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A retórica antirrepublicana de Carl Schmitt

Carl Schmitt’s anti-republican rhetoric

Resumo

Este trabalho visa a analisar a natureza retórica da obra de Carl Schmitt publicada durante a República de Weimar, a fim de demonstrar que o sentido de seus textos desse período se vincula à finalidade de suas intervenções teóricas. A hipótese do trabalho se sustenta no caráter antirrepublicano da produção conceitual de Schmitt, que se revelou com toda nitidez no momento decisivo da duração da constituição e da República de Weimar, o golpe de 1932 desfechado contra o governo da Prússia, de cuja legitimação Schmitt participou de dois modos: diretamente, por meio da defesa jurídica e política do golpe, e, indiretamente, por intermédio das teses por ele difundidas em sua atividade intelectual, que minaram a legitimidade da República de Weimar.

Palavras-chave:
Carl Schmitt; República; Constituição de Weimar; Golpe de Estado; Retórica

Abstract

This paper aims to analyze the rhetorical nature of Carl Schmitt's works published during the Weimar Republic, in order to demonstrate the association between such works meanings and the purpose of his theoretical interventions. The hypothesis herein investigated is based on the anti-republicanism of Schmitt's conceptual production which has been clearly revealed at the decisive moment of Weimar Constitution and Republic, the 1932 coup against Prussian government whose legitimacy Schmitt has participated in two ways: directly, by his political and juridical coup's defense, and indirectly, by the theses spread in his intellectual activity which weakened the Weimar Republic legitimacy.

Keywords:
Carl Schmitt; Republic; Weimar Constitution; Coup d'état; Rhetoric

1. Introdução

Por que ainda é necessário enfrentar Carl Schmitt e investigar as razões de seu discurso? Em que sentido a relação com um pensamento autoritário, em período histórico de recuperação da popularidade do autoritarismo, pode servir de antídoto à maré montante da perda da liberdade? A compreensão da gênese e das maneiras de manifestação, difusão e adesão ao autoritarismo constitui um movimento necessário para combater teoricamente os conceitos e as categorias que fundamentam e legitimam a ação política autoritária.

