), essas inovações não são suficientes para proteger adequadamente o direito à moradia. A desocupação forçada continua a ocorrer, independentemente do cumprimento da função social da propriedade e da existência de habitação alternativa para os desocupados vulneráveis.

V. Conclusão

O artigo verificou se as decisões do STF, STJ, TRF2 e TJRJ sobre reintegrações de posse e imissões na posse, proferidas entre 06/02/2020 e 06/02/2021, consideraram a pandemia de Covid-19 e respeitaram os parâmetros internacionais sobre remoção de pessoas, indicados no CG 7 do CDESC.

Após examinarmos 291 decisões, concluímos que: (a) a pandemia teve pouca influência nos tribunais; (b) os parâmetros internacionais sobre remoções forçadas foram amplamente ignorados; (c) o direito à moradia foi ineficaz para garantir a posse na maioria dos casos; (d) o direito à moradia foi protegido de modo insuficiente pela interpretação jurisdicional conferida ao Código Civil e Código de Processo Civil.

De modo geral, constatamos um descasamento entre a prática judicial nos tribunais examinados e os parâmetros internacionais sobre direito à moradia e remoção forçada. Embora uma aplicação estrita do Código Civil e do Código de Processo Civil possa conduzir a um resultado divergente, isso não justifica as graves violações de direitos humanos que resultam das remoções forçadas. Os juízes devem ser encorajados a considerar os parâmetros internacionais - especialmente os CGs 4 e 7 do CDESC - ao interpretarem o sentido e alcance da norma constitucional que garante o direito à moradia. A partir daí, devem interpretar a legislação civil e processual civil conforme a Constituição, o que significa reconhecer a segurança da posse e a excepcionalidade das remoções.

Não bastasse o caráter obrigatório das normas do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os critérios definidos pelo CEDESC são de possível cumprimento pelo Brasil. Eles exigem, no entanto, uma profunda mudança de mentalidade dos aplicadores da lei: a posse - não apenas a propriedade - deve ser verdadeiramente protegida. Além disso, a irregularidade das habitações deve deixar de ser encarada simplesmente como um ilícito, e ser percebida como uma consequência indesejada de profundos problemas sociais. Ninguém mora em condições precárias ou inseguras porque quer, mas por falta de alternativa.

As condições habitacionais das pessoas mais vulneráveis são marcadas por adensamento excessivo, insegurança física e falta de acesso a serviços básicos, como água e saneamento. Se em tempos normais possuir uma moradia adequada já era pré-condição para uma vida digna, durante a pandemia isso pode significar a diferença entre vida e morte - o pedido “fique em casa” não é meramente retórico, uma peça de publicidade. Compete a cada juiz, sob a vigilância dos tribunais superiores, da academia e da sociedade, zelar para que nenhum processo judicial seja instrumento de grave violação de direitos humanos.

