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Marx e a forma jurídica em O capital: um embate com Pachukanis

Marx and the juridical form in The Capital: a dialogue with Pachukanis

Resumo

Trataremos aqui da abordagem marxiana sobre a forma jurídica. Contrariando a tese pachukaniana sobre a relação entre a forma jurídica e a mercantil, procuraremos demonstrar que o autor de O capital dá um significado distinto à noção. Primeiramente, deve-se perceber que, na grande maioria das vezes, ela não aparece como “forma jurídica”, mas no plural. Posteriormente, há de se ver como que o conceito remete muito mais às diversas formas econômicas mediante as quais o Direito é real e efetivo na sociedade capitalista do que a uma conformação análoga à equivalência presente na troca de mercadorias. Com isso, há uma relação íntima entre as formas jurídicas, a propriedade privada e formas econômicas tratadas no livro III, como o juro e a renda fundiária.

Palavras-chave:
Marx; O capital; Forma jurídica; Pachukanis; Direito

Abstract

We will deal here with the Marxian approach to a juridical form. Contrary to a Pachukanian thesis about a relationship between juridical and mercantile form, we will try to demonstrate that the author of The Capital gives a different meaning to the concept. First, it should be noted that it usually does not appear as a “juridical form” but in the plural. Subsequently, it is possible to see that the concept refers much more to several figures that are real and effective in capitalist society than to a form analogous to the equivalence present in the exchange of commodities. There is a relationship between interest, rent and juridical forms, treated at book III.

Keywords:
Marx, The Capital; Juridical Form; Pachukanis; Law

Introdução

No presente artigo abordaremos um tema clássico da crítica marxista ao Direito. Trata-se da forma jurídica, consagrada por Pachukanis como o ponto de partida essencial do posicionamento marxiano – e marxista – sobre o Direito. (Cf. PACHUKANIS, 1988PACHUKANIS, E.P. Teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1988.) O autor é bastante conhecido por ter compreendido e aplicado o método de O capital de Marx, sendo praticamente consenso no Brasil – devido à importante influência de Márcio Naves (2000)NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. Boitempo: São Paulo, 2000. – tomar como suposta a fidelidade do jurista soviético ao legado marxiano. Isto é visto, geralmente, como algo incontestável. Diz Naves, neste sentido, “Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao Direito encontradas em O capital – e não seria exagero dizer que ele é o primeiro que verdadeiramente as lê – mas, principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx, ao recuperar o método marxiano.” (NAVES, 2000NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. Boitempo: São Paulo, 2000., p. 16) Ou seja, a partir deste ponto de vista, ao se ter em conta a relação entre Direito e marxismo, o ponto de partida de qualquer marxista deveria ser a obra pachukaniana de 1924, Teoria geral do Direito e o marxismo. A rigor, segundo a leitura de Naves, inspirada em um estudo cuidadoso de Althusser, Pachukanis teria trazido as passagens de O capital que fazem referência ao Direito com cuidado ímpar, sendo fiel ao método marxiano. (Cf. NAVES, 2000NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. Boitempo: São Paulo, 2000., 2014) Ou seja, no Brasil1 1 No presente texto, a partir das obras marxianas, debateremos principalmente com a tradição brasileira de crítica marxista ao Direito. Mesmo que seja possível trazer à tona os temas aqui abordados – e que giram em torno de aspectos essenciais do livro III de O capital – a partir do debate alemão sobre a nova leitura de Marx e sobre projeto da MEGA II, ainda em curso, não poderemos fazer isto neste espaço. Enfocaremos as edições correntes de O capital, não trazendo um debate filológico substantivo. A análise da filologia, porém, pode ser importante na continuidade da pesquisa sobre nosso tema, mesmo que seja preciso destacar que alguns pensadores (Cf. MARTINS, 2013) questionam certo apego exagerado à filologia por parte daqueles envolvidos no referido projeto. , o cenário da crítica marxista ao Direito tem como referência obrigatória a obra pachukaniana, de modo que deixar de considerar este importante autor seria, no mínimo, descuidado. No entanto, seria realmente possível tomar como o ponto de partida inquestionável na leitura de Marx a obra pachukaniana? Aqui, analisaremos o tema no que toca à forma jurídica, ou melhor, ao modo pelo qual a categoria formas jurídicas está em O capital.

A questão ainda ganha contornos essenciais na obra pachukaniana, ao passo que haveria uma relação entre forma mercantil e forma jurídica, o que estaria presente já na leitura da obra magna de Marx. Segundo esta interpretação, a posição inicial sobre a forma jurídica não precisaria mais ser buscada na escavação da obra do próprio Marx, tendo Pachukanis dado à tônica correta ao assunto, tanto no que toca à leitura de O capital quanto no que diz respeito à conformação do pensamento marxista. Ou seja, sobre este ponto, a fidelidade pachukaniana a Marx seria clara.

Ainda segundo o autor russo, haveria uma relação indissolúvel entre a forma jurídica e a forma mercantil. E, deste modo, “não deixa de existir um vínculo interno indissociável entre as categorias da economia mercantil e monetária e a própria forma jurídica”. (PACHUKANIS, 1988PACHUKANIS, E.P. Teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1988., p. 7) Assim, a noção de forma jurídica – relacionada às categorias da economia mercantil2 2 Como diz Pachukanis: “se a análise da forma-mercadoria revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e expõe as bases abstratas do esquema da ideologia jurídica, então o processo histórico de desenvolvimento da economia mercantil-monetária e mercantil-capitalista acompanha a realização desses esquemas na forma da superestrutura jurídica concreta. Na medida em que as relações entre as pessoas se constroem como relação de sujeitos, temos todas as condições para o desenvolvimento da superestrutura jurídica com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados, e assim por diante.” (PACHUKANIS, 2017, p. 62) – seria de enorme relevo tanto para a compreensão marxiana e marxista do Direito quanto no entendimento de uma importante dimensão da obra marxiana3 3 Para uma crítica a esta posição pachukaniana diante de Marx, Cf. PAÇO CUNHA, 2014, 2015. , aquela que diz respeito ao aspecto jurídico da sociedade capitalista, e mesmo na transição socialista. (Cf. GOLDMAN, 2014GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. Trad. Natália Alfonso. São Paulo: Boitempo, 2014.; HEAD, 2004HEAD, Michael O. Marxism, revolution and law: the experience of early Soviet Russia. Sidney: University of Western Sidney, 2004.) Tendo isto em conta, pretendemos analisar como a noção de forma jurídica aparece em O capital de Marx, obra na qual Pachukanis, em grande parte, baseia-se. Como pretendemos demonstrar, tal objetivo justifica-se, primeiramente, mas não só, pela posição que a categoria forma jurídica ocupa em O capital de Marx. Não obstante o tema parecer já estar resolvido na teoria marxista, nosso artigo pretende demonstrar que isto está longe de acontecer. Analisaremos, assim, primeiramente a posição da categoria formas jurídicas em O capital, depois, procuraremos explicitar algumas implicações importantes do fato de a expressão não aparecer explicitamente no livro I, mas no livro III; posteriormente, analisaremos as passagens do livro III da obra magna de Marx em que a categoria aparece tendo em conta a noção de justiça, a forma econômica do juros e, por fim, a forma da renda fundiária.

1. Pachukanis diante da posição da forma jurídica em O capital

Um passo anterior à aceitação da análise pachukaniana sobre Marx, portanto, passa por uma análise da categoria formas jurídicas (e não forma jurídica já que a expressão geralmente aparece no plural) em O capital. Intentamos realizar esta tarefa aqui a partir daquilo que o filósofo brasileiro José Chasin chamou de análise imanente, e que só pode partir da compreensão dos termos do próprio Marx, da objetividade de seu texto, no caso de O capital. 4 4 Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação ideal – em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26)

Uma questão anterior se põe, porém: trataremos aqui do modo pelo qual se dá a análise marxiana das formas jurídicas. E mesmo que o posicionamento de Marx for distinto daquele de Pachukanis, isto não inviabiliza a teoria pachukaniana, como teoria marxista. Ela, em diversos sentidos, podemos dizer, destaca-se mais pelas suas contribuições originais – em grande parte, elaboradas em meio ao desenvolvimento inicial da Revolução Russa (Cf. HEAD, 2004HEAD, Michael O. Marxism, revolution and law: the experience of early Soviet Russia. Sidney: University of Western Sidney, 2004.) - que por sua análise do corpus da obra marxiana. (Cf. SARTORI, 2015) Porém, há de se perceber: certamente é diferente considerar que o tratamento do autor da Teoria geral do Direito e o marxismo é aquele propriamente marxiano sobre a questão e compreender que não se trata exatamente disso. Noutros lugares, a questão já foi colocada sobre a categoria de pessoa em Marx e em Pachukanis (Cf. SARTORI, 2019 a), bem como sobre o método pachkaniano (Cf. SARTORI, 2015; PAÇO CUNHA 2014PAÇO CUNHA, Elcemir. Considerações sobre a determinação da forma jurídica a partir da mercadoria. Crítica do Direito, n. 64. São Paulo: Mackenzie, 2014., 2015) e sobre a relação entre fetichismo da mercadoria e fetichismo jurídico (Cf. PAÇO CUNHA, 2015) de modo que é bom realizar também uma análise detida sobre categoria formas jurídicas, ao se ter em conta Pachukanis, mas procurando primeiramente compreender como que a categoria – central à crítica marxista do Direito – aparece em O capital.

Isto pode ser importante, não para desvalorizar a obra do autor soviético, mas para mostrar que é possível ser fiel à obra marxiana sem necessariamente ter como ponto de partida primordial, e a qual todos os elementos do Direito devem retornar, o seguinte: a tese sobre a relação entre forma mercantil, jurídica e as categorias do sujeito de direito e de contrato.5 5 Pachukanis menciona “a crítica de Marx do sujeito de direito, que deriva imediatamente da análise da forma-mercadoria”. (PACHUKANIS, 2017, p. 61). Se Pachukanis mostrou que não se pode desconsiderar os aspectos da obra marxiana que passam por isto, talvez, ao tratar do Direito – e das transações, das ficções e das formas jurídicas – o central não esteja somente na ênfase trazida pelo autor soviético a partir do livro I. E deve-se dizer: tal abordagem, com a qual pretendemos debater, tem maior centralidade que no autor da Teoria geral do Direito e o marxismo em autores brasileiros como Márcio Naves (2000NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. Boitempo: São Paulo, 2000., 2014), Celso Naoto Kashiura Jr. (2009, 2014) e, de modo mais didático – com influência de Hirsch – Alysson Mascaro (2012).6 6 Dizemos influência neste ponto porque, em grande parte, as intervenções de Mascaro vêm em livros didáticos, em que não é possível – ao menos neste caso – explicitar devidamente as influências. No texto autoral Estado e forma política (2013) não há citações e, assim, mesmo com extensa bibliografia, não é possível perceber com clareza absoluta a que autor o marxista brasileiro se refere em cada momento de seu texto. Outro texto autoral de Mascaro é Utopia e Direito (2008), em que analisa o pensamento de Bloch. No entanto, as análises deste livro são pouco retomadas nas demais intervenções do autor, de modo que somente podemos, com certeza, apontar influências neste ponto. Por isso também, no Brasil, é preciso analisar a temática com bastante cuidado, reconhecendo os méritos do jurista soviético, que não são poucos (Cf. SARTORI, 2015), e questionando se realmente seu ponto de partida é, no que toca a leitura de Marx, correto. Para tanto, é bom situar a teorização pachukaniana.

Pachukanis, na esteira de autores como Isaac Rubin (1987)RUBIN, Isaac Illich. Teoria marxista do valor. Trad. José Bonifácio de S. Amaral Filho. São Paulo: Polis, 1987., que têm por central a categoria sociedade mercantil, vem a enfatizar bastante a importância do capítulo I de O capital. Lá Marx analisa a mercadoria e, a partir dela, expõe as determinações gerais do valor. Com isso, tem-se um passo importante no campo do marxismo: destacar a teoria do valor e sua relevância no tratamento tanto da economia política (em uma crítica à economia política) quanto ao se ter em mente o Direito ou qualquer outro fenômeno social. Os méritos pachukanianos, ainda mais quando se considera a escassez de abordagens como esta na década de 1920 (Cf. ANDERSON, 2004ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Trad. Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2004.), é gigantesco. Ele, juntamente com György Lukács em História e consciência de classe (2003), trouxe à tona certa centralidade da temática do fetichismo da mercadoria. E isto não é pouco diante de um cenário marcado por certas tendências positivistas do “marxismo” de um Kautsky, na Segunda Internacional, ou de Bukharin, ambos duramente criticados por Lukács.7 7 Sobre as afinidades entre Pachukanis e História e consciência de classe, Cf. PAÇO CUNHA, 2015.

Ao mesmo tempo, porém, é preciso destacar: ao analisarmos a obra marxiana com cuidado, percebemos que, de modo algum, é possível derivar toda a analítica de O capital8 8 Sobre o estatuto da analítica presente em O capital, Cf. ALVES, 2013. do fetichismo da mercadoria (Cf. ALVES, 2013); e isto se dá até mesmo porque os livros II e III não podem – como parece sugerir Lukács em História e consciência de classe – ser vistos como se suas determinações estivessem no livro I e, em especial, no capítulo I da obra principal de Marx. Em verdade, ao se ter contato com a totalidade de O capital, percebe-se que as várias metamorfoses da mercadoria precisam ser analisadas com cuidado, tendo-se, ao mesmo tempo, desdobramentos da forma-mercadoria e a autonomização de formas e figuras econômicas que se afastam da primeira. Juros, renda, por exemplo, não podem ser explicados sem esta simultânea indissociabilidade e autonomização diante da mercadoria. Figuras econômicas concretas, como lucro, ganho empresarial, preço de custo tampouco podem ser vistas somente ao se ter como referência o fetichismo da mercadoria. E, com isto, é necessário que se considere os diferentes níveis de abstração em que aparecem as formas jurídicas em O capital. Estando elas presentes principalmente no livro III, deve-se considerar as especificidades deste livro, de modo a, no mínimo, complementar a análise que se tornou clássica da forma jurídica, aquela trazida por Pachukanis a partir do livro I.

Ou seja, Pachukanis, juntamente com importantes autores, procura enfatizar tanto a importância da teoria do valor marxiana quanto à necessidade de se remeter ao fetichismo da mercadoria ao tratar da sociabilidade como um todo. Com isto, há uma ênfase bastante grande no livro I de O capital e, em especial, no final deste capítulo. Ou seja, com Rubin e Lukács de História e consciência de classe, o autor de Teoria geral do Direito e o marxismo traz uma grande centralidade ao livro I de O capital. E é preciso dizer com todas as palavras: mesmo que tal abordagem possa trazer exageros, há de se considerar sua sofisticação e o modo pelo qual ela rompe com o marxismo ossificado da II Internacional. (Cf. PAÇO CUNHA, 2015) Tem-se, assim, que, deste modo, o processo imediato de produção, e a oposição entre as classes fundamentais da sociedade capitalista – burguesia e proletariado –, tratados no livro I, ganham espaço na leitura dos autores mencionados. Nas interpretações mais sofisticadas deste processo, isto se dá ao passo que a conformação mercantil – e, de certo modo, fetichizada – desta sociedade aparece de modo explícito. Isto se passa com Lukács, com Rubin e com Pachukanis de modo claro. No entanto, ao se ter isto em mente, uma questão importante sobre o tema diz respeito ao modo pelo qual o fetichismo aparece nos outros livros de O capital. E aqui vale uma ressalva: por mais que esta seja uma questão aparentemente de mero interesse filológico e voltado ao estudo específico da arquitetura de O capital, isto não acontece em nosso caso. Pachukanis tem por central o capítulo I de O capital, e a sua relação com o primeiro parágrafo do capítulo II da mesma obra – parágrafo este de onde o autor retira grande parte de suas conclusões sobre a relação entre sujeito de direito, contrato, forma mercantil e jurídica. 9 9 Eis a passagem marxiana, central para Pachukanis: “as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma.” (MARX, 1996, p. 79) Para uma análise da passagem tendo em conta a arquitetura do livro I, Cf. SARTORI, 2019 a. A crítica à relação entre forma mercantil e jurídica se encontra também em PAÇO CUNHA, 2014. Nela, Marx fala que a relação jurídica em tela tem por forma o contrato. Pachukanis, retira desta passagem, bem como da leitura do livro I, o conceito de forma jurídica. No entanto, há de se notar que ele está somente implícito na passagem. Esta leitura pode ser ratificada pelas Glossas sobre Wagner, em que, no mesmo contexto, Marx fala de forma jurídica: “mostrei na análise da circulação de mercadorias que no escambo desenvolvido as partes se reconhecem tacitamente como pessoas iguais e como proprietários dos respectivos bens a serem por eles trocados; eles já o fazem ao oferecer uns para os outros seus bens e ao entrar em acordo uns com os outros sobre o negócio. Essa relação fática que se origina primeiro na e através da própria troca adquire mais tarde forma jurídica no contrato etc.; mas essa forma não cria nem o seu conteúdo, a troca, nem a relação nela existente das pessoas entre si, mas vice-versa.” (MARX, 2017, p. 273) Porém, há de se notar que a principal passagem utilizada por Pachukanis para defender sua principal tese traz a categoria de modo somente implícito. Como veremos mais à frente do texto, caso se queira trazer o assunto à tona com mais cuidado, é necessário voltarmos os olhos para o livro III de O capital. Com isto, o autor da Teoria geral do Direito e o marxismo retira do livro I sua parte substancial de teoria sobre a relação entre forma jurídica e forma mercantil. No entanto, a categoria forma jurídica, mesmo que possa ser pressuposta de certo modo, não aparece no livro I. Ela somente vem a aparecer no livro III, em que se tem formas econômicas, como a renda, por exemplo, cuja forma de apresentação é ainda mais fetichista que aquela da mercadoria. Diz Marx nas Teorias do mais-valor que “a forma e as fontes da renda (revenue) constituem a expressão mais fetichista das relações da produção capitalista. Está aí a existência dessas relações tal como aparece na superfície uma existência separada dos nexos ocultos da medulado dos elos intermediários.” (MARX, 1980, p. 1493)10 10 Embora nossa análise seja focada no livro III, utilizaremos também passagens do livro I de O capital para que se compreenda a relação da obra como um todo. Passaremos também, principalmente ao tratar dos juros e da renda da terra por algumas citações das Teorias do mais-valor. Ou seja, enfatizar o fetichismo da mercadoria, bem como sua relação com o Direito, sem tratar cuidadosamente de outras formas fetichizadas do livro III – bem como do fetiche do dinheiro – seria bastante temerário. Para a análise da categoria formas jurídicas na obra marxiana, acreditamos, isto é de enorme relevo.