Este trabalho busca analisar as principais obras de Carl Schmitt editadas durante a República de Weimar para desvendar o telos de sua reflexão teórica. Portanto, não é objeto deste trabalho promover uma interpretação e realizar uma sistematização dos conceitos schmittianos. O objetivo deste artigo é demonstrar a razão que mobilizou Carl Schmitt durante os quatorze anos de duração da ordem constitucional de Weimar. Assim, em lugar de uma análise minuciosa dos conceitos da obra, trata-se de expor os elementos da retórica1 1 Olivier Reboul (REBOUL, 1990) entende que a retórica é a arte da persuasão pelo discurso e também o ensino e a reflexão crítica e sistemática sobre essa prática; ou seja, trata-se simultaneamente uma técnica utilitária e uma criação estética. Segundo Reboul, na antiguidade grega, a retórica foi uma prática agonística, que envolvia o desempenho daquele que fala e a avaliação dos que o ouvem, por comparação com outros discursos. Não visava a suplantar um único rival, mas subjugar muitos de uma só vez - tratando do que quer que seja, em qualquer lugar, para qualquer um, quase sempre com sucesso. O caráter polêmico e agônico da retórica levou Reboul a indicar que é no exercício da refutação que a raiz comum e a simetria entre philo-sophia e retórica aparecem, dado seu caráter destrutivo. A refutação é a prática agonística que a emergência das instituições democráticas gregas solicitou continuamente sob a forma pública, e não mais restrita às disputas internas das escolas filosóficas. Ao longo do tempo, ocorreu um progressivo refinamento da refutação através da explicitação de normas que intensificam os efeitos devastadores da argumentação - interpelação sobre o que falar quer dizer, ou enfim, o que quer dizer falar? A retórica é o domínio do verossímil e da polêmica, no qual todo argumento encontra seu oposto, e por isso aparenta ser distinta da philo-sophia, mas essa relação é ambígua e pode significar tanto rivalidade (caso platônico) como propedêutica (caso aristotélico). Para Reboul, o problema de um jurista, político ou orador é fundar uma conclusão já dada, ao contrário do procedimento filosófico, que busca alcançar o que não conhece, ou fundar a validade daquilo que conhece. Os usos filosóficos da retórica permanecem problemáticos, dado o pressuposto de suas vocações opostas (busca da verdade ou manipulação pelo verbo para exercício do poder) e a compreensão de que existem situações propriamente retóricas nas quais a verdade não está dada, nas quais prevalece a incerteza e a estratégia polêmica. Deriva daí, na visão de Reboul, uma última diferença entre philo-sophia e retórica: o discurso de um jurista, de um orador político, parcial e polémico, passional e repleto de figuras de linguagem se volta para uma audiência a quem cabe decidir - ele prepara o juízo daqueles que decidem (júri de tribunal, assembleia política). O discurso filosófico, por sua vez, engaja seu autor em cada argumento, pelo qual ele é responsável e lhe cabe “prestar contas”, sem jamais prescindir das estratégias e procedimentos de prova. Como a situação mais frequente na vida é a da incerteza, dos conflitos, das paixões que eventualmente põem em risco as possibilidades de um livre exame dos argumentos, não é incomum que os discursos retóricos atravessem esse limiar a partir do qual a linguagem se degrada em discurso carregado de duplicidade, ambiguidades, energias mortíferas e tonalidades criminógena de enunciados portadores da violência, que justificam e legitimam a ação (falar é fazer). A exposição dos principais aspectos da retórica efetuada por Olivier Reboul é útil para compreender a orientação metodológica deste trabalho. Uma análise da obra schmittiana produzida sob a vigência da República de Weimar que não leve em conta que a natureza de seu discurso é antes retórica do que filosófica não é suficiente para a compreensão das polissemias das obras schmittianas escritas naquele período. Portanto, este trabalho busca elucidar os aspectos da retórica schmittiana no interstício weimariano e fornecer um caminho possível para a intelecção do caráter acentuadamente polissêmico de seus textos. de Schmitt, seus adversários, o teor de suas críticas e a relação entre a dimensão retórica do discurso de Schmitt e o golpe fatal contra a República de Weimar2 2 É preciso compreender o sentido do antirrepublicanismo de Schmitt explicitado em meio a sua concepção sobre a história do pensamento europeu e a história política europeia. A perspectiva teórica schmittiana se sustenta em uma leitura da história do pensamento baseada na ideia de neutralização do antagonismo político de natureza transcendente e teológica pela sucessão dos seguintes movimentos teóricos: a invenção da metafísica e da ciência natural no século XVII, a ascensão da virtude moral no século XVIII, o economicismo do século XIX e o surgimento da “religião da técnica” no século XX, uma crença profunda na possibilidade de domínio humano da natureza por meio do desenvolvimento tecnológico. Tais acontecimentos teóricos representariam uma continuidade do processo de despersonalização e de neutralização da política tal qual experimentada e praticada no século XVI, era de ouro da teologia política na Europa. A perspectiva teológica teria sido abandonada porque era controversa, enquanto a metafísica aspiraria à neutralidade (SCHMITT, 1996, p. 89). Portanto, há um aspecto comum a todos os textos de Carl Schmitt que nenhuma das possíveis interpretações de suas fartamente difundidas polissemias pode afastar: a oposição schmittiana ao processo de legitimação teórica das repúblicas europeias fundadas desde o século XVII (Inglaterra e Holanda) até o século XX (República de Weimar). As repúblicas consistiriam em uma experiência deliberativa que, por meio da discussão permanente, afastaria da cena política a decisão, elemento teológico-político fundamental do pensamento contrarrevolucionário de De Maistre e de Donoso Cortés, duas referências inafastáveis da obra de Schmitt. A vitória teórica das correntes filosóficas que sustentaram a legitimidade republicana afastou a possibilidade de restauração da legitimação das monarquias hereditárias do Ancién Regime. Inspirado em Donoso Cortés, Schmitt conclui que, em uma era na qual é impossível legitimar o título de rei sem sustentação na vontade popular, resta a alternativa da ditadura. Portanto, a via política que conduziria à derrota da república era a ditadura, forma de governo sucedânea da monarquia. Como afirma Schmitt, “As soon as Donoso Cortés realized that the period of monarchy had come to an end because there no longer were kings and no one would have the courage to be king in any way other than by the will of the people, he brought his decisionism to its logical conclusion. He demanded a political dictatorship. In the cited remarks of De Maistre we can also see a reduction of the state to the moment of the decision, a pure decision not based on reason and discussion and not justifying itself, that is, to an absolute decision created out of nothingness. But this decisionism is essentially dictatorship, not legitimacy” (SCHMITT, 1985, p. 65 - p. 66). , desfechado por meio da intervenção federal na Prússia, em favor da qual Schmitt advogou. Portanto, este trabalho busca seguir o método de compreensão da retórica schmittiana para que as polissemias de seu discurso sejam esclarecidas e se componham no interior do modo de pensar do autor germânico.

