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Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos Humanos

Haitian Constitutionalism and the Invention of Human Rights

Resumo

Por meio da análise de trechos das constituições do Haiti da primeira metade do século XIX, o artigo investiga as características dos direitos humanos no constitucionalismo haitiano pós-revolucionário. Dessa análise, um arranjo conceitual alternativo é extraído para pensar o conteúdo dos direitos fundamentais e da ordem constitucional moderna. Este arranjo é expresso em cinco conceitos: direitos universais do negro; materialidade da escravidão; cidadania diaspórica; propriedade abolicionista; princípio do solo livre; e nação quilombo. A análise é realizada em diálogo com o pensamento de intelectuais negros e negras. Conclui-se que a poética constitucional haitiana opera uma crítica às narrativas hegemônicas sobre a “invenção dos direitos humanos” e, ao mesmo tempo, fornece um imaginário moral mais amplo e plural do constitucionalismo, especialmente por lidar decididamente com o legado da escravidão, do colonialismo e do racismo.

Palavras-chave:
Revolução Haitiana; Constitucionalismo; Direitos humanos; Racismo; Escravidão

Abstract

Through the analysis of excerpts from the Haitian constitutions of the first half of the 19th century, the article investigates the characteristics of human rights in post-revolutionary Haitian constitutionalism. From this analysis, an alternative conceptual arrangement is extracted to think about the content of fundamental rights and the modern constitutional order. This conceptual arrangement is expressed in five concepts: universal Black rights; materiality of slavery; diasporic citizenship; abolitionist property; free soil principle; and quilombo nation. The analysis is carried out in dialogue with the thought of Black intellectuals. It is concluded that the Haitian constitutional poetics operates a critique of the hegemonic narratives about the “invention of human rights” and, at the same time, provides a broader and plural moral imaginary for constitutionalism, especially for dealing decisively with the legacy of slavery, colonialism and racism.

Keywords:
Haitian Revolution; Constitutionalism; Human rights; Racism; Slavery

Introdução1 1 Este artigo é fruto das investigações de doutorado e a primeira exposição de algumas das ideias que são articuladas na minha tese (QUEIROZ, 2022). Agradeço à CAPES pela oportunidade de conduzir parte da pesquisa na Universidad Nacional de Colombia, no ano de 2018, como doutorando sanduíche, por meio do Programa Abdias Nascimento. Da mesma forma, agradeço à Fulbright pela bolsa de pesquisador visitante na Duke University, no ano de 2021, período de investigação necessário para que este artigo ganhasse forma.

A história da modernidade pode ser divida em antes e depois de 1804. No dia primeiro de janeiro deste ano, na cidade de Gonaïves, Jean Jacques Dessalines, ao lado de seus generais e perante a população local, declarava a independência do Haiti. Depois de treze anos de conflitos, da imposição de derrotas ao imperialismo francês, espanhol e inglês e do rechaço armado à tentativa de genocídio perpetrada pelas tropas de Napoleão Bonaparte, os haitianos fundavam o primeiro e único estado forjado a partir de uma revolução de escravizados. A Declaração de Independência, proferida por Dessalines, era o ato final desse processo. Em uma perspectiva de longa duração, trava-se da bifurcação de dois mundos.

Às vésperas da insurgência, 1791, a colônia em São Domingos estava no centro da acumulação capitalista. Ela era líder na produção de café (metade da produção mundial) e açúcar (produzindo mais que Brasil, Cuba e Jamaica combinados). Expressava, assim, a geopolítica da época, em que 25 milhões de franceses dependiam da economia colonial e 15% dos mil membros da Assembleia Nacional Francesa tinham propriedades nas Antilhas (DUBOIS, 2004DUBOIS, Laurent. Avengers of the New World: The Story of The Haitian Revolution. USA: Harvard University Press, 2004.; FICK, 1990FICK, Carolyn. The Making of Haiti: the Saint Domingue Revolution from below. USA: The University of Tennessee Press, 1990.; JAMES, 2007JAMES, C. L. R. James. Os jacobinos negros - Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.). Riqueza que embalava os ideais liberais proferidos pela burguesia francesa pelas cidades de Paris, Bordeaux, Nantes e Lyon. Riqueza produzida sobre a mais pura, desprezível e cruel violência, em que milhões de africanos e africanas foram raptados das suas terras para trabalhar até a morte, pois o tráfico negreiro era mais lucrativo do que a vida dos próprios escravizados (ARMITAGE e GAFFIELD, 2016ARMITAGE, David; GAFFIELD, Julia. Introduction. The Haitian Declaration of Independence in an Atlantic Context. IN: GAFFIELD, Julia (ed.). The Haitian Declaration of Independence: Creation, Context, and Legacy. Charlottesville e Londres: University of Virginia Press, 2016.). Isto é, valia mais a pena raptar massivamente africanos do outro lado do Atlântico do que prover condições básicas de sobrevivência dos trabalhadores na ilha. Isto fazia de São Domingos o maior porto negreiro do momento. O horror que era expresso na própria demografia da colônia: a cada 10 escravos negros, havia 1 colono livre, seja grande proprietário, pequeno burguês ou da “ralé” branca. A estratificação social era expressa na hierarquia racial: brancos; homens livres de cor e escravizados (DUBOIS, 2004).

Ao menos para a grande maioria dos haitianos, 1804 é o fim desse sistema. Contra o assédio imperialista e as tentativas de restauração da plantation por parte das elites internas, a população do país irá montar um vigoroso sistema de apropriação coletiva do território ao longo do século XIX, garantindo sua soberania em um mundo no qual o colonialismo era a norma.2 2 Este sistema sobreviveu hegemônico no país até a ocupação dos Estados Unidos, em 1915, quando o império da plantação seria restaurado (CASIMIR, 2020; TROUILLOT, 1990). Porém, diante da derrota na mais produtiva colônia das Américas, colonialismo, plantation e escravidão tiveram que se readaptar para sobreviver. Na esteira da Independência estadunidense e no meio do caminho para as independências latino-americanas, a Revolução Haitiana marca uma transformação em larga na história dos impérios, sendo ponto chave de emergência do segundo imperialismo: aquele que encerra as possessões nas Américas e o tráfico no Atlântico e inicia a exploração territorial e populacional em larga escala na África e na Ásia. A compra do largo território de Louisiana em 1803 pelos EUA é só um dos exemplos dessa mudança de estratégia da França e da Inglaterra sobre o continente americano (HARRISS, 2003HARRISS, Joseph A. How the Luisiana Purchase Changed the World. Smithsonian Magazine, abril, 2003. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/history/how-the-louisiana-purchase-changed-the-world-79715124/ (acesso em 05/08/2022).
https://www.smithsonianmag.com/history/h...
).

A plantation também deveria ser reformulada. Após a Revolução Haitiana, o sul dos EUA, Cuba e Brasil são os seus novos laboratórios. Neles, ela passa por um processo de hiperespecialização, adequando-se às novas exigências do livre comércio capitalista, bem como se adapta aos coros de liberdade que começam a fechar o cerco sobre o tráfico negreiro (PARRON, 2015PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese de Doutorado em História. Universidade de São Paulo, 2015.). São os primórdios da “segunda escravidão”, momento no qual a instituição, momentaneamente contestada, retomará folego nas três referidas regiões, conjugando o desenvolvimento das trocas econômicas com a expansão da mão de obra escravizada. Liberalismo e escravismo não eram pares antagônicos, mas núcleos complementares da mesma economia política (BOSI, 1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.; MARQUESE e SALLES, 2016MARQUESE, Rafael e SALLES, Ricardo (orgs.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Neste contexto, por todo o Atlântico, formula-se uma arquitetura jurídica destinada a evitar a reprodução do Haiti em outros territórios. As noções de soberania, cidadania, propriedade, liberdade e igualdade serão definidas à luz dos eventos de São Domingos, bem como serão recrudescidas as táticas de controle social sobre a população negra. O medo da Revolução Haitiana passa a ser o negativo constitutivo da normatividade estatal ao longo do XIX (DUARTE, 2011DUARTE, Evandro Piza. Do medo da diferença à igualdade como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensino superior e os procedimentos de identificação de seus beneficiários. Tese de Doutorado na UnB, Brasília, 2011.; QUEIROZ, 2017________. Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.), criando cativeiros jurídicos para a população negra, tanto na escravidão, como no pós-abolição (AZEVEDO, 2008AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Annablume, 2008. p. 104.; CHALHOUB, 1988CHALHOUB, Sidney. Medo branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, no 16, mar/ago, 1988.; BRITO, 2016BRITO, Luciana da Cruz. Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista. Salvador: EDUFBA, 2016.).

O contra-ataque antirrevolucionário estava montado. Por outro lado, a linguagem emanada pelo Haiti enfatiza outra geografia das lutas por liberação. Primeiramente, a Revolução Haitiana pode ser lida como a primeira das revoluções latino-americanas, ao ser constituída por um complexo de questões que marcarão a formação social dos demais países da região (como a grande presença de população negra e mestiça; o entrelaçamento entre forças militares e políticas na resolução dos conflitos internos; e a persistência da economia dependente) (ARMITAGE e GAFFIELD, 2016ARMITAGE, David; GAFFIELD, Julia. Introduction. The Haitian Declaration of Independence in an Atlantic Context. IN: GAFFIELD, Julia (ed.). The Haitian Declaration of Independence: Creation, Context, and Legacy. Charlottesville e Londres: University of Virginia Press, 2016.; GHACHEM, 2016GHACHEM, Malick W. Law, Atlantic Revolutionary Exceptionalism, and the Haitian Declaration of Independence. IN: GAFFIELD, Julia (ed.). The Haitian Declaration of Independence: Creation, Context, and Legacy. Charlottesville e Londres: University of Virginia Press, 2016.). Por outro lado, ao ser forjada pela luta de uma população em sua maioria africana, que expulsou os colonizadores europeus do território, ela também pode ser entendida como percursora das guerras de descolonização da África no século XX, nas quais os efeitos globais do colonialismo era peça central (DUBOIS, 2004DUBOIS, Laurent. Avengers of the New World: The Story of The Haitian Revolution. USA: Harvard University Press, 2004.). Ademais, para os povos subalternos, desde o seu desfecho vitorioso até o mundo contemporâneo, a Revolução Haitiana foi um símbolo de resistência e de superação da opressão, insuflando movimentos políticos, estéticos e literários ao redor do mundo (PAST, 2004PAST, Mariana. La Revolución Haitiana y El reino de este mundo: repensando lo impensable. Casa de las Américas, enero/marzo, 2004, p. 87- 88.; QUEIROZ, 2018________. Caribe, corazón de la modernidad. Cultura Latinoamericana, 28(2), 234-250, 2018;).

O sentido universal da Revolução Haitiana e de 1804 como divisor de águas ilumina o que estava em jogo na aurora do constitucionalismo (BUCK-MORSS, 2011BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos Estudos, 90, 2011.; DUARTE e QUEIROZ, 2016DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos. A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o constitucionalismo em face do lado oculto da modernidade. Direito, Estado e Sociedade, n. 49, p. 10-42, 2016.). No momento em que surgem as noções básicas das Constituições modernas, como cidadania, soberania, representação política, propriedade, liberdade e igualdade, a escravidão era a grande instituição constituidora de sentidos do mundo atlântico (PARRON, no prelo; QUEIROZ, 2017). Como um instrumento óptico corretivo, o Haiti nos alerta sobre o que estava em jogo e era central, chama a atenção para aquilo que não queremos ver na história constitucional, retirando da penumbra o que foi silenciado.

Diante desse quadro, o artigo procura trabalhar aspectos centrais do constitucionalismo haitiano pós-revolucionário, desenvolvido entre 1801 e 1816. À luz da luta revolucionária dos haitianos por autodeterminação, os textos jurídicos do Haiti fornecem um arranjo conceitual alternativo para o direito constitucional moderno. A análise será desenvolvida em diálogo com o pensamento negro, o qual redimensiona aspectos marginalizados ou apagados pela teoria política hegemônica. Na abordagem, são desenvolvidos seis elementos articulados pela práxis constitucional do Haiti: direitos universais do negro; materialidade da escravidão; cidadania diaspórica; propriedade abolicionista; princípio do solo livre; e nação quilombo.

No entanto, antes de adentrar na análise, são importantes algumas considerações sobre a relação entre constitucionalismo e imaginação social.

1. Constituição, nação e comunidades imaginadas

No seu clássico Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo (2016), Benedict Anderson propõe pensar a nação como uma comunidade política imaginada como inerentemente limitada e soberana. Ela seria imaginada porque “ainda que os membros da nação mais pequena não conhecerão jamais a maioria de seus compatriotas, não serão vistos nem ouvirão sequer falar deles, no entanto, na mente de cada um vive a imagem de sua comunhão” (ANDERSON, 2016ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 2016., p. 23). No seu argumento, a nação é uma espécie de obscurantismo trazido pelo iluminismo a substituir velhas metafísicas, como as religiosas ou das antigas dinastias. Ela é possibilitada pela interrelação entre capitalismo e imprensa e por uma mudança na temporalidade, da qual surge uma divisão entre passado e presente, tornando possível falar de uma antiguidade e do tempo presente. Portanto, há a quebra do tempo messiânico (simultaneidade entre passado e futuro em um presente instantâneo) diante da emergência do tempo da modernidade, marcado pela simultaneidade transversal: tudo se passa e se vive em todas as partes. O periódico é a grande expressão desse fenômeno, em que os eventos são compartilhados o tempo todo nas mais diversas regiões. Da mesma forma, a emergência do romance cria um outro tipo de narrativa em relação ao tempo, baseado nas noções de contemporâneo, cotidiano, tempo presente. Numa relação de identidade e empatia com o leitor, o romance fale de uma humanidade comum, um nós particular. Há a sincronização e fundição do tempo da novela com o tempo exterior (ANDERSON, 2016).