Ou seja, a noção de forma jurídica de Pachukanis é desenvolvida, em grande parte, sem suporte textual explícito da obra marxiana. E mesmo que se possa considerar a análise pachukaniana do livro I como correta, ao tratar das formas jurídicas, é preciso remeter às figuras econômicas presentes no livro III. Isto, como já mencionado, não faz com que se descarte a teoria pachukaniana, ou que não se reconheça os méritos dela. Porém, certamente traz uma nova dimensão a ser analisada ao se tratar do Direito em O capital. É preciso perceber que passa longe de ser uma obviedade trazer à tona, a partir de Marx, a relação entre forma mercantil, portadores de mercadorias, forma jurídica e sujeito de direito. (Cf. SARTORI, 2019 a) Não necessariamente o jurista soviético acerta completamente ao creditar à obra marxiana, neste ponto, sua teoria sobre a correlação entre forma jurídica, forma mercantil, fetichismo jurídico e fetichismo da mercadoria. (Cf. PAÇO CUNHA, 2015) E, por isso, é importante ver como que a categoria formas jurídicas aparece no próprio Marx, mais especificamente, no livro III. E, ao tratar do autor alemão não podermos simplesmente remeter à obra pachukaniana; a análise do jurista soviético – por mais interessante que seja – neste ponto específico, não condiz com aquela da obra magna de Marx.

Pachukanis, mesmo conhecendo o livro III de O capital – que cita três vezes em sua obra clássica –, não traz passagens de Marx sobre as formas jurídicas. Menciona o texto marxiano para falar da ideia jurídica presente na renda, ao tratar do capital usurário como uma forma antediluviana, e ao trazer à tona a relação entre propriedade e poder. 11 11 Pachukanis se refere ao livro III de O capital: ao falar da renda: “’a própria ideia jurídica significa apenas’, escreve Marx, ‘que o proprietário fundiário pode proceder com a terra tal como o proprietário de mercadorias o faz em relação a estas últimas’” (PACHUKANIS, 2017, p. 118) Depois, ao falar “do capital usurário, que ‘com seu irmão gêmeo, o capital comercial’, para usar expressão de Marx, ‘[figura] entre as formas antediluvianas do capital, que precedem por longo tempo o modo de produção capitalista e podem ser encontradas nas mais diversas formações econômicas da sociedade’” (PACHUKANIS, 2017, p. 133) Posteriormente, ao falar do feudalismo, o autor diz sobre o poder e a propriedade privada: “a analogia com as relações feudais não é, neste caso, absolutamente precisa. Como explica Marx, ‘[...] a autoridade que o capitalista assume no processo direto de produção como personificação do capital, a função social de que ele se reveste como condutor e dominador da produção, é essencialmente diferente da autoridade fundada na produção com escravos, servos etc. Enquanto na base da produção capitalista a massa dos produtores imediatos é confrontada com o caráter social de sua produção na forma de autoridade rigorosamente reguladora e de mecanismo social do processo de trabalho articulado como hierarquia completa – autoridade que, no entanto, só recai em seus portadores como personificação das condições de trabalho diante do trabalho, e não, como em formas anteriores de produção, como dominadores políticos ou teocráticos –, entre os portadores dessa autoridade, os próprios capitalistas, que só se confrontam como possuidores de mercadorias, reina a mais completa anarquia, dentro da qual o nexo da produção social só se impõe como lei natural inexorável à arbitrariedade individual.’” (PACHUKANIS, 2017, p. 145) Ou seja, não são todas as passagens sobre o Direito da obra magna de Marx que o autor analisa com cuidado; mesmo que as passagens mencionadas pelo autor soviético tenham bastante relação com a concepção marxiana de formas jurídicas (como veremos à frente), ele não aprofunda exegese das passagens que menciona.

Em verdade, parte substancial da leitura pachukaniana decorre de uma correlação – muito interessante e bem desenvolvida, é verdade – entre o capítulo I de O capital e o primeiro parágrafo do capítulo II. (Cf. SARTORI, 2019 a) As passagens sobre Direito na principal obra de Marx, em verdade, são bastante abundantes e não poderiam ser tratadas em um pequeno livro como Teoria geral do Direito e o marxismo, que – sejamos corretos com o autor – não é sequer uma obra que tenha grandes pretensões (como hoje, retrospectivamente, ela parece ser). Diz explicitamente o jurista soviético: “o presente trabalho não pretende ser de jeito nenhum fio de Ariadne marxista no domínio da teoria geral do Direito; ao contrário, pois em grande parte foi escrito objetivando o esclarecimento pessoal.” (PACHUKANIS, 1988PACHUKANIS, E.P. Teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1988., p. 1) Mesmo que o livro pachukaniano tenha uma contribuição significativa no debate marxista, e sendo efetivamente, como quer Márcio Naves, um “clássico insuperável” (NAVES, 2017, p. 1), ele não pretende, nem um tratamento exaustivo do Direito em Marx, nem estabelecer a linha vermelha do debate na tradição de crítica marxista ao Direito. Ou seja, também por isto, embora não só, pode ser necessária uma análise exaustiva do pensamento de Marx no que toca o Direito12 12 Só para que mencionemos estudos importantes recentes que se colocam nesta esteira, vale trazer à tona PEREIRA NETO, 2018; PALU, 2019; PARREIRA, 2019; MEDRADO, 2019. e vale também – no futuro, e com cuidado – pensar qual seria, afinal de contas, a linha vermelha (se é que há somente uma) ao se ter em conta a crítica marxista do Direito, no que, certamente, uma leitura atenta de Marx pode contribuir.

Para o que nos diz respeito aqui, é possível dizer que um tratamento da categoria formas jurídicas deve remeter também ao livro III de O capital, sendo insuficiente, para este propósito específico, a análise – mesmo que cuidadosa – do livro I da obra magna de Karl Marx.

2. Algumas importantes implicações da posição da forma jurídica em O capital

Antes de passarmos à análise das passagens em que Marx explicitamente desataca as formas jurídicas, no entanto, ainda são necessários alguns esclarecimentos sobre o livro III e sobre a própria noção de formas jurídicas. Primeiramente, é bom que se diga sobre estas últimas que são poucas as referências a elas, de modo que – ao contrário do que acontece em Pachukanis - não é central a noção de forma jurídica (ou formas jurídicas) no tratamento marxiano do Direito.

No que diz respeito ao livro III de O capital, isto precisa ser enfatizado, não porque não exista uma unidade entre os livros de que compõem a obra magna de Marx. Acreditamos que há, em verdade, tal unidade. (Cf. DEUS, 2014DEUS, Leonardo de. No meio do caminho tinha a mercadoria. Mariana: UFOP, 2014.) Mas porque o nível de concretude bem como das suposições dos livros I e III é bastante distinto: ao passo que o livro I procura tratar dos elementos essenciais à conformação da relação-capital como tal, o livro III traz à tona o modo pelo qual a efetividade (Wirklichkeit) da sociedade capitalista se apresenta fenomenicamente aos portadores práticos das relações econômicas. Ou seja, no início de O capital, Marx mostra a figura medular do processo social de produção ao passo que, no final, ele explicita como que, sobre isto, emergem formas econômicas que, ao mesmo tempo em que supõe, parecem negar tal figura medular mencionada. (Cf. SARTORI, 2019 b, c) É diferente analisar a essência das relações sociais de um determinado modo de produção e o modo pelo qual esta essência se apresenta aos agentes práticos da produção, inclusive, em suas representações.13 13 Sobre a relação entre modo de representação e de apresentação no livro III, Cf. GRESPAN, 2019. No que diz respeito ao debate filológico em torno do livro III e do papel de Engels neste livro, não poderemos o trazer aqui. Porém, remetemos ao texto de ROTH (2015), em que se trata do papel de Engels, ao nosso ver, de modo cuidadoso e correto.

Estes portadores práticos podem ser parte de diversas classes sociais, como a burguesia comercial, industrial, financeira, os camponeses, a pequena burguesia, a aristocracia financeira, o proletariado industrial, os trabalhadores subordinados ao capital comercial, entre outras. Ao passo que o mais-valor é produzido na oposição basilar entre capital e trabalho – que se coloca de modo mais pungente, embora não só, no capital industrial (Cf. COTRIM, 2013COTRIM, Vera. Trabalho produtivo em Karl Marx: novas e velhas questões. São Paulo: Alameda, 2013.) e que é analisado no processo imediato de produção, tratado no livro I – a distribuição do mais-valor, bem como sua realização no consumo, passam por diversas classes e pela compreensão do processo global. Este processo envolve a reprodução do capital em meio à correlação entre produção, distribuição, circulação, troca e consumo. Assim, tratar das formas jurídicas, ao modo de Marx, não significa trazer à tona uma problemática que incida de imediato, na oposição entre burguesia e proletariado. Mesmo que isto possa se dar de certo modo ao passo que as relações jurídicas cujo conteúdo econômico está no assalariamento passam pela forma jurídica do contrato, no livro III, em que as formas jurídicas são mais proeminentes, a questão aparece pressuposta.

A categoria formas jurídicas, em Marx, aparece muito mais relacionada a relações sociais que não envolvem diretamente tal oposição, portanto. Pode-se dizer, assim, que a correlação entre as formas jurídicas e a conformação da relação-capital é bastante mediada e meandrada, mesmo que ela se coloque ao fim. Para o que nos diz respeito, de imediato, devemos destacar: o livro III, mesmo passando pela análise da concorrência, não tem por central a análise do processo de circulação (tratado no livro II) e, desta maneira, é preciso destacar que o modo pelo qual o Direito se coloca nesta parte da obra marxiana é distinto daquele presente na análise pachukaniana, em que o principal está na correlação entre Direito, o valor (e, portanto, a produção de mais-valor) e circulação de mercadorias.14 14 Para ele, no capitalismo, “o vínculo social da produção apresenta-se, simultaneamente, sob duas formas absurdas: como valor de mercadoria e como capacidade do homem de ser sujeito de direito.” (PACHUKANIS, 2017, p. 121). Marx analisa – e trata das formas jurídicas nesta seara – formas econômicas que são metamorfoses da forma-mercadoria, mas que se autonomizam frente a esta. E não se pode confundir formas sociais que lidam com formas econômicas autonomizadas com aquelas que se põem diante da própria forma-mercadoria. (Cf. GRESPAN, 2019) E, também por isto, há implicações importantes em as formas jurídicas serem analisadas no livro III.

A questão é bastante importante para nós. Isto se dá porque na efetividade e na imediatez da sociedade capitalista aquilo que parece presidir o processo de distribuição do mais-valor não é o trabalho, como acontece no livro I de O capital. Antes, tem-se uma grande importância a ser atribuída à propriedade privada, e à titularidade jurídica desta propriedade. (Cf. GRESPAN, 2011GRESPAN, Jorge. As formas da mais-valia: concorrência e distribuição no livro III de O capital. In: Crítica marxista 33. São Paulo: Unesp, 2011 (pp.9-30).) A relação entre trabalho e capital no livro III – e na própria realidade efetiva da sociedade – aparece, ao mesmo tempo, como pressuposta e como algo que não está realmente em jogo quando o Direito atua, segundo Marx, por meio do Estado e da sua imposição diante dos indivíduos e classes. (Cf. SARTORI, 2019 b, c) Assim, já se pode destacar: a posição segundo a qual: “o caminho que vai da relação de produção à relação jurídica, ou relação de propriedade, é mais curto do que pensa a autodenominada dogmática positiva, que não pode passar sem um elo intermediário: o poder do estado e suas normas” (PACHUKANIS, 1988PACHUKANIS, E.P. Teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1988., p. 63) é pachukaniana, e não marxiana. Em verdade, o caminho que é necessário percorrer para se compreender as relações jurídicas é bastante longo.

É verdade que no capítulo I, VIII e XXIV do livro I há importantes aspectos a serem analisados e que passam, por exemplo, pela regulamentação fabril (Cf. SARTORI, 2019 d); no entanto, a análise das formas jurídicas propriamente ditas também precisa se dar tendo-se em conta figuras econômicas que já possuem um grau de autonomização bastante grande e que são estranhadas e fetichizadas. Só com a análise deste processo de estranhamento (Entfremdung) e de fetichização compreende-se o assunto.

No autor de O capital, a conformação das formas jurídicas não tem a centralidade que Pachukanis – e a tradição pachukaniana – atribui a ela. Estas formas se colocam principalmente em meio à concorrência e ao se ter em conta a distribuição – e não a produção – do mais-valor. Ou seja, se “na concorrência aparece, pois, tudo invertido” e se “a figura acabada das relações econômicas, tal como se mostra na superfície” (MARX, 1986 b, p.160), as formas jurídicas são efetivas em meio a esta inversão já conformada, que já está colocada por meio das relações econômicas mesmas.

Ao dialogar com Pachukanis, tal ponto deve ser trazido porque o autor não cansa de destacar a relação entre o Direito e a circulação mercantil; no entanto, em O capital, as formas jurídicas aparecem muito mais ligadas à distribuição do mais-valor em meio à concorrência que próximas da relação estabelecida de modo basilar entre circulação mercantil e o processo imediato de produção.

A inversão analisada por Marx apaga, na apresentação e na representação (Cf. GRESPAN, 2019), o processo social de produção de mais-valor, ao mesmo tempo, objetivamente, supõe real e efetivamente tal processo. As formas jurídicas operam em meio à concorrência e tendo por elemento central a distribuição do mais-valor a partir do poder conseguido por meio da propriedade privada. O Direito – no livro III e na própria realidade imediata da sociedade capitalista – traz à tona transações jurídicas que se dão sempre sob o solo do trabalho assalariado e da relação-capital (analisados por Pachukanis); ao mesmo tempo, porém, ao se tratar da questão, há de se perceber: para estas transações, e para as formas jurídicas, este solo parece ser meramente contingente. A distribuição do mais-valor, de imediato, parece ser independente do modo pelo qual ele é produzido.

De acordo com o livro III, por meio da propriedade privada reconhecida juridicamente pelo Estado, há um princípio (Cf. GRESPAN, 2019) pelo qual o mais-valor é distribuído, distinto daquele do livro I, enfatizado por Pachukanis. O autor soviético traz a correlação entre Direito e mercadoria ao ter em conta a mercadoria força de trabalho; assim, ele destaca a correlação entre a esfera da circulação – em que operaria a troca equivalente de acordo com a lei do valor – e a produção imediata. Ou seja, neste campo, a distribuição se dá de modo diretamente relacionado ao tempo de trabalho; na realidade efetiva da sociedade capitalista, por outro lado, isto se dá somente indiretamente, ao se ter em conta a titularidade da propriedade privada. (Cf. GRESPAN, 2011GRESPAN, Jorge. As formas da mais-valia: concorrência e distribuição no livro III de O capital. In: Crítica marxista 33. São Paulo: Unesp, 2011 (pp.9-30).) Marx, ao tratar das formas jurídicas, está em outro campo que Pachukanis: as formas jurídicas são bastante efetivas na esfera da distribuição do mais-valor, não atendo-se somente à circulação mercantil e ao modo pelo qual o trabalho coloca-se como medida de valor. Na realidade efetiva, tem-se a formação de preços na concorrência. E os preços (analisados no livro III), por mais que não prescindam do valor (analisado, sobretudo, no livro I), formam-se remetendo a figuras concretas como lucro, juros, renda, ganho empresarial, preço de custo, etc. As formas jurídicas são bastante efetivas em meio a estas categorias, que, sem que se remeta ao processo imediato de produção, são absolutamente irracionais. No entanto, elas têm sua efetividade, inclusive, por meio de transações jurídicas. (Cf. SARTORI, 2019 b, c) Como aqui não podemos expor com todo o cuidado necessário os meandros entre produção, distribuição, circulação, troca e consumo no livro III ao se ter em conta o Direito (Cf. SARTORI, 2019 a, b, c), destacamos as palavras de Jorge Grespan sobre a concorrência, a propriedade e a distribuição no livro III de O capital, temática de relevo para o que trazemos aqui, relativo às formas jurídicas e sua posição no processo de produção global:

O princípio pelo qual a mais-valia se distribuiria pela proporção do trabalho que a criou é de novo alterado pela concorrência entre os capitais individuais, abrindo espaço para outro princípio distributivo, o da propriedade privada, que permite ao capital arrebatar porções da mais-valia social de acordo com sua grandeza. Só que no caso da concorrência restrita aos capitais produtivos, a equalização ainda se mantinha mais próxima da distribuição pelo trabalho, pois afinal todo capital industrial até certo ponto emprega de modo produtivo o seu trabalho. Incluindo agora o capital comercial, a equalização distribui mais-valia social para um setor que emprega o seu trabalho em grande parte de modo improdutivo. (GRESPAN, 2011GRESPAN, Jorge. As formas da mais-valia: concorrência e distribuição no livro III de O capital. In: Crítica marxista 33. São Paulo: Unesp, 2011 (pp.9-30)., p. 22).

O Direito, por meio da regulamentação estatal da propriedade privada, atua mediando a distribuição do mais-valor. Ele deixa intactas as bases do processo imediato de produção (em que o mais-valor é produzido) ao passo que é um elo essencial para que seja possível lidar com as figuras concretas (como lucro, renda, juros, por exemplo) que se apresentam na realidade efetiva. Por meios destas figuras, os portadores das relações econômicas representam a vida social e econômica. No que, em correlação com isto, tem-se algo de grande relevo e que, segundo Marx (Cf. SARTORI, 2019 b, c), é fonte de muitas ilusões e mistificações: muitas vezes as transações jurídicas, formalmente, dão início a relações econômicas. É preciso que destaquemos este aspecto.

