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Mulheres Negras e Direitos Humanos: Educação Popular no giro do Esperançar

Black Women and Human Rights: Popular Education in the Turn of Hope

Resumo

Colabora com a visibilização de mulheres negras na conquista por uma educação humanizada. Sugere reflexões sobre o esperançar coletivo no rompimento com estigmas da educação tradicional, a fim de despertar reflexões que impulsionem novas políticas e pedagogias outras na educação pública.

Palavras-chave:
Mulheres Negras; Direitos Humanos; Educação Popular

Abstract

Collaborates with the visibility of black women in the achievement of humanized education. It suggests reflections on collective hope in breaking with the stigmas of traditional education, in order to awaken reflections that drive new policies and other pedagogies in public education.

Keywords:
Black Women; Human Rights; Popular Education

Direitos Humanos uma Tarefa Educativa

Os contextos atuais expõem uma complexidade de sentidos, requerem pensar sob diferentes ângulos e olhares acerca dos direitos humanos numa perspectiva crítica e emancipadora, a convocar a sociedade multifacetada e pluriétnica à construção de mecanismos de condições materiais e imateriais para todas as pessoas e nações, diante da gravidade da exclusão caracterizada pelo capitalismo globalizatório. Essa tarefa pedagógica enfatiza a humanização, através dos processos de luta contra a desigualdade e pela dignidade humana, a resultar no surgimento de alternativas epistemológicas no campo dos direitos e da educação.

Observam-se mudanças epistemológicas a partir do jogo de ações e de interações sociais, a exemplo do surgimento dos “Novos Movimentos Sociais”, Lage (2013)LAGE, Allene. Educação e movimentos sociais: caminhos para uma pedagogia de luta. Recife: Ed. Universitária UFPE, 2013. e Gohn (2011) pautam reivindicações tanto de caráter de direitos humanos universais quanto de pautas específicas. Ao mesmo tempo em que criticam a universalidade positivista, levantam as demandas de singularidades nas diferentes formas de opressões e de distintos movimentos sem-terra, ambientalistas, mulheres, mulheres negras, entre outros.

A perspectiva pós-crítica de aproximar os conceitos: Direitos Humanos, Educação Popular e Movimentos Sociais de Mulheres Negras, através da ferramenta metodológica da interseccionalidade, como pretendemos compreender esses processos, embora distintos, perpassam convergências, relações e dinâmicas que se articulam entre si. Acrescenta-se analisar outros marcadores estruturantes a exemplo de raça, classe, gênero, território sem hierarquizar esses fenômenos analíticos nas formas de opressão e de resistências.

Percebe-se que conceito não nasce do vazio, surge das necessidades sociais, são construídos em momentos históricos em que as pessoas criadoras estão inseridas. Deleuze e Guattari (1996Deleuze,G;Guattari,F. O que é a filosofia/ rio de janeiro: Editora 34, 1996. Disponível: https://pedropeixotoferreira.files.wordpress.com/2014/03/deleuze-gilles-guattari-fecc81lix-o-que-ecc81-a-filos. Acesso dia 17/06/2021. Acesso: no dia 17/05/2020
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, p.12) “Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados, ou antes, criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam”.

Os conceitos são criados a fim de preencher sentidos, não são fixos nem abstratos e muito menos estão ali comparados a uma cadeira que não sai do lugar. No contexto atual de crises, o diálogo sobre direitos humanos é um processo educativo presente especificamente nos modos de agir dos movimentos sociais populares, dos grupos organizados que sofrem opressões ou discriminações singulares.

Observam-se, nos estudos sobre os novos movimentos sociais, que essa categoria sofre transformações de significados. Lage (2013)LAGE, Allene. Educação e movimentos sociais: caminhos para uma pedagogia de luta. Recife: Ed. Universitária UFPE, 2013. afirma que no âmbito do marxismo, foi trabalhada para representar a organização da classe trabalhadora em sindicatos e partidos políticos empenhados em transformar as relações capitalistas de produção. Posterior a esses estudos, ampliam-se os sentidos de movimentos sociais,

Nos anos 1970 e inicio dos anos 1980 um grande numero de movimentos sociais surgiu e se disseminou através da América do Norte, Europa e América Latina- Movimento de mulheres, ecológico, movimentos de luta pela terra, movimento indígena, negro e LGBT. Esses movimentos que tem uma ênfase nas lutas por identidade e reconhecimento foram designados de Novos Movimentos Sociais (NMS). (LAGE, 2013LAGE, Allene. Educação e movimentos sociais: caminhos para uma pedagogia de luta. Recife: Ed. Universitária UFPE, 2013., p.24)

Para Gohn (2011), Arroyo (2003) e Gomes (2017) os movimentos sociais, além de trazer novas pautas, possuem dimensões educativas em termos de demandas e produzem aprendizados, enfatizando o lugar central da educação nessas organizações e nos processos de redefinição das lutas e de reivindicações de direitos.