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  • 1
    O governo federal brasileiro não foi apenas omisso ou elusivo no combate à pandemia, mas atuou proativamente na disseminação do novo coronavírus por uma estratégia institucional que visava a imunização coletiva por contágio (VENTURA; BUENO, 2021; VENTURA; REIS, 2021)VENTURA, Deisy de Freitas Lima; REIS, Rosana Rocha. An unprecedented attack on human rights in Brazil: the timeline of the federal government’s strategy to spread Covid-19. Offprint, n. 10. São Paulo: CEPEDISA/USP e Conectas Human Rights, 2021. Acesso em: 25 mar. 2021.. A resposta do governo federal à pandemia foi descrita como “uma perigosa combinação de inação e irregularidades” (CASTRO et al. , 2021).
  • 2
    A Campanha Despejo Zero é uma rede composta por mais de 100 entidades, entre elas a Habitat para a Humanidade Brasil — programa da Organização das Nações Unidas (ONU).
  • 3
  • 4
    O PIDESC entrou em vigor para o Brasil em 1992 e foi promulgado pelo Decreto 591/1992.
  • 5
    O CG 4, que define o direito à moradia adequada, foi o primeiro comentário do CDESC a dispor sobre um direito material previsto no PIDESC. Embora os comentários gerais não sejam formalmente vinculantes, eles possuem “considerável autoridade informal” (DONNELLY, 2013, p. 168)DONNELLY, Jack. Universal human rights in theory and practice. 3. ed. Ithaca: Cornell University Press, 2013..
  • 6
    O CDESC é um órgão composto por 18 especialistas independentes, criado para monitorar a implementação do PIDESC por seus Estados Partes.
  • 7
    A tradução literal de “forced evictions” para o português — evicções forçadas ou despejos forçados — pode gerar equívocos conceituais. Neste trabalho, utilizamos indistintamente as expressões “remoções forçadas” e “desocupações forçadas”.
  • 8
    O CG 7 define remoção forçada como a “remoção permanente ou temporária contra a vontade dos indivíduos, famílias e/ou comunidades das casas e/ou terras que ocupam, sem a provisão e o acesso a formas adequadas de proteção jurídica ou de outra natureza”.
  • 9
    Anistia Internacional c. Itália, n. 178/2019, 4 julho 2019.
  • 10
    P.H. e outros c. Itália (medidas provisórias), n. 25838/19, 20 maio 2019.
  • 11
    O Projeto de Lei 692/20 prevê a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, tanto na área urbana quanto rural, em caso de pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Embora apresentado à Câmara dos Deputados em 18/03/2020, o projeto não foi votado até a data de encerramento deste artigo.
  • 12
    Recomendação 90, de 2 de março de 2021, do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1256102021030560422a6ac453a.pdf. Acesso em 26 jul. 2021.
  • 13
    A Resolução 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos recomenda aos agentes e instituições estatais a observância de garantias e medidas preventivas em conflitos fundiários coletivos. O documento incorpora as melhores práticas internacionais sobre remoções forçadas, inclusive o CG 7. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/outubro/resolucao-para-garantia-de-direitos-humanos-em-situacoes-de-conflitos-por-terra-e-aprovada-pelo-conselho-nacional-dos-direitos-humanos/copy_of_Resoluon10Resoluosobreconflitospossessriosruraiseurbanos.pdf. Acesso em: 26 jul. 2021.
  • 14
    A pandemia é dinâmica, por isso a relação dos estados com maior número de mortes per capita varia no tempo. No entanto, o Estado do Rio de Janeiro apresentou consistentemente um dos maiores números desde o início da pandemia. Em agosto de 2020, se o Estado do Rio de Janeiro fosse um país, seria o segundo do mundo com o maior número de mortes por Covid-19 (COVID-19 ANALYTICS, 2020)COVID-19 ANALYTICS. Rio de Janeiro - A Situação em 22 de Agosto de 2020. 22 ago. 2020. COVID-19 Analytics. Disponível em: https://covid19analytics.com.br/publicacoes/. Acesso em: 18 jan. 2021.
    https://covid19analytics.com.br/publicac...
    . Em janeiro de 2021, antes do surgimento da “nova variante brasileira” (cepa P.1), o Rio de Janeiro ainda era o estado com maior índice de mortes per capita do Brasil (PAINEL COVID-19 | CONGRESSO EM FOCO, 2021).
  • 15