Na efetividade da sociedade capitalista, a distribuição do mais-valor – produzido na esfera da produção –, por meio das transações jurídicas que envolvem a propriedade privada, dá-se tendo por parâmetro imediato, não mais a quantidade de trabalho socialmente necessário, mas a titularidade jurídica da propriedade privada. As relações econômicas, nesta situação, aparecem como relações jurídicas de propriedade ao passo que seu conteúdo é dado pela relação econômica mesma; o engendramento destas formas econômicas, em verdade, está na correlação entre o processo imediato de produção e as figuras do processo global de produção do sistema capitalista. Se no livro I as formas econômicas que configuram a relação-capital são enfatizadas ao passo que a titularidade jurídica da propriedade aparece suposta, no livro III tem-se o oposto. A ênfase está na propriedade privada, na distribuição do mais-valor e na concorrência, e não nas condições materiais de produção que possibilitam, mediante determinada conformação da produção e do processo de trabalho, as formas de propriedade. Assim, há uma inversão, também na exposição, no livro III.

Tal exposição explicita o modo pelo qual as forças produtivas do trabalho se apresentam como forças produtivas do capital. A relação entre o processo imediato de produção e as figuras do processo global, aparece de modo invertido. A correlação entre a oposição entre capital e trabalho, de um lado, e a concorrência (em grande parte, intercapitalista) de outro, tem consigo a mediação das formas jurídicas; elas perpassam esta correlação, mas não a determinam. Marx é explícito neste ponto, que analisaremos com cuidado mais à frente:

“as formas jurídicas em que essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo.” (MARX, 1986 a, p. 256).

O revestimento jurídico das relações econômicas, no campo da distribuição, é aquele das formas jurídicas, portanto. E, assim, as relações econômicas parecem, como reconhece o próprio Pachukanis, ser estabelecidas por meio da vontade e por contratos livres – para que usemos a dicção do livro III, por transações jurídicas. No entanto, há de se notar: ao passo que o jurista soviético trata da forma jurídica ligando-a à expressão imediata da lei do valor, Marx também liga as formas jurídicas à manifestação mediada, e invertida, do processo de valorização do valor. Em Pachukanis, a forma jurídica permite – por meio da noção de sujeito de direito – que a própria extração do mais-valor se coloque como tal; o autor de O capital, por outro lado, aborda as formas jurídicas quando o processo de extração do mais-valor já está findo, sendo preciso distribuir àqueles que não produziram o valor este último.

Sob este aspecto, o tratamento marxiano, até certo ponto, é oposto à Teoria geral do Direito e o marxismo. Mesmo que seja possível dar crédito à análise pachukaniana, ela é, no mínimo, incompleta, sendo preciso passar à análise mais cuidadosa do livro III.

Ali, na concorrência, e na distribuição do mais-valor já produzido, as bases da produção capitalista são tomadas como pressuposto. Neste meandro, analisado no livro III de O capital com bastante cuidado (Cf. SARTORI, 2019 b, c), é que Marx mostra que as formas jurídicas parecem ser soberanas; isto se dá, no entanto, sem que nunca possam ser. E, assim, o tratamento marxiano das formas jurídicas remete à maneira pela qual no modo de representação capitalista (GRESPAN, 2019) há uma verdadeira inversão entre o fundamento econômico e jurídico da propriedade privada. Tudo parece invertido na concorrência ao passo, no que toca o tema que aqui analisamos, pode-se dizer: as relações jurídicas, por meio de transações, ficções e formas distintas, parecem presidir o processo econômico, cujas raízes últimas estão na conformação da relação-capital mesma.

Nesta última se concatena o processo produtivo de extração do mais-valor. Tratar das formas jurídicas, portanto, não significa, como em Pachukanis, remeter somente à mediação contratual que permite imediatamente a extração de mais-valor em uma relação social colocada sob o signo da igualdade jurídica. Antes, a abordagem das formas jurídicas presente em O capital passa pelo reconhecimento titularidade da propriedade privada, já assumida como desigualmente distribuída na concorrência e na própria efetividade do sistema capitalista de produção. Ou seja, as formas jurídicas remetem a relações sociais que já são tomadas como aquelas de agentes econômicos que não estão em um patamar de igualdade; estas formas, em Marx, ganham proeminência quando se trata dos agentes econômicos concretos, que, ao contrário do que se dá na Teoria geral do Direito e o marxismo, não expressam uma concepção abstrata de pessoa; antes, eles trazem consigo funções econômicas bastante concretas e ligadas a uma posição já estipulada e naturalizada na divisão social do trabalho, seja ao se ter em conta o capitalista coletivo, seja com o trabalhador coletivo. (Cf. SARTORI, 2019 a) A colocação da questão no livro III, assim, difere bastante daquela do livro I, enfatizado por Pachukanis e pela tradição pachukaniana. Este último livro trata preponderantemente do trabalho produtivo, aquele que produz mais-valor. O livro III traz à tona uma forma de distribuição da riqueza que remete, inclusive, ao trabalho improdutivo, que não produz mais-valor. Embora o trabalho dos agentes econômicos destacados seja socialmente necessário, ele se dá para que o mais-valor seja distribuído entre aqueles que são expoentes do trabalho improdutivo e que, portanto, têm uma função importante na divisão social do trabalho, na especialização das atividades e, por vezes, no aumento da produtividade, mas não produzem valor.

Ou seja, de um lado, tem-se a explicitação da essência do modo de produção capitalista (livro I); doutro (livro III), a efetividade traz à tona formas distintas de aparecimento das formas econômicas, que ocultam, ao mesmo tempo em que pressupõem, o elemento nuclear do sistema de produção capitalista. Ao tratar das formas jurídicas, portanto, deparamo-nos com estes aspectos.

As formas de apresentação e de representação vigentes na efetividade da sociedade capitalista, muitas vezes, em sua imediatez, parecem negar – ao passo que isso nunca se dá como uma superação (Aufhebung) real e efetiva – as leis imanentes do modo de produção capitalista. (Cf. SARTORI, 2019 b) Ou seja, o livro III trata de figuras concretas do sistema capitalista (lucro, custo de produção, ganho empresarial, renda, juros, etc.) que parecem prescindir – ao passo que não prescindem nunca – da extração de mais-valor, tratada no livro I de O capital. (Cf. SARTORI, 2019 c) O livro III, portanto, analisa, dentre outras coisas, as figuras imediatas da reprodução do sistema capitalista de produção; ele trata das formas econômicas que já são efetivas com substancial autonomização; nelas, estão supostos tanto a extração do mais-valor quanto a conformação da relação-capital colocada sobre seus próprios pés.15 15 Como diz Marx: “a relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista se apoie sob os próprios pés, não apenas conserva tal separação, mas a reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que não o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho, um processo que por um lado transforma os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores imediatos em operários assalariados.” (MARX, 1987, p. 252). Mas, ao mesmo tempo, esta pressuposição se apresenta com simples pressuposição e nada mais: aquilo que preside o processo produtivo parece ser – ao passo que nunca pode ser – um bocado de figuras independentes do processo imediato de produção, processo este em que se tem a exploração da mercadoria força de trabalho.

Segundo Marx, em meio a esta forma de apresentação e de representação das relações sociais, há uma inversão pungente, marcada por um peculiar modo de representação capitalista, baseado na inversão entre sujeito e objeto. (Cf. GRESPAN, 2019) Para o que aqui nos diz respeito, podemos dizer que as formas jurídicas operam em meio a esta inversão e parecem dar a tônica das relações sociais ao passo que isto, ao se considerar o processo social como um todo, não ocorre.

3. Apontamentos sobre o Direito e as transações jurídicas no livro III de O capital

As formas jurídicas se destacam e parecem ser resolutivas, ao passo que “como simples formas” (MARX, 1986 a, 256) nunca poderiam ser. (Cf. SARTORI, 2019 c) Ou seja, justamente na medida em que o processo de extração de mais-valor aparece como algo muito remoto, é que a noção de formas jurídicas ganha proeminência em Marx; ali, quando o essencial ao modo de produção capitalista aparece negado em sua manifestação fenomênica – o que é tratado no livro III – é que as formas jurídicas vêm à tona de modo explícito. As implicações da posição das formas jurídicas na arquitetura da obra magna de Marx, portanto, não são simplesmente filológicas. Se é verdade o que está colocado em O capital, uma oposição à valorização do valor que se colocasse no âmbito do Direito e das formas jurídicas não passaria da superfície das formações capitalistas concretas; e, deste modo, deixaria de compreender a correlação necessária entre as formas econômicas, as figuras econômicas concretas da efetividade da sociedade capitalista e o processo imediato de produção, em que se coloca de maneira basilar a relação-capital. A função do Direito neste cenário não é pequena (Cf. SARTORI, 2019 c, b), mas ela não é o essencial à conformação do próprio sistema capitalista.

As formas jurídicas estabelecem uma ligação entre estas figuras concretas, formas econômicas autonomizadas, e o processo produtivo. Mas isto se dá sempre de modo muito mais mediado do que acontece na concepção pachukaniana de forma jurídica. Marx, ao tratar do capital portador de juros e do ímpeto dos proudhonianos de regulamentá-lo juridicamente, diz que tal crítica supostamente socialista é superficial; ela traria consigo uma concepção vulgar, típica tanto dos economistas quanto dos socialistas vulgares. As formas jurídicas apareceriam à representação destes críticos superficiais como capazes de dar conta das contradições econômicas na medida mesma em que isto seria impossível nesta imediatez. Assim, diz Marx sobre a oposição vulgar aos juros que, em verdade, não se tem no capital portador de juros uma fonte autônoma de valor, mas uma figura do capital dependente da oposição entre capital e trabalho, ancorada no processo imediato de produção; e, assim, ao tratar dos juros, diz o autor em um tom bastante áspero:

Nessa figura mais fantástica [a figura dos juros], e ao mesmo tempo mais próxima da representação mais popular, o capital é a “forma fundamental” dos economistas vulgares e, além disso, o alvo mais ao alcance do ataque de uma crítica superficial; é a forma desses economistas seja porque aí o nexo causal se manifesta o menos possível e o capital se patenteia numa forma que lhe dá a aparência de fonte autônoma do valor, seja porque nessa forma se dissimula e se apaga por completo seu caráter contraditório, desaparecendo a oposição ao trabalho. E aquele ataque decorre de ser a forma em que o capital atinge o máximo de irracionalidade e constituí o alvo mais fácil para os socialistas vulgares. (MARX, 1980, p. 1507)

Se é verdade que a teorização sobre as formas jurídicas aparece no livro III, em que é tratada, dentre outras figuras do capital, o capital portador de juros, há de se admitir um duplo aspecto sobre o Direito, a efetividade das relações sociais vigentes no modo de produção capitalista e, por extensão, as formas jurídicas: o Direito se apresenta como capaz de criar relações econômicas, mesmo sendo determinado por estas. Ou seja, em meio à efetividade da sociedade capitalista, as transações jurídicas parecem ter uma força demiúrgica que não têm. Isto se apresenta tanto para aqueles que buscam uma apologia à sociedade capitalista, como os economistas vulgares, quanto para aqueles que pretendem criticar esta sociedade e não conseguem ultrapassar a superfície da mesma; é o caso do socialismo vulgar. Pela análise de alguns pontos do livro III, vê-se que o Direito se presta tanto aos apologistas quanto às ilusões por parte dos críticos ao capitalismo.

E isto se dá, dentre outras coisas, porque ele atua em meio à distribuição do mais-valor e, portanto, diante das figuras econômicas concretas – como custo de produção, ganho empresarial, renda, juros, por exemplo – que se colocam imediatamente na realidade efetiva da sociedade capitalista: tais figuras econômicas, como o juro e a renda, parecem decorrer de transações voluntárias e jurídicas ao passo que, em verdade, mesmo que de modo bastante mediado, decorram de processos que se passam na esfera da produção, que, indiretamente, determina a distribuição, a circulação, a troca e o consumo. Diz Marx, assim, que “a própria distribuição é um produto da produção, não só no que concerne ao seu objeto, já que somente os resultados da produção podem ser distribuídos, mas também no que concerne à forma.” (MARX, 2011, p. 70) Deste modo, as transações jurídicas que operacionalizam a distribuição e a circulação de mercadorias não são capazes de determinar esse conteúdo, “já que o modo determinado de participação na produção determina as formas particulares da distribuição, a forma de participação na distribuição.” (MARX, 2011, p. 70) Novamente, tem-se que:

“as formas jurídicas em que essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo.” (MARX, 1986 a, p. 256)

As formas jurídicas, que operam por modalidades contratuais, tornam socialmente possível a distribuição do mais-valor, sobretudo aos portadores do trabalho improdutivo. Ao mesmo tempo, porém, o conteúdo desta forma de distribuição é determinado economicamente, e não juridicamente. (Cf. SARTORI, 2017 b)

E, assim, a correlação entre as formas jurídicas e a forma-mercadoria não é imediata, como coloca Pachukanis. Ela é extremamente mediatizada, aparecendo em meio a figuras concretas da economia capitalista e pelo Estado, remetendo a agentes econômicos com funções bastante precisas no processo global de produção, e não a uma concepção abstrata de pessoa que opera no âmbito da circulação mercantil. A categoria formas jurídicas diz respeito principalmente à distribuição do mais-valor, que, por sua vez, decorre da titularidade da propriedade privada e daquilo que Grespan chamou de princípio da propriedade. Esta categoria, portanto, não traz uma correlação imediata com o quantum de trabalho socialmente necessário, e com a ligação entre a produção e a circulação. Pelo que vimos, as formas jurídicas atuam, por meio do Estado, no âmbito da distribuição do mais-valor já produzido, e já ocultado na efetividade da sociedade capitalista.16 16 Mostra Marx no livro III, a partir de categorias como custo de produção e ganho empresarial, operam os agentes econômicos. Em seus cotidianos, o valor não parece advir da produção, mas da diferença entre o custo de produção e o preço de venda, que daria o ganho empresarial. Com isso, a forma de apresentação do ganho empresarial faz com que o valor pareça ser originado na esfera da circulação de mercadorias, e não na produção. Cf. SARTORI, 2019 c. E mesmo que não consigam determinar o conteúdo da relação econômica, esta última só se dá com o papel ativo do Direito. Em meio a este contexto é que se deve tratar da categoria formas jurídicas. Se o autor de Teoria geral do Direito e o marxismo, com razão, remete o papel do Direito à esfera de circulação de mercadorias, isto se dá a partir do livro I e de certa leitura de Engels. (Cf. SARTORI, 2015) Pachukanis, seguindo Marx neste ponto, tem razão nesta associação entre circulação, Direito, direitos humanos, e a reprodução da relação-capital. 17 17 Dentre outras passagens, podemos trazer a seguinte: “a esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados.” (MARX,1987, p. 144) No entanto, ao deixar de analisar o livro III com cuidado, ele tende a negligenciar o papel ativo do Direito na esfera da distribuição, e não percebe que as formas jurídicas também têm uma função bastante distinta daquela que lhes é atribuída em sua obra de 1924. É assim que a categoria formas jurídicas aparece em Marx. E, deste modo, o estudo da arquitetura de O capital, neste sentido, não é algo de menor importância.

Pachukanis coloca a forma jurídica principalmente em meio à relação entre a extração de mais-valor e a troca equivalente, ou seja, tem-se esta forma como um elo intermediário na compra e venda da força de trabalho e, portanto, estabelecendo um elo entre a esfera produtiva propriamente dita e a esfera de circulação mercantil. Tratar do Direito neste campo seria ver como que, segundo Pachukanis, a forma jurídica e o sujeito de direito são essenciais na compreensão da própria conformação da relação-capital, vendo-se os reflexos disto em outras esferas. A noção de sujeito de direito, que Pachukanis deriva da concepção marxiana de pessoa (Cf. SARTORI, 2019 a), tem por função justamente trazer uma forma de aparição e de representação em que o processo de extração de mais-valor está pressuposto enquanto algo natural. Nisto, certamente, há uma aproximação entre Pachukanis e Marx; porém, dificilmente seria possível dizer que, em O capital, isto decorre da correlação direta, presente no livro I, entre forma jurídica e mercantil. O caminho para que se chegue à efetividade das formas jurídicas, em Marx, não está somente na análise do processo imediato de produção – mesmo que se considere a relação jurídica, e que, na compra e venda da mercadoria força de trabalho, bem como nas trocas equivalentes, “o conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma.” (MARX, 1996, p. 79) Antes, as formas jurídicas aparecem em meio a complexas inter-relações entre figuras econômicas como o juro e a renda, bem como diante de figuras do processo econômico que são, em grande parte, carentes de conceito18 18 Para uma análise deste aspecto “carente de conceito” em Marx, Cf. SARTORI, 2019b, c. em meio à concorrência. Nesta última parece “tudo invertido”. (MARX, 1986 a, p. 160)

Tratar das formas jurídicas significa também analisar o papel do Direito em meio à concorrência e, de acordo com O capital, o que se tem nela é uma inversão que aparece como efetiva aos agentes econômicos na medida em que é irracional. (Cf. SARTORI, 2019 b, c) Diz Marx:

Na concorrência aparece, pois, tudo invertido. A figura acabada das relações econômicas, tal como se mostra na superfície, em sua existência real e, portanto também nas concepções mediante as quais os portadores e os agentes dessas relações procuram se esclarecer sobre as mesmas, difere consideravelmente, sendo de fato o inverso, o oposto, de sua figura medular interna, essencial, mas oculta, e do conceito que lhe corresponde. (MARX, 1986 a, p. 160)

Em Marx, as figuras econômicas, e sua operacionalização por meio das formas jurídicas, afastam-se da figura medular interna, colocada no processo imediato de produção, tratado no livro I. Se analisarmos a coisa mais atentamente, pois, percebemos que a categoria formas jurídicas aparece em Marx, principalmente, no livro III e, assim, ela se destaca justamente ao passo que a extração de mais-valor já se apresenta como um pressuposto natural das figuras do processo global de produção capitalista.