Os movimentos sociais trazem para a pedagogia algo mais do que conselhos moralizantes tão do uso das relações entre mestres e alunos. Recolocam a ética nas dimensões mais radicais da convivência humana, no destino da riqueza, socialmente produzida, na função social da terra, na denúncia da imoralidade das condições inumanas, na miséria, na exploração, nos assassinatos impunes, no desrespeito à vida, às mulheres, aos negros, na exploração até da infância, no desenraizamento, na pobreza e injustiça... Aí nessas radicalidades da experiência humana os movimentos sociais repõem a ética e a moralidade tão ausentes no pensamento político e social. E pedagógico também. (ARROYO, 2011, p. 42)

A importância das práticas educativas realizadas pelos movimentos sociais, na medida em que pensam nos problemas sociais, engajados em coletivos e em grupos que reivindicam suas demandas em novas práticas sociais, incidem no interior dos movimentos bem como na agenda das políticas públicas.

A Educação popular, dentre algumas características enquanto construção histórica, acompanha o movimento da sociedade. No contexto de surgimento, a educação popular está fortemente associada aos movimentos sociais populares das décadas de 1950 e 1960 na América Latina e no Brasil.

Sua origem em muitos sentidos se confunde com os movimentos sociais populares das décadas de 1950 e 1960. No Brasil, sua história está vinculada, por exemplo, a grandes movimentos na área da educação e da cultura, como o Movimento de Cultura Popular, no Recife (Barbosa, 2009), e o Movimento de Educação de Base (Fávero, 1983). (STRECK, 2013STRECK, Danilo R. Territórios de Resistência e Criatividade: Reflexões sobre os lugares da Educação Popular. In.: _______; ESTEBAN, Maria Teresa (Org.). Educação Popular: Lugar de construção social coletiva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013., p.356)

A relação da educação popular com os movimentos sociais populares nos remete a olhar a diversidade de movimentos sociais que, em suas lutas por direitos (a educação, terra, água, trabalho, saúde entre outras), foram afirmando suas identidades e se reconhecendo enquanto agentes sociais em suas práticas coletivas e educativas.

Quanto ao movimento social de mulheres negras, em suas contribuições educativas, produzem não apenas a crítica ao modelo de racionalidade civilizatório universal, como também, apresentam propostas no projeto descolonial além de direitos normativos, e, de forma substantiva, nas diversas experiências em todas áreas de saberes e de atuação em ressignificação dos direitos.

Segundo Flores (2009FLORES, Herrera Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009., p. 14), “o trabalho conceitual sobre direitos humanos se converteu no desafio mais importante para o século XXI”. Toda obra do professor convida ao exercício crítico para repensar os direitos humanos como tarefa necessária enquanto construção social e discursiva. Esse debate deve ser incisivo e persistente, se quisermos construir uma sociedade democrática.

Por essa razão, os direitos humanos não são categorias prévias à ação política ou às práticas econômicas. A luta pela dignidade humana é a razão e a consequência da luta pela democracia e pela justiça. Não estamos diante de privilégios, meras declarações de boas intenções ou postulados metafísicos que exponham uma definição da natureza humana isolada das situações vitais. Pelo contrário, os direitos humanos constituem a afirmação da luta do ser humano para ver cumpridos seus desejos e necessidades nos contextos vitais em que está situado. (FLORES 2009FLORES, Herrera Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009., p. 19)

Herrera Flores recusa a concepção neutra e positivista defendida pelo enfoque liberal que legitima os direitos, apenas nos efeitos jurídicos para transformar as relações sociais dominantes. Afirma superar essa visão convencional e articula direitos humanos como processos de lutas em sua formulação e em sua execução na prática nos diferentes projetos e nas representações sociais das particularidades e das diferenças em cada contexto histórico, social e político.