Diante dessas transformações, a nação e o nacionalismo são artefatos culturais de uma classe específica que substituem outras imaginações comunitárias anteriores. Ela é fruto de processos pragmáticos de certos agentes e grupos sociais e não somente de uma imposição pura e simples. Assim, está atrelada ao uso contextual das línguas vernáculas (disseminado pela criação e expansão de mercados consumidores e pela reprodutibilidade capitalista da imprensa), à montagem de burocracias estatais e à formulação de relatos históricos atrelados a disputas por soberania política. Neste sentido, ela é materialmente construída e disputada e socialmente imaginada, dependendo de apetrechos específicos que mediam e informam os sentidos comuns. Assim, agentes institucionais, intelectuais, literatos, lideranças políticas, representações estéticas, historiografia e museus ajudam a moldar a percepção individual e coletiva dos habitantes de um determinado território no que se refere à identidade nacional. Assim, a despeito da desigualdade e exploração de um setor sobre o outro no plano interno, a nação é sempre concebida dentro de um senso de camaradagem profundo e horizontal (ANDERSON, 2016ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 2016.).

Partindo das reflexões de Anderson, Julia Gaffield aponta como a virada do século XVIII para o XIX é um momento crucial para o desenvolvimento do sentido de nação moderno, na medida em que revoluções bem sucedidas e independências permitem que lideranças, elites políticas e classes específicas assumam o controle do Estado (GAFFIELD, 2007GAFFIELD, Julia. Complexities of Imagining Haiti. A Study of National Constitutions, 1801-1807. Journal of Social History, 41:1, 2007, p. 81-103.). A partir disso, estes grupos podem se valer do aparato institucional não só para alcançar seus objetivos e interesses econômicos, mas também construir e universalizar um determinado sentido de tempo e história por meio da construção da nação, nada mais nada menos que uma perspectiva hegemônica de comunidade imaginada. Dessa forma, a América Latina e, particularmente, o Haiti são um celeiro para o entendimento de como consciência racial e nacional se entrelaçaram nas histórias pós-coloniais das nascentes nações, especialmente como raça e nação foram mediados pelas insurgências rebeldes no Atlântico, a resistência negra e a atuação dos setores subalternos livres. Da mesma forma, sendo a nação o lado obscuro e metafísico do momento revolucionário, a Constituição desponta como um decisivo artefato para se entender como a nação foi imaginada, projetada, construída e disputada, na medida em que é um documento que articula uma tripla característica: é o texto fundamental que fala e organiza politicamente e juridicamente o nós coletivo; ele demarca uma torção no tempo, dividindo-o entre o antes, o agora e o depois; e, por fim, para se projetar para o futuro, o documento é escrito e interpretado por meio da imaginação de um povo nacional realmente existente, isto é, uma identidade constitucional que tem uma história, um passado e um destino comum.

Assim, no caso haitiano, suas primeiras constituições são interessantes para pensar como suas lideranças realizaram esforços para construir uma nação que transcendesse as divisões internas (hierarquias de cor e diferenças culturais), demarcasse o rompimento com o passado colonial e imaginasse o futuro comum em liberdade numa realidade internacional ainda dominada pela escravidão e pela plantation. Assim, elas foram um instrumento importante por meio do qual o Estado e sua classe dirigente tentou influenciar os termos nos quais a comunidade nacional seria definida, incidindo de maneira dialética na percepção individual e coletiva dos haitianos (GAFFIELD, 2007GAFFIELD, Julia. Complexities of Imagining Haiti. A Study of National Constitutions, 1801-1807. Journal of Social History, 41:1, 2007, p. 81-103.).

Falando especificamente sobre as quatro primeiras constituições do Haiti (1801, 1805, 1806 e 1807), Julia Gaffield ilumina a relevância do texto constitucional para a construção da imaginação nacional:

O cenário histórico das primeiras constituições haitianas ajuda a explicar sua ênfase na definição do caráter nacional do Haiti em torno de três temas: atividade econômica, religiosa e político-militar. Durante os primeiros anos de semi-independência e depois completa independência, o Haiti produziu quatro constituições, cada uma delas diretamente relevante para o estudo da identidade nacional. Essas constituições indicam a natureza turbulenta e incerta dos tempos em que os líderes tentaram fornecer diretrizes e regulamentos oficiais sobre como o país deveria funcionar como um estado soberano. Os numerosos artigos de cada constituição sugerem como os líderes políticos não apenas desejavam que o país fosse, mas também como acreditavam que era e poderia ser. O exame sistemático desses artigos sugere como esses líderes tentaram desenvolver um senso de nação em um contexto de agitação interna e internacional (GAFFIELD, 2007GAFFIELD, Julia. Complexities of Imagining Haiti. A Study of National Constitutions, 1801-1807. Journal of Social History, 41:1, 2007, p. 81-103., p. 85).

Assim, o direito e as constituições são construtores de marcadores de autoidentificação e heteroidentificação fundamentais durante o surgimento e desenvolvimento dos estados independentes, bem como na articulação de ideias nacionais baseadas na similitude sobre as diferenças. No entendimento da imaginação nacional, as constituições são fontes valiosas porque sublinham características que são assinaladas para todo o país. Neste sentido, ela cria a nação como ideal e, intencionalmente, mascara as complexidades da sociedade em favor de uma única comunidade imaginada. No caso haitiano, diversas pesquisas demonstram que este esforço de homogeneização não foi bem sucedido (TROUILLOT, 1990TROUILLOT, Michel-Rolph. Haiti: State Against Nation: The Origins and Legacy of Duvalierism. Nova York: Monthly Review Press, 1990.; CASIMIR, 2020CASIMIR, Jean. The Haitians: A Decolonial History. EUA: The University of North Carolina Press, 2020.; PEREIRA, 2020PEREIRA, Paulo Fernando Soares. Os quilombos e a nação: inclusão constitucional, políticas públicas e antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.). Por outro lado, como argumenta Gaffield, a despeito da fragmentação social pós-independência, as constituições não só contestaram consistentemente as divisões, como ajudaram a produzir processos duradouros de identificação nacional (GAFFIELD, 2007GAFFIELD, Julia. Complexities of Imagining Haiti. A Study of National Constitutions, 1801-1807. Journal of Social History, 41:1, 2007, p. 81-103.).

Diante dessas considerações a respeito da articulação entre constituição e nação (cultura jurídica e identidade nacional), objetiva-se a visualização de determinadas articulações conceituais do constitucionalismo haitiano do início do século XIX. Em diálogo com o pensamento negro, argumenta-se que a prática constitucional do Haiti propõe ferramental alterativo para repensar a teoria política e constitucional moderna e a invenção dos direitos humanos (HUNT, 2009HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Em específico, ela fornece um arranjo jurídico criativo e crítico para lidar com o legado colonial e repensar os direitos humanos. Dessa forma, seis categorias são exploradas a partir dessas constituições: direitos universais do negro; materialidade da escravidão; cidadania diaspórica; propriedade abolicionista; princípio do solo livre; e nação quilombo.

2. Constitucionalismo haitiano e direitos humanos

Logo na primeira constituição pós-independência, formulada sob o governo de Dessalines em 1805, expõe-se uma embrincada articulação entre universal e particular por meio da ressignificação do termo “negro”. Na exposição de Sibylle Fischer (2003FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, Octubre-diciembre, 2003, p. 16-35.), essa relação deve buscada tanto no preâmbulo como nos artigos 12, 13 e 14 da Constituição. Na abertura do texto, é possível ler:

Na presença do Ser Supremo, perante o qual todos são iguais, e que disseminou tantas classes de seres diferentes na superfície do globo para o único propósito de manifestar sua glória e poder através da diversidade de suas obras.

Diante da criação inteira, cujos filhos repudiados nós fomos considerados tão injustamente e por tão longo tempo.

Declaramos que os termos da presente Constituição são a expressão livre, espontânea e determinada de nossos corações e a vontade geral de nossos compatriotas (Constitution Imperiale d’Haiti, 1805).

Na argumentação de Fischer, o preâmbulo opera como um duplo. Por um lado, estabelece o princípio da igualdade universal. Por outro, afirma a diversidade e diferença do gênero humano. Ao condenar a forma injusta com que os haitianos (e todos os escravizados e colonizados do mundo) foram tratados, expressa tanto a igualdade racial como a ideia de que o estado haitiano é fundado no repúdio à violência colonial. Assim, princípios universais, como a igualdade e a liberdade, devem ser mediados por um elemento particular, que no caso é justamente a experiência de ser vítima do colonialismo e da discriminação racial (FISCHER, 2003FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, Octubre-diciembre, 2003, p. 16-35.) Neste sentido, a cor da pele é o grande signo catalizador de sentidos dessa experiência. A invenção do “negro” é o principal legado do empreendimento colonial (MBEMBE, 2014MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.) e é sobre ele que a Constituição de 1805 investe um pesado processo de ressignificação por meio do direito.

Art. 12. Nenhuma pessoa branca, qualquer que seja sua nacionalidade, poderá ingressar neste território na qualidade de senhor ou proprietário, nem poderá no futuro adquirir propriedade alguma.

Art. 13. O artigo precedente no exerce efeito algum sobre as mulheres brancas que tenham sido naturalizadas como haitianas pelo governo, nem sobre seus filhos atuais ou futuros. Incluem-se igualmente na presente previsão os alemães e poloneses naturalizados pelo governo.

Art. 14. Havendo que desaparecer forçadamente toda distinção de cor entre os filhos de uma mesma família, de quem o pai é o chefe de Estado, os haitianos serão conhecidos daqui para frente pela denominação genérica de negros (Constitution Imperiale d’Haiti, 1805).

Primeiramente, é notável o esforço dos haitianos em extirpar da ilha o retorno dos vínculos de propriedade impostos pelo imperialismo, conforme expresso no art. 12. Não é só a ideia de proprietário branco que está excluída, mas também a de senhor, denotando o programa abolicionista por trás da definição jurídica. Ademais, o artigo expressava o temor concreto de uma nova investida francesa, especialmente diante da presença de antigos proprietários no país e em regiões próximas, como nos Estados Unidos e nas Antilhas. Essa formulação se repetiria em todos os textos fundamentais do país até a Constituição de 1918, formulada durante o período de ocupação dos Estados Unidos, quando a exclusão da propriedade branca seria revogada, abrindo caminho para o retorno da plantation e das forças recolonizadoras (CASIMIR, 2020CASIMIR, Jean. The Haitians: A Decolonial History. EUA: The University of North Carolina Press, 2020.; DUBOIS, 2012________. Haiti: The Aftershocks of History. New York: Metropolitan Books, 2012.). No meio do caminho, a despeito da previsão constitucional, o confisco da propriedade branca pelo estado haitiano também seria revertido por meio do tratado de reconhecimento diplomático de 1825, quando a França impôs a criminosa dívida da independência aos haitianos, isto é, fez com que o Haiti pagasse por toda posse ilegítima oriunda da situação colonial e escravocrata (SILVA e PEROTTO, 2018Silva, Karine de Souza, Perotto, Luiza Lazzaron. A Zona do Não-Ser do Direito Internacional: os povos negros e a Revolução Haitiana. Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas, 18:32, 2018, 125-153.).

Especificamente em relação à “denominação genérica de negros”, Fischer argumenta:

Em uma manobra extraordinariamente ousada, a Constituição de Dessalines adota a linguagem dos colonizadores e a submete a uma ressignificação total. Todas as hierarquias baseadas na cor de pele são abolidas, e todos os haitianos passam a ser referidos pelo termo genérico de negros. Da exageração taxonômica de uma colônia que tinha mais de uma centena de termos distintos para se referir a graus diferentes de mesclas de raça e cor, passamos a uma denominação genérica de negros.

(...) Os revolucionários da antiga colônia francesa voltam a chamar o território com o nome arawak original e o fazem, o que é ainda mais significativo, voltando a nomear a cor da pele. Rechaçando qualquer expectativa de ordem biológica ou racial, fazem do termo negro sinônimo de ser haitiano e logo uma categoria política antes que biológica.

Dessa forma, a Constituição de 1805 constrói por meio do ato de ressignificação um dos paradoxos mais inquietantes da política universalista moderna o paradoxo de que o universal se deriva comumente de algum dos particulares, e implica assim (certa forma de) subordinação. O gesto de chamar a todos os haitianos, não importa qual for sua cor de pele, de negros, é como chamar a todas as pessoas de mulheres independentemente do seu sexo: supõe intuições do tipo igualitárias e universalistas ao mesmo tempo que as põe à prova, empregando o termo previamente subordinado da oposição como termo universal (FISCHER, 2003FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, Octubre-diciembre, 2003, p. 16-35.).

Portanto, o artigo 14 era uma forma de “legislação expressiva” que positiva o processo da Revolução em direção ao futuro, valendo-se do signo herdado do colonialismo para modificar e valorizar seu significado de maneira progressiva, até torná-lo fundamento da universalidade humana. Fizeram do devir haitiano a reversão do devir negro. Segundo Mbembe, o devir negro do mundo é a universalização dos riscos sistemáticos a que os escravos de origem africana foram submetidos durante o primeiro capitalismo. Assim, a condição negra passa a afligir todas as humanidades subalternas “com a instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas escravagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração, ou seja, às guerras civis ou razzias de épocas anteriores” (MBEMBE, 2014MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014., p. 16). O planeta se torna paulatinamente uma grande plantation, com seus correspondentes fenômenos de comércio e descarte de corpos, destruição de territórios e aniquilamentos de culturas. Distribuição do tempo, atomização do espaço e transformação do real em ficção e da ficção em real, em que a força militar, a destruição de infra-estruturas, os golpes e as feridas “são acompanhadas por uma mobilização total através das imagens. Elas fazem agora parte de dispositivos de uma violência que se desejava pura” (MBEMBE, 2014, p. 16). Trata-se da permissividade e da investidura de tecnologias sobre corpos e territórios, com práticas de zoneamento, economias da violência e desapossamento das matrizes do possível, as quais guardam sua origem na lógica de poder e dominação da escravidão negra.