Ela é central, não tanto na conformação da figura medular interna deste modo de produção, como parece supor até certo ponto Pachukanis, mas no movimento colocado pela concorrência, em que tudo aparece invertido. As formas jurídicas – que vamos começar a analisar no item seguinte, em todas as suas aparições em O capital – tomam a figura acabada das relações econômicas como algo natural e, assim, ficam na superfície. A categoria formas jurídicas, em Marx, portanto, e ao contrário do que acontece em Pachukanis, não é tanto uma mediadora essencial, de imediato, na conformação da relação-capital, na relação entre a produção e a circulação. Ela toma tal relação como algo pressuposto não sendo por acaso que as transações jurídicas apareçam como de grande importância tanto nas figuras concretas do processo global de produção capitalista (na inversão a ele característico) e na oposição dos socialistas vulgares a estas figuras. (Cf. SARTORI, 2019 b, c) Segundo Marx, deste modo, quem tem por essencial as formas jurídicas são estes últimos e não aqueles que estão dispostos a compreender o real funcionamento do capitalismo. Se é verdade, que uma crítica marxista precisa defender o definhamento do Estado e do Direito, como faz Pachukanis, inclusive, contra tendências fortes (e que saíram vencedoras) na Revolução Russa (Cf. GOLDMAN, 2014GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. Trad. Natália Alfonso. São Paulo: Boitempo, 2014.), a compreensão dos processos sociais desta revolução, e de outras do século XX, precisa ir além, e trazer uma crítica concreta às formas econômicas vigentes na URSS, nas democracias populares e noutros países que procuraram superar o modo de produção capitalista.19 19 Tanto Wendy Goldman (2014) quanto Márcio Naves (2000 a, b) trazem uma análise bastante séria sobre o modo crítico como Pachukanis se posicionou diante do desenrolar da Revolução Russa. Os méritos de Pachukanis, ainda mais se levarmos em conta, as dificuldades da Revolução Russa, são enormes. Para que sejamos justos com a literatura contrária a nossa orientação, vale mencionar que, de um ponto de vista bastante próximo a Althusser, Bettelheim (1976 a, 1976 b) analisou a luta de classes na URSS, bem como a planificação soviética de modo bastante crítico, e, até aonde saibamos, com muito mais cuidado que autores de outras tradições, no campo do desenvolvimento econômico. De um ponto de vista mais próximo ao nosso, tem-se a pesquisa de Mészáros (2002) sobre a URSS. Ela, porém, não trata das minúcias do processo econômico soviético, nem mesmo do desenvolvimento das formas econômicas na sociedade soviética. Neste sentido, acreditamos que ainda exista um trabalho árduo a ser realizado nesta seara. Autores como Kurz (1993) e os membros do grupo Krisis e, depois, Exit, tendem a colocar o desenvolvimento ocidental e oriental simplesmente sob o mesmo signo, o que se mostra insuficiente; se este autor trata de trazer a crítica ao valor, ele não apreende a dinâmica do desenvolvimento econômico – com a correlação entre as diferentes formas econômicas mais ou menos estranhadas – e, assim, também deixa a desejar sob o aspecto que agora trazemos à tona. Aqui, porém, não podemos tratar disto com cuidado, de modo que se deve voltar a Marx e Pachukanis.

Se é verdade que Pachukanis traz uma crítica à forma jurídica – tal qual Marx traz uma crítica às formas jurídicas – igualmente verdadeiro é que os autores têm pontos de partida distintos. Ao passo que o autor da Teoria geral do Direito e o marxismo trazem o Direito e a forma jurídica como essenciais para a compreensão do processo imediato de produção (nele inclusa a troca equivalente), e, portanto, para a extração de mais-valor, o autor de O capital tem uma posição mais meandrada, trazendo à tona também uma compreensão distinta das formas jurídicas, as quais remeteriam à distribuição do mais-valor já produzido. A análise destas diferenças pode ser importante para uma análise exaustiva do Direito em Marx e para explicitar um fio (ou fios) vermelho (s) para a crítica marxista ao Direito. Mesmo que ela não seja suficiente, em parte, pode ser uma condição sem a qual alguns novos pontos de partida da crítica marxista não podem surgir.

4. Justiça, poder e formas jurídicas no livro III de O capital

Na esteira da obra clássica de Isaac Rubin, Teoria marxista do valor, alguns, como Pachukanis e, de modo distinto, Lukács em História e consciência de classe, transpuseram diversas mediações ao trazerem à tona a influência do caráter fetichista da mercadoria nas diversas esferas do ser social. Com isto, o autor de Teoria geral do Direito e o marxismo, trazendo uma correlação entre forma jurídica e mercantil de um lado, e sujeito de direito e proprietários doutro, procura mostrar como uma concepção abstrata de pessoa – que Marx diz estar presente no âmbito da religião (Cf. SARTORI, 2019 a) – leva, ao mesmo tempo, à realização e ao apagamento do processo de extração de mais-valor. Ou seja, a mediação da atividade humana aparece no processo econômico, mesmo que de modo invertido, como um elo volitivo essencial para que as mercadorias se relacionem entre si como tais; há, assim, sempre uma tensão entre o processo de reificação, analisado por Marx ao tratar do caráter fetichista da mercadoria, e a noção de pessoa.20 20 Pachukanis, passando pela metáfora marxiana do céu estatal, presente nos textos de 1843-44, traz tal tensão, irreconciliável remetendo à categoria sujeito de direito: “assim, o sujeito de direito é um possuidor de mercadorias abstrato e ascendido aos céus.” (PACHUKANIS, 2017, p. 127) Esta última parece trazer consigo um ímpeto negativo diante do processo social capitalista ao mesmo tempo em que, em sua conformação abstrata, é o resultado deste. Tal aspecto da obra marxiana é bastante proveitoso e passa por uma concepção de pessoa que, ao mesmo tempo, está submetida ao domínio das coisas e parece se opor a ele. Em meio a este elemento – trazido à tona no livro I por Marx – que Pachukanis desenvolve sua teoria. (Cf. SARTORI, 2015, 2019 a) A teorização da forma jurídica, enquanto uma forma abstrata, decorrente do processo de abstração do próprio valor, perpassa também este aspecto. No entanto, como dissemos, a concepção marxiana de formas jurídicas não se dá só neste âmbito, da relação entre a produção de mais-valor e a circulação.

As formas jurídicas aparecem em Marx principalmente em meio às figuras econômicas concretas da sociedade capitalista, em que esta tensão entre a noção de pessoa e o caráter reificado das relações sociais é muito menos visível; a rigor, ela não aparece em categorias como custo de produção, em que o elemento variável (v) e o constante (c) do capital são colocados como simples custos: “no preço de custo desaparece para o capitalista a diferença entre capital variável e capital constante.” (MARX, 1986 a, p. 119) Ao se ter em conta o mais-valor (Mehrwert) – que decorre da apropriação, na produção, do trabalho excedente (ou mais-trabalho), em meio a estas figuras, “a própria mais-valia (Mehrwert) não aparece como produto da apropriação de tempo de trabalho, mas como excedente do preço de venda das mercadorias sobre seu preço de custo e por isso este último facilmente se apresenta como seu verdadeiro valor valeur intrinsêque!”. (MARX, 1986, a p. 35) E, assim, tem-se de modo mais concreto a já mencionada relação entre trabalho e titularidade da propriedade no livro III. Neste sentido, há um grau de fetichização e de inversão muito maior na imediatidade da realidade efetiva da sociedade capitalista que na análise do processo imediato de produção, tratado no livro I. Diz Marx sobre isto que “as forças produtivas subjetivas do trabalho se apresentam como forças produtivas do capital.” (MARX, 1986 a, p. 35-36) Noções como preço de custo, lucro e ganho empresarial operam em meio à realidade ao passo que não se sustentam por si sós; elas supõem a produção do mais-valor, que está oculta. A efetividade das relações sociais nas quais se colocam os agentes da produção – tratada no livro III –, portanto, traz uma inversão muito mais brusca que aquela analisada no livro I. Aqui, a aparência é tomada por essência e os agentes econômicos por meio de categorias como preço de custo e ganho empresarial, bem como em meio a formas econômicas como juro, renda e lucro se sentem bastante à vontade “pois elas são exatamente as configurações da aparência em que eles se movimentam e com as quais lidam cada dia.” (MARX, 1986 b, p. 280) A atividade imediata dos agentes econômicos, portanto, fica no nível fenomênico da realidade. Categorias que, de modo mediado, remetem necessariamente ao processo de produção de mais-valor aparecem como independentes, e como se pudessem ser explicadas por si mesmas. 21 21 Diz Marx sobre o assunto que “a repartição puramente quantitativa do lucro entre duas pessoas que têm títulos jurídicos diversos sobre ele transformou-se numa repartição qualitativa, que parece provir da natureza do capital e do próprio lucro. Pois, conforme se viu, tão logo parte do lucro assume em geral a forma de juro, a diferença entre o lucro médio e o juro, ou a parte excedente do lucro sobre o juro, transforma-se numa forma antitética ao juro, na do ganho empresarial. Essas duas formas, juro e ganho empresarial, somente existem em sua antítese. Ambas não estão, pois, relacionadas à mais-valia (Mehrwert), da qual são apenas partes fixadas em categorias, rubricas ou nomes diversos, mas estão relacionadas uma a outra. Porque parte do lucro se transforma em juro, parte aparece como ganho empresarial.” (MARX, 1986 a, p. 283) Ou seja, o nível de reificação do processo social que aparece na realidade imediata da sociedade capitalista é muitíssimo maior que aquele trazido à tona no processo imediato de produção, analisado no livro I, a partir do ponto de vista jurídico, por Pachukanis.

As categorias que operam neste nível fenomênico em que figuras econômicas como ganho empresarial, custo de produção e outras são efetivas são aquelas que parecem óbvias ao passo que nada explicam: trata-se do nível da “economia vulgar, que não é nada mais do que uma tradução didática, mais ou menos doutrinária, das concepções cotidianas dos agentes reais da produção.” (MARX, 1986 b, p. 280) Formas econômicas como juro, renda e salário, tomados como algo dado pela economia vulgar – e pelo socialismo vulgar – também não aparecem como partes do mais-valor, mas como entidades autônomas que compõem uma espécie de fórmula trinitária (Cf. MARX, 1986 b); Marx diz que isto é absolutamente irracional. Porém, é bastante claro: “é, no entanto, igualmente natural que os agentes reais da produção se sintam completamente à vontade nessas formas alienadas e irracionais (entfremdeten und irrationallen Formem) de capital-juros, terra-renda, trabalho-salário”. (MARX, 1986 b, p. 280)22 22 Deve-se apontar, mesmo que rapidamente, que as noções de Enfrendung (estranhamento), Entäusserung (alineação), Äusserung (exteriorização), Veräusserung (venda ou alienação), bem como suas derivadas são bastante comuns no livro III de O capital. Neste sentido, há de se perceber que tais categorias não estão somente nos Manuscritos de 1844. As análises mais propriamente filológicas sobre o assunto, não podem ser feitas aqui. Para um tratamento da questão, Cf. HALLAK, 2018. Uma questão essencial para o nosso tema é: justamente tomando tais categorias como óbvias é que as formas jurídicas operam em meio à distribuição do mais-valor já produzido na esfera da produção. Ou seja, as formas jurídicas não se colocam principalmente como um elo essencial na constituição mesma da reificação social trazida à tona na relação entre pessoas e coisas na circulação de mercadorias, como se dá em Pachukanis23 23 Diz Pachukanis que “se economicamente a coisa prevalece sobre o homem, pois como mercadoria reifica uma relação social que não está sujeita a ele, então, juridicamente, o homem domina a coisa, pois, na qualidade de possuidor e proprietário, ele se torna apenas a encarnação do sujeito de direito abstrato e impessoal, o puro produto das relações sociais.” (PACHUKANIS, 2017, p. 121) ; aqui, a natureza mercantil das coisas já é tomada como um suposto e as categorias econômicas, e a exploração do trabalho, não estão em constituição por meio do Direito; antes, elas aparecem como algo dado, sobre o qual se deve agir e operar, também, juridicamente, por transações jurídicas.

Percebe-se, portanto, que o âmbito em que aparecem com mais proeminência as formas jurídicas é ainda mais fetichizado e externo ao processo produtivo que aquele da circulação.

Marx, neste cenário, diz que surge, na melhor das hipóteses, e entre aqueles com maior senso crítico, não o objetivo de supressão das transações das mercadorias, mas apelos pela justiça das transações e pela justiça natural. Tratar-se-ia de buscas uma distribuição justa do mais-valor, e não da supressão do processo de extração do mais-valor.24 24 Diz Marx sobre esta circunstância, que nada tem de relação com a justiça ou com a injustiça: “o valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor, quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor.” (MARX, 1996 a, p. 311) E, assim, as formas jurídicas decorreriam, quase que naturalmente, da conformação de determinado modo de produção:

A justiça das transações que se efetuam entre os agentes da produção baseia-se na circunstância de se originarem das relações de produção como consequência natural. As formas jurídicas em que essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo será justo contanto que corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado. E injusto, assim que o contradisser. A escravatura, na base do modo de produção capitalista, é injusta; da mesma maneira a fraude na qualidade da mercadoria. (MARX, 1986 a, p. 256)

Para o autor de O capital, a tematização da justiça das transações toma como natural justamente o modo de produção capitalista; tal ímpeto decorreria de as relações de produção aparecerem como uma consequência natural, não obstante as pessoas se opusessem a aspectos efetivos da distribuição da riqueza na sociedade capitalista. Ou seja, a tematização sobre a distribuição – trazida à tona por Marx também na Crítica ao programa de Gotha, em que ataca Lassale de modo bastante duro, apontando sua “fraseologia da 'distribuição justa'” (MARX, 2012, p. 28) – remete às formas jurídicas, em verdade, de modo bastante negativo.

As transações econômicas – e no caso, Marx trata da estipulação dos juros – aparecem como simples atos de vontade, trazidos contratualmente ao passo que há mediação de formas e figuras econômicas, no caso, o juro, indissociáveis da relação entre o processo imediato e o processo global de produção. Em meio a isto, as formas jurídicas operam em meio à inversão que se coloca na concorrência e na efetividade das relações de produção capitalistas, que são tomadas como naturais. Ou seja, no livro III, em que a categoria que aqui tratamos é mais presente, não se tem tanto a forma jurídica explicitando uma correlação com a forma-mercadoria quanto a forma jurídica operando em meio à distribuição do mais-valor de modo bastante peculiar: ao passo que elas, como simples formas, não determinam o conteúdo da relação econômica, elas parecem ser a expressão da vontade comum dos participantes. (Cf. SARTORI, 2017 a, 2019 b)

Na tematização da justiça e das formas jurídicas no livro III, tem-se a inversão entre sujeito e objeto colocada na correlação entre formas jurídicas e relações econômicas; tudo se apresenta na representação dos agentes da produção como se o Direito pudesse determinar a vida econômica, ao passo que ele somente encaminha, mesmo que remetendo à justiça, um conteúdo que corresponde ao modo de produção dado em determinado momento, seja ele o capitalista ou qualquer outro. As formas jurídicas, conjuntamente com a noção de justiça, expressam a inversão entre essência e aparência, de modo que, como expresso na Crítica ao programa de Gotha, tem-se que “o Direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade.” (MARX, 2012, p. 32-33) As formas jurídicas aparentam dar a tônica da forma econômica na medida mesma em que nunca podem o fazer. (Cf. SARTORI, 2019 a)

A referência marxiana às formas jurídicas, neste ponto, não remete diretamente à constituição objetiva da relação-capital, e de sua reprodução, por meio da igualdade jurídica, decorrente da troca equivalente. Antes, têm-se várias mediações que se interpõem para que seja possível que as formas jurídicas sejam efetivas: 1) o modo de produção aparece como algo natural e inquestionável, 2) as figuras econômicas se colocam, em grande parte, como carentes de conceito, 3) parece ser possível fazer com que o Direito se volte à conformação diuturna das transações econômicas; 4) a noção de justiça parece se opor ao interesse meramente individual; 5) o Estado parece poder impor a execução da vontade que foi estabelecida por meio das formas jurídicas.

Ou seja, está-se em meio à inversão entre fenômeno e essência; o primeiro parece estabelecer o norte e o télos do segundo na medida mesma em que se tem o oposto. No que nos diz respeito, isto significa que falar das formas jurídicas só é possível quando esta inversão é naturalizada e quando o Estado pode operar por meio das normas que se colocam como mais ou menos justas em meio àquilo que aparece na efetividade da sociedade como justiça das transações.

Tem-se outro ponto importante para nosso tema: não só as formas jurídicas operam muito mais no âmbito da distribuição do mais-valor do que no da circulação; elas também supõem e precisam do Estado, não decorrendo imediatamente da forma-mercadoria, como, até certo ponto, dá-se em Pachukanis (2017). Aliás, em meio a formas e figuras econômicas muito mais reificadas que aquela da mercadoria, como o juro e a renda, é que aparecem tais formas que aqui analisamos.

Marx traz à tona a questão ao passar pelos juros, que são uma figura econômica muito mais irracional e externa (äußerlichste) ao processo produtivo que a mercadoria. Em verdade, se na mercadoria se tem as coisas dominando os homens para que a valorização do valor se coloque, nos juros, a mediação das coisas parece ser (ao passo que nunca é efetivamente) supérflua. Tem-se, deste modo, uma forma muito mais fetichista e eivada do estranhamento:

“no capital portador de juros, a relação-capital atinge sua forma mais estranhada e mais fetichista. (äußerlichste und fetischartigste Form) Temos aí D - D', dinheiro que gera mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o processo que medeia os dois extremos.” (MARX, 1986 a, p. 293)

Justamente as formas jurídicas operam supondo este processo que media os extremos; elas operam somente quando este processo já está, em seus elementos essenciais, concluído.