Entendemos direito como prática educativa por trazer referência à história, à cultura, aos saberes das experiências que partem das pessoas em ser, em inserir e em intervir no mundo. Assim, a educação popular ocupa esse lugar.

A educação ocupa lugar central na acepção coletiva da cidadania. Isto porque ela se constrói no processo de luta que é, em si próprio, um movimento educativo. A cidadania não se constrói por decretos ou intervenções externas, programas ou agentes pré-configurados. Ela se constrói como um processo interno, no interior da prática social em curso, como fruto do acumulo das experiências engendradas. (Gohn, 2012GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e educação. 8.ed. São Paulo: Cortez,2012., p. 21).

Os aprendizados dos direitos foram e são pautas que os diferentes movimentos sociais imprimem e desenvolvem como dimensão educativa. As análises de Streck (2013)STRECK, Danilo R. Territórios de Resistência e Criatividade: Reflexões sobre os lugares da Educação Popular. In.: _______; ESTEBAN, Maria Teresa (Org.). Educação Popular: Lugar de construção social coletiva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013., Lange (2013) e Freire (1966) colocam a importância das práticas educativas realizadas pelos movimentos sociais, na medida em que constroem, no cotidiano, a cidadania coletiva por pensarem nos problemas que, engajados em coletivos e grupos, reivindicam suas demandas e realizam suas contribuições.

É possível observar que movimentos sociais, educação popular e direitos humanos, têm história e em cada contexto, novos sentidos se configuram. Em seus papéis, concebem o lugar educativo como princípio radical com a democratização. Freire (1996, p.36) “Faz parte igualmente de pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia”.

Essa prática opressora e excludente atinge aquelas e aqueles que, nesse modelo de civilização globalizante, emergem outras pedagogias a indicar resistências e novas formas de ensinar e de aprender. Trata-se de ação baseada na educação popular pelo princípio democrático, processual e coletivo.

O conhecimento e o saber, como toda realidade, emergem das cidadãs e dos cidadãos e também de suas inter-relações, pois não se restringem a analistas de direitos internacionais ou a especialistas de conjunturas, a oferecer subsídios normativos ou caminhos para adaptar os direitos humanos à globalização capitalista.

Corroboramos com as teorizações críticas baseadas em outros movimentos sociais, a exemplo do feminismo negro quando indaga as múltiplas desigualdades ao analisar as relações de poder interseccional.

Nessa perspectiva, emergem as novas condições do feminismo negro entre suas especificidades. Carneiro (2003)CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, v.17, n. 49, 2003. Disponível em: http:// www.revistas.usp.br/eav/article/view/9948. Acesso: 23 ago. 2015. explica que existem diversidades de olhares, e de particularidades nas desigualdades de gêneros, e que as mulheres assumem as lutas a partir dos próprios lugares de fala.

A construção coletiva do conhecimento, acerca de direitos humanos, é convite necessário a produzir saberes e valores a partir das práticas sociais das pessoas, especificando os movimentos sociais de mulheres negras que, caracteristicamente, produzem resistências e criatividade.

Nossas heranças epistemológicas nas bases da educação popular

Nossa intenção é reconhecer a potencialidade das mulheres negras e suas contribuições nos processos educativos e de formação deste País, embora ao longo de nossa história, tenham sido impostas ao silenciamento. Mesmo assim, não se calaram e usaram outras formas de expressão e de intervenção.

A história das mulheres negras brasileiras está atrelada a um passado repleto de obstáculos na trajetória de formação deste país, enfrentados pela população negra, com consequências que perduram até os dias atuais. São muitos os desafios para que as mulheres negras possam superar tais obstáculos, porém no decorrer de sua história, elas aprenderam a utilizar sua experiência de vida e a transformá-los em armas, com as quais foram enfrentados e, em sua maioria, superados, especialmente no processo de construção da cidadania de seu povo. (SANTOS 2014SANTOS, Maria José dos. Trajetória Educacional de Mulheres Quilombolas no Quilombo das Onze Negras do Cabo de Santos Agostinho-PE. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2014., P. 54)

Os reflexos do passado, como descreve Santos (2014)SANTOS, Maria José dos. Trajetória Educacional de Mulheres Quilombolas no Quilombo das Onze Negras do Cabo de Santos Agostinho-PE. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2014., emergem nos dias atuais e fortalecem o descaso com a população afro-brasileira, especialmente com as mulheres negras das comunidades quilombolas e das periferias. Elas buscam formas de romper com os paradigmas impostos pelos diversos tipos de exclusão nos contextos social, cultural, educacional e religioso. São mulheres que trazem o desejo da liberdade de crenças e de garantias de direitos no processo educativo ao longo da história.