2. Da retórica

Como disse Nicolaus Sombart3 3 Filho do célebre sociólogo alemão Werner Sombart (1863-1941), na juventude Nicolaus Sombart (1923-2008) conviveu com Carl Schmitt. : “é uma estupidez ler Carl Schmitt com espírito científico positivo” (SOMBART, 1992SOMBART, Nicolaus. Chronique d’une jeunesse berlinoise. Paris: Quai Voltaire, 1992., p. 312 - p. 315), pois seu discurso apresenta uma forma híbrida e singular na qual dois tipos de pensamento, de tal modo opostos, e mesmo totalmente incompatíveis, estavam misturados: de um lado, um sistema de “saber positivo”, a base do que nós chamamos de “ciência”; de outro, uma rede tradicional e oculta de certezas e de interpretações místicas, que remonta manifestadamente tão longe quanto se pode encontrar seus traços no pensamento humano - que recebe o nome de gnose. Pois existiriam dois tipos de saber e dois tipos de aquisição de conhecimento: um deles operaria por meio de conceitos e fatos; o outro se afirmaria por símbolos e imagens. Essa distinção determina o teor do conceito de “verdade”: no primeiro caso, como a soma do que se podia saber - uma aproximação em face do saber absoluto - mas, ainda assim, compreensível para todos, verificável e aplicável, compreensível e enunciável para os que dominassem os conhecimentos de seu tempo. No segundo caso, do conhecimento que opera com símbolos e imagens, a verdade não pode nem deve ser enunciável. Dada a natureza secreta da verdade, o que é pronunciado e percebido publicamente não é digno de ser conhecido, pois o acesso a essa verdade não ocorre através do pensamento lógico e discursivo; ela será vislumbrada quando se conquistar a maturidade necessária. Portanto, trata-se de um sacrilégio falar dessa verdade em público, pois ela é um privilégio de iniciados, não é universalizável, concerne aos eleitos que a alcançam pela imagem mítica e que são, enfim, autorizados a transmitir o indizível (Ibid., 313).

Conforme Sombart, em Schmitt conviviam o “homem de ciência, do pensamento conceitual” - o professor mestre do silogismo e da dedução lógica, que enfatizava a “cientificidade” na formulação do saber jurídico - e o “místico observador que captava e transmitia o que ele compreendeu não sob a forma de conceitos, mas sob a forma de símbolos e imagens” (Ibid., 314). Seu domínio, em ambos os registros, se baseava em uma mitologia pessoal, cujas figuras recebiam máscaras teóricas das quais decorriam seus filosofemas figurados, arquetípicos, simbólicos. Outro efeito da duplicidade discursiva schmittiana é o jogo polissêmico voltado para animar as emoções do leitor, quando as proposições teóricas se expressam com a tonalidade da fórmula encantatória que pretende engendrar certezas “cientificamente não falsificáveis”4 4 “O vai e vem entre discurso conceitual e a magia das imagens, o duplo jogo perpétuo - mas que, seguramente, não aparecia conscientemente sob essa forma - entre conteúdo manifesto e sentido oculto produzia uma espécie de double-talk cujo efeito - estimulante, excitante, irritante - é o de um double-bind: o efeito de ser fisgado. Essa duplicidade, essa dupla linguagem, é a fonte da fascinação que ele exerce. Definida de um ponto de vista puramente formal, ela constitui o efeito secundário inevitável de uma ambivalência existencial, de uma ambiguidade intelectual específica” (SOMBART, 1992, 315). (Ibid., 1992, 314).