Ao trazer a crítica acima à justiça, Marx diz anteriormente que é preciso criticar o poder que decorre do título jurídico de propriedade, e de como nenhuma justiça natural ou das transações consegue se opor realmente ao processo de valorização do valor, que se coloca objetivamente no modo de produção capitalista. Tem-se em relação às formas jurídicas:

E claro que a posse das 100 libras esterlinas dá a seu proprietário o poder de atrair para si o juro, certa parte do lucro produzido por seu capital. Se não desse as 100 libras esterlinas ao outro, este não poderia produzir o lucro, nem funcionar ao todo como capitalista, com relação a essas 100 libras esterlinas. Falar aqui de justiça natural, como o faz Gilbart, é um contra-senso. (MARX, 1986 a, p. 256)25 25 A passagem na íntegra é a seguinte: “e claro que a posse das 100 libras esterlinas dá a seu proprietário o poder de atrair para si o juro, certa parte do lucro produzido por seu capital. Se não desse as 100 libras esterlinas ao outro, este não poderia produzir o lucro, nem funcionar ao todo como capitalista, com relação a essas 100 libras esterlinas. Falar aqui de justiça natural, como o faz Gilbart, é um contra-senso. A justiça das transações que se efetuam entre os agentes da produção baseia-se na circunstância de se originarem das relações de produção como consequência natural. As formas jurídicas (jurisrichen Formen) em que essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo será justo contanto que corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado. E injusto, assim que o contradisser. A escravatura, na base do modo de produção capitalista, é injusta; da mesma maneira a fraude na qualidade da mercadoria.” (MARX, 1986 a, p. 256)

Ao trazer sua crítica à justiça das transações e às formas jurídicas, Marx também destaca a inutilidade da noção de justiça natural enquanto algo capaz de se voltar contra os supostos excessos nos juros; ao analisar a questão em relação também a Proudhon, o autor alemão é bastante claro quanto à indissociabilidade entre o trabalho assalariado colocado no processo imediato de produção, e os juros, sendo a falha e a superficialidade do autor da Filosofia da miséria também o seguinte: “Proudhon combate o juro e não compreende o nexo causal entre juro e sistema de trabalho assalariado.” (MARX, 1980, p. 1558) Não seria, portanto, possível se opor ao juro sem combater simultaneamente o trabalho assalariado. A tentativa de resolução da questão com a justiça natural seria um contra-senso. Ela se basearia na crítica rasteira ao poder da propriedade privada: ao passo que, em verdade, este poder decorre do conteúdo das relações econômicas, tanto a economia vulgar quanto o socialismo vulgar acreditariam que elas decorrem do acordo de vontades e do contrato que passa pelas formas jurídicas. A mediação entre D e D´, assim, é o processo social que medeia os dois extremos; este processo é aquele em que produção, distribuição, circulação, troca e consumo têm como momento preponderante o processo imediato de produção. Por mais que o modo pelo qual este processo opera na efetividade passe por formas jurídicas, estas últimas, como simples formas, não conseguem determinar o conteúdo mesmo das relações econômicas.

O poder daquele que é o titular do direito de apreender os juros, portanto, é regulamentado e estipulado por formas jurídicas, decorrentes da vontade comum e do contrato. No entanto, ele depende dos limites e das possibilidades do próprio processo de produção do mais-valor.

Os juros, portanto, também com referência às transações jurídicas e mesmo em meio às críticas baseadas na justiça natural ou na justiça das transações, funcionam como uma forma econômica subordinada à relação-capital colocada no processo imediato de produção. Os juros, na verdade, são uma figura econômica subsumida à relação-capital, sendo uma forma bastante estranhada e fetichizada. As formas jurídicas, assim, aparecem em meio àquela forma econômica que é, diz Marx sobre o capital portador de juros, “a mistificação do capital em sua forma mais crua.” (MARX, 1986 a, p. 294) Tem-se, portanto, de um lado, a mistificação dos juros, doutro, aquela que parece opor-se a ele na medida mesma em que toma seu pressuposto – o modo de produção capitalista, no caso – como algo natural e imutável, mesmo com um apelo à justiça.

O poder que o proprietário tem aquele de atrair para si os juros, não poderia ser real e efetivamente combatido, buscando outra conformação das formas jurídicas e da justiça. Antes, seria preciso voltar-se ao conteúdo da relação econômica mesma. Ao contrário do que se tem em Pachukanis, portanto, as formas jurídicas não se colocam somente como um correlato da forma-mercadoria; elas passam por formas e figuras econômicas muito mais fetichizadas e trazem consigo mais que um conceito abstrato de pessoa e de igualdade. Elas trazem também o caráter apologético da economia vulgar e os supostos elementos críticos do socialismo vulgar, este que procura se voltar contra as vicissitudes do capital portador de juros por meio da justiça e do Direito.26 26 Sobre a noção de justiça em Marx, Cf. SARTORI, 2017 a. Para uma visão da questão que – ao osso ver, erroneamente – pretende dialogar com a filosofia moral e política Cf. GERAS, 2018.

5. Formas jurídicas, juros e garantias legais no livro III de O capital

As formas jurídicas, por meio das quais são operacionalizadas as transações jurídicas, aparecem em meio às formas econômicas estranhadas e irracionais. Elas operam em meio às relações que têm por ponto de partida formal a titularidade da propriedade privada. Os juros, por exemplo, são estabelecidos por meio de transações jurídicas, embora nunca possam ser explicados sem que se remeta à correlação entre o processo imediato e o global de produção. E, neste sentido também, o grau de fetichismo, de estranhamento, bem como o caráter exterior do capital portador de juros pode ser considerado como muito mais gritante do que aquilo que aparece na esfera da circulação de mercadorias. Enquanto nesta última há certa tensão entre as pessoas e as coisas27 27 Pachukanis trata da questão remetendo à categoria sujeito de direito: “ao cair na dependência escrava das relações econômicas que se impõem a suas costas, na forma das leis de valor, o sujeito econômico, já na qualidade de sujeito de direito, recebe como recompensa um raro presente: uma vontade presumida juridicamente que faz dele um possuidor de mercadorias tão absolutamente livre e igual perante os demais quanto ele mesmo o é.” (PACHUKANIS, 2017, p. 121) Para uma análise mais profunda da temática, Cf. SARTORI, 2019 a. , a relação econômica que conforma os juros se dá de modo que, “em sua simplicidade, essa relação já é na perversão, personificação da coisa, e coisificação da pessoa” (MARX, 1980, p. 385-386) e, assim, com a passagem de D – D´ tem-se, por meio das formas e das transações jurídicas que “a relação social está consumada como relação de uma coisa, do dinheiro consigo mesmo.” (MARX, 1986 a, p. 294) No capital portador de juros, o processo que se coloca entre um polo e outro – que é o que faz com que o poder do proprietário possa ser exercido para reivindicar sua parcela do mais-valor produzido socialmente – está apagado: “na forma do capital portador de juros, portanto, esse fetiche automático está elaborado em sua pureza, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e ele não traz nenhuma marca de seu nascimento.” (MARX, 1986 a, p. 294) Para nós, tal tema tem relevo ao passo que Marx remete a este contexto ao tratar das formas jurídicas:

Nas mãos de B, o dinheiro é realmente transformado em capital, percorre o movimento D - M - D' para voltar a A como D', como D + AD, em que AD representa o juro. Para simplificar abstraímos aqui, por enquanto, o caso em que o capital permanece por tempo mais longo nas mãos de B e os juros são pagos periodicamente. O movimento é, portanto: D-D-M-D'-D'. O que aparece aqui duplicado e o dispêndio do dinheiro como capital e seu refluxo como capital realizado, como D' ou D + AD. No movimento do capital comercial D - M - D', a mesma mercadoria muda 2 vezes ou – se um comerciante vende a outro – mais vezes de mãos; mas cada uma dessas mudanças de lugar da mesma mercadoria indica uma metamorfose, compra ou venda da mercadoria, por mais vezes que esse processo possa se repetir até sua queda definitiva no consumo. Em M - D - M, por outro lado, ocorre dupla mudança de lugar do mesmo dinheiro, mas indica a metamorfose completa da mercadoria, que primeiro se transforma em dinheiro e, em seguida, de dinheiro em outra mercadoria. No caso do capital portador de juros, ao contrário, a primeira mudança de lugar de D de modo algum constitui um momento seja da metamorfose de mercadorias, seja da reprodução do capital. lsso ele só se torna no segundo dispêndio, nas mãos do capitalista funcionante, que com ele comercia ou o transforma em capital produtivo. A primeira mudança de lugar de D expressa aqui apenas sua transferência ou remessa de A a B; uma transferência que costuma realizar-se sob certas formas e garantias jurídicas (juristichen Formem und Vorbehalten). (MARX, 1986 a, p. 257)

Marx aqui diferencia a rotação do capital na reprodução, em que se têm metamorfoses da mercadoria (e do capital), que muda de uma forma a outra, do capital portador de juros, que, por si, não tem um papel essencial na produção. Ele só se torna relevante na medida em que passa a funcionar como o primeiro elo do processo produtivo, no caso, nas mãos de B, que pode passar a se colocar como capitalista funcionante. A empresta de B para que, então, tenha-se o dispêndio de dinheiro como capital transformando-se em um refluxo de dinheiro como capital realizado e, assim, fazendo com que o dinheiro passe a ter função, seja de capital comercial, seja de capital produtivo.

Ou seja, nas mãos de B, tem-se o elo da compra e venda da mercadoria (central para Pachukanis, vale lembrar) e elas se vendem até que o mais-valor possa finalmente se realizar no consumo. B faz com que a reprodução do capital se dê por meio do processo de circulação de mercadorias, ao passo que funciona como capital comercial ou como capital produtivo. E, assim, tem-se uma correlação entre o comércio e a produção (usualmente colocada na figura do capital industrial); é possível também que um comerciante venda a mercadoria a outro, tendo-se, de um lado o movimento D – M – D e, doutro, M – D – M. Em ambos os polos da relação social tem-se a metamorfose das formas econômicas. E, assim, há, inclusive, diferentes conformações do dinheiro no processo global de produção. Ao enfatizar o capitalista funcionante, portanto, Marx mostra como a reprodução do capital e a metamorfose de mercadorias no processo de valorização do valor.

Ao tratar da forma do capital portador de juros, a questão é diferente, porém. De um lado, há o capitalista funcionante, doutro, tem-se uma mera mudança de titularidade do dinheiro. Trata-se, não da metamorfose das mercadorias ou da reprodução do capital, mas da simples distribuição do mais-valor por meio de formas e garantias jurídicas. A remessa de dinheiro de A para B não traz qualquer mudança substantiva na produção tendo-se propriedade privada regendo a distribuição da riqueza social neste âmbito; com a separação clara entre capitalista funcionante e a titularidade da propriedade (já que nos juros, o proprietário do dinheiro, o prestamista, não exerce qualquer função na produção28 28 Como aponta Marx: “o primeiro dispêndio, que transfere o capital das mãos do prestamista para as do mutuário, é uma transação jurídica, que nada tem a ver com o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha. O reembolso, que transfere novamente o capital refluído das mãos do mutuário para as do prestamista, é uma segunda transação jurídica, o complemento da primeira; uma encaminha o processo real, a outra é um ato posterior a esse processo. Ponto de partida e ponto de retorno entrega a restituição do capital emprestado, aparecem assim como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas e que ocorrem antes e depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio. Para este, seria indiferente se o capital pertencesse de antemão ao capitalista industrial e, por isso simplesmente refluísse para ele como sua propriedade.” (MARX, 1986 a, p. 262) ), as formas e as garantias jurídicas se autonomizam diante das formas econômicas com as quais o seu conteúdo tem correlação necessária. Como simples formas, as formas jurídicas não determinam o conteúdo da relação econômica. Ao mesmo tempo, o poder e as garantias legais fazem com que o mais-valor, produzido ou apropriado por B, precise ser dividido com A.

Para o nosso tema, a questão é de grande relevo. O fato de B precisar descontar parcela do mais-valor produzido (no caso do capital produtivo) ou apropriado (no caso do capital comercial) faz com que tal dedução entre em seus preços de custo. E, assim, o ganho empresarial é calculado deduzindo-se do preço de venda o preço de custo. Ou seja, a taxa de juros tem uma influência no processo produtivo de modo bastante indireto: ao passo que faz com que o capitalista funcionante precise – ainda mais – maximizar seu preço de venda e reduzir seu preço de custo. Com isso, pode haver um aumento do preço no consumo (que poderia levar à valorização da mercadoria força de trabalho em algumas hipóteses em que o preço da cesta de bens que a mantém aumenta) e pode também haver o aumento da exploração da força de trabalho, para que se rebaixe o preço de custo. Ou seja, as categorias preço de custo, ganho empresarial, preço de venda – figuras econômicas concretas que aparecem na imediatidade da sociedade capitalista – só podem ser compreendidas remetendo-se ao valor da mercadoria força de trabalho e, portanto, à produção do mais-valor. Porém, ao se ter em conta estas figuras econômicas concretas, tem-se que a correlação delas com o trabalho assalariado é apagada. E, assim, tem-se a inversão peculiar já mencionada: a aparência mostra-se como se fosse essência e, no que toca nosso tema, ocorre algo importante: as formas e as garantias jurídicas é que parecem reger o processo social na medida mesma em que isto não ocorre nem pode ocorrer. Ainda sobre o assunto, há de se explicitar que, ao tratar das formas jurídicas aqui, o autor de O capital deixa claro que o essencial não passa por elas. Elas operam na redistribuição do mais-valor já produzido, e que já trouxe consigo as diversas formas econômicas do mais-valor.

Por isso também, Marx é muito duro com aqueles que pretendem resolver questões que remetem aos juros e às transações no campo da justiça e do Direito. O verdadeiro alvo não seria a regulamentação da relação jurídica, mas a relação econômica mesma já que “o verdadeiro movimento circulatório do dinheiro como capital é, portanto, pressuposto da transação jurídica, pelo qual o mutuário tem de devolver o dinheiro ao prestamista.” (MARX, 1986 a, p. 263) O verdadeiro movimento do capital está pressuposto nas formas e nas garantias jurídicas, que supõem como natural a inter-relação entre a produção e o movimento circulatório do dinheiro como capital.

Enfocar nas formas jurídicas seria esquecer que

“o movimento real do dinheiro emprestado como capital é uma operação situada além das transações entre prestamistas e mutuários. Nestas, essa mediação é apagada, invisível, não está diretamente implícita.” (MARX, 1986 a, p. 262)

A crítica dos socialistas vulgares aos juros não poderia alcançar a essência da coisa pois eles focam somente em “movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas e que ocorrem antes e depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio.” (MARX, 1986 a, p. 262) E justamente em meio a estes movimentos arbitrários é que se situam as formas jurídicas pelas quais as transações jurídicas operam. Para que fechemos este item, é preciso que fique claro: ao contrário do que se dá em Pachukanis, as formas jurídicas vêm à tona com proeminência quando o essencial já está colocado, tendo-se, para que se use uma referência clássica, que “o Direito nada mais é que o reconhecimento oficial do fato”. (MARX, 2004, p. 84)29 29 Para uma análise detida da questão, Cf. LUKÁCS, 2013. Uma abordagem sobre aquilo de mais basilar sobre o Direito em Lukács pode ser encontrada em SARTORI, 2010. No livro III, e na imediatidade da sociedade capitalista, em que o Direito parece poder muito – já que há transações jurídicas mediando diversas figuras econômicas concretas – é que ele tem menor potência. (Cf. SARTORI, 2019 b, c) As formas jurídicas aparecem em Marx principalmente em meio a estas circunstâncias, e não na conformação essencial da subjetividade e da noção de pessoa que operam em meio à formação objetiva do sistema capitalista de produção, na circulação e na troca de mercadorias.

6. Propriedade fundiária, ficção jurídica e formas jurídicas no livro III de O capital

Tal quais os juros, a renda fundiária é uma forma econômica que não se sustenta por si mesma. Marx foi bastante claro acerca do modo pelo qual os juros constituem uma forma secundária de exploração na sociedade capitalista. Ou seja, eles aviltam as pessoas e as classes sociais, mas não constituem a relação-capital como tal, tratando-se de uma figura econômica que, considerada isoladamente, é, até certo ponto, carente de conceito, e que precisa ser explanada tendo-se em conta o trabalho assalariado e a extração do mais-valor.30 30 Diz Marx, “no capital portador de juros, [...], apresenta-se o caráter auto-reprodutor do capital, o valor que se valoriza, a produção de mais-valia como qualidade oculta, em estado puro. [...] Que a classe trabalhadora também dessa forma é fraudada e de maneira escandalosa é um fato claro; mas, o mesmo é feito pelo varejista que lhe fornece os meios de subsistência. Esta é uma exploração secundária, que corre paralela com a original, que se dá diretamente no próprio processo de produção. A diferença entre vender e emprestar é aqui completamente indiferente e formal, a qual, conforme já mostramos, só parece essencial aos que desconhecem por completo a conexão real.” (MARX, 1986 a, p. 118) Para uma análise detida desta passagem e de outras sobre o tema, Cf. SARTORI, 2019 a, b, c. Ou seja, o tratamento destas formas econômicas remete a um processo meandrado, em que as mediações que se interpõem – dentre elas, a jurídica – apagam o processo essencial à conformação objetiva do modo de produção capitalista.

Isto nos é bastante importante porque os momentos em que Marx fala das formas jurídicas remetem a este aspecto. Tanto no caso dos juros (e a pretensão de se ter uma justiça das transações por meio do Estado), quanto ao se ter em conta a renda da terra, o processo social aparece completamente invertido, tanto em seu modo de representação, quanto em sua apresentação.