Para garantir a sua sobrevivência, a sua humanidade e suas referências culturais e identitárias, os diferentes africanos escravizados produziram, reconstruíram e ressignificaram as crenças do seu lugar de origem, a sua relação com o cosmos e o mundo mítico. (GOMES, 2013, p.14)

A relação com a cosmovisão fortalece o desejo de dar continuidade ao que as mulheres negras herdaram dos antepassados, da contribuição no processo educativo, do empenho na manutenção da cultura, da religião e da formação dos educadores. Observamos que tais mulheres subalternizadas formam as bases do processo educativo popular, pois trazem das próprias convivências nas relações familiares, culturais, religiosas, tudo interseccionado e sem fragmentar o aprendizado, a ocorrer na vivência do cotidiano e coletivamente.

Ao destacar que os próprios oprimidos têm suas pedagogias de conscientização da opressão e dos processos de desumanização a que são submetidos já aponta que eles afirmam outras pedagogias em tensão com as pedagogias de sua desumanização que roubam sua humanidade. (ARROYO, 2012ARROYO, Miguel. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 27)

O movimento de conscientização, conforme Arroyo (2012)ARROYO, Miguel. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012., observa-se nos processos educativos, e nos diversos espaços ocupados pelas mulheres negras. Entendemos este momento como eixo base da educação popular, quando se reconhece a presença das oprimidas e dos oprimidos, vivenciando o protagonismo no contexto educativo e não como objeto de estudo, e sim enquanto autoras e autores em processos de construção de saberes, Freire (1996).

A análise de Arroyo (2012ARROYO, Miguel. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 26) “Um componente que os movimentos trazem para o pensar e fazer educativos é instá-los a se reeducar para pôr foco nos sujeitos sociais em formação que se reconhecem e se mostram sujeitos em movimento, em ação coletiva. ” O destaque é o ser humano, sem perder de vista suas necessidades e valores individuais e coletivos. Segundo Gomes (2017, p.73) “O Movimento de Mulheres Negras merece destaque quando refletimos sobre os saberes políticos. A ação das ativistas negras constrói saberes e aprendizados políticos, identitários e estético-corpóreos específicos”. Nota-se nos destaques de Gomes (2017) que, para as mulheres negras, o aprendizado dar-se na ação, no cotidiano e nas buscas por efetivações de políticas públicas.

O reconhecimento dos valores epistêmicos, oriundos das vivências das mulheres negras, propõe um movimento outro que, até o momento, encontra-se em conflitos nas instituições de ensino público, tendo em vista suas pedagogias, ao longo da nossa história, trazerem como base a educação eurocêntrica que oprime, explora e subalterniza, com foco na ostentação do capitalismo.

Logo, sob essa lente, o analfabetismo era o câncer que precisava ser eliminado, pois atrasava o desenvolvimento do Brasil. Nessa direção, o currículo proposto baseava-se em conhecimentos, como ler, escrever e calcular, considerados como aprendizagens suficientes para o desenvolvimento do pensamento; trabalhos na agricultura, técnicas comerciais, trabalhos caseiros e edificação, para promover o desenvolvimento profissional e o progresso econômico; desenvolvimentos de habilidades domésticas, para poder trabalhar com crianças, enfermos e preparação de alimentos: meios de higiene pessoal e coletivo. (BRANDÃO 2016, p.92)

Os escritos de Brandão (2016) remotam ao final dos anos 50 e início da década de 60, quando o Brasil investe na formação educacional voltada para a indústria e para a modernização da agricultura, com a ideia de uma educação construtora da consciência nacional. A educação popular busca romper com o sistema opressor e propõe pedagogias outras, que percebam e acolham as diversidades dos coletivos.