O termo negro carrega o passado e o futuro do mundo. É com essa consciência profética que a Constituição de 1805 investe nele o significado de humanidade, pois sabia que caso o mundo que criou tal categoria não fosse radicalmente abolido, o amanhã de todos seria tal qual o conhecemos hoje, constituído pelo devir do escravo e pela globalização da colônia. Uma mimesis da São Domingos pré-1804. Portanto, na torção semântica do termo “negro”, o devir haitiano aponta uma construção da universalidade humana que carrega a memória de todos aqueles que foram, são e possivelmente serão deixados de fora daquilo que se entende como humanidade. Rejeitando abstrações que se colocam foram do tempo, afirma que os princípios jurídicos devem emergir da experiência materialmente vivida. Numa perspectiva intransigente, este devir diz que o conteúdo dos direitos humanos deve ser preenchido na tensão com todo o horror e absurdo produzido por aqueles que se advogam os únicos portadores da civilização. Trata-se de uma poética constitucional baseada na hermenêutica daquele que foi capturado, separado de sua família e de suas terras, embarcado como carga humana em um navio, foi vendido e viveu o cotidiano de terror da plantação - daquele que, a despeito de tudo isso, jamais se viu como escravo e emergiu da penumbra da Casa-Grande para reivindicar a sua liberdade e de todos os demais. O devir haitiano instaura o direito universal do negro como ponto de partida de outra humanidade.

O segundo elemento que emerge do constitucionalismo é a materialidade da escravidão como um problema constitucional e de organização do Estado e não uma abstração filosófica. Fruto de uma revolução abolicionista, cercado por regiões escravistas e ainda ameaçado por forças recolonizadoras, o Haiti surge como nação tendo a escravidão como uma questão concreta de primeira ordem. Já na Constituição de 1801, elaborada por Toussaint Louverture, quando o país ainda não havia declarado sua independência completa, a escravidão, a liberdade e a igualdade racial aparecem no título II, nas disposições sobre os habitantes do território:

Art. 3 Não haverá escravos neste território, a servidão está abolida para sempre. Aqui todo os homens nascem, vivem e morrem livres e franceses.

Art. 4. Todos os homens, não importa qual seja sua cor de pele, podem ser aqui admitidos para qualquer emprego.

Art. 5. Não existe outra distinção que não seja a das virtudes e talentos, e não há outra superioridade que aquela que confere a lei no exercício de uma função pública. A lei é a mesma para todos, tanto a que castiga como a que protege (Constitution d'Haïti, 1801).

Em um mundo constituído pela linha de cor como forma básica da fronteira entre liberdade e servidão, ao positivar o princípio da igualdade, a Constituição nomeia expressamente a ausência de discriminação racial, pois sabe que o silêncio a respeito do assunto é mecanismo de perpetuação da lógica branca de dominação. É necessário afirmar a “raça” numa política de direitos que descontrói ativamente o racismo. Ademais, como argumenta Fischer, a abolição expressa da escravidão é extremamente radical e inovadora para sua época, bastando comparar com praticamente todas as constituições e declarações francesas do mesmo período. À exceção da Constituição Termidoriana de 1795, que continha uma proibição expressa sobre a escravidão, da declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, à reintrodução da escravidão nas colônias francesas, em 1802, todas as leis fundamentais da França eram omissas sobre a proibição do escravismo (FISCHER, 2003FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, Octubre-diciembre, 2003, p. 16-35.). Isto é, o silêncio revelava que no seu suposto universalismo era permitido a servidão de pessoas negras.

Ademais, ao localizar a questão da escravidão no título “dos habitantes” e não como parte de um rol de direitos civis e políticos, a Constituição de 1801 trata do tema como um assunto político e de organização institucional. Neste sentido, Fischer argumenta:

Isso não é um detalhe insignificante na caprichosa evolução da história constitucional revolucionária. Haiti, como Estado fundado para garantir a liberdade e acabar com a escravidão e a subordinação racial, exerce uma pressão particular sobre a distinção entre os “direitos universais” e as contingências dos arranjos políticos. O grande número de modificações realizadas entre 1791 e 1795 na Declaração de Direitos demonstra que, longe de oferecer garantias inalteráveis, estas enumerações de “direito universal” estavam sujeitas à mudança e em grande medida expostas ao debate (FISCHER, 2003FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, Octubre-diciembre, 2003, p. 16-35., p. 28).

Assim, o fim da escravidão e a eliminação da subordinação racial estão no centro do programa fundacional do Estado. O princípio da abolição articula político e social, liberdade e igualdade dentro de um uno, que se estabelece não numa lista de direitos independentes uns dos outros, mas sim como parte dos fundamentos indispensáveis da entidade geopolítica da nação que logo surgiria. Portanto, o constitucionalismo haitiano lega uma outra perspectiva sobre a tensão entre igualdade e liberdade, tão comum às celeumas liberais. Por meio do seu abolicionismo, em que a liberdade só poderia ser garantida com a plena igualdade racial, ambos os princípios são mutuamente constituídos, ganhando concretude diante da experiência de rejeição do mundo de privações criado pela escravidão (FISCHER, 2003FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, Octubre-diciembre, 2003, p. 16-35.).

Se por um lado esse vínculo de indistinção entre igualdade e liberdade abriu caminho para dispositivos de controle do trabalho livre (era necessária uma supervisão abrangente do trabalhador para garantir a liberdade coletiva do país) (FISCHER, 2003FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, Octubre-diciembre, 2003, p. 16-35.), por outro fez do Haiti protagonista na expansão do princípio da abolição pelo Atlântico. Isto é, o enfrentamento à escravidão como fundamento do Estado implicava numa postura de intervenção nas relações internacionais. Sob o risco de ataque das potencias estrangeiras, essa incidência muitas vezes se realizou de maneira indireta, como no acordo entre Alexander Petión e Simón Bolívar. Em troca do suporte dado às guerras de independência latino-americanas, o haitiano exigia a abolição da escravidão nos territórios liberados e que Bolívar fundasse um país baseado nos mesmos princípios libertários do Haiti. Por mais que a promessa não tenha sido cumprida, o trato entre haitianos e patriotas americanos representava a visão de mundo de uma nação que nasceu em antagonismo universal com a servidão negra (GAFFIELD, 2013________. “Liberté, Indépendance”: Haitian Anti-slavery and National Independence. Mulligan, William; Bric, Maurice. A Global History of Anti-slavery Politics in the Ninettenth Century. Nova York: Palgrave Macmillan, 2013.). Antagonismo que era exercido não por meio de filosofias diletantes ou vazias declarações de direitos, pois era baseado numa práxis pragmática de atuação sobre as condições concretas da época.

É neste sentido de intervir indiretamente na realidade escravista do atlântico que se pode visualizar o terceiro elemento do constitucionalismo haitiano: a cidadania diaspórica.3 3 A noção de cidadania diaspórica é fruto das discussões e leituras desenvolvidas nas disciplinas “A Dialética do Senhor e do Escravo em Hegel: Uma releitura da Teoria do Reconhecimento a partir da obra de Susan Buck-Morss ‘Hegel, Haiti e a História Universal’”, ofertada pelos professores Menelick de Carvalho Netto e Evandro Piza, no primeiro semestre de 2015; e “Cultura Jurídica, Branquidade e Memória”, ofertada por Evandro Piza, no segundo semestre de 2015. Ademais, ao longo do ano de 2017, junto com o amigo João Victor Nery Fiocchi Rodrigues, realizamos um grupo de estudos sobre Revolução Haitiana e constitucionalismo, onde o termo foi melhor delimitado. Naquele mesmo ano, eu, Evandro e João escrevemos um esboço de artigo chamado Constituições Haitianas Pós-Revolucionárias, Antirracismo e a Reformulação da Cidadania, para ser apresentado na 13 ª Conferência da European Sociological Association, em Atenas, onde o conceito foi pela primeira vez articulado em texto. No ano seguinte, João trabalhou o termo na sua dissertação sobre constitucionalismo e as lutas por direitos dos mapuches no Chile. Duarte, Queiroz e Rodrigues (no prelo); Rodrigues, 2018. Todas as primeiras constituições haitianas são explícitas em destacar a política absenteísta do país, isto é, de que ele não interveria por meio de guerras nas realidades de outros países e muito menos exportaria sua revolução. Era um mecanismo de defesa para afastar as acusações de um certo haitianismo internacionalista, a sublevar escravos por todo o globo, forjadas por opositores da independência do país. Diante desse cenário que a Constituição de 1816, a primeira pós-reunificação do norte e do sul, positiva um criativo dispositivo sobre cidadania, capaz de driblar a conjuntura adversa da época. É lugar comum que a nacionalidade e a cidadania são concedidas com os critérios de ius soli e ous sanguinis, isto é, a pessoa se torna nacional e cidadã caso tenha nascido em determinado território ou seja descendente de algum dos seus cidadãos. Assim, o “ser cidadão” e seus respectivos direitos estão aprisionados a fronteiras físicas e a laços étnico-raciais. Por outro lado, o constitucionalismo haitiano adotava uma concepção mais universal e enraizada na história da modernidade. Nela, as vítimas potenciais da escravidão e do colonialismo, assim que entrassem no país, tornavam-se não só nacionais haitianos, mas também cidadãos, com plenos direitos políticos (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66.; GAFFIELD, 2013________. “Liberté, Indépendance”: Haitian Anti-slavery and National Independence. Mulligan, William; Bric, Maurice. A Global History of Anti-slavery Politics in the Ninettenth Century. Nova York: Palgrave Macmillan, 2013.).

Assim, no título III, do estatuto político dos cidadãos, da Constituição de 1816, estava o art. 44 que assim estabelecia a aquisição da cidadania haitiana: “todos os africanos e indígenas e aqueles que do seu sangue, nascidos nas colônias ou países estrangeiros, que venham a residir na República serão reconhecidos como haitianos, mas não desfrutarão do direito da cidadania até que tenha passado um ano de sua residência”.4 4 Como a hipocrisia, safadeza e cara de pau dos europeus não encontravam limites, esse artigo seria atacado no plano internacional. Nas negociações de reconhecimento diplomático, os franceses pediriam a revogação de tal dispositivo, pois ele estabelecia uma “distinção de cor contra a qual a filantropia estava lutando para destruir há mais de meio século” (FERRER, 2012, p. 46). Haja óleo de peroba. E quando Petión utilizou a Constituição de 1816 para garantir a naturalização, liberdade e cidadania de 07 negros fugidos da Jamaica, escravagistas britânicos diziam que o texto constitucional haitiano representava uma ameaça para o comércio marítimo e para a ordem internacional. No mesmo sentido, a Constituição de 1843 expande ainda mais essa noção. No título sobre os haitianos e seus direitos, é possível ler:

Art. 6. Todos os indivíduos nascidos no Haiti, ou de ascendência africana ou indígena, e todos aqueles nascidos em países estrangeiros de um homem haitiano ou de uma mulher haitiano, também o são todos aqueles que até o dia de hoje tenham sido reconhecidos como haitianos.

Art. 7. Todos os africanos ou indígenas e seus descendentes podem fazer-se haitianos. A lei regula as formalidades da naturalização (Constitution du 30 décembre 1843).

Tais dispositivos apontam a natureza transnacional do antiescravismo radical que funda o estado haitiano. A cidadania diaspórica serve como uma forma de driblar o cerco internacional ao conceder não só asilo, mas nacionalidade e direitos políticos aqueles que possivelmente tenham sido capturados pela lógica colonial. Se o Haiti enfrentava restrições para levar a abolição e a igualdade racial a todos os condenados da terra, estes encontrariam nele ao menos um território de liberdade e direitos. Tais dispositivos devem ser lidos diante dos esforços concretos do país em convidar e naturalizar pessoas negras e não-brancas nas colônias francesas e britâncias próximas, como Martinica, Guadalupe e Jamaica, bem como realizou negociações diplomáticas com Estados Unidos e Espanha para fazer retornar haitianos que estivessem como escravos nestes territórios (GAFFIELD, 2013________. “Liberté, Indépendance”: Haitian Anti-slavery and National Independence. Mulligan, William; Bric, Maurice. A Global History of Anti-slavery Politics in the Ninettenth Century. Nova York: Palgrave Macmillan, 2013.; FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66.).

Assim, por meio da cidadania diaspórica, Haiti convocou publicamente negros estadunidenses a irem residir no país (na década de 1820, entre 6 e 13 mil afro-americanos migraram para o Haiti);5 5 Neste sentido e sobre os usos do constitucionalismo haitiano para intervir na realidade do Atlântico, narra Ada Ferrer: “Ouvindo notícias trazidas por marinheiros negros estadunidenses em Porto Príncipe de que o governo dos Estados Unidos estava considerado em remover forçadamente negros livres para a África, Petión procurou inserir o Haiti nos cálculos de saída e remoção feitos nos Estados Unidos. Por meio do seu secretário-geral, Joseph Balthazar Inginac, ele convidou estadunidenses negros a emigrar para o Haiti como uma forma de resistir à exclusão e ao abuso que eles enfrentavam nos Estados Unidos: ‘Abre-lhes os olhos a Constituição da nossa República, e vejam no seu artigo 44º uma mão fraterna aberta às suas angústias. Visto que hoje lhes é recusado o título de Membros da União Americana, que venham entre nós, em um país firmemente organizado, e gozem dos direitos de Cidadãos do Hayti, de felicidade e paz: enfim, que venham e mostrem aos homens brancos que ainda existem homens de cor e negros que podem levantar um front destemido, protegido do insulto e da injúria’” (FERRER, 2012, p. 58, grifos nossos). recebeu inúmeras pessoas escravizadas das demais ilhas antilhanas; requereu aos patriotas latino-americanos que os africanos resgatados sobre os mares fossem mandados para o país caribenho (além da própria abolição nos territórios liberados, cabe lembrar); e inscreveu o direito de asilo como princípio organizativo do Estado (vinculado diretamente à escravidão e não meramente a perseguições oriundas de manifestação de opinião política, conforme o art. 3º da Constituição de 1816). Tudo isso apontava a intenção do Haiti na construção de um robusto projeto nacional abolicionista, que objetivava intervir nos debates internacionais sobre direitos, liberdade, igualdade, cidadania e soberania da época. Ademais, com seu apoio aos patriotas latino-americanos em troca da abolição da escravidão, o Haiti pretendia fazer avançar a pauta sobre outras localidades, construindo uma rede de estados-nação antiescravistas (articulação jamais concretizada, seja pelo não cumprimento da promessa por parte dos independentistas, seja pela exclusão, por esses líderes, do Haiti do Congresso do Panamá, em 1826, espaço onde a causa poderia ser retomada como projeto comum da América) (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66.).