O grau de estranhamento, do caráter exterior e de fetichismo presente nestas formas irracionais é bastante destacado por Marx no livro III de O capital. E, assim, as formas jurídicas se colocam justamente em meio a estas formas e figuras econômicas estranhadas. Passemos, assim, ao modo pelo qual Marx trata da renda da terra, em sua relação com o Direito e com a propriedade fundiária:

A propriedade fundiária pressupõe que certas pessoas têm o monopólio de dispor de determinadas porções do globo terrestre como esferas exclusivas de sua vontade privada, com exclusão de todas as outras. Isso pressuposto, trata-se agora de expor o valor econômico, ou seja, a valorização desse monopólio na base da produção capitalista. O poder jurídico dessas pessoas de usar e abusar de porções do globo terrestre em nada contribui para isso. A utilização dessas porções depende inteiramente de condições econômicas que são independentes da vontade desses proprietários. A própria concepção jurídica quer dizer apenas que o proprietário fundiário pode proceder com o solo assim como com as mercadorias o respectivo dono; e essa concepção – a concepção jurídica da livre propriedade do solo – só ingressa no mundo antigo à época da dissolução da ordem social orgânica e, no mundo moderno, com o desenvolvimento da produção capitalista. Na Ásia, ela foi introduzida pelos europeus apenas em algumas regiões. Na seção sobre a acumulação primitiva Livro Primeiro, cap. XXIV viu-se como esse modo de produção pressupõe, por um lado, que os produtores diretos se libertem da condição de meros acessórios do solo na forma de vassalos, servos, escravos etc.! e, por outro, a expropriação da massa do povo de sua base fundiária. Nessa medida, o monopólio da propriedade fundiária é um pressuposto histórico e continua sendo o fundamento permanente do modo de produção capitalista, bem como de todos os modos de produção anteriores que se baseiam, de uma maneira ou de outra, na exploração das massas. Mas a forma em que o incipiente modo de produção capitalista encontra a propriedade fundiária não lhe é adequada. Só ele mesmo cria a forma que lhe é adequada, por meio da subordinação da agricultura ao capital; com isso, então, a propriedade fundiária feudal, a propriedade do clã ou a pequena propriedade camponesa combinada com as terras comunais são também transformadas na forma econômica adequada a esse modo de produção, por mais diversas que sejam suas formas jurídicas (juristichen Formen). (MARX, 1986 b, p. 124-125)

Na passagem, Marx deixa bastante claro que o essencial não é o poder jurídico, mas as condições econômicas. Pelo que vimos, o poder jurídico, tanto no caso dos juros como aqui, é efetivo e gera diferenças substanciais na distribuição do mais-valor. No entanto, tanto a figura econômica dos juros quanto a figura da renda, se dissociadas do trabalho produtor de valor, são categorias irracionais e que não se sustentam por si mesmas. A titularidade da propriedade jurídica, bem como a distribuição, acaba sendo regida – de imediato – pela propriedade, e não pelo quantum de trabalho presente em cada mercadoria (Cf. GRESPAN, 2011GRESPAN, Jorge. As formas da mais-valia: concorrência e distribuição no livro III de O capital. In: Crítica marxista 33. São Paulo: Unesp, 2011 (pp.9-30).); e, com isso, tem-se um duplo aspecto colocado também aqui: ao mesmo tempo em que a distribuição é regida pela propriedade e que ela opera por meio de transações jurídicas, no caso do capitalismo, o essencial está colocado nas diversas formas que podem tomar o processo da assim chamada acumulação primitiva (ou originária), processo esse que constitui a moderna propriedade fundiária e a moderna oposição entre cidade e campo. E, assim, a concepção jurídica mencionada por Marx ao tratar do capítulo XXIV de O capital traz consigo o poder jurídico, que, em verdade, consiste na apropriação privada da riqueza colocado de modo similar ao que se dá com as mercadorias.

Ou seja, as formas jurídicas pelas quais são operacionalizadas as metamorfoses das formas econômicas (aqui, a renda fundiária) trazem consigo algo bastante importante, a apropriação privada da produção e do solo. No que se tem outro ponto essencial no embate com o pensamento do autor de Teoria geral do Direito e o marxismo.

Deve-se falar da relação das formas jurídicas com os modos de produção específicos. Se, em Pachukanis, a forma jurídica passa pela igualdade jurídica, colocando-se somente no modo de produção capitalista, o mesmo não se dá em O capital, de Marx.

Marx fala do papel da concepção jurídica na antiguidade, na emergência da moderna produção capitalista e na Ásia. Tendo-se a apropriação privada da terra como precondição para o modo de produção capitalista (mas não só capitalista, já que se fala da antiguidade e na Ásia), isto não significa que o processo pelo qual isto se dá seja sempre o mesmo; Marx menciona aqui o papel da concepção jurídica na dissolução da antiga ordem social orgânica, na expropriação dos camponeses dos campos europeus e no colonialismo na Ásia. Cada um destes casos tem sua peculiaridade, havendo ainda casos em que sequer é necessário que se desse, no século XIX, a passagem de uma forma de apropriação coletiva a uma forma de apropriação privada, como na Rússia. (Cf. MARX; ENGELS, 2013MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: 2013.) O seja, ao tratar da apropriação privada da terra, tem-se que ela não necessariamente é capitalista. Percebe-se também que ela pode se dar de variados modos e mediante diversas formas jurídicas. Por fim, nota-se que ela sequer é uma necessidade para todas as formações sociais, não sendo preciso que cada formação passe por distintos modos de produção em uma sequência linear. (Cf. SARTORI, 2017 b; MACHADO, 2017MACHADO, Gustavo. Sobre a possibilidade de uma revolução russa nos escritos de Karl Marx. In: Verinotio: Revista On-line de Filosofia e ciências humanas V. 23, N. 1. Rio das Ostras, UFF, 2017.)

Nos primeiros casos, a concepção jurídica reveste relações econômicas que – de modos distintos (Cf. MACHADO, 2017MACHADO, Gustavo. Sobre a possibilidade de uma revolução russa nos escritos de Karl Marx. In: Verinotio: Revista On-line de Filosofia e ciências humanas V. 23, N. 1. Rio das Ostras, UFF, 2017.) – trazem a propriedade privada; no último caso, a defesa da apropriação coletiva da produção significa um posicionamento contra a concepção jurídica e contra a propriedade privada da terra. (Cf. SARTORI, 2017 b) Destacamos estes pontos para dizer que a concepção jurídica, em Marx, traz a apropriação privada da terra, mas não necessariamente de modo capitalista. Isto fica claro ao se destacar o papel desta concepção na dissolução da ordem social orgânica. E, assim, há dois pontos importantes a serem destacados: primeiramente, há de se notar que, em Marx, o Direito se coloca, não só no capitalismo, mas em modos de produção (como o asiático e na antiguidade escravocrata) em que a apropriação privada, de um modo ou doutro, impõem-se. Direito e propriedade privada – no caso aqui analisado, da terra – são indissociáveis. E, assim, o Direito não se liga somente à universalização da forma-mercadoria. Para o que nos diz respeito mais diretamente, deve-se destacar que a apropriação privada do solo é um pressuposto do modo capitalista de produção, em que a renda da terra decorre da distribuição, por meio de formas e transações jurídicas, do mais-valor produzido na relação entre trabalho e capital.31 31 E isto se dá, inclusive, na exploração capitalista do campo. Ou seja, por mais que o Direito se ligue, certamente, à esfera da circulação mercantil, há de se destacar que ele se relaciona também, e de modo íntimo, com o processo de acumulação originária, remetendo às condições da produção baseadas no monopólio da propriedade da terra. Assim, de um lado, há um papel ativo da esfera jurídica na conformação da produção capitalista; doutro, têm-se as formas jurídicas atuando em meio à distribuição do mais-valor, produzido na oposição capital e trabalho.32 32 Aqui não podemos tratar da questão. Ela passa pelo debate sobre as origens do capitalismo, sendo relacionada à emergência do mercado mundial ou às transformações no campo e na indústria. Cf. DOBB, 1983; WOOD, 2001.

O monopólio da propriedade fundiária decorre dos modos distintos pelos quais se coloca a assim chamada acumulação originária. E é preciso destacar: por mais que a concepção jurídica tenha um papel ativo nisto, bem como na conformação deste monopólio em modos de produção anteriores, o essencial do processo é econômico. Mesmo a forma da propriedade fundiária passa por diversas modificações no sistema capitalista de produção; inicialmente ela se encontra mediada pela propriedade fundiária feudal, pela pequena propriedade camponesa, pela propriedade do clã, pela propriedade comunal, de modo que isto só se transforma com a subordinação real ao capital (Cf. MARX, 2004 b), que traz a forma econômica adequada ao modo de produção capitalista. A potencial universalização das condições de produção capitalistas passa, portanto, pela forma-mercadoria e pela circulação mercantil, como corretamente diz Pachukanis. Porém, ao se ter em conta o Direito, há de se olhar tal processo na medida em que o estabelecimento da apropriação privada da terra e a distribuição do mais-valor por meio das formas jurídicas têm somente como elo mediador, e não como momento preponderante, a circulação mercantil. Ou seja, a ênfase dada como essencial por Pachukanis em sua análise do Direito acaba por eclipsar os outros momentos da conformação, tanto da esfera jurídica, quanto do modo de produção e das formações sociais capitalistas. A questão emerge do tratamento marxiano das formas econômicas em que o mais-valor é distribuído, embora, claro, não possa se ater somente a estas formas.33 33 Aqui, infelizmente, não podemos desdobrar esta questão. Cf. GRESPAN, 2019, 2011.

Voltemos, assim, à renda fundiária.

Mesmo que se destaque o papel ativo do Direito neste processo social, este último exterioriza-se objetivamente ao se colocando sobre os próprios pés – no que nos toca no momento – com a subordinação da agricultura ao capital. Isto é o essencial à conformação da base real das relações sociais de produção. As formas jurídicas desta relação de produção são secundárias, neste sentido. Elas podem ser as mais diversas, ligando-se a modos diferentes de se distribuir o mais-valor (principalmente entre aqueles cujo trabalho é improdutivo); o pressuposto objetivo do sistema capitalista de produção (bem como de outros modos de produção que tenham a propriedade privada do solo por suposto) não traz a necessidade de uma forma jurídica específica, portanto.

Antes, tem-se o contrário: as peculiaridades nacionais de cada formação social-relacionadas aos antagonismos e às alianças entre as diferentes classes de uma nação – demandam formas jurídicas diferentes e uma distribuição do mais-valor diferente. Tanto o modo pelo qual as formas econômicas se relacionam entre si quanto à configuração formal e jurídica das relações de propriedade são variáveis no tempo e no espaço; isso significa que, para Marx, é necessário falar de formas jurídicas no plural, também, embora não só, em decorrência destas variações.

As formas jurídicas, como formas, não determinam o conteúdo da relação econômica, mas expressam de modo mais ou menos adequado – e, neste sentido, são mais ou menos funcionais à reprodução da relação-capital – a forma adequada à conformação específica do modo capitalista de produção em determinada formação social. A subordinação do campo à cidade que é trazida com o capitalismo significa também um modo distinto no relacionamento com a renda da terra. Se esta forma econômica é antediluviana, ela também se transforma substancialmente com sua subordinação ao processo de autovalorização do valor, e com o modo pelo qual isto se dá em formações sociais específicas e em meio à divisão internacional do trabalho. Tem-se um arranjo distinto que o da antiguidade, por exemplo, entre a propriedade fundiária e a produção social da riqueza. Assim como o modo pelo qual a renda aparece na Ásia é distinto. Vê-se, inclusive, que o essencial à subordinação da agricultura ao capital não é a renda da terra, que é trazida por formas e transações jurídicas diversas. 34 34 Em teoria, mesmo a apropriação estatal da renda não mudaria a natureza da produção capitalista, ao passo que a apropriação da terra elo povo mudaria a questão essencialmente: “se o Estado se apropriasse da terra e prosseguisse a produção capitalista, a renda II, II, IV seria paga ao Estado, a própria renda continuaria a existir. Se a terra se tornasse propriedade do povo, desapareceria em geral a base da produção capitalista, o fundamento sobre o qual se a apoia a autonomiza, em face do trabalhador, das condições de trabalho.” (MARX, 1980, p. 532) Marx posteriormente coloca que “suposto o modo de produção capitalista, o capitalista não é só funcionário imprescindível da produção, mas o funcionário predominante. O dono da terra, ao revés, é de todo supérfluo no modo capitalista de produção. Este modo de produção precisa apenas que a terra não seja propriedade comum, se oponha à classe trabalhadora como condição de produção que não pertence a essa classe, e se atinge por completo esse objetivo quando a terra se torna propriedade do Estado, isto é, o Estado percebe a renda fundiária. O dono da terra, funcionário tão essencial da produção no mundo antigo e no medieval é na era industrial inútil, excrescência. O burguês radical (cobiçando também a supressão de todos os outros tributos) avança no plano teórico para negar a propriedade privada da terra, que desejaria tornar propriedade comum da classe burguesa, do capital, na forma de propriedade do Estado. Na prática, entretanto, falta coragem, pois o ataque a uma forma de propriedade uma forma de propriedade privada das condições de trabalho – seria muito perigoso para a outra forma. Ademais, o próprio burguês tornou-se dono de terras.” (MARX, 1980, p. 477) Resta, assim, que as diversas formas jurídicas implicam em uma diferente distribuição do mais-valor em meio a figurações distintas dos modos de produção.

As formas jurídicas, desta maneira, não têm um papel fundamental na conformação das relações de produção basilares ao modo de produção capitalista, como a relação de assalariamento ou a apropriação privada da terra. Por mais que a distribuição do mais-valor na forma econômica juros e na figura econômica renda seja de grande importância na figuração da especificidade da distribuição da riqueza em cada formação social, elas, bem como as formas jurídicas pelas quais são operacionalizadas, não dão a característica essencial do modo de produção capitalista. A propriedade jurídica, assim, dá poder jurídico ao proprietário e rege a distribuição do mais-valor entre os diferentes agentes da produção, o que certamente não é pouco. Porém, permanecer neste nível de análise é algo que foi bastante criticado por Marx, tanto ao abordar a economia quanto o socialismo vulgares. Isto se dá porque a propriedade não gera a renda fundiária, que, tal qual o juro e o lucro, é uma parcela do valor equivalente ao mais-trabalho, decorrente da oposição entre a moderna classe trabalhadora e a burguesia, principalmente, a industrial. (Cf. COTRIM, 2013COTRIM, Vera. Trabalho produtivo em Karl Marx: novas e velhas questões. São Paulo: Alameda, 2013.)

A mera propriedade jurídica do solo não gera nenhuma renda fundiária para o proprietário. Entretanto, lhe dá o poder de subtrair suas terras à exploração até que as condições econômicas permitam uma valorização que lhe proporcione um excedente, seja o solo destinado à agricultura propriamente dita, seja a outros fins de produção, como construções etc. Ele não pode aumentar ou diminuir a quantidade absoluta desse campo de ocupação, mas sua quantidade presente no mercado. (MARX, 1986 b, p. 225)

O poder jurídico tem implicações importantes na distribuição da riqueza (e do mais-valor); porém, não é ele que gera a renda fundiária. Esta última é uma parcela do mais-valor, produzido no processo imediato de produção (que também pode se dar no campo, com a agricultura subsumida ao capital). Com tal poder, que decorre também das relações de propriedade e do reconhecimento destas últimas por meio de formas jurídicas, tem-se a operacionalização do processo econômico subjacente, que permite a valorização colocada na agricultura capitalista. Ou seja, as formas jurídicas não geram renda, salário, lucro; mas podem modificar a inter-relação entre estas figuras econômicas, principalmente, no que toca a distribuição do mais-valor. O essencial, porém, não está nas diferentes correlações entre estas categorias, que compõem uma espécie de fórmula trinitária – tanto para a economia vulgar quanto para os socialistas vulgares –, mas nas condições materiais de produção cuja base está no desenvolvimento das forças produtivas. Tanto é assim que o autor de O capital destaca que o proprietário fundiário, ao fim, pode até mesmo – exercendo seu poder – modificar a quantidade de mercadorias decorrentes da agricultura presente no mercado e pode também mudar a quantidade absoluta do campo que, mediante o mercado, é colocado para ocupação. Mas isto não decorre da propriedade jurídica, mas da conformação das relações de produção que, por meio do Direito, e de diversas formas jurídicas – que, como apontado, não são o essencial – se coloca com base no monopólio da terra, pela apropriação privada no campo.

As formas jurídicas não são indiferentes a este processo. Mas elas podem ser, para que se diga com Marx, as mais diversas. Como simples formas, não determinam o conteúdo da relação econômica. E, neste sentido, o tratamento marxiano destas formas é bastante diferente do pachukaniano. Elas adentram muito mais as minúcias das conformações concretas das formas e figuras econômicas externas e fetichizadas (como os juros e a renda) que a conformação essencial da relação-capital. Tais minúcias afetam a vida das pessoas de modo brutal, claro. (Cf. SARTORI, 2009 b, c) Porém, elas só podem ser explicadas remetendo-se à relação entre o processo imediato de produção e as figuras do processo global de produção. Se supervalorizarmos o papel das formas jurídicas neste processo, estaríamos justamente ratificando a inversão entre sujeito e objeto, criticada por Marx. Estaríamos também tomando o fenômeno por essência e, assim, afirmando que as formas irracionais que se apresentam na efetividade da sociedade capitalista têm uma sustentação própria. Ou seja, restaria intocado o modo de representação capitalista. (Cf. GRESPAN, 2019)

A crítica às formas jurídicas, em Marx, é importante, mas não pode ser sobrevalorizada.

Ao tratar da renda fundiária, e da necessidade de trazer a diferença específica das diferentes formas de renda, Marx destaca que, ao se apegar às formas jurídicas, e a ficção jurídica (juristiche Fiktion) traz-se a noite em que todos os gatos são pardos. A inversão trazida pela ênfase na titularidade jurídica da propriedade, portanto, é bastante criticada no livro III de O capital. Tal inversão especulativa opera na medida em que, efetivamente, tem-se uma mediação jurídica na conformação da renda (e de toda a atividade econômica); ao passo que as relações econômicas operam por meio de transações jurídicas, tem-se no Direito um elo importante no modo pelo qual as formas econômicas são operacionalizadas e, assim, são efetivas. No entanto, isto é muito diferente de dizer, como parece ser razoável no cotidiano, que a esfera jurídica determina as formas econômicas. (Cf. SARTORI, 2019 b, c) Elas se conformam, no caso da renda, tendo por trás de si a apropriação privada da terra, que é reconhecida juridicamente, no entanto, não se pode reduzir a renda a um resultado do reconhecimento da titularidade da propriedade privada. Antes, ela decorre da conformação objetiva da figura renda em diversos modos de produção (escravocrata antigo, asiático e capitalista, para que fiquemos naqueles citados por Marx na passagem acima) e de diversas formações sociais, com suas especificidades objetivas. Aqui, como noutros lugares, a concepção jurídica é cega diante da conformação real e efetiva das relações econômicas.