Todas as pedagogias fazem parte dessas relações políticas conflitivas de dominação/reação/libertação. Os movimentos sociais se afirmam atores nessa densa história pedagógica. Em sua diversidade de ações, lutas por humanização/emancipação se afirmam sujeitos centras na afirmação/fortalecimento das pedagogias de libertação, logo sujeitos de contestação/desestabilização das pedagogias hegemônicas de desumanização/subordinação. (ARROYO, 2012ARROYO, Miguel. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 29)

Na busca por novas constituições de coletivos, como analisa o autor, as mulheres negras nos movimentos negros traziam o exercício de liberdade, e de luta pela vida, pela cultura de recriar, de ressignificar as marcas da opressão vivenciada nos diversos espaços. Mesmo que haja inclinação historiográfica de silenciamento das resistências e das contribuições dessas mulheres, elas não perdem a esperança e acreditam que as práticas educativas herdadas pelos ancestrais e experimentadas nos cotidianos dos coletivos são princípios de transformação.

A esperança é um condimento indispensável á experiência histórica. Sem ela, não haveria história, mas puro determinismo. Só há história onde há tempo problematizado e não predado. A inexorabilidade do futuro é a negação da história. (FREIRE 1996).

Como Freire (1996) ressalta, o temperar da educação popular contribui e muda a maneira de agir das mulheres negras e de seus coletivos. Conscientes dos saberes, elas se emancipam e se libertam frente às estruturas de opressão discriminatórias e excludentes que, historicamente, subalternizam-nas. Elas buscam nos espaços de reelaborações de saberes como as escolas, e universidades públicas, uma pedagogia que as veja enquanto construtoras de uma sociedade e de outra educação.

Mulheres negras: O aprendizado nas lutas por direitos

É importante observar que o estudo em questão não se restringe a entrecruzar as formas de desigualdades, pautadas por várias feministas negras. O intuito aqui é também esboçar as potencialidades produzidas diante de um contexto complexo que reflete violações dos direitos, barbárie e reinvenções das ações coletivas desenvolvidas por diferentes organizações, por intelectuais e por ativistas negras.

Eis que pedimos licença e a bênção as nossas ancestrais, mulheres feministas negras a exemplo de Lélia Gonzaléz, insubmissa às diferentes formas de opressão de classe, de gênero e de raça, denunciou o racismo estrutural e formulou o conceito de Quilombismo, resultando no novo entendimento de solidariedade a partir das lutas contra o racismo e o patriarcalismo, na perspectiva anti-imperialista, aos distintos movimentos de mulheres amefricanas.

Gonzalez sugere na perspectiva feminista a inter-relação dos definidores como classe, gênero e raça que são reprodutores de desigualdades sociais nas sociedades capitalistas e se fazem presentes na América Latina. A inquietação se aproxima do conceito interseccional, não apenas no sentido das relações de poder, como também nas formas de resistências, através das quais as mulheres se articulam e produzem práticas sociais. Como se pode constatar, a preopupação de entrecruzar as diferentes formas de desigualdades foram pautas de feministas negras a exemplo de Bell Hooks, Lélia Gonzaléz, Patrícia Collins, Audre Lorde. Contudo, o conceito de interseccionalidade foi designado por Kimberlé Crenshaw.

Crenshaw (2002)CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v.10, n.1, p. 171-188, Florianópolis, jan. 2002. chama atenção para não restringir a corrente feminista à teoria, e sim para aprofundá-la enquanto contribuição teórica advinda da prática. Processo que dialoga com nossos esquemas conceituais, a partir da realidade baseado na reflexão-ação, conforme Freire (1966, p.39) ”O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concerto que quase se confunda com a prática”.

Retomada que problematiza o processo de conceituação, teoria e práxis como enfatiza Flores (2009FLORES, Herrera Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009., p. 207) “Lutar pela verdade não consiste em “dizer tudo acerca de tudo e de todos”, mas sim em “colocar tudo no que dizemos”. Em outras palavras, significa relacionar o que dizemos com nosso fazer, com nossas práxis no mundo.”.

Na medida em que destacamos os movimentos sociais das mulheres negras, propomos fornecer elementos conceituais a partir da ferramenta analítica da interseccionalidade, que permite pensar os aspectos raciais da discriminação de gênero e outros aspectos marcadores de dominação. Akotirene (2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018. (Feminismos plurais)., p. 29) ”É imprescindível, insisto, utilizar analiticamente todos os sentidos para compreendermos as mulheres negras e “mulheres de cor” na diversidade de gênero, sexualidade, classe, geografias corporificadas e marcações subjetivas”.