Da mesma forma, a noção de cidadania diaspórica ajuda a reler e expandir a noção de negro enraizada na história do constitucionalismo haitiano. Por um lado, todos os haitianos seriam denominados genericamente pelo termo negro. Por outro, todas as vítimas da escravidão e do genocídio eram potencialmente haitianas, independentemente da sua cor. Essa ambiguidade e sobreposição realiza uma paradoxal política de direitos, a qual expande a cidadania de acordo com a expansão do colonialismo. Quanto mais violência colonial houver, mais haverá potenciais cidadãos haitianos espalhados pelo planeta. Nesta poética, o termo negro opera politicamente de duas formas: passa a designar não somente pessoas de origem africana e pele escura, mas todo aquele que foi capturado pelas malhas coloniais; e torna-se núcleo do conceito de humanidade informador de uma política de direitos decididamente disposta a enfrentar as chagas da supremacia branca global. A cidadania diaspórica articulava o devir haitiano como resposta jurídica ao devir negro do mundo.

Mais do que isso: opera uma crítica ao conceito de refúgio, o qual somente existe diante de um sistema jurídico internacional que naturaliza a precariedade de certas vidas humanas. O refugiado é uma aporia do direito, pois é um sujeito relativizado de direitos, isto é, um humano menor para o qual o sistema jurídico opera na exceção legítima (HIGINO, 2018HIGINO, ísis. Get Out: a perseguição e o terror nas estruturas da supremacia branca mundial nos permitem refúgio do racismo? Monografia em Relações Internacionais. Universidade de Brasília, 2018.). Isto é, logo aquele que mais precisa de amparo institucional é tratado juridicamente de forma estreita e instável. Ademais, a possibilidade do refúgio tem como lado oculto uma ordem internacional que permite a barbárie, isto é, que produz incessantemente migrações forçadas de indivíduos sem garantias jurídicas totais que passam a depender da boa vontade de organismos estrangeiros e pessoas desconhecidas. No mundo do constitucionalismo haitiano, a figura do refugiado não existe, pois ela é substituída pelo negro em diáspora, o qual imediatamente se torna sujeito pleno de direitos assim que pise no Haiti. Dessa forma, trata-se de uma política que articula direito interno e externo, fazendo do território nacional instrumento de expansão da liberdade e da igualdade racial no plano internacional. Ou há cidadãos ou não há. Ou há direitos humanos em sua universalidade ou não há. Ou há humanidade ou não há.

O quarto elemento do constitucionalismo versa sobre o direito de propriedade. O núcleo jurídico da escravidão é o direito de propriedade que uma pessoa tem sobre a outra. Por mais que esse direito tenha sido regulado em alguns casos, a exemplo do fatídico Código Negro francês, de 1685, ele se baseava no domínio e na vontade absoluta do senhor sobre o seu escravo. Isso significava que o negro não era somente uma mercadoria e um instrumento de trabalho, pois o senhor poderia exercer sobre ele qualquer tipo de ação que imaginasse. Compra, venda, depósito em garantia, tortura, mutilação, estupro, assédio, separação de família, gravidez forçada almejando lucros futuros, disposição livre do seu tempo para as mais diferentes tarefas (da dança obrigada ao acender de luzes em todo anoitecer; de retirar as fazes de dentro da casa a vestir suas roupas; de preparar comidas a escovar os sapatos), colocação na rua como pessoa de ganho e etc. Assim, era um tipo de propriedade baseada num direito despótico, num domínio arbitrário e numa posse caprichosa, constituidores de relações sociais inerentemente patológicas, sádicas e delirantes. É contra este horror absoluto que se levanta a Revolução Haitiana.

Por isso há uma enorme cisão entre o constitucionalismo haitiano e o resto do constitucionalismo no início do século XIX. Os textos constitucionais das demais nações irão afirmar o direito de propriedade sem especificar o que ele significava, a exemplo do art. 179, XXII, da Constituição do Império. Com isso, abrangiam a possibilidade da propriedade escrava na sua plenitude, tendo em vista que ela ainda era a norma em diversas regiões. Já as Constituições haitianas explicitamente definiam a propriedade como o “direito de usufruir e dispor do próprio trabalho e indústria”, conforme estabelecido na de 1806 e na sua revisão de 1816 (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66.). Neste sentido, Ada Ferrer argumenta:

(...) a proteção da propriedade, que era utilizada por toda parte e continuaria sendo em certas circunstâncias como um meio de proteger a escravidão, era definida de uma maneira que tornava inadmissível a escravidão - vista como uma violação dos direitos do homem e uma violação do direito de um indivíduo à sua própria propriedade ou pessoa (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66., p. 52).

Dessa forma, a propriedade abolicionista da relação de servidão (propriedade somente incluindo o fruto do próprio trabalho), somada à própria abolição da escravidão e à cidadania diaspórica, formava um enquadramento jurídico radicalmente diferente do caminho que o direito tomava naquele momento da história. Essa moldura serviu de padrão para pleitos de liberdade nas cortes haitianas e de intervenção na geopolítica da época (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66.). Essa política e pragmática dos direitos fazia do Haiti protagonista no sentido universal dos direitos humanos. Da mesma forma, a exclusão da propriedade escrava combinada com a proibição da propriedade por brancos sobrepunha dois institutos para afirmar: não era só a relação de senhor e escravo que estava abolida, mas também a hermenêutica senhorial dela oriunda, isto é, a epistemologia branca que se crê onipotente, onisciente e onipresente pois nascida do domínio total sobre outra vida humana. Portanto, tratava-se de uma abolição radical tanto das condições materiais como subjetivas decorrentes da escravidão negra por mãos e mentes brancas. Abolir a chibata e a perspectiva de quem a segura. Assim, o constitucionalismo haitiano deixava importante lição de que o princípio da propriedade absoluta poderia permanecer para além da própria escravidão caso o modo de ver da Casa-Grande não fosse frontalmente atacada. O princípio da abolição tentava ser o rito fúnebre a despachar para sempre os fantasmas dos senhores.

A propriedade abolicionista está relacionada ao quinto elemento articulado pelo constitucionalismo haitiano: o princípio do solo livre. Conforme colocado, diferentemente das declarações europeias, as constituições do Haiti retiravam os princípios da liberdade e da igualdade da abstração para torna-los reais e concretos. O território e o solo eram as raízes dessa base material da liberdade. A terra preta amparava um universalismo concreto, diferente do universalismo abstrato francês que, no seu vazio, permitia a escravidão. Conforme argumenta Ada Ferrer, o princípio do solo livre é anterior aos debates da Era das Revoluções. Presente no Antigo Regime e reconhecido em diversos sistemas jurídicos europeus, ele significava a aquisição de liberdade por um escravo assim que pisasse em um território particular. Na França e na Inglaterra metropolitanas, representava uma extensão do princípio das comunas medievais de que o “ar livre” das cidades era declarado incompatível com a servidão. Durante a era do tráfico negreiro e da escravidão, este princípio serviu de base para pleitos judiciais de pessoas escravizadas. No entanto, a partir de meados do século XVIII, a sua aplicação a pessoas negras foi alvo de um grande retrocesso, chegando à proibição da entrada de pessoas de cor na França por Napoleão em 1802. Mais perto do futuro Haiti, princípio semelhante era utilizado pelos santuários católicos em territórios espanhóis, em que antigos escravos eram libertados caso pisassem nessas terras e se convertessem ao catolicismo (FEERER, 2012).

No entanto, o princípio do solo livre articulado pelo constitucionalismo haitiano por meio da cidadania diaspórica era muito mais abrangente e radical. Neste sentido, a partir da Constituição de 1816, Ada Ferrer argumenta:

A versão de solo livre de Pétion, no entanto, era significativamente mais radical do que qualquer precedente britânico ou francês. Primeiro, seu princípio de liberdade foi proclamado não para territórios europeus que estavam geograficamente afastados dos espaços de escravidão em massa, mas para uma ex-colônia escravista a pouca distância de numerosos e florescentes regimes escravistas. Assim, seu solo livre foi declarado no espaço geográfico onde mais importava. Em segundo lugar, ele fez do solo livre não apenas um princípio jurídico a ser invocado e defendido em casos específicos, como era na Europa, mas, de fato, um princípio geral e inviolável inscrito na lei suprema da terra. Assim, ele se baseou em princípios do antiescravismo do Antigo Regime e os combinou com elementos do antiescravismo haitiano para expandir o escopo de cada um. As políticas de Pétion ampliaram o conceito de solo livre, prometendo aos recém-chegados não apenas a liberdade da escravidão, mas também a cidadania. Ele simultaneamente ampliou o alcance da liberdade conquistada na Revolução Haitiana e reafirmada em todas as constituições haitianas, tornando-a disponível para estranhos, para pessoas que não estavam presentes no momento da redação da constituição. O artigo 44 tornou assim a liberdade e a cidadania mais amplamente alcançáveis e deu à promessa do antiescravismo radical do Haiti uma vida mais robusta e uma projeção internacional em uma época e lugar onde os estados vizinhos permaneciam muito envolvidos no regime de escravidão (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66., p. 50).

Por meio do solo livre, o constitucionalismo haitiano realizava uma potente dialética entre direitos humanos e a lei nacional: essa última deveria respeitar os direitos humanos e garantir o direito ao devido processo nas cortes locais; e, por outro lado, havia uma haitianização dos direitos universais, na medida em que se os direitos humanos eram negados em todo lugar para as pessoas negras (no sentido abrangente dado pelas constituições do país), no território haitiano eles seriam respeitados. Isso era evidenciado, por exemplo, no direito ao asilo, expresso no artigo 3º da Constituição de 1816. No Haiti, esse direito era incorporado constitucionalmente como sagrado e inviolável. Além disso, estava vinculado diretamente à escravidão e não somente a perseguições oriundas opinião política. Combinado à cidadania diaspórica, à rejeição de propriedade sobre o corpo de alguém, à ilegalidade da escravidão, essa proteção aos estrangeiros possuía um rol de direitos que ia para além de qualquer constituição da sua época e da nossa.

Com isso, a combinação dos elementos e princípios do constitucionalismo haitiano permitem uma significação diversa tanto do conteúdo dos direitos, como das noções de soberania, povo e território. Primeiro, o abstrato direito de liberdade foi transformado em um princípio concreto de proibição da escravidão, excluindo qualquer débito relativo ao contrato sobre corpos humanos. Segundo: o direito de propriedade era explicitamente contrário à posse sobre outrem. Terceiro, a soberania nacional, imaginada como um espaço no qual os direitos são acordados e proclamados, é redimensionada em um espaço de direitos eminentemente transnacional, pois, por meio da cidadania diaspórica, transcendente as limitações das fronteiras nacionais (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66.). Portanto, o constitucionalismo haitiano funde duas noções aparentemente separadas uma da outra: território e diáspora. Isso ocorre porque sua política de direitos não está vinculada às fronteiras territoriais da soberania nacional, mas sim a uma noção transnacional de territórios de liberdade atreladas ao corpo negro (o corpo de todos os condenados da terra). Onde houver uma pessoa que foi capturada pela lógica despótica do colonialismo, o território haitiano potencialmente exercerá sua potência garantidora de direitos por meio do princípio do solo livre.6 6 A partir da perspectiva do colonizado, a poética fanoniana permite pensar como o colonizado estabelece vínculos entre território e moral, entre o material-concreto e os valores do bem comum, entre o princípio fundamental do direito a habitar à terra e a liberdade e igualdades coletivas: “Para o povo colonizado, o valor mais essencial, porque mais concreto, é primeiro a terra: a terra que deve garantir o pão e, é claro, a dignidade. Mas essa dignidade não tem nada a ver com a dignidade da ‘pessoa humana’. Dessa pessoa humana ideal, ele nunca ouviu falar. O que o colonizado viu no seu solo é que se podia impunemente prendê-lo, espanca-lo, esfomeá-lo; e nunca nenhum professor de moral, nunca nenhum padre veio receber as pancadas em seu lugar nem dividir seu pão com ele. Para o colonizado, ser moralista é, muito concretamente, calar a arrogância do colono, quebrar a sua violência ostensiva, em uma palavra, expulsá-lo simplesmente da paisagem” (FANON, 2005, p. 61).

Dessa forma, trata-se de um rearranjo dos direitos de liberdade, igualdade, cidadania e nacionalidade diante de uma concepção de território muito parecida com aquela dada por Édouard Glissant a partir da noção de errância (2010GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Estados Unidos: The University of Michigan Press, 2010.). Segundo Glissant, a nação foi uma das formas pelas quais o Ocidente impôs fronteiras e o distanciamento entre pessoas, por meio de intransigências linguísticas e territoriais. O exilado (nas suas diferentes formas, como o refugiado, o asilado, o traficado, o forçadamente deslocado) está constantemente em situação de precariedade e irregularidade, pois deve lidar com as fronteiras e distâncias criadas pelas nações e, ao mesmo tempo, estabelecer relações com o diverso. Ele, assim, faz um movimento de errância, atuando nas frestas e contra fixações do seu eu. Cria identidade não num fundamento essencial cristalizado, mas na relação. Na acepção de Mbembe, formula uma ética própria oriunda da passagem, consciente da extrema fragilidade de todos e de tudo num tempo-espaço de vulnerabilidade total. O errante tem em conta o acidente que representa nosso lugar no mundo, atravessado pelo peso do arbitrário e do constrangimento. E com isso, sabe do injusto que é formular qualquer tipo de política de direito baseada nessas arbitrariedades, como aquelas baseadas estritamente no sangue ou lugar de nascimento (MBEMBE, 2017________. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.).