Ela atua em meio a um elemento comum presente na realidade – no caso, propriedade fundiária cuja titularidade passa a ser reconhecida juridicamente pelo Estado – e, com isto, estabelece uma ficção e opera, não mais por meio da apreensão das determinações da própria realidade, mas partindo da ficção jurídica e da concepção jurídica. A inversão presente nas figuras fenomênicas da realidade capitalista, de um lado, são tomadas como critério, doutro, são esquecidas, já que o que passa a importar à concepção jurídica são as ficções jurídicas.

As formas jurídicas, assim, trazem consigo tais inversões, naturalizando-as. Também aqui é preciso de cuidado, pois não são estas formas (jurídicas) que geram tais inversões. Elas somente a reconhecem, pois elas decorrem de modo mediado e por meio da concepção jurídica e das ficções jurídicas, da autonomização das formas e figuras econômicas diante da extração do mais-valor, tratadas por Marx no livro III de O capital. Sobre a renda, Marx aponta que “há três erros principais que é preciso evitar ao abordar a renda fundiária, pois turvam a análise.” (MARX, 1986 b, p. 137) Aqui, não poderemos tratar de todos eles, mas devemos remeter a um em específico, que se relaciona intimamente ao nosso tema: “a confusão entre diferentes formas de renda, correspondentes a fases diversas de desenvolvimento do processo de produção social.” (MARX, 1986 b, p. 137) Vejamos:

Qualquer que seja a forma específica de renda, todos os seus tipos têm em comum: a apropriação da renda é a forma econômica em que a propriedade fundiária se realiza, e, por sua vez, a renda fundiária pressupõe propriedade fundiária, propriedade de determinados indivíduos sobre determinadas frações do globo terrestre. E indiferente que o proprietário seja a pessoa que representa a comunidade, como na Ásia, no Egito etc., ou que essa propriedade fundiária seja apenas um tributo acidental de propriedade de determinadas pessoas sobre as pessoas dos produtores diretos, como no sistema escravocrata ou de servidão, ou que seja pura propriedade privada de não-produtores sobre a Natureza, mero título de propriedade sobre o solo ou, por fim, que seja uma relação com o solo, a qual, como no caso de colonos e pequenos proprietários camponeses, parece encontrar-se diretamente compreendida – no sistema de trabalho isolado e socialmente não desenvolvido – na apropriação e produção dos produtos de determinadas frações de terra pelos produtores diretos. Esse denominador comum das diferentes formas de renda – ser a realização econômica da propriedade fundiária, a ficção jurídica (juristiche Fiktion) por força da qual diversos indivíduos detêm de modo exclusivo determinadas partes do globo terrestre – faz com que se esqueçam as diferenças. (MARX, 1986 b, p. 137)

A concepção jurídica se apega unilateralmente a um elemento comum a todas as formas de renda. Transpondo-se a uma ficção jurídica, começa a operar na superfície da sociedade, não a partir da compreensão da realidade mesma, mas de uma ficção. Assim, é verdade que a renda tem como elemento essencial a propriedade privada da terra e o reconhecimento jurídico desta propriedade; no entanto, aquilo que faz com que se compreenda realmente a renda não são as formas jurídicas e a titularidade jurídica, mas a relação da renda com as demais formas e figuras econômicas de determinados modo de produção e formação sociais, como o juro, o salário, mas, principalmente, a mercadoria, o dinheiro, o capital e, portanto, o mais-valor. A renda fundiária capitalista é diferente daquela que se coloca no modo de produção asiático, feudal ou escravocrata. E sua conformação no Brasil, por exemplo, é muito diferente da francesa. Para Marx, isto, que é o principal na compreensão da renda fundiária, é deixado de lado ao se trazer à tona, com referência a uma ficção jurídica, o denominador comum. O enfoque nas formas jurídicas e nas transações jurídicas traz esta inversão.

Certamente a estipulação do montante da renda, bem como dos juros, passa por uma transação jurídica. No entanto, a renda e o juro não se resumem a algo fixado mediante formas jurídicas. A explicação da renda passa pela sua diferença específica. E, assim, é muito diferente que ela seja auferida por uma pessoa que representa a comunidade no modo de produção asiático, por meio de um tributo senhorial no modo de produção feudal, por um tributo acidental sob o sistema escravocrata ou como algo decorrente da simples propriedade privada do solo (como tipicamente ocorre no modo de produção capitalista) ou colocada em correlação com o uso de partes específicas da terra, no caso dos camponeses e colonos ainda presentes no modo de produção capitalista (mas também presentes em outros modos de produção). Ou seja, o essencial aqui, novamente, não são as formas jurídicas, mas o conteúdo econômico, determinado pela correlação entre as formas econômicas em modo de produção e formação sociais específicos. Por mais diversas que possam ser as formas jurídicas, o essencial não está aí. É claro que uma ficção jurídica melhor estipulada consegue ser mais efetiva que uma que não apreende o básico das relações sociais de uma época e local. Porém, a insistência marxiana no fato de que esta época e local que são o essencial é clara.

A inversão especulativa presente na ficção jurídica faz com que um elemento comum, que decorre das circunstâncias históricas de cada modo de produção e de cada formação social, pareça criar a renda em cada caso. Como já dissemos, a propriedade não gera renda, ela somente opera na distribuição, no caso, sob a forma de renda, do mais-valor. Em assim, a inversão da realidade – presente na concorrência capitalista – que se apresenta na forma econômica renda é, mediante ficções jurídicas, reconhecida imediatamente como ponto de partida. Tal qual no caso dos juros, é importante que compreendamos as formas jurídicas em sua correlação com a distribuição do mais-valor e em sua ligação com o modo pelo qual operam as formas econômicas autonomizadas, como o juro e a renda. Na maneira pela qual a concepção jurídica se coloca, isto é eclipsado, tendo-se esta concepção como aquela que, não só toma como suposto a relação-capital colocada sobre os próprios pés; ela também toma a autonomia das formas econômicas externas, estranhadas e fetichizadas como algo natural e evidente. No limite, a razão destas formas parece estar nas diferentes configurações das formas jurídicas, das ficções jurídicas e das transações jurídicas. E, com isso, o ponto de partida das formas jurídicas vem a ser o mesmo que da economia vulgar e do socialismo vulgar. Tanto ao se ter em conta a teorização marxiana das formas jurídicas nos juros quanto na renda isto fica claro; a crítica às formas jurídicas atinge, portanto, este elemento destacado.

7. Considerações finais

Já destacamos os méritos de Pachukanis. No entanto, segundo o que colocamos acima, pode-se perceber que uma de suas teorizações mais célebres não encontra pleno respaldo textual em Marx. O tratamento pachukaniano daquilo que ele chama de forma jurídica capta elementos essenciais da crítica marxiana ao Direito, por exemplo, ao destacar a relação entre a circulação de mercadorias colocada de modo tendencialmente global e a universalidade do Direito e a produção do valor, que está refletido na troca equivalente. Isto ficaria claro na noção de igualdade jurídica. No entanto, em Marx, ao se tratar das formas jurídicas, o cenário é bastante diferente.

Não se tem tanto as formas jurídicas, bem como as ficções jurídicas e as transações jurídicas, operando em meio à compra e venda da força de trabalho e em meio à circulação de mercadorias, e, assim, dando encaminhamento à conformação diuturna da relação-capital. Antes, elas aparecem principalmente em meio à distribuição do mais-valor já produzido e metamorfoseado nas formas econômicas renda e juros. Assim, elas não se baseiam tanto no modo pelo qual se equaliza o valor, ou na maneira pela qual é produzido o mais-valor, o que é tratado no livro I. Não se tem, pois, o enfoque no tempo de trabalho socialmente necessário, mas na propriedade privada, que tem como solo o capital colocado sobre seus próprios pés, e que se apresenta em formas econômicas externas e estranhadas diante do processo produtivo. Com isto, tem-se que o grau de fetichização, externalidade e estranhamento das formas econômicas com o qual as formas jurídicas operam é muito maior do que aquele da forma jurídica pachukaniana, relacionada à forma-mercadoria. Enquanto esta última está em relação direta com a conformação do processo que produz a relação-capital, as formas jurídicas tratadas por Marx veiculam figuras econômicas como os juros e a renda da terra, figuras estas marcadas por uma irracionalidade e por um estranhamento diante da produção e dos produtores muito maior. É preciso que se perceba: Pachukanis, portanto, traz a sua teorização sobre a forma jurídica em um grau de abstração e de concretude diferente daquele do próprio Marx.

Dizer isto não significa que se tenha simplesmente um equívoco filológico no tratamento de O capital. Em verdade, com isto, a importância atribuída ao Direito, e às formas jurídicas, na reprodução do modo de produção capitalista acaba sendo muito maior no jurista russo que em Marx. Ao passo que a noção de pessoa trazida por Marx no livro I de O capital é compreendida por Pachukanis como aquela que traz a forma jurídica e o sujeito de direito, tem-se a mediação do Direito como essencial na passagem da esfera produtiva para a da circulação. Em Marx, no entanto, tal noção de pessoa não se coloca diretamente como o sujeito de direito (Cf. SARTORI, 2019 a) e o caráter ativo das formas jurídicas transparece muito mais no tratamento de figuras econômicas que supõem, ao mesmo tempo em que ocultam, a extração do mais-valor. O que faz com que os tratamentos sejam bastante distintos: desvendar o fetichismo da mercadoria leva à compreensão da reificação basilar que se coloca na inter-relação entre produção (e, portanto, valor) e a troca de mercadorias. Tratar dos juros e da renda, bem como do fetichismo que aparece ali, traz um caminho muito mais cheio de mediações que o do livro I. A crítica à forma trinitária (terra-renda, trabalho-salário, capital-lucro) remete à teorização sobre o mais-valor, e somente de modo bastante indireto, à crítica ao próprio valor. Assim, se Pachukanis trata da forma jurídica como elo essencial na constituição da exploração do mais-trabalho, o mesmo não é o central na abordagem marxiana das formas jurídicas. Elas, em verdade, lidam principalmente com a distribuição do mais-valor já produzido na esfera produtiva. Ou seja, as formas jurídicas atuam quanto a constituição essencial do trabalho assalariado e, portanto, da relação capital, bem como da circulação e troca de mercadorias, já está dada. Inclusive, como vimos, as mais diversas formas jurídicas podem, sem nunca determinar, revestir determinado conteúdo econômico. Para que sejamos claros: em Marx, as formas jurídicas – do ponto de vista da conformação da essência do capitalista – têm muito menos importância do que para Pachukanis.

E, verdade, o modo pelo qual tais formas jurídicas se colocam na realidade toma como natural o modo invertido pelo qual a concorrência se apresenta e é representada na sociedade capitalista. E isto traz como consequência que as formas jurídicas operem, não tanto na conformação da relação-capital (na correlação entre a produção e a circulação de mercadorias), mas na distribuição do mais-valor e no reconhecimento da titularidade de poderes jurídicos, bem como nas ficções jurídicas.

O grau de fetichismo e de estranhamento das categorias juro e renda se devem à autonomização das formas econômicas; as formas jurídicas, por sua vez, operam em meio a tal fetichização, caráter externo e estranhado destas formas econômicas. Elas não estão em ligação direta, mas muito indireta, com a forma-mercadoria, portanto. Remetem a ela, e ao processo de formação de uma sociedade baseada na separação entre produtores e meios de produção; mas isso se dá somente com bastantes mediações e levando às formas econômicas estranhadas. Nestas formas, tem-se a inversão entre sujeito e objeto, tratada no livro III de O capital. As formas jurídicas levam à consideração de certas categorias econômicas irracionais como ponto de partida natural. Com isso, a autonomização destas categorias parece absoluta e tudo parece decorrer de atos de vontade e de contratos, que se expressam concretamente em formas jurídicas, entrelaçadas pela titularidade jurídica da propriedade e pelas transações jurídicas. Os juros, assim, parecem advir da simples titularidade da propriedade; a renda da terra também. As diversas formas jurídicas que passam a ser destacadas por Marx colocam-se, portanto, no âmbito fenomênico e superficial da realidade efetiva; e, assim, o elemento essencial do modo de produção capitalista está invisível.

Se Pachukanis, ao tratar da tensão entre a pessoa, as coisas, a forma mercantil e a forma jurídica traz uma teorização proveitosa em diversos sentidos (Cf. SARTORI, 2019 a), isto se dá na medida em que sua compreensão da noção de forma jurídica é uma conquista sua, que não está presente em Marx. Aliás, isto se dá até certo ponto apesar, e não por causa, da teorização marxiana. No autor de O capital, a compreensão das formas jurídicas remete ao livro III e ao modo pelo qual a concepção jurídica opera no mesmo nível que a economia vulgar e o socialismo vulgar. Este nível é tanto aquele em que os juros e a renda parecem decorrer de transações jurídicas, como aquele em que abstrações absolutamente irrazoáveis, como aquelas da economia vulgar, do socialismo vulgar e da concepção jurídica, aparecem como se razoáveis fossem.35 35 Sobre a noção de abstração razoável, Cf. CHASIN, 2009. A partir de ficções jurídicas – que deixam de lado o essencial na compreensão das relações sociais, e mistificam a diferença específica – parece ser possível raciocinar consistentemente. Isto se dá porque o nível fenomênico e reificado da realidade é tomado como essencial, havendo uma inversão entre a essência e fenômeno.

A compreensão deste fenômeno remete certamente ao fetichismo da mercadoria. No entanto, pode ser muito melhor compreendido ao se considerar as inversões especulativas tratadas no livro III ao se ter em conta tanto os juros quanto a renda e a taxa de lucro. Na compreensão destas categorias, Marx trata com bastante cuidado tanto do fetichismo do dinheiro quanto, das formas de fetichismo que se apresentam em formas e figuras econômicas muito menos racionais que forma-mercadoria, como o juro e a renda. No livro III, as forças produtivas do trabalho se apresentam como forças produtivas do capital e, em meio a esta inversão, que também tentamos trazer neste artigo de modo sumário, é que estão as formas jurídicas. Se isso é verdade, a análise de nosso tema remete a uma crítica à autonomização das formas e figuras econômicas na sociedade capitalista. Isto, teoricamente, é realizado por Marx ao trazer à tona as mediações que compõem as metamorfoses da mercadoria, do mais-valor e que trazem a inversão e a irracionalidade das categorias que compõem a realidade efetiva da sociedade capitalista. A análise das formas jurídicas passa a remeter à função que o Direito tem na conformação imediata – e na apologia e na crítica insuficiente desta – na sociedade capitalista.

A preocupação pachukaniana, ligada à emergência da NEP e à remonetarização da economia soviética (Cf. HEAD, 2004HEAD, Michael O. Marxism, revolution and law: the experience of early Soviet Russia. Sidney: University of Western Sidney, 2004.), é muito diferente daquela de Marx, que mostra como que as formas econômicas mais irracionais parecem, no limite, se amparar em ficções, poderes e transações jurídicas. Pachukanis pretende resolver uma questão pungente de sua época por meio de uma crítica à forma jurídica (e à forma mercantil); Marx, por seu turno, mostra como que a crítica às formas jurídicas é central para que se possa voltar os olhos para a crítica à economia política.

Ou seja, nunca seria possível, mesmo que de modo meandrado, trazer como central à crítica da sociedade capitalista, a análise de categorias jurídicas. Antes, tratar-se-ia de ver como que estas categorias se colocam em meio às formas e figuras econômicas específicas cuja existência está ancorada em determinado modo de produção. Marx não tem uma crítica propriamente jurídica – o que não significa que não tenha uma decidida crítica ao Direito –, não sendo possível, ao ser fiel ao autor, buscar qualquer forma de marxismo jurídico. Isto não é o que Pachukanis faz, certamente. Mas há de se perceber que a elaboração de uma teoria marxista do Direito que pretenda desvendar as principais categorias da teoria do Direito em meio à crítica marxiana da economia política, talvez, de modo remoto, abra espaço para algo problemático.

A análise marxiana das formas jurídicas, longe de enfocar nas minúcias destas, das transações jurídicas, das ficções jurídicas e em categorias jurídicas específicas, dá relevo ao modo pelo qual a crítica da economia política remete à análise crítica das formas econômicas autonomizadas e das figuras concretas que se apresentam na imediatidade do modo de produção capitalista. Se formos ter Marx como parâmetro, e a problematização das formas jurídicas como tema, ao lidar com o Direito, é necessário ver como que estes operam neste processo, que remete tanto ao processo imediato quanto ao global de produção, ou seja, tanto à problematização pachukaniana do livro I de O capital quanto à análise cuidadosa do livro III.