Carla Akotirene em sua tese sobre interseccionalidade afirma que a investigação poderá envolver diferentes marcas de poder e também marcas de resistências coletivas, e adverte que essas determinações identitárias são formadas na coletividade. Portanto, dispensam quaisquer reivindicações identitárias ausentes da coletividade constituída.

Dedicamo-nos a apresentar o aprendizado das mulheres negras, através da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, fruto do processo da Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver que teve seu evento de culminância realizado em 18 de novembro de 2015 em Brasília – DF. A Rede surge em 2016, articulação sem fins lucrativos e sem filiação partidária.

Apresentar a Rede e suas identidades singulares, plurais e em construção através das mulheres negras da capital, da área metropolitana, do Sertão, do Agreste, da Zona da Mata do Estado de Pernambuco, constituídas de jovens, adultas e idosas num pacto geracional motivadas pelas problemáticas de combater o racismo, o sexíssimo em distintas atuações profissionais de professoras, enfermeiras, domesticas, psicólogas, atrizes, jornalistas, poetas, sociólogas, organizam-se e mobilizam-se, contribuindo com a valorização da negritude em todas as esferas da sociedade onde estão inseridas.

As identidades e as diferenças implicam processos de aproximação e distanciamento. Nesse jogo complexo, vamos aprendendo, aos poucos, que os contornos da nossa identidade são estabelecidos pelas diferenças e pelo trato social, cultual, histórico e político que estas recebem durante percurso na sociedade. (GOMES, 2007GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial e Educação no contexto brasileiro: algumas reflexões In: GOMES, Nilma Lino. Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais. Belo Horizonte: Autentica, 2007., p. 98)

Nilma Gomes se refere à construção da identidade pela população negra brasileira enquanto algo complexo que requer, não apenas oposição ao branco, bem como negociação de conflitos. Confere mais argumento sobre a identidade em sua diversidade e diferenças nos contextos histórico, social, cultural, e político nos saberes identitários.

A identidade negra passa a ser tematizada de um outro lugar. Aos poucos, o Brasil vai compreendendo que ser negro e negra e afirmar-se enquanto tal é um posicionamento político e identitário que desconforta as elites e os poderes instituídos. (GOMES, 2017, p.70)

Na medida em que a Rede de Mulheres Negras amplia os lugares ocupados por essas mulheres, enquanto cidadãs, ao enfatizar o debate sobre raça e gênero, amplia-se também a consciência crítica das mulheres negras a respeito do que ainda existe a ser conquistado.

Ressaltamos o aprendizado das lutas em três dimensões educativas: Primeira dimensão: a consciência de organização e de atuação em grupo, coletivamente. É no agir e no funcionar que a Rede de Mulheres Negras desenvolve, a partir do diálogo, as tomadas de decisões, as comissões de trabalhos através das diferentes potencialidades que cada uma exerce; mulheres que se dispõem a aprender fazendo.

Produzem diferentes formas de atuação, desde a elaboração de cartazes de divulgação virtual, cartas, plataformas na defesa dos direitos, até o acompanhamento de audiências e de inserção em políticas. São ações que contribuem para a formação, para a mobilização e para a intervenção. Um dos exemplos gira em torno da problemática da gravidade da fome, diante da negligência do governo; a Rede de Mulheres Negras, assim como outras organizações, apoiou famílias nas periferias e em outros lugares do Estado de Pernambuco, com fornecimento de cestas básicas. Consciência e ações coletivas que emergem conforme as necessidades, e ampliam saberes.

Os movimentos sociais têm sido educativos não tanto através da propagação de discursos e lições conscientizadoras, mas pelas formas como tem agregado e mobilizado em torno das lutas pela sobrevivência, pela terra ou pela inserção na cidade. Revelam à teoria e ao fazer pedagógicos a centralidade que tem as lutas pela humanização das condições de vida nos processos de formação. (ARROYO, 2003, p.32).

Nessa linha de pensamento, aproximar-se da Rede de Mulheres Negras no pensar e no fazer educativo reeduca e fortalece a identidade vista como alma de “ser rede” e “a luta pela vida”. Agentes sociais que, com suas ações, reconstroem uma forma de conceber o mundo. Com efeito, a problemática da pandemia, que nos sinais de desgaste da exploração capitalista o racismo estrutural foi escarado.