Não se trata do elogio ao exílio, ao refúgio ou ao movimento incessante. Muito menos a celebração da fuga, do nomadismo e de um mundo boêmio ou sem raízes. O que se evoca é a figura de um sujeito de direitos que se esforçou para fazer um caminho íngreme, adverso e que lhe foi de início rejeitado. Tornar-se humano no mundo, independentemente da origem e do sangue. Neste trajeto de circulação e transfiguração, abraçou a fragmentariedade da sua própria história numa cartografia dolorida, instável e fluída. Fez vida diante do desastre que nos assoma. Portanto, o lugar, o território é experiência do encontro e da relação, que dão substrato à autoconsciência e à autodeterminação baseadas num senso de habitação solidário e desprendido (MBEMBE, 2017________. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.). O que Mbembe chama de relação global e ética da partilha do mundo parece o que os haitianos quiseram fazer com suas concepções de solo livre e cidadania diaspórica, ao fundirem juridicamente território e movimento, nação e diáspora, raiz e errância, cidadania e descolonização. Uma política de direitos que rejeita a herança da colônia, a qual fez do acaso por trás da cor da pele ou do lugar em que se nasce uma estrutura planetária de dominação e desumanização. Ao fazer de todos os condenados da terra pessoas negras, haitianas e, consequentemente, cidadãs, construiu noções dos direitos humanos verdadeiramente baseadas naquilo que nos é comum. Assim, a poética haitiana valeu-se do discurso constitucional para imaginar um território de direitos destinado aqueles e aquelas que encararam o abismo, que viveram a experiência de confrontar sem preparação o desconhecido, que tiveram dúvidas petrificantes diante da desintegração de tudo aquilo que lhes era mais íntimo (GLISSANT, 2010GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Estados Unidos: The University of Michigan Press, 2010.). Uma poética constitucional no qual o sujeito de direitos estava na travessia, na passagem, na encruzilhada.

3. A Constituição e a Nação Quilombo

Este quadro permite pensar como o constitucionalismo haitiano informa aquilo que poderíamos chamar de nação quilombo. O conceito parte de uma imaginação política que aproxima a teoria constitucional dos sentidos da diáspora africana nas Américas. A experiência histórica e plural das comunidades quilombolas no Brasil serviu de inspiração para uma multifacetada tradição do pensamento social, a qual faz do quilombo um princípio de reflexão crítica e intervenção política. Isto é, o quilombo opera tanto como elemento descritivo, fornecendo leituras alternativas do imaginário nacional e do processo de formação social, como normativo, articulando proposições éticas que semantizam a liberdade e a igualdade de acordo com a experiência da diáspora africana nas Américas. Assim, em um país permeado pelo imaginário da democracia racial, da mestiçagem e do apagamento da autodeterminação da população não-branca, o quilombo é ponto de inflexão histórica e política. Mecanismo de introdução do ponto de vista negro a respeito da cultura jurídica e da identidade nacional (GOMES, 2022GOMES, Rodrigo Portela. Kilombo: uma força constituinte. Tese de Doutorado em Direito. Universidade de Brasília, 2022.; PIRES; 2021PIRES, Thula. Legados de Liberdade. Revista Culturas Jurídicas, 08:20, 2021, p. 291-316.; PEREIRA, 2020PEREIRA, Paulo Fernando Soares. Os quilombos e a nação: inclusão constitucional, políticas públicas e antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.). Ademais, ao estarem em consonância com outros processos sociais, a exemplo dos palenques, maroons e cimarrones, denotam o caráter transnacional das diásporas internas e das territorializações da população negra na América e no Caribe. No sentido de amefricanidade, dado por Lélia Gonzalez, o quilombo como princípio relê a experiência continental borrando as fronteiras, linguagens e histórias hegemônicas por trás de cada comunidade imaginada nacional (GONZALEZ, 1988GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, 1988, p. 69-82. e 2020).

Neste sentido, três acepções do quilombo formuladas por intelectuais brasileiros permitem interpretar o constitucionalismo haitiano do início do século XIX. O quilombo como práxis insurgente de Clóvis Moura. O quilombo como território de liberdade de Beatriz Nascimento. E o quilombo como invenção institucional de Abdias Nascimento. Tais concepções dialogam com as formulações do pensamento afrocolombiano, para qual os territórios negros são produzidos poeticamente e espaços geográficos articuladores de uma contra-esfera pública, que age em diálogo, ocultamento, tensão e luta perante a arena política dominante da modernidade.

Na tradição do pensamento social brasileiro, Clóvis Moura representa uma ruptura na interpretação da história da escravidão no país. Na primeira metade do século XX, predominavam interpretações da sociedade escravista em que o negro só aparecia como agente humano do ponto de vista cultural ou econômico (força de trabalho e propriedade). Para não falar daquelas em que ele era elemento completamente ausente. Com a publicação do seu primeiro livro, Rebeliões da Senzala, em 1959, Clóvis constrói uma análise do apogeu e da queda do escravismo brasileiro na qual o negro é eminentemente um sujeito político. Na sua visão processual e dinâmica da sociedade, o teórico diz que a escravidão é constituída por uma dicotomia básica: senhor e escravo. Para afirmar-se em toda a sua amplitude e generalidade, o escravismo tinha que ter como fundamento a sujeição absoluta do negro. Assim, a partir do momento em que ele se rebela, torna-se força dinâmica e sujeito ativo do processo histórico. Torna-se a negação básica e universal da ordem social estabelecida, desgastando-a e abrindo possibilidade para a transformação políticas e econômicas. Assim, a luta negra por liberdade era o principal fator de dinamização da estrutura social e tinha como grande expressão o quilombo:

O dinamismo da sociedade brasileira, visto do ângulo de devir, teve a grande contribuição do quilombola, dos escravos que se marginalizavam do processo produtivo e se incorporavam às forças negativas do sistema. Desta forma, o escravo fugido ou ativamente rebelde desempenhava um papel que lhe escapava completamente, mas que funcionava como fator de dinamização da sociedade. As formas “extralegais” ou “patológicas” de comportamento do escravo, segundo a sociologia acadêmica, serviram para impulsionar a sociedade brasileira em direção a um estágio superior de organização do trabalho. O quilombola era o elemento que, como sujeito do próprio regime escravocrata, negava-o material e socialmente, solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava a estratificação social existente. Ao fazer isto, sem conscientização embora, criava as premissas para a projeção de um regime novo no qual o trabalho seria exercido pelo homem livre e que não era mais simples mercadoria, mas vendedor de uma: sua força de trabalho (MOURA, 1988MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 4ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988., p. 269).

Portanto, o antagonismo político não está nas altas esferas sociais internas (os efeitos desembaraçadores do liberalismo das elites) ou externas (a pressão internacional dos ingleses), mas sim na base da sociedade: o escravizado negro. É a sua luta por liberdade que encarna a contradição fundamental e que cria as premissas para a degeneração do sistema escravocrata. A interpretação desse desgaste em Clóvis é multifacetada. Para ele, as rebeliões negras desajustaram a ordem social em diferentes níveis: a. primeiramente, elas ampliavam as fissuras de resistência, servindo como correia de transmissão para mais atos de rebeldia e para a criação de um horizonte de liberdade fora da escravidão; b. ao afrontar o estabelecido, geravam sérios temores sobre os senhores, que adotavam medidas de repressão e, assim, escancaravam as assimetrias e impossibilidades sociais (acirrando o antagonismo); c. por fim, os atos de rebeldia oneravam os senhores, diminuindo as suas margens de lucro (eles eram obrigados a pagar capitães do mato, criar instituições de combate aos quilombolas, mobilizar recursos para perseguir fugitivos e a própria fuga do cativo significava perda do seu capital) (MOURA, 1988MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 4ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.).

Assim, para Clóvis, os atos rebelião negra e a luta por liberdade devem ser entendidos dentro do sentido global de transição da sociedade escravocrata para o trabalho livre. Eles pressionam historicamente nesta direção. Fazem a história acelerar numa direção mais democrática. Na estrutura do argumento, o grande catalizador desse fenômeno é o quilombo, que portava e intuía o devir social e histórico da liberdade - a passagem do escravo para o sujeito livre:

Essa interdependência dialética só poderá ser compreendida, insistimos, se tomarmos o quilombola não como termo morto ou negativo, mas como termo ativo e dinâmico. [...] A posição crítica (embora inconsciente, fazemos questão de insistir) do quilombola, por seu turno, ao onerar o trabalho escravo no seu conjunto e ao desinstitucionalizá-lo, mostrava, de um lado, as falhas intrínsecas do escravismo e, ao mesmo tempo, mostrava aos outros escravos a possibilidade de um tipo de organização na qual tal forma de trabalho não existia (MOURA, 1988MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 4ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988., p. 270).

Assim, da mesma forma que Clóvis traz a rebelião negra para o centro da sua concepção da escravidão, é ela um dos elementos que dinamiza o processo de abolição e abre as portas para a emergência da ordem do trabalho livre:

As revoltas dos escravos, como apresentamos neste livro, formaram um dos termos de antinomia dessa sociedade. Mas não formaram apenas um dos termos dessa antinomia: foram um dos seus elementos dinâmicos, porque contribuíram para solapar as bases econômicas desse tipo de sociedade. Criaram as premissas para que, no seu lugar, surgisse outro: Em termos diferentes: as lutas dos escravos, ao invés de consolidar, enfraqueceram aquele regime de trabalho, fato que, aliado a outros fatores, levou o mesmo a ser substituído pelo trabalho livre (MOURA, 1988MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 4ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988., p. 269).

Assim, é neste sentido de quilombo como práxis da liberdade criadora das premissas de um novo tempo histórico que se pode interpretar a intervenção política proposta pelo constitucionalismo haitiano no início do século XIX. Ao ter a abolição como princípio programático e uma série de cláusulas que visavam incidir - ainda que de maneira indireta - na geopolítica internacional da época, forjava-se um aparato jurídico a orientar a prática do Estado e dos seus agentes na direção do fim da escravidão, tanto no plano interno como diplomático. Um constitucionalismo quilombola, pois operava nas frestas, entre a ambiguidade e a opacidade, no desgaste astuto e sagaz do sistema escravista. Ademais, por meio da cidadania diaspórica, instrumentalizava concretamente aquilo que circulava no imaginário de pessoas negras mundo afora: há um lugar deste lado do Atlântico onde não há servidão e o negro é livre. A escravidão não é inquebrantável e o chamado do art. 44 da Constituição de 1816 positivava isso.

Neste sentido que o constitucionalismo haitiano dialoga com a concepção de quilombo desenvolvida por Beatriz Nascimento. Como argumenta Alex Ratts, entre 1970 e 1980, o quilombo emerge como uma questão para as ciências humanas. Rompendo com o pacto do silêncio ou a perspectiva que estudava a questão racial a partir da “questão negra/problema negro”, intelectuais negros começam a utilizar e difundir uma noção de quilombo em relação com os seus projetos políticos e acadêmicos, bem como com as dimensões pessoais e coletivas do ser negro no Brasil. Beatriz é a maior representante desse giro, abrindo um novo paradigma de pesquisa informado pelas premissas da generalidade da experiência quilombola no território brasileiro e da continuidade física e espacial dessas comunidades. Ademais, baseada nas experiências de territorialização quilombola includente de negros e outros setores subalternos, o quilombo é uma “terra-mãe imaginada”, isto é, “um território de liberdade, não apenas referente a uma fuga, mas uma busca de um tempo/espaço de paz”. Este território é habitado por um corpo negro plural que “constrói e qualifica outros espaços negros, de várias durações e extensões, nos quais seus integrantes se reconhecem” (RATTS, 2007RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Kuanza, 2007., p. 59).

Assim, o quilombo faz parte dos sistemas alternativos organizados pela população negra, como escolas de samba, favelas, terreiros, grupos de estudos, barracões e etc. Neste sentido, Beatriz pensa a historicidade do seu significado. Primeiro, uma instituição africana, de origem angola. Posteriormente, território político em contraponto à sociedade escravista na Colônia e no Império, formando brechas de liberdade. Mais recentemente, a partir do século XX, o quilombo dentro de uma ética nacional, corretiva da comunidade imaginada, perpassada por uma utopia de Brasil mais justo. Assim, a partir da década de 1970, os movimentos negros valeram-se da retórica do quilombo para afirmar outros valores e possibilitar uma outra narrativa sobre o passado, em reação contra o colonialismo cultural (RATTS, 2007RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Kuanza, 2007.; GOMES, 2011GOMES, Flávio dos Santos. De olho em Zumbi dos Palmares: histórias, símbolos e memória social. São Paulo: Claro Enigma, 2011.). O quilombo como expansão do imaginário sobre as noções de povo, resistência, território e liberdade. Assim, a variedade da ideia de quilombo ao longo do tempo expressa uma poética territorial baseada na redefinição da liberdade e da igualdade pela experiência da diáspora africana nas Américas.

Neste sentido fala Beatriz Nascimento:

Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento do negro e esperança para uma melhor sociedade. Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural. Tudo, de atitude à associação, seria quilombo, desde que buscasse maior valorização da herança negra.

(...) Durante sua trajetória o quilombo serve de símbolo que abrange conotações de resistência étnica e política. Como instituição guarda características singulares do seu modelo africano. Como prática política apregoa ideais de emancipação e cunho liberal que a qualquer momento de crise da nacionalidade brasileira corrige distorções impostas pelos poderes dominantes. O fascínio de heroicidade de um povo regularmente apresentado como dócil e subserviente reforça o caráter hodierno da comunidade negra que se volta para atitude crítica frente às desigualdades sociais a que está submetida (NASCIMENTO, 2007NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. IN: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Kuanza, 2007, p. 124-125., p. 124-125).

Neste sentido, o quilombo é uma história de reivindicação do ser no espaço e no tempo, expressão daquilo que se exige como de direito:

Quilombo é uma história. Essa palavra tem uma história. Também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época, o tempo. Sua relação com seu território.

É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível duma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direito ao território, à terra. Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação. E é isso que Palmares vem revelando nesse momento. Eu tenho direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema, dentro dessa nação, dentro desse nicho geográfico, dessa serra de Pernambuco.

A terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou (NASCIMENTO, 1989).