  • 1
    No presente texto, a partir das obras marxianas, debateremos principalmente com a tradição brasileira de crítica marxista ao Direito. Mesmo que seja possível trazer à tona os temas aqui abordados – e que giram em torno de aspectos essenciais do livro III de O capital – a partir do debate alemão sobre a nova leitura de Marx e sobre projeto da MEGA II, ainda em curso, não poderemos fazer isto neste espaço. Enfocaremos as edições correntes de O capital, não trazendo um debate filológico substantivo. A análise da filologia, porém, pode ser importante na continuidade da pesquisa sobre nosso tema, mesmo que seja preciso destacar que alguns pensadores (Cf. MARTINS, 2013MARTINS, Maurício Vieira. Sobre a nova edição das obras de Marx e Engels: só a filologia salva? In: Marx e o marxismo, N. 1, V. 1. Niterói: UFF, 2013.) questionam certo apego exagerado à filologia por parte daqueles envolvidos no referido projeto.
  • 2
    Como diz Pachukanis: “se a análise da forma-mercadoria revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e expõe as bases abstratas do esquema da ideologia jurídica, então o processo histórico de desenvolvimento da economia mercantil-monetária e mercantil-capitalista acompanha a realização desses esquemas na forma da superestrutura jurídica concreta. Na medida em que as relações entre as pessoas se constroem como relação de sujeitos, temos todas as condições para o desenvolvimento da superestrutura jurídica com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados, e assim por diante.” (PACHUKANIS, 2017, p. 62)
  • 3
    Para uma crítica a esta posição pachukaniana diante de Marx, Cf. PAÇO CUNHA, 2014PAÇO CUNHA, Elcemir. Considerações sobre a determinação da forma jurídica a partir da mercadoria. Crítica do Direito, n. 64. São Paulo: Mackenzie, 2014., 2015.
  • 4
    Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação ideal – em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009CHASIN, José. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 26)
  • 5
    Pachukanis menciona “a crítica de Marx do sujeito de direito, que deriva imediatamente da análise da forma-mercadoria”. (PACHUKANIS, 2017, p. 61).
  • 6
    Dizemos influência neste ponto porque, em grande parte, as intervenções de Mascaro vêm em livros didáticos, em que não é possível – ao menos neste caso – explicitar devidamente as influências. No texto autoral Estado e forma política (2013) não há citações e, assim, mesmo com extensa bibliografia, não é possível perceber com clareza absoluta a que autor o marxista brasileiro se refere em cada momento de seu texto. Outro texto autoral de Mascaro é Utopia e Direito (2008), em que analisa o pensamento de Bloch. No entanto, as análises deste livro são pouco retomadas nas demais intervenções do autor, de modo que somente podemos, com certeza, apontar influências neste ponto.
  • 7
    Sobre as afinidades entre Pachukanis e História e consciência de classe, Cf. PAÇO CUNHA, 2015.
  • 8
    Sobre o estatuto da analítica presente em O capital, Cf. ALVES, 2013.
  • 9
    Eis a passagem marxiana, central para Pachukanis: “as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma.” (MARX, 1996, p. 79) Para uma análise da passagem tendo em conta a arquitetura do livro I, Cf. SARTORI, 2019 a. A crítica à relação entre forma mercantil e jurídica se encontra também em PAÇO CUNHA, 2014PAÇO CUNHA, Elcemir. Considerações sobre a determinação da forma jurídica a partir da mercadoria. Crítica do Direito, n. 64. São Paulo: Mackenzie, 2014.. Nela, Marx fala que a relação jurídica em tela tem por forma o contrato. Pachukanis, retira desta passagem, bem como da leitura do livro I, o conceito de forma jurídica. No entanto, há de se notar que ele está somente implícito na passagem. Esta leitura pode ser ratificada pelas Glossas sobre Wagner, em que, no mesmo contexto, Marx fala de forma jurídica: “mostrei na análise da circulação de mercadorias que no escambo desenvolvido as partes se reconhecem tacitamente como pessoas iguais e como proprietários dos respectivos bens a serem por eles trocados; eles já o fazem ao oferecer uns para os outros seus bens e ao entrar em acordo uns com os outros sobre o negócio. Essa relação fática que se origina primeiro na e através da própria troca adquire mais tarde forma jurídica no contrato etc.; mas essa forma não cria nem o seu conteúdo, a troca, nem a relação nela existente das pessoas entre si, mas vice-versa.” (MARX, 2017, p. 273) Porém, há de se notar que a principal passagem utilizada por Pachukanis para defender sua principal tese traz a categoria de modo somente implícito. Como veremos mais à frente do texto, caso se queira trazer o assunto à tona com mais cuidado, é necessário voltarmos os olhos para o livro III de O capital.
  • 10
    Embora nossa análise seja focada no livro III, utilizaremos também passagens do livro I de O capital para que se compreenda a relação da obra como um todo. Passaremos também, principalmente ao tratar dos juros e da renda da terra por algumas citações das Teorias do mais-valor.
  • 11
    Pachukanis se refere ao livro III de O capital: ao falar da renda: “’a própria ideia jurídica significa apenas’, escreve Marx, ‘que o proprietário fundiário pode proceder com a terra tal como o proprietário de mercadorias o faz em relação a estas últimas’” (PACHUKANIS, 2017, p. 118) Depois, ao falar “do capital usurário, que ‘com seu irmão gêmeo, o capital comercial’, para usar expressão de Marx, ‘[figura] entre as formas antediluvianas do capital, que precedem por longo tempo o modo de produção capitalista e podem ser encontradas nas mais diversas formações econômicas da sociedade’” (PACHUKANIS, 2017, p. 133) Posteriormente, ao falar do feudalismo, o autor diz sobre o poder e a propriedade privada: “a analogia com as relações feudais não é, neste caso, absolutamente precisa. Como explica Marx, ‘[...] a autoridade que o capitalista assume no processo direto de produção como personificação do capital, a função social de que ele se reveste como condutor e dominador da produção, é essencialmente diferente da autoridade fundada na produção com escravos, servos etc. Enquanto na base da produção capitalista a massa dos produtores imediatos é confrontada com o caráter social de sua produção na forma de autoridade rigorosamente reguladora e de mecanismo social do processo de trabalho articulado como hierarquia completa – autoridade que, no entanto, só recai em seus portadores como personificação das condições de trabalho diante do trabalho, e não, como em formas anteriores de produção, como dominadores políticos ou teocráticos –, entre os portadores dessa autoridade, os próprios capitalistas, que só se confrontam como possuidores de mercadorias, reina a mais completa anarquia, dentro da qual o nexo da produção social só se impõe como lei natural inexorável à arbitrariedade individual.’” (PACHUKANIS, 2017, p. 145)
  • 12
    Só para que mencionemos estudos importantes recentes que se colocam nesta esteira, vale trazer à tona PEREIRA NETO, 2018; PALU, 2019PALU, Marco Aurélio. Estado, democracia e gênero humano: a crítica de 1843 e a fundação do pensamento marxiano. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Direito, 2019.; PARREIRA, 2019PARREIRA, Lucas. Entre flexas e martelos: Marx como leitor de Henry Morgan (dissertação de mestrado). Belo Horizonte: UFMG, 2019.; MEDRADO, 2019.
  • 13
    Sobre a relação entre modo de representação e de apresentação no livro III, Cf. GRESPAN, 2019. No que diz respeito ao debate filológico em torno do livro III e do papel de Engels neste livro, não poderemos o trazer aqui. Porém, remetemos ao texto de ROTH (2015)ROTH, Regina. A publicação dos livros II e II d’O capital por Friedrich Engels. In: In: Revista On Line de Filosofia e Ciências Humanas, n° 20. Rio das Ostras: UFF, 2015., em que se trata do papel de Engels, ao nosso ver, de modo cuidadoso e correto.
  • 14
    Para ele, no capitalismo, “o vínculo social da produção apresenta-se, simultaneamente, sob duas formas absurdas: como valor de mercadoria e como capacidade do homem de ser sujeito de direito.” (PACHUKANIS, 2017, p. 121).
  • 15
    Como diz Marx: “a relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições de realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista se apoie sob os próprios pés, não apenas conserva tal separação, mas a reproduz em escala sempre crescente. Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que não o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das suas condições de trabalho, um processo que por um lado transforma os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores imediatos em operários assalariados.” (MARX, 1987, p. 252).
  • 16
    Mostra Marx no livro III, a partir de categorias como custo de produção e ganho empresarial, operam os agentes econômicos. Em seus cotidianos, o valor não parece advir da produção, mas da diferença entre o custo de produção e o preço de venda, que daria o ganho empresarial. Com isso, a forma de apresentação do ganho empresarial faz com que o valor pareça ser originado na esfera da circulação de mercadorias, e não na produção. Cf. SARTORI, 2019 c.
  • 17
    Dentre outras passagens, podemos trazer a seguinte: “a esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados.” (MARX,1987, p. 144)
  • 18
    Para uma análise deste aspecto “carente de conceito” em Marx, Cf. SARTORI, 2019b, c.
  • 19
    Tanto Wendy Goldman (2014)GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. Trad. Natália Alfonso. São Paulo: Boitempo, 2014. quanto Márcio Naves (2000 a, b) trazem uma análise bastante séria sobre o modo crítico como Pachukanis se posicionou diante do desenrolar da Revolução Russa. Os méritos de Pachukanis, ainda mais se levarmos em conta, as dificuldades da Revolução Russa, são enormes. Para que sejamos justos com a literatura contrária a nossa orientação, vale mencionar que, de um ponto de vista bastante próximo a Althusser, Bettelheim (1976 a, 1976 b) analisou a luta de classes na URSS, bem como a planificação soviética de modo bastante crítico, e, até aonde saibamos, com muito mais cuidado que autores de outras tradições, no campo do desenvolvimento econômico. De um ponto de vista mais próximo ao nosso, tem-se a pesquisa de Mészáros (2002) sobre a URSS. Ela, porém, não trata das minúcias do processo econômico soviético, nem mesmo do desenvolvimento das formas econômicas na sociedade soviética. Neste sentido, acreditamos que ainda exista um trabalho árduo a ser realizado nesta seara. Autores como Kurz (1993)KURZ, Robert. O Colapso da Modernização – Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Trad. Karen Elsabe Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Brasil, 2ª edição, 1993. e os membros do grupo Krisis e, depois, Exit, tendem a colocar o desenvolvimento ocidental e oriental simplesmente sob o mesmo signo, o que se mostra insuficiente; se este autor trata de trazer a crítica ao valor, ele não apreende a dinâmica do desenvolvimento econômico – com a correlação entre as diferentes formas econômicas mais ou menos estranhadas – e, assim, também deixa a desejar sob o aspecto que agora trazemos à tona.
  • 20
    Pachukanis, passando pela metáfora marxiana do céu estatal, presente nos textos de 1843-44, traz tal tensão, irreconciliável remetendo à categoria sujeito de direito: “assim, o sujeito de direito é um possuidor de mercadorias abstrato e ascendido aos céus.” (PACHUKANIS, 2017, p. 127)
  • 21
    Diz Marx sobre o assunto que “a repartição puramente quantitativa do lucro entre duas pessoas que têm títulos jurídicos diversos sobre ele transformou-se numa repartição qualitativa, que parece provir da natureza do capital e do próprio lucro. Pois, conforme se viu, tão logo parte do lucro assume em geral a forma de juro, a diferença entre o lucro médio e o juro, ou a parte excedente do lucro sobre o juro, transforma-se numa forma antitética ao juro, na do ganho empresarial. Essas duas formas, juro e ganho empresarial, somente existem em sua antítese. Ambas não estão, pois, relacionadas à mais-valia (Mehrwert), da qual são apenas partes fixadas em categorias, rubricas ou nomes diversos, mas estão relacionadas uma a outra. Porque parte do lucro se transforma em juro, parte aparece como ganho empresarial.” (MARX, 1986 a, p. 283)
  • 22
    Deve-se apontar, mesmo que rapidamente, que as noções de Enfrendung (estranhamento), Entäusserung (alineação), Äusserung (exteriorização), Veräusserung (venda ou alienação), bem como suas derivadas são bastante comuns no livro III de O capital. Neste sentido, há de se perceber que tais categorias não estão somente nos Manuscritos de 1844. As análises mais propriamente filológicas sobre o assunto, não podem ser feitas aqui. Para um tratamento da questão, Cf. HALLAK, 2018HALLAK, Mônica. Alienação do trabalho em Marx: dos “Manuscritos de 1844 a O capital. In: Verinotio: revista on-line de filosofia e ciências humanas, V. 24, N. 1. Rio das Ostras: UFF, 2018..
  • 23
    Diz Pachukanis que “se economicamente a coisa prevalece sobre o homem, pois como mercadoria reifica uma relação social que não está sujeita a ele, então, juridicamente, o homem domina a coisa, pois, na qualidade de possuidor e proprietário, ele se torna apenas a encarnação do sujeito de direito abstrato e impessoal, o puro produto das relações sociais.” (PACHUKANIS, 2017, p. 121)
  • 24
    Diz Marx sobre esta circunstância, que nada tem de relação com a justiça ou com a injustiça: “o valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor, quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor.” (MARX, 1996 a, p. 311)
  • 25
    A passagem na íntegra é a seguinte: “e claro que a posse das 100 libras esterlinas dá a seu proprietário o poder de atrair para si o juro, certa parte do lucro produzido por seu capital. Se não desse as 100 libras esterlinas ao outro, este não poderia produzir o lucro, nem funcionar ao todo como capitalista, com relação a essas 100 libras esterlinas. Falar aqui de justiça natural, como o faz Gilbart, é um contra-senso. A justiça das transações que se efetuam entre os agentes da produção baseia-se na circunstância de se originarem das relações de produção como consequência natural. As formas jurídicas (jurisrichen Formen) em que essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo será justo contanto que corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado. E injusto, assim que o contradisser. A escravatura, na base do modo de produção capitalista, é injusta; da mesma maneira a fraude na qualidade da mercadoria.” (MARX, 1986 a, p. 256)
  • 26
    Sobre a noção de justiça em Marx, Cf. SARTORI, 2017 a. Para uma visão da questão que – ao osso ver, erroneamente – pretende dialogar com a filosofia moral e política Cf. GERAS, 2018GERAS, Norman. Acerca da controvérsia sobre Marx e o conceito de justiça. In: Direito e práxis, n. 1, v. 9. Rio de Janeiro: Uerj, 2018..
  • 27
    Pachukanis trata da questão remetendo à categoria sujeito de direito: “ao cair na dependência escrava das relações econômicas que se impõem a suas costas, na forma das leis de valor, o sujeito econômico, já na qualidade de sujeito de direito, recebe como recompensa um raro presente: uma vontade presumida juridicamente que faz dele um possuidor de mercadorias tão absolutamente livre e igual perante os demais quanto ele mesmo o é.” (PACHUKANIS, 2017, p. 121) Para uma análise mais profunda da temática, Cf. SARTORI, 2019 a.
  • 28
    Como aponta Marx: “o primeiro dispêndio, que transfere o capital das mãos do prestamista para as do mutuário, é uma transação jurídica, que nada tem a ver com o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha. O reembolso, que transfere novamente o capital refluído das mãos do mutuário para as do prestamista, é uma segunda transação jurídica, o complemento da primeira; uma encaminha o processo real, a outra é um ato posterior a esse processo. Ponto de partida e ponto de retorno entrega a restituição do capital emprestado, aparecem assim como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas e que ocorrem antes e depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio. Para este, seria indiferente se o capital pertencesse de antemão ao capitalista industrial e, por isso simplesmente refluísse para ele como sua propriedade.” (MARX, 1986 a, p. 262)
  • 29
    Para uma análise detida da questão, Cf. LUKÁCS, 2013. Uma abordagem sobre aquilo de mais basilar sobre o Direito em Lukács pode ser encontrada em SARTORI, 2010.
  • 30
    Diz Marx, “no capital portador de juros, [...], apresenta-se o caráter auto-reprodutor do capital, o valor que se valoriza, a produção de mais-valia como qualidade oculta, em estado puro. [...] Que a classe trabalhadora também dessa forma é fraudada e de maneira escandalosa é um fato claro; mas, o mesmo é feito pelo varejista que lhe fornece os meios de subsistência. Esta é uma exploração secundária, que corre paralela com a original, que se dá diretamente no próprio processo de produção. A diferença entre vender e emprestar é aqui completamente indiferente e formal, a qual, conforme já mostramos, só parece essencial aos que desconhecem por completo a conexão real.” (MARX, 1986 a, p. 118) Para uma análise detida desta passagem e de outras sobre o tema, Cf. SARTORI, 2019 a, b, c.
  • 31
    E isto se dá, inclusive, na exploração capitalista do campo.
  • 32
    Aqui não podemos tratar da questão. Ela passa pelo debate sobre as origens do capitalismo, sendo relacionada à emergência do mercado mundial ou às transformações no campo e na indústria. Cf. DOBB, 1983DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. Trad. Manoel de Rego Braga. São Paulo: Abril Cultural, 1983.; WOOD, 2001WOOD, Ellen. Origens do capitalismo. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Zahar, 2001..
  • 33
    Aqui, infelizmente, não podemos desdobrar esta questão. Cf. GRESPAN, 2019, 2011.
  • 34
    Em teoria, mesmo a apropriação estatal da renda não mudaria a natureza da produção capitalista, ao passo que a apropriação da terra elo povo mudaria a questão essencialmente: “se o Estado se apropriasse da terra e prosseguisse a produção capitalista, a renda II, II, IV seria paga ao Estado, a própria renda continuaria a existir. Se a terra se tornasse propriedade do povo, desapareceria em geral a base da produção capitalista, o fundamento sobre o qual se a apoia a autonomiza, em face do trabalhador, das condições de trabalho.” (MARX, 1980, p. 532) Marx posteriormente coloca que “suposto o modo de produção capitalista, o capitalista não é só funcionário imprescindível da produção, mas o funcionário predominante. O dono da terra, ao revés, é de todo supérfluo no modo capitalista de produção. Este modo de produção precisa apenas que a terra não seja propriedade comum, se oponha à classe trabalhadora como condição de produção que não pertence a essa classe, e se atinge por completo esse objetivo quando a terra se torna propriedade do Estado, isto é, o Estado percebe a renda fundiária. O dono da terra, funcionário tão essencial da produção no mundo antigo e no medieval é na era industrial inútil, excrescência. O burguês radical (cobiçando também a supressão de todos os outros tributos) avança no plano teórico para negar a propriedade privada da terra, que desejaria tornar propriedade comum da classe burguesa, do capital, na forma de propriedade do Estado. Na prática, entretanto, falta coragem, pois o ataque a uma forma de propriedade uma forma de propriedade privada das condições de trabalho – seria muito perigoso para a outra forma. Ademais, o próprio burguês tornou-se dono de terras.” (MARX, 1980, p. 477)
  • 35
    Sobre a noção de abstração razoável, Cf. CHASIN, 2009CHASIN, José. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2020
  • Aceito
    15 Set 2020
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