    Isso é especialmente relevante no caso do Rio de Janeiro, pois, sendo sede da antiga capital federal, preserva muitos imóveis sob propriedade da União — mais de 1.200 apenas na capital fluminense (LYNCH, 2017)LYNCH, Christian. Uma democracia, duas capitais: o que o Rio de Janeiro pode fazer pelo Brasil. Insight Inteligência (Rio de Janeiro), n. 78, p. 14-41, 10 set. 2017.. Há ainda o domínio federal sobre os terrenos de marinha, os terrenos marginais aos 21 rios federais (SEMADS, 2001) e sobre a faixa de domínio das rodovias e ferrovias federais que cortam o estado.
  • 16
    A busca no TRF2 apresentou inconsistência no uso de operadores booleanos e exigiu duas pesquisas distintas, uma para as decisões registradas no sistema Apolo (“reintegração de posse” e “imissão na posse”) e outra no sistema eProc ("reintegração de posse" AND morada OR moradia OR casa OR habitação OR habita OR reside OR ocupa -consumidor -veículo -automóvel).
  • 17
    A planilha com todas as decisões examinadas pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico: https://docs.google.com/spreadsheets/d/18d3lBmaAbrVodmmhhc-hUSV3MmQFpNvGAWVHdMFiK-M/edit#gid=482401742.
  • 18
    A pesquisa compreendeu não apenas as ações de reintegração de posse e imissão na posse, mas também os pedidos dessa natureza formulados em outras ações, como ordinárias, demolitórias, de desapropriação e de inventário. O critério de inclusão, portanto, foi o pedido, não a classe processual.
  • 19
    Como delimitamos o estudo às decisões que se referiam a imóveis residenciais, uma das partes necessariamente deve ser pessoa física. Em razão disso, classificamos apenas a contraparte.
  • 20
    Menção direta ou indireta ao direito de propriedade.
  • 21
    Menção direta ou indireta a descumprimento de contrato (p. ex. comodato ou contrato vinculado ao Programa de Arrendamento Residencial).
  • 22
    Menção direta ou indireta apenas à posse prévia do requerente, desvinculada do direito de propriedade.
  • 23
    Menção à inexistência de alternativa à remoção.
  • 24
    Menção a consulta prévia aos atingidos, prévio aviso sobre a data da remoção, informação sobre o objetivo do ato, presença de autoridades, quando necessária, e assistência jurídica.
  • 25
    Por ser comum a utilização de mais de um fundamento pelo julgador e nem sempre ser possível identificar aquele que prevalece, a simples menção a um deles foi considerada suficiente para sua inclusão na planilha. Assim, por exemplo, um acórdão que mencionou o direito à moradia apenas para dizer que ele não prevalece diante do direito de propriedade foi incluído na lista das decisões que mencionam ambos os argumentos.
  • 26
    Rcl 45319, STF; Pet 9382, STF.
  • 27
    RE 1017365, STF; Rcl 45319, STF; Pet 9382, STF.
  • 28
    SL 1151, STF; SL 926, STF; SL 1111, STF; SL 1156, STF; SL 1037, STF; SL 749, STF; SL 1197, STF; SL 1396, STF; SL 1218, STF.
  • 29
    Rcl 43907, STF; Rcl 38570, STF; Rcl 43058, STF.
  • 30
    O TJSP negou seguimento ao recurso extraordinário interposto pela Defensoria Pública em 05/11/2020. Não foi possível identificar a interposição de agravo em recurso extraordinário contra essa decisão do TJSP.
  • 31
    A ofensa à reserva de plenário decorreria da suposta inobservância pelo TJSP da Resolução 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que recomenda aos agentes e instituições estatais o cumprimento de diversas garantias em conflitos fundiários coletivos. Essa norma reproduz as diretrizes estabelecidas no CG 7.
  • 32
    Rcl 40798, STJ; MS 26691, STJ.
  • 33
    MS 26691, STJ; Rcl 40798, STJ; Pet 13626, STJ.
  • 34
    AI 5011984-97.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5008351-15.2019.4.02.0000, TRF2; AC 0049390-93.2016.4.02.5105, TRF2.
  • 35