Assim, quando o constitucionalismo haitiano faz do princípio do solo livre esse direito de habitar e ser cidadão de um território para todas as potenciais vítimas do empreendimento colonial, ele transforma o princípio do quilombo, o direito ao espaço que ocupo na nação, em programa de Estado. E não é um mero direito abstrato a um lugar no planeta, mas um direito que nasce da negação da repartição territorial legada pela modernidade europeia ao afirmar uma outra partilha da terra e do possível. Por meio do vínculo entre solo, diáspora e cidadania, conjuga o ser com as noções ambivalentes e interdependentes do “onde estou” e “quando estou”, fundindo por meio do direito aquilo que o colonialismo e o racismo fraturaram. O solo não só como sentido de espaço, mas de tempo e, consequentemente, de movimento. Da mesma forma que no sentido quilombola apontado por Beatriz, o projeto constitucional haitiano corrige o relato histórico do constitucionalismo moderno. Primeiro, ao desvelar uma práxis constitucional silenciada, a qual procurou enfrentar e atacar justamente os vínculos entre constituição e escravidão na aurora da cultura jurídica moderna. Segundo, ao inserir decididamente pessoas negras na história da identidade constitucional, expande nossa imaginação ética, formulando outros valores, soluções e práticas para os problemas da liberdade e igualdade. A utopia e o devir haitiano, com suas criativas soluções constitucionais, legam resoluções e lições importantíssimas para a contemporaneidade, em que o globo é ameaçado pelos efeitos planetários e devastadores da plantation, pela universalização da concepção senhorial de propriedade absoluta, pela deslocamento forçado de milhões de pessoas na condição de refugiados e pela sonegação do futuro nas mais diversas formas, seja pelos arautos do fim da história, seja pela imposição do pensamento único do capital, seja pelo fatalismo moral que nos acomete quando vivemos numa realidade em que as desgraças ocorrem de minuto em minuto.

Os inspirados, inovadores e disruptivos arranjos constitucionais haitianos nos levam à formulação do quilombo elaborada por Abdias Nascimento. No livro O quilombismo (2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.), Abdias dialoga com a experiência e a tradição de pensamento dos quilombos no Brasil para delas extrair e afirmar uma agenda política e institucional propositiva de reorganização do estado e da sociedade. Na sua acepção, os quilombos foram e são uma resistência sistemática física e cultural que integram a prática da liberdade e o controle da própria história. A autodeterminação nos seus âmbitos materiais e simbólicos. Trata-se de uma práxis afro-brasileira e afro-americana de afirmação humana de larga amplitude. Ao longo da experiência negra no Brasil, foi fator de mobilização disciplina e modelo de organização dinâmica, território de afirmação da consciência e da liberdade segundo elementos afrodiaspóricos, no sentido dado por Beatriz Nascimento. Em uma difusão consistente da resistência, o quilombo representa também a torsão imposta pelo negro, isto é, “a apropriação dos mecanismos que a sociedade dominante concedeu ao seu protagonismo com a maliciosa intenção de controlá-lo”. Assim, “nessa reversão do alvo, o negro se utiliza dos propósitos não confessados de domesticação qual bumerangue ofensivo” (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019., p. 283). Esse bumerangue ofensivo pode estar nas táticas de esconderijo e opacidade da luta na sociedade de plantation, como argumenta Nohora Arrieta Fernández (2021FERNÁNDEZ, Nohora Arrieta. Poéticas Amargas: Estéticas y Políticas de la Plantación de Azúcar en Brasil y el Caribe. Tese de Doutorado na Georgetown University, 2021.). Que se reflete e está na dobra de elementos da cultura hegemônica a seu favor, nos usos da linguagem por meio de um palavreado recheado de ironias, tirações, ambiguidades e ziguezagues - um estilo discursivo quilombola.

Esse estilo pode ser rastreado na própria tradição revolucionária haitiana. Com a sua ascensão à principal liderança da insurgência em São Domingos, Toussaint logo ganhou a alcunha de Louverture, isto é, a abertura, aquele que abre caminhos. O epiteto pode ter sido dado pelos oficiais franceses para descrever sua capacidade de se apropriar de posições inimigas, além de apontar o seu talento diplomático e conciliatório. Louverture expressava a capacidade de construir vias, desbravar veredas e abrir caminhos em direção à conquista dos seus objetivos. Por outro lado, Louverture significava a aspiração de outro futuro. A abertura como porta de entrada para o amanhã, como ponto de partida. Neste sentido, Louverture estaria associada a Papa Legba, loá do vodu haitiano, que ocupa o mesmo lugar de Exu nas religiões de matriz africana no Brasil. Legba é o agente da comunicação, portador da palavra, intermediário entre os planos espiritual e material. É também o senhor das encruzilhadas, capaz de abrir os portões do destino (HAZAREESINGH, 2020HAZAREESINGH, Sudhir. Black Spartacus: The Epic Life of Toussaint Louverture. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2020.). A estratégia de Toussaint seria uma estratégia exuniana, tática de linguagem política pautada pela ambiguidade e troça, de jogar com as convicções dos seus oponentes para ludibriá-los. A tiração de onda guerreira. Aparentava ser o que não era, caminhando e conectando diferentes mundos - africano, antilhano e europeu; o dos escravizados e dos livres. Louverture conseguia criar, trazer e circular mensagens, fazendo da palavra mecanismo de mobilização, ação, existência e resistência - costura das possibilidades de destruição do colonialismo. Toussaint seria o mestre de cerimônias do rito revolucionário, assim como Legba era do vodu, quando sua figura era evocada com o seguinte canto no início dos rituais da religião: “Papa Legba, ouvri barriè pour moins! [Papa Legba, abra o portão para mim!]” (HAZAREESINGH, 2020, p. 43).

Voltando a Abdias, ele argumenta que, perante um estado anti-negro existente desde a colônia, o quilombismo surge como um conceito científico histórico-social que critica e rejeita o universalismo cínico proposto pelo eurocentrismo. É um instrumento conceitual descritivo e operativo, isto é, trata-se de um modelo de análise dos fenômenos sociais ao mesmo tempo em que propõe princípios políticos. Sua episteme origina-se do ser um humano como sujeito e objeto científico, revertendo a razão moderna que teve o branco como sujeito e o negro o seu objeto. Segundo Abdias, a ética quilombista está nucleada num anticapitalismo que se reinventa na direção para o futuro. Tem como base o comunitarismo, o igualitarismo econômico, a solidariedade, a convivência e a comunhão existencial originadas da propriedade coletiva da terra (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.).

Dessas formulações, Abdias articula uma agenda institucional e normativa concreta, a qual ele divide em Propostas de Ação para o Governo Brasileiro e Alguns Princípios e Propósitos do Quilombismo. A primeira, apresentada em 1977, no Colóquio do Segundo Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac) realizado em Lagos, Nigéria, em 1977, expõe e organiza uma série de medidas que representam o acúmulo do movimento negro até aquele momento. A articulação de Abdias é fundamental tendo em vista que boa parte das proposições ali elencadas conformaram a agenda do movimento negro pós-redemocratização nas últimas décadas. Nas propostas, podemos ver a necessidade de realização de pesquisas e debate público sobre racismo no Brasil, com a inclusão da raça nos censos; o ensino de história da África e da diáspora; a adoção de medidas compensatórias e afirmativas, bem como reparatórias, fundamentalmente vinculadas à propriedade e ao território (como distribuição de terras e reforma agrária); a construção de museus e realização de exposições sobre arte afro-brasileira; a criminalização do racismo; a garantia de igualdade de oportunidades e salários para negros e brancos no mercado de trabalho; redistribuição de renda; ações afirmativas para o Instituto Rio Branco, para oficiais superiores nas Forças Armadas e para os altos escalões do Governo Federal; medidas de inclusão nos órgãos representativos (Senado, Câmara e assembleias estaduais e municipais) e no poder judiciário; e desenvolvimento de uma política diplomática Sul-Sul, especialmente com a África (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.). Entre erros, acertos, utopias e desenganos, aí estão as bases institucionais e as orientações normativas sobre as quais a população negra pressionou e construiu o estado brasileiro pós-Constituição de 1988, representando um dos maiores esforços civilizatórios e democratizantes da história do país (DUARTE e QUEIROZ, 2019________. Nota do editor. IN: BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e Relações Raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019, p. 187-188., p. 187-188).

Já em Alguns Princípios e Propósitos do Quilombismo, Abdias formula objetivos de reorganização do estado-nação inspirado na República de Palmares. O ponto de partida é o igualitarismo democrático fundado numa economia comunitária e cooperativa. A terra é propriedade nacional de uso coletivo e o trabalho é um direito, mas também uma obrigação social. Os trabalhadores, “que criam a riqueza agrícola e industrial da sociedade quilombista, são os únicos donos do produto do seu trabalho”. Entre os seus princípios, estão os direitos da criança e do adolescente como possibilidade do amanhã; o incentivo institucional à criatividade e às realizações dos povos avassalados pelo colonialismo; a realização de políticas democráticas de gênero; a centralidade da questão ambiental; e a crença na possibilidade de transformação das relações de produção e da sociedade de modo geral por meios não violentos e democráticos (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019., p. 305).

Portanto, o quilombo de Abdias Nascimento revela também uma preocupação basilar sobre o que fazer e o como fazer. O quilombo é a organização concreta, expressa, direta e objetiva de uma nova normatividade e institucionalidade. A ausência do medo de operar o arsenal jurídico para criar condições e oportunidades alternativas de organização da vida individual e coletiva. Transformar utopias em práxis resolutiva. A pragmática do sonho revolucionário. Pois é neste sentido que os haitianos se valeram do léxico e do arcabouço constitucional para construir sua organização política soberana depois da mais universal das revoluções (NESBITT, 2008NESBITT, Nick. Universal Emancipation: The Haitian Revolution and the Radical Enlightenment. Charlottesville: University of Virginia Press, 2008.; QUEIROZ, 2020QUEIROZ, Marcos. A mais universal das Revoluções. Jacobin, 14/08/2020. Disponível em: https://jacobin.com.br/2020/08/a-mais-universal-das-revolucoes/ (acesso em 05/08/2022)
https://jacobin.com.br/2020/08/a-mais-un...
). As perguntas eram infinitas e muitas vezes insondáveis: como construir uma nação depois de uma terrível guerra e diante de um território fraturado socialmente? Como viabilizar os princípios de igualdade racial e abolicionismo transnacional quando o mundo inteiro ainda é ferrenhamente escravista? Como produzir e trazer bem comum numa geopolítica do capital que reserva às Antilhas o lugar por excelência da sociedade de plantation? Como conjugar o princípio da liberdade em uma sociedade que vive permanentemente sob a ameaça de invasão estrangeira e recolonização, as quais podem ser feitas por meio de tratados de reconhecimento diplomático ou pela pura e simples ocupação?

Também com erros e acertos, avanços e contradições, o constitucionalismo haitiano tentou responder a essas questões, especialmente diante da situação de crise estrutural e constante sob a qual vive o negro no planeta. Esta crise, que no limite é a própria negação ôntica do negro como sujeito de direitos, é o que paira por trás da poética constitucional haitiana. Neste sentido, o arranjo normativo se aproxima do quilombo de Abdias em diferentes níveis, seja em se valer do negro como significante universal de onde se constrói o sentido de humano, de cidadão e da lógica política; seja também nas preocupações e extremas contradições sobre o lugar do trabalho. Tanto para Abdias como para os constitucionalistas haitianos, o trabalho é um direito universal, mas com um extremo senso de responsabilidade estrutural. No caso específico do estado do Haiti, ele chegará formalmente a ser compulsório, diante da dívida imposta pela França em 1825. O modelo de trabalho do Código Rural era o lado oculto da diplomacia imperialista (PEREIRA, 2020PEREIRA, Paulo Fernando Soares. Os quilombos e a nação: inclusão constitucional, políticas públicas e antirracismo patrimonial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.). Por outro lado, o trabalho coletivo e responsável, organizado em torno do lakou, da herança da maronage e das reinvenções práticas da África no Caribe, será a base da vibrante e massiva sociedade rural haitiana, aquilo que Jean Casimir chamou de povo soberano, que foi capaz de restaurar o território devastado pela plantation e pela guerra e garantir a soberania alimentar no pós-revolução (CASIMIR, 2020CASIMIR, Jean. The Haitians: A Decolonial History. EUA: The University of North Carolina Press, 2020.; SHELLER, 2006SHELLER, Mimi. Democracy After Slavery: Black Publics and Peasant Radicalism in Haiti and Jamaica. Florida, EUA: University Press of Florida, 2006.; GONZALEZ, 2019GONZALEZ, Jhonhenry. Maroon Nation: A History of Revolutionary Haiti. EUA: Yale University Press, 2019.).

Portanto, os sentidos de práxis rebelde, território de liberdade e institucionalidade afro-diaspórica permitem aproximar e reler a experiência constitucional haitiana por meio das lentes do quilombo. Quilombo que se aproxima dos palenques, territórios de liberdade construídos por negros na Colômbia. Como argumenta Carlos Valderrama Rentería, há uma longa tradição do pensamento afro-colombiano que enfatiza a construção do território na sua dimensão simbólica, “a partir da sua construção social e cultural, isto é, dos significados e sentidos atribuídos a ele” (RENTERÍA, 2018RENTERÍA, Carlos Alberto Valderrama. El arte literario y la construcción oral del território: pensamiento crítico afrocolombiano. Revista Colombiana de Antropologia, v. 54, n. 2, 2018, p. 96., p. 96). Diante de um estado que sempre excluiu, negou e violentou a população negra, essa construção simbólica muitas vezes se deu por meio da tradição oral:

(...) repertórios orais, tais como mitos lendas, adivinhações, contos, relatos, histórias e cantos, cujo conteúdo conseguiu preservar características gerais e descontinuidades de uma memória histórica, social e cultural de acontecimentos históricos que contribuíram aos processos de formação comunitários e identitários das comunidades negras (RENTERÍA, 2018RENTERÍA, Carlos Alberto Valderrama. El arte literario y la construcción oral del território: pensamiento crítico afrocolombiano. Revista Colombiana de Antropologia, v. 54, n. 2, 2018, p. 96.).