As duas faces do discurso de Schmitt atestam a conveniência do exame da retórica do jurista, que ressoa, repete, reinventa a retórica ultrarreacionária em seus vários tons5 5 “Muitos leitores ocasionais de Schmitt, muitas vezes nas antípodas das opções políticas e morais do autor, constatam que seus ensaios são de uma “pertinência perturbadora”, que afinal faz pensar. O leitor é atingido pela força de antecipação das análises, mas insatisfeito, não somente em razão das opções reacionárias do autor, mas também por seus raciocínios demasiado elípticos, pela massa de pressupostos, pela má fé camuflada pelo brio da expressão. Tudo isso torna indispensável uma leitura crítica, fora da qual, por outro lado, as análises de Schmitt serviriam para legitimar o que se trata de contestar radicalmente. Esse é o incômodo mais profundo: ele é um autor que é tentador usar contra suas próprias conclusões e valorizações, e que se presta a isso - a história de sua recepção demonstra isso amplamente” (MONOD, 2007, pp. 12-13). . Como disse André Doremus, hagiógrafo francês do jurista, “Schmitt podia assumir a cor da árvore sem partilhar a seiva” (SCHMITT, 2003a_______. Ex Captivitate Salus: expériences des années 1945-1947. Paris: Vrin, 2003a., p. 32). É certo que seu discurso apresenta uma solução de compromisso entre suas intenções e os constrangimentos do ambiente no qual ele o enuncia, o que modula sua tonalidade antes de 1933 e que a conjuntura posterior a 1933 permite uma desinibição maior. Esse campo discursivo determina as posições jurídicas possíveis, restringe-as ou as torna compatíveis com as opções ético-políticas do autor,6 6 Pierre Bourdieu assinalou procedimento similar no pensador da Schwarzwald (Floresta Negra): “O que dá ao pensamento de Heidegger seu caráter polifônico e polissêmico é sua aptidão em falar harmonicamente em vários registros ao mesmo tempo. Evocar negativamente o socialismo, a ciência, o positivismo, através de uma crítica puramente filosófica de certas leituras puramente filosóficas... de Kant”. Cf. BOURDIEU, 1988, p. 69. pois era preciso conciliar o ofício jurídico com o radicalismo político sob uma forma aceitável. A necessidade de conciliação imposta pela conjuntura explica o recurso às técnicas retóricas que revestem sua crítica do direito público liberal, como nota Olivier Beaud7 7 “Schmitt, enquanto viveu, sempre refutou os julgamentos políticos sobre sua obra e invocava a liberdade científica de estabelecer diagnósticos. Seus adversários sustentam que, longe de propor diagnósticos, ele agiu como “jurista partidário”. Entretanto, sua obra, que une as duas perspectivas, da ciência e do engajamento político, impede que elas sejam dissociadas. Ele operava um jogo duplo, quando usava - ele, um antipositivista militante - o argumento positivista por excelência da distinção entre juízo de realidade e de juízo de valores para defender-se da acusação de engajamento (quando em Nuremberg). (...) Para conciliar seu ofício com suas posições políticas “inconfessáveis” ele recorre, como virtuoso, às técnicas retóricas destinadas a transmitir, na forma profissionalmente reconhecida dos manuais jurídicos, uma crítica do regime Weimar que um leitor avisado perceberia como radical” (BEAUD, 2013, p. 94 - p. 95). .

Por outro lado, esses usos retóricos determinados pela conjuntura (“pensar em situação”) acompanham o ritmo das disputas internas dentro do direito praticado nas universidades alemãs: antes de 1933 ele ataca os representantes do positivismo jurídico, então hegemônicos e a partir dos quais se definem as posições e oposições. Depois de 1933 o objetivo era tornar-se chefe da doutrina alemã do direito - até ele ser atacado pelos juristas da SS. Esse aspecto dos usos retóricos é estruturante das formulações do jurista, marcadas por uma “axiologia da intensidade antiburguesa” (PIEILLIER, 2006) vazada no tom polêmico do que ele considerava como armas de um combate: os conceitos. Como, para Schmitt, o direito público é um direito político e a política se define pela relação de hostilidade, a história da disciplina seria vista como a dos conflitos ou convicções opostas - com as ideias políticas exprimindo conflitos reais, concretos. Seu gosto pelas situações de crise (guerra, revolução, ditadura), pelas “antíteses dualistas” (Estado-sociedade, norma-exceção, amigo-inimigo, legalidade-legitimidade, terra-mar) se desdobra em sínteses superiores, tais como as “construções ternárias” que ritmam os últimos dias de Weimar e os anos seguintes: a teoria do “Estado Total” (que rompe o dualismo Estado-sociedade), a doutrina constitucional do nacional-socialismo (Estado-movimento-povo), o pensamento da “ordem concreta” (norma-decisão-instituição), a teoria do Grossraum, a ideia de uma “terceira via” entre o Leste e o Oeste. A isso tudo se soma a insistência das interpelações sobre os “critérios determinantes” dos temas que o ocupam: a decisão de justiça, a normalidade do direito, a distinção entre o que é teológico e o que é político. Enfim, a racionalidade e a lógica argumentativa convivem com a dimensão mística e mítica, com um discurso teológico transmitido por imagens e símbolos - ora Weltanschauung (visão de mundo), ora “ciência” - , conforme os modos de saber e de aquisição do conhecimento. Pois se existem verdades verificáveis, também existem aquelas que não são enunciáveis, não captáveis pela lógica, mas acessíveis aos iniciados. O Schmitt da “gnose” é o mesmo da “ciência jurídica”, mestre de registro discursivo e do intuitivo, que “