Segunda dimensão: articular em parcerias no combate às ações cruéis dos grupos ultraconservadores fascistas. Essa forma de articular e de combater juntamente com a diversidade de parceiros da sociedade civil e do poder público (organizações não governamentais, universidades, ministério público, sindicatos, as religiões de matrizes africanas, etc.) a partir de uma agenda em comum na defesa da dignidade humana da população negra. Então, denúncias de racismo institucional, de feminicídio, de extermínio da juventude negra foram e são questões que pautam o conjunto de organizações para reivindicarem, desde a cidadania formal referenciada pela legislação como possibilidade de lutar judicialmente; como outras ações, entre elas, o debate sobre a representatividade da mulher negra nos espaços de poder, na luta por direitos contra a violência. São pautas que demonstram as marcas do racismo estrutural, base do capitalismo e do patriarcado.

Confere o aprendizado de articular parcerias ao mesmo tempo em que fortalece a luta das organizações na junção das identidades de gênero e de raça, promove intervenções e visibilidade. Também amplia a entrada de novas integrantes na Rede de Mulheres Negras, principalmente mulheres que antes não percebiam as injustiças geradas pela dor da opressão. Opressão que, na história da escravidão, violentou direitos referentes à língua, à cultura, à religião entre outros. Essa dor se tornou denuncia para Vilma Piedade, ao criar a formulação a partir do seguinte entendimento:

Dororidade carrega, no seu significado, a Dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo, destaquei que quando se trata de nós, Mulheres Pretas, tem um agravo nessa Dor, agravo provocado pelo Racismo. Racismo que vem da criação Branca entre a Raça. Entra Gênero, Entra Classe. Sai a Sororidade e entra Dororidade. (Piedade, 2017PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017., p. 46)

Vilma Piedade nos remete à profundidade dessa dor a qual une todas as mulheres contra o machismo e o racismo. O agravamento da dor levou a pesquisadora a denunciar as formas de violências, e também a alcunhar novo conceito, sugerindo ao feminismo brasileiro a preocupação de aprofundar a intersecção em outros pontos de dominação, explicitando a raça.

Dororidade é o lugar da dor de todas as mulheres. É também o lugar do afeto e do amor expressada a partir da Amefricanidade e da ancestralidade. Eis que a terceira dimensão do aprendizado humanizar nosso ativismo, o que nos últimos anos experimentamos como o autocuidado, parte da ancestralidade e é um dos pilares da Rede de Mulheres Negras; aprendizado afetivo, educativo e coletivo, ou seja, cuidar de si é também cuidar das outras pessoas.

A humanização do ativismo tem sido uma das novas lições inseridas no processo social; reflexo da nova ordem do capitalismo globalizante e fez emergir a importância da conexão das identidades de gênero, de raça e de território em suas lutas, tanto interna quanto fora do movimento à dimensão educativa da solidariedade.

A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre as negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em relação a solidariedade de gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimensão de gênero se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais na agenda dos Movimentos Negros Brasileiros (CARNEIRO,2003CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, v.17, n. 49, 2003. Disponível em: http:// www.revistas.usp.br/eav/article/view/9948. Acesso: 23 ago. 2015., p.120)

Esse processo educativo da solidariedade intragênero e ou intragrupo nas relações étnico-raciais constituem impacto para as mulheres negras, numa consciência crítica e coletiva sobre a qual os direitos e os deveres fornecem elementos para a leitura da realidade presente a partir das particularidades e das diferenças das agentes sociais; de modo a inserir, nas necessidades, interesses por condições de vida dignamente.

Conclusão

O processo educativo não se restringe a especialistas em análises de conjuntura ou em direitos internacionais, amplia-se às cidadãs e aos cidadãos comuns.

O reconhecimento das contribuições das mulheres integrantes e formadoras deste País: negras e indígenas com potenciais diferentes e diversos como históricos, políticos, sociais, culturais e religioso; submetidas às margens do poder público que, ao longo da história, carregam o fardo das baixas taxas de desempenho escolar. São as que se encontram, em maior índice, fora das escolas públicas. Entre as quais as mulheres negras, maiores vítimas por se constituírem negras, mulheres, pobres e de religiões de matrizes africanas ou afro-brasileiras.

A educação popular vivenciada por essas mulheres pede outras pedagogias, onde haja possibilidades de contar as próprias histórias de resistência constituídas com denúncias, fé e intervenções. Resistência comprometida com a formação das classes populares e com as mudanças sociais em uma conjuntura que levanta novos desafios para a educação.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2021
  • Aceito
    30 Set 2021
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