Assim, o território surge como um espaço produtor de linguagem e também como experiência que é construída por meio da linguagem. A partir da acepção de Rogerio Velásquez, Rentería chama de palenque literário, um espaço público subalterno, um contrapúblico, em que “homens e mulheres afrocolombianos se encontram e relacionam para contar e cantar o recorrido, o gozado e o sofrido, ao mesmo tempo que os inventam” (RENTERÍA, 2018RENTERÍA, Carlos Alberto Valderrama. El arte literario y la construcción oral del território: pensamiento crítico afrocolombiano. Revista Colombiana de Antropologia, v. 54, n. 2, 2018, p. 96., p. 105-106). No mesmo sentido, Alfredo Vanín argumenta que, após a desescravização, a diáspora interna se desenvolveu seguindo rios, mares e selvas, os quais foram construídos e imaginados como espaços de liberdade (VANÍN, 2017VANÍN, Alfredo. Las culturas fluviales del encantamiento. Memórias y presencias del Pacífico colombiano. Colômbia: Universidad del Cauca Sello Editorial, 2017.). Tanto Vanín como Velásquez dizem que essa experiência forjou um sentido mítico-poético do território, fundado numa postura relacional, isto é, “uma construção do território definido pelas interações simbólicas do físico, do humano, do ambiental e do espiritual” (RENTERÍA, 2018, p. 106). A terra, portanto, é uma comunidade de fala e de pensamento.

Neste sentido, mergulhado na tradição do pensamento negro do Pacífico colombiano, Alfredo Vanín expõe a articulação entre território, linguagem e tempo:

O território mítico-poético pertence ao mundo simbólico. Porque não basta habitar e povoar um território: há que seguir criando-o e essa é a tarefa da imaginação poética.

Todas as culturas têm estabelecido seus mundos hiperbóreos, seus mundos encantados e sobrepostos, e também os não-plus-ultra. Mundos onde vivem espíritos, visões, que são outras realidades. A água é a água, mas esconde segredos; a selva não somente está cheia de árvores, guarda mais seres do que se crê, nos dizem os mitos.

Os territórios simbólicos engrandecem os territórios da realidade imediata., os preenchem de força, de identidades novas, de revelações insuspeitáveis. Acontecem no não-tempo, mas são a sua vez alimentados pelo passado e pelo presente. Um historicismo a secas semearia aos homens e às mulheres no passado; um sociologismo simples, no presente. A imaginação poética nos transfere mais além do tempo. No Pacífico, se vive o eterno presente, uma viagem cíclica do acontecer, como as migrações por cidades e rios.

Narradores, decimeiros, versadores orais, músicos de tambor e marimba, e poetas e novelistas da literatura escrita, têm ajudado a criar esse universo feito de muitos mundos, de tempos convergentes, e nos têm ensinado que a profundidade da história repousa na palavra decantada que se renova sempre (VANÍN, 2017VANÍN, Alfredo. Las culturas fluviales del encantamiento. Memórias y presencias del Pacífico colombiano. Colômbia: Universidad del Cauca Sello Editorial, 2017., p. 46).

Ao refletir sobre a permanência da décima entre os povos negros do Pacífico colombiano,7 7 Pela beleza do trecho, segue por inteiro: “Me perguntei, faz muitos anos, seguindo a inquietude de alguns investigadores: por que a décima glosada, tão difícil, permaneceu nessas terras. E a resposta me chegou anos depois: porque é circular como as viagens pelo mesmo rio, ou de um rio a outro: desde o rio nutritivo até o outro lado da cordilheira, inclusive até outro país. Mas viagens em busca de vida, e não viagens por ociosidade, a viagem por viajar, como criticava o padre Bernardo Merizalde no seu famoso livro, senão porque o meio natural, exuberante mas ecologicamente frágil, exigia migrar sempre para não retirar frutos somente de uma parte e também para estender famílias. Mas sempre existia a possibilidade de retorno. Ainda nas odisséias dos clandestinos de barcos mercantes, dos Ulises negros que criaram a epopeia do guerreiro urbano, hoje caído no esquecimento com novas expressões e modos de ocupar lugares com a chegada do narcotráfico. Então, entendi muito claro que entre tantas tarefas que assumiu a décima, uma delas era didática; outra era de semear o território na palavra e jogar com os limites geográficos próprios em contraposição aos impostos pela geografia colonial. E eu soube subindo um dia ao Patía, porque pude nomear alguns povos, ao acordar-me de um fragmento de uma décima de José Anilo Sinisterra: Por Tamaje iba glosando/por Gallinazo iba serio/por Pirí argumentando/en la isla e` Playa´el Medio” (VANÍN, 2017, p. 46-47). Vanín argumenta que a palavra semeia o território e “joga com limites geográficos próprios em contraposição ao imposto pela geografia colonial”. A linguagem expande o território para além da realidade cotidiana, “excede países e continentes, faz universal o decimeiro desconhecido que talvez nunca deixou suas habitações ribeirinhas ou marítimas, mas teve a capacidade de imaginar o planeta, embarcado numa concha frágil de molusco”.8 8 A décima citada é: “Yo me embarqué a navegar/en una concha de almeja/a rodiar el mundo entero/a ver si hallaba coteja” (VANÍN, 2017, p. 47).

O território poeticamente construído é memória coletiva, estilo de vida e filosofia. Aponta que a ética-estética da modernidade negra não é apenas um discurso alternativo naquilo que entendemos como conteúdo, mas também nos modos, formas e estilos de expressão. Essa poética funde aquilo que o eurocentrismo supostamente separou - cultura e política, arte e justiça. É essa poética que podemos encontrar na experiência constituinte e constitucional haitiana. Experiência que tem como memória do ponto inaugural não a redação e assinatura de textos escritos em salões fechados, mas a cerimônia vodu festiva e religiosa de Bois Caïman. Liderada por sacerdote Boukman e pela mambo (sacerdotista) Cécile Fatiman, ali se definiram as estratégias iniciais do levante de escravizados e se estabeleceu um compromisso comunitário entre vivos, mortos e espíritos (SHILLIAM, 2017SHILLIAM, Robbie. Race and Revolution at Bwa Kayiman. Millennium: Journal of International Studies, 45(3), 2017, p. 269-292.). Uma Revolução que inicia ao som de tambores e com danças espiralares, na floresta onde os olhos da Casa-Grande jamais chegam e as entidades se achegam, num território que sobrepõe o plano carnal e o imaterial e que legou uma declaração ética transmitida oralmente para as gerações seguintes:

O deus que criou o sol que nos dá a luz, que levanta as ondas e governa as tempestades, embora escondido nas nuvens, observa-nos. Ele vê tudo que o branco vê. O deus do branco o inspira ao crime, mas o nosso deus nos pede para realizarmos boas obras. O nosso deus, que é bom para conosco, ordena-nos que nos vinguemos das afrontas sofridas por nós. Ele dirigirá nossos braços e nos ajudará. Deitai fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar, e escutai a voz da liberdade, que fala para os corações de todos nós (JAMES, 2007JAMES, C. L. R. James. Os jacobinos negros - Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007., p. 93).

Como argumenta Robbie Shilliam, a cerimônia de Bois Caïman tensiona tropos hegemônicos na interpretação da Revolução Haitiana. O eurocêntrico, isto é, que ela foi uma simples consequência da Revolução Francesa. O crioulo, que afirma que ela foi uma Revolução a partir do zero. E o retido, sendo um processo de retenção das culturas circuladas pelo Atlântico. Por outro lado, aponta que a Revolução deve ser lida diante do alto percentual de africanos que viviam em São Domingos em 1791 (50% dos 500.00 escravizados), a maioria proveniente do Congo. Essa africanidade estava não somente nas nações e maroons espalhados pelo território da colônia, mas também em lideranças do processo, como Toussaint e Dessalines (SHILLIAM, 2017SHILLIAM, Robbie. Race and Revolution at Bwa Kayiman. Millennium: Journal of International Studies, 45(3), 2017, p. 269-292.).

Neste sentido, a cerimônia vodu, que inaugura a Revolução, pode ser entendida como a busca por justiça numa episteme em que o conhecimento prático e a agência política são sentidas e obtidas através dos loás (DUARTE, 2011DUARTE, Evandro Piza. Do medo da diferença à igualdade como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensino superior e os procedimentos de identificação de seus beneficiários. Tese de Doutorado na UnB, Brasília, 2011.; SHILLIAM, 2017SHILLIAM, Robbie. Race and Revolution at Bwa Kayiman. Millennium: Journal of International Studies, 45(3), 2017, p. 269-292.). O terreiro como poder constituinte, em que o sujeito constitucional não é o eu da filosofia ocidental (soberano e que nasce a partir de um encontro fora de si mesmo), mas sim uma articulação da consciência que sugere que o “eu” é espiritualmente e comunalmente distribuído. Consciência que se expressa por meio de um loá particular, isto é, o “fazer a cabeça” é um eu que se manifesta mediado por um espírito, geralmente herdado familiarmente e que é fixado em algum ponto da vida adulta. A possessão - montagem do loá sobre o corpo como um cavaleiro monta num cavalo - significa que, neste momento, resta apenas os aspectos físicos e objetivos do corpo, enquanto a consciência do “cavalo” é substituída pela do loá “chefe da cabeça”. Fora dos padrões explicativos da ciência colonial, o loá opera como uma manifestação real no “mundo humano”, canalizando forças cósmicas. Assim, o poder constituinte manifestado em Bois Caïman é atravessado por um conhecimento e inspiração mediados pelos loás, fazendo com que as pessoas despertassem do torpor zumbificante da escravidão e se preparassem para a guerra da liberdade. Portanto, argumenta Shilliam, no terreiro da cerimônia vodu, a comunidade foi re-santificada, ganhando força cósmica e direção na sua busca por justiça por meio da mediação dos loás, os quais canalizaram forças do mundo espiritual para ultrapassar e exceder o controle dos senhores. Portanto, não foram escravizados que se reuniram na floresta, mas sim os chefes da rebelião e seus loás, movidos pelas armas e pela luta por autodeterminação (SHILLIAM, 2017).

Assim, os tambores de Bois Caïman abrem um ponto, que cria linguagem-realidade por meio do batuque. Este ponto visa guerrear e conquistar o sistema genocida da plantation, que não era só uma realidade material, mas também um mal uso da ciência espiritual pelos brancos escravocratas. A justiça necessariamente deveria ser feita por meio de poderes manipulativos, com o esquentamento de objetos pelo fogo e o sacrifício de um porco negro para Ezili Kawoulo, a loá das sociedades secretas, protetora do povo e vingadora implacável daqueles que renegam a universalidade humana. Como Iansã, Ezili é o espírito das tempestades, raios e trovões e anuncia o julgamento dos escravocratas. O ponto aberto em 1791 não teria sido fechado, sendo disputado nas mais diversas etapas da construção nacional, como na escolha das cores da bandeira, nas versões da Declaração de Independência e nas constituições.9 9 Segundo Robbie Shilliam, as cores azul e vermelha, para além da ideia da utilização da base da bandeira francesa, são as cores da família do loá Ogum. Ogum é um ferreiro e combina os elementos do frio e do calor, da conciliação e da conquista. Junto com o loá Ayizan, loá protetor de Dessalines, eles estariam associados à perseguição da justiça e, eventualmente, a reconciliação numa nova ordem. Dessa forma, o azul e vermelho representariam posições mais absenteístas e conciliatórias em torno do marco da independência, como aquelas atreladas às lideranças que buscaram negociar com os franceses. Já as cores negras e vermelhas, posteriormente escolhidas pelo próprio Dessalines para a bandeira, demarcaria o princípio índigena e negro no início do Haiti e do seu marco legal-institucional, numa rearticulação das alianças dos povos colonizados contra o colonialismo. Assim, a bandeira vermelha e preta estava diretamente associada às práticas de resistência anticolonial da população indígena ciampula, que haviam sido incorporadas pela religião vodu, e às sociedades secretas. Eram cores que indicavam alguém mais conquistador do que conciliador, implicando muitas vezes uma concentração de poderes. É dentro desse contexto que Shilliam procura perceber a Constituição de 1805 como um documento de mediação, vinculação e ligação, pois tenta vincular e limitar os poderes de Dessalines estabelecendo um espaço de vivência comum (negro e indígena) para as massas, ao mesmo tempo que remove desse espaço o imperador e seus generais (SHILLIAM, 2017). Para mais sobre as relações entre as cores da bandeira e o vodu, veja: DELICES, 2016.

Portanto, Bois Caïman é poder constituinte manifestado numa construção mítico-poética do território. Da mesma forma pode ser interpretada a Declaração de Independência, com a sua oralidade; o diálogo e a responsabilidade perante os mortos; a manifestação feroz do ímpeto por justiça; a rejeição absoluta do legado colonial, em seu plano material e imaterial; o estilo sensorial e perceptivo na descrição e visualização da passagem do tempo da escravidão para a liberdade; e na concepção de que a nação soberana seria erguida sobre tumbas dos seus ancestrais, os quais vigiariam e guiariam os rumos da autodeterminação individual e coletiva. Essa construção simbólica do território também está na poética constitucional que faz do Haiti lar de todos os condenados da terra. O constitucionalismo haitiano, por meio da humanidade negra, do solo livre e da cidadania diaspórica, jogou com limites geográficos próprios e, na acepção de Vanín, rompeu com a cartografia colonial por trás das categorias de ius soli e ius sanguinis. No mesmo sentido, borrou as fronteiras imperiais estabelecidas pelo nó entre estado, região e raça. Solo livre e cidadania diaspórica expandiram o território haitiano, fazendo dos conceitos jurídicos formas poéticas. Como o decimeiro, forjaram uma poesia constitucional como o canto daquele que embarca numa concha frágil e dela vê, vive, imagina e ama o planeta.

Conclusão - samba e a poética constitucional haitiana

Tout Moun Se Moun: Pa gen Moun pase Moun 10 10 Do crioulo haitiano: “Todo mundo é humano: ninguém é mais importante que o outro”. Princípio de Princípio de Bois Caïman (CERIN, 2022).