    AC 5003313-85.2019.4.02.5120, TRF2; AC 5005434-95.2019.4.02.5117, TRF2; AC 5007439-90.2019.4.02.5117, TRF2; AC 0038672-24.2017.4.02.5001, TRF2; AI 5001770-47.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5000889-07.2019.4.02.0000, TRF2; AC 0110211-27.2016.4.02.5117, TRF2; AI 5008352-97.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5002600-13.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5005558-06.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5004364-68.2019.4.02.0000, TRF2; AC 0028572-29.2016.4.02.5006, TRF2; AI 5006878-91.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5002529-11.2020.4.02.0000, TRF2; AI 5001793-27.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5010771-90.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5007626-26.2019.4.02.0000, TRF2; AC 5064391-40.2019.4.02.5101, TRF2; AC 0130649-75.2014.4.02.5107, TRF2; AC 0027111-22.2016.4.02.5006, TRF2; AI 5005864-38.2020.4.02.0000, TRF2; AC 0027662-80.2017.4.02.5001, TRF2; AC 0000881-97.2013.4.02.5118, TRF2; AC 0130850-51.2015.4.02.5101, TRF2; AI 5009211-16.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5000619-46.2020.4.02.0000, TRF2; ED 0068506-29.2018.4.02.5101, TRF2; AC 0129482-07.2015.4.02.5101, TRF2; AC 0063548-17.2016.4.02.5118, TRF2; AC 0000763-48.2004.4.02.5115, TRF2; AC 0000207-37.2013.4.02.5113, TRF2; AC 0028348-44.2009.4.02.5101, TRF2.
  • 36
    AI 0072332-62.2020.8.19.0000, TJRJ.
  • 37
    AI 0072332-62.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0059699-19.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0050654-88.2020.8.19.0000, TJRJ; AC 0018852-95.2018.8.19.0209, TJRJ; AI 0035059-49.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0039223-57.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0050816-83.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0075587-62.2019.8.19.0000, TJRJ; AI 0021512-39.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0083437-70.2019.8.19.0000, TJRJ; AC 0035798-42.2013.8.19.0202, TJRJ; AC 0035181-62.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0034578-86.2020.8.19.0000, TJRJ.
  • 38
    AI 0050654-88.2020.8.19.0000, TJRJ.
  • 39
    O contrato de comodato é interpretado em prejuízo do comodante. Embora o art. 581 do Código Civil preveja que, não havendo prazo determinado, “presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido” e proíba que o comodante suspenda o uso e gozo da coisa emprestada “salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz”, a jurisprudência admite a retomada injustificada do imóvel a qualquer tempo pelo comodante. A interpretação conferida pelo judiciário esvazia a proteção garantida pelo Código Civil à segurança da posse do comodante.
  • 40
    AC 0006424-29.2012.8.19.0068, TJRJ.
  • 41
    O art. 1.220 do CC limita a indenização do possuidor de má-fé pelas benfeitorias necessárias, havendo ainda a escolha ao reivindicante de pagar o preço de custo ou seu valor atual.
  • 42
    AC 0006737-81.2017.8.19.0078, TJRJ; AC 0074818-85.2018.8.19.0001, TJRJ.
  • 43
    AI 0065064-54.2020.8.19.0000, TJRJ.
  • 44
    AC 0007533-71.2011.8.19.0211, TJRJ.
  • 45
    AC 0045113-38.2015.8.19.0004, TJRJ.
  • 46
    AC 0410153-05.2012.8.19.0001, TJRJ.
  • 47
    AI 0075587-62.2019.8.19.0000, TJRJ.
  • 48
    AI, 0021512-39.2020.8.19.0000, TJRJ; AI 0083437-70.2019.8.19.0000, TJRJ.
  • 49
    AC 0044026-47.2015.8.19.0004, TJRJ.
  • 50
    AC 5007439-90.2019.4.02.5117, TRF2.
  • 51
    AI 5005558-06.2019.4.02.0000, TRF2.
  • 52
    O PAR é uma política pública de acesso à moradia para a população de baixa renda. Nele o beneficiário paga uma prestação mensal pelo arrendamento do imóvel e, ao final, pode exercer a opção de compra do bem.
  • 53
    AI 5002529-11.2020.4.02.0000, TRF2.
  • 54
    AI 5008352-97.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5006878-91.2019.4.02.0000; AI 5001793-27.2019.4.02.0000, TRF2; AI 5010771-90.2019.4.02.0000, TRF2.
  • 55
    As ações de reintegração de posse ou imissão na posse de imóveis integrantes do PAR costumam ter dois contextos fáticos. No primeiro, a ação é movida pela CEF e busca a reintegração da posse em razão do inadimplemento das prestações do arrendamento. No segundo, a ação é movida pelo adquirente do imóvel - a CEF já recuperou a posse indireta do bem e o levou a leilão. Em ambos os contextos os tribunais costumam privilegiar o direito à moradia não do ocupante atual, mas do arrematante presente ou futuro do imóvel.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2021
  • Aceito
    22 Ago 2021
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