O nosso samba pode iluminar os significados constituintes de Bois Caïman (e o tanto de corpo e ritmo que faltam a todas as teorias discursivas do direito). Muniz Sodré (1998SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.) argumenta que o “ritmo é a organização do tempo do som, aliás uma forma temporal sintética, que resulta da arte de combinar as durações (o tempo capturado segundo convenções determinadas”. No caso da música africana e da diáspora negra, o ritmo demarca um tempo homogêneo (a temporalidade cósmica ou mítica), que se volta continuamente sobre si mesmo, “onde todo fim é o recomeço cíclico de uma situação”. O ritmo sincopado expressa nos toques e efeitos sobre o corpo a demarcação espiralar do tempo. A repetição relacional sempre em nível diverso, plural, outro. Neste sentido, por meio da figura de Exu, Sodré explicita a relação entre linguagem, tempo e ritmo no samba:

Dentro da dimensão de sentido gerada pelo samba tradicional, é imprescindível a presença física do corpo humano. No sistema nagô, o som equivale ao terceiro termo de um processo desencadeado sempre por pares de elementos genitores - seja a mão batendo no atabaque, seja o ar repercutindo nas cordas vocais. E o som da voz humana, a palavra, explica Juana Elbein dos Santos, é conduzida por Exu, um princípio dinâmico do sistema, ‘nascido da interação dos genitores masculinos e femininos’. Por sua vez, o axé, que confere significação aos elementos do sistema, se deixa conduzir pelas palavras e pelo som ritualizado. Junto com as palavras, junto com o som, deve dar-se a presença concreta de um corpo humano, capaz de falar e ouvir, dar e receber, num movimento sempre reversível (SODRÉ, 1998SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998., p. 67).

Assim como no samba - com suas rodas, terreiros, barracões e giras -, a cerimônia, o sentido espiritual-revolucionário e o imaginário coletivo construídos em torno de Bois Caïman apontam para a fundação e construção da comunidade política por meio da música, do ritmo, do ressoar que sai de cada batida da mão no couro dos tambores, na marcação com os pés em forma de dança e culto, no baile, na espiralar de corpos indo e vindo, vindo e indo, na linguagem sonora, nos rituais de encantada e inebriante alegria, em que o riso, o palavreado e o cantar irrompem mesmo diante da mais adversa das circunstâncias. Um poder constituinte que funda a comunidade em outro tempo, em outra ética, muito diferente dos pressupostos morais que embasam a acepção contratualista do constitucionalismo moderno, como os delírios de autoconservação narcísica, do interesse individual, do cálculo econômico e, no limite, da necessidade pragmática de transformar seres humanos em mortos-vivos.11 11 Para uma crítica à ética contratualista moderna, veja: QUEIROZ, 2022.

Como visto, essa ética-estética afrodiaspórica pode ser encontrada na poética constitucional haitiana. Por meio da linguagem jurídica, essa poética interviu na criação e nos sentidos dos direitos humanos diante de um contexto no qual a escravidão, o colonialismo e o racismo eram a norma. Assim, o constitucionalismo haitiano não só fornece uma crítica às narrativas dominantes sobre a “invenção” desses direitos, como aponta também para uma tradição moral silenciada e sonegada, construída pela experiência da população negra nas Américas e no Caribe. No artigo, ao retomar e teorizar essa história, foram desvelados outros conteúdos para os direitos de liberdade, igualdade, propriedade, cidadania e nacionalidade, os quais ressoam e apontam soluções para os dilemas e contradições do tempo presente. Além disso, ao fazer do signo “negro” símbolo concomitante dos significados de habitante, cidadão e humanidade, este constitucionalismo reverte o “devir negro” do mundo pelo devir haitiano. Um devir que reformula a noção de “humano”, estando nela tanto os sonhos de liberdade afogados em rios de sangue, como o passado, o presente e o futuro das lutas por autodeterminação travadas em cada canto do planeta.

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  • VANÍN, Alfredo. Las culturas fluviales del encantamiento. Memórias y presencias del Pacífico colombiano. Colômbia: Universidad del Cauca Sello Editorial, 2017.
  • 1
    Este artigo é fruto das investigações de doutorado e a primeira exposição de algumas das ideias que são articuladas na minha tese (QUEIROZ, 2022________. O Haiti é Aqui: ensaio sobre formação social e cultura jurídica latino-americana (Brasil, Colômbia e Haiti, século XIX). Tese de Doutorado em Direito na Universidade de Brasília, 2022.). Agradeço à CAPES pela oportunidade de conduzir parte da pesquisa na Universidad Nacional de Colombia, no ano de 2018, como doutorando sanduíche, por meio do Programa Abdias Nascimento. Da mesma forma, agradeço à Fulbright pela bolsa de pesquisador visitante na Duke University, no ano de 2021, período de investigação necessário para que este artigo ganhasse forma.
  • 2
    Este sistema sobreviveu hegemônico no país até a ocupação dos Estados Unidos, em 1915, quando o império da plantação seria restaurado (CASIMIR, 2020CASIMIR, Jean. The Haitians: A Decolonial History. EUA: The University of North Carolina Press, 2020.; TROUILLOT, 1990TROUILLOT, Michel-Rolph. Haiti: State Against Nation: The Origins and Legacy of Duvalierism. Nova York: Monthly Review Press, 1990.).
  • 3
    A noção de cidadania diaspórica é fruto das discussões e leituras desenvolvidas nas disciplinas “A Dialética do Senhor e do Escravo em Hegel: Uma releitura da Teoria do Reconhecimento a partir da obra de Susan Buck-Morss ‘Hegel, Haiti e a História Universal’”, ofertada pelos professores Menelick de Carvalho Netto e Evandro Piza, no primeiro semestre de 2015; e “Cultura Jurídica, Branquidade e Memória”, ofertada por Evandro Piza, no segundo semestre de 2015. Ademais, ao longo do ano de 2017, junto com o amigo João Victor Nery Fiocchi Rodrigues, realizamos um grupo de estudos sobre Revolução Haitiana e constitucionalismo, onde o termo foi melhor delimitado. Naquele mesmo ano, eu, Evandro e João escrevemos um esboço de artigo chamado Constituições Haitianas Pós-Revolucionárias, Antirracismo e a Reformulação da Cidadania, para ser apresentado na 13 ª Conferência da European Sociological Association, em Atenas, onde o conceito foi pela primeira vez articulado em texto. No ano seguinte, João trabalhou o termo na sua dissertação sobre constitucionalismo e as lutas por direitos dos mapuches no Chile. Duarte, Queiroz e Rodrigues (no prelo); Rodrigues, 2018________. Caribe, corazón de la modernidad. Cultura Latinoamericana, 28(2), 234-250, 2018;.
  • 4
    Como a hipocrisia, safadeza e cara de pau dos europeus não encontravam limites, esse artigo seria atacado no plano internacional. Nas negociações de reconhecimento diplomático, os franceses pediriam a revogação de tal dispositivo, pois ele estabelecia uma “distinção de cor contra a qual a filantropia estava lutando para destruir há mais de meio século” (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66., p. 46). Haja óleo de peroba. E quando Petión utilizou a Constituição de 1816 para garantir a naturalização, liberdade e cidadania de 07 negros fugidos da Jamaica, escravagistas britânicos diziam que o texto constitucional haitiano representava uma ameaça para o comércio marítimo e para a ordem internacional.
  • 5
    Neste sentido e sobre os usos do constitucionalismo haitiano para intervir na realidade do Atlântico, narra Ada Ferrer: “Ouvindo notícias trazidas por marinheiros negros estadunidenses em Porto Príncipe de que o governo dos Estados Unidos estava considerado em remover forçadamente negros livres para a África, Petión procurou inserir o Haiti nos cálculos de saída e remoção feitos nos Estados Unidos. Por meio do seu secretário-geral, Joseph Balthazar Inginac, ele convidou estadunidenses negros a emigrar para o Haiti como uma forma de resistir à exclusão e ao abuso que eles enfrentavam nos Estados Unidos: ‘Abre-lhes os olhos a Constituição da nossa República, e vejam no seu artigo 44º uma mão fraterna aberta às suas angústias. Visto que hoje lhes é recusado o título de Membros da União Americana, que venham entre nós, em um país firmemente organizado, e gozem dos direitos de Cidadãos do Hayti, de felicidade e paz: enfim, que venham e mostrem aos homens brancos que ainda existem homens de cor e negros que podem levantar um front destemido, protegido do insulto e da injúria’” (FERRER, 2012FERRER, Ada. Haiti, Free Soil, and Antislavery in the Revolutionary Atlantic. The American Historical Review, vol. 117(1), 2012, p. 40-66., p. 58, grifos nossos).
  • 6
    A partir da perspectiva do colonizado, a poética fanoniana permite pensar como o colonizado estabelece vínculos entre território e moral, entre o material-concreto e os valores do bem comum, entre o princípio fundamental do direito a habitar à terra e a liberdade e igualdades coletivas: “Para o povo colonizado, o valor mais essencial, porque mais concreto, é primeiro a terra: a terra que deve garantir o pão e, é claro, a dignidade. Mas essa dignidade não tem nada a ver com a dignidade da ‘pessoa humana’. Dessa pessoa humana ideal, ele nunca ouviu falar. O que o colonizado viu no seu solo é que se podia impunemente prendê-lo, espanca-lo, esfomeá-lo; e nunca nenhum professor de moral, nunca nenhum padre veio receber as pancadas em seu lugar nem dividir seu pão com ele. Para o colonizado, ser moralista é, muito concretamente, calar a arrogância do colono, quebrar a sua violência ostensiva, em uma palavra, expulsá-lo simplesmente da paisagem” (FANON, 2005FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005., p. 61).
  • 7
    Pela beleza do trecho, segue por inteiro: “Me perguntei, faz muitos anos, seguindo a inquietude de alguns investigadores: por que a décima glosada, tão difícil, permaneceu nessas terras. E a resposta me chegou anos depois: porque é circular como as viagens pelo mesmo rio, ou de um rio a outro: desde o rio nutritivo até o outro lado da cordilheira, inclusive até outro país. Mas viagens em busca de vida, e não viagens por ociosidade, a viagem por viajar, como criticava o padre Bernardo Merizalde no seu famoso livro, senão porque o meio natural, exuberante mas ecologicamente frágil, exigia migrar sempre para não retirar frutos somente de uma parte e também para estender famílias. Mas sempre existia a possibilidade de retorno. Ainda nas odisséias dos clandestinos de barcos mercantes, dos Ulises negros que criaram a epopeia do guerreiro urbano, hoje caído no esquecimento com novas expressões e modos de ocupar lugares com a chegada do narcotráfico. Então, entendi muito claro que entre tantas tarefas que assumiu a décima, uma delas era didática; outra era de semear o território na palavra e jogar com os limites geográficos próprios em contraposição aos impostos pela geografia colonial. E eu soube subindo um dia ao Patía, porque pude nomear alguns povos, ao acordar-me de um fragmento de uma décima de José Anilo Sinisterra: Por Tamaje iba glosando/por Gallinazo iba serio/por Pirí argumentando/en la isla e` Playa´el Medio” (VANÍN, 2017VANÍN, Alfredo. Las culturas fluviales del encantamiento. Memórias y presencias del Pacífico colombiano. Colômbia: Universidad del Cauca Sello Editorial, 2017., p. 46-47).
  • 8
    A décima citada é: “Yo me embarqué a navegar/en una concha de almeja/a rodiar el mundo entero/a ver si hallaba coteja” (VANÍN, 2017VANÍN, Alfredo. Las culturas fluviales del encantamiento. Memórias y presencias del Pacífico colombiano. Colômbia: Universidad del Cauca Sello Editorial, 2017., p. 47).
  • 9
    Segundo Robbie Shilliam, as cores azul e vermelha, para além da ideia da utilização da base da bandeira francesa, são as cores da família do loá Ogum. Ogum é um ferreiro e combina os elementos do frio e do calor, da conciliação e da conquista. Junto com o loá Ayizan, loá protetor de Dessalines, eles estariam associados à perseguição da justiça e, eventualmente, a reconciliação numa nova ordem. Dessa forma, o azul e vermelho representariam posições mais absenteístas e conciliatórias em torno do marco da independência, como aquelas atreladas às lideranças que buscaram negociar com os franceses. Já as cores negras e vermelhas, posteriormente escolhidas pelo próprio Dessalines para a bandeira, demarcaria o princípio índigena e negro no início do Haiti e do seu marco legal-institucional, numa rearticulação das alianças dos povos colonizados contra o colonialismo. Assim, a bandeira vermelha e preta estava diretamente associada às práticas de resistência anticolonial da população indígena ciampula, que haviam sido incorporadas pela religião vodu, e às sociedades secretas. Eram cores que indicavam alguém mais conquistador do que conciliador, implicando muitas vezes uma concentração de poderes. É dentro desse contexto que Shilliam procura perceber a Constituição de 1805 como um documento de mediação, vinculação e ligação, pois tenta vincular e limitar os poderes de Dessalines estabelecendo um espaço de vivência comum (negro e indígena) para as massas, ao mesmo tempo que remove desse espaço o imperador e seus generais (SHILLIAM, 2017SHILLIAM, Robbie. Race and Revolution at Bwa Kayiman. Millennium: Journal of International Studies, 45(3), 2017, p. 269-292.). Para mais sobre as relações entre as cores da bandeira e o vodu, veja: DELICES, 2016DELICES, Patrick. Oath to Our Ancestors: the flag of Haiti is Rooted in Vodou. IN: JOSEPH, Celucien L. e CLEOPHAT, Nixon S. Vodou in Haitian Memory: the ideia and representation of vodou in Haitian Imagination. Lanham: Lexington Books, 2016, p. 21-32..
  • 10
    Do crioulo haitiano: “Todo mundo é humano: ninguém é mais importante que o outro”. Princípio de Princípio de Bois Caïman (CERIN, 2022CERIN, Melodie. Do you know the 12 principles of Bwa Kayiman? A conversation with Professor Pierre Michel Chery. Woy Magazine, setembro de 2022. Disponível em: https://woymagazine.com/2022/09/22/do-you-know-the-12-principles-of-bwa-kayiman-a-conversation-with-professor-pierre-michel-chery (Acesso em 28/09/2022).
    https://woymagazine.com/2022/09/22/do-yo...
    ).
  • 11
    Para uma crítica à ética contratualista moderna, veja: QUEIROZ, 2022________. O Haiti é Aqui: ensaio sobre formação social e cultura jurídica latino-americana (Brasil, Colômbia e Haiti, século XIX). Tese de Doutorado em Direito na Universidade de Brasília, 2022..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2022
  • Aceito
    23 Out 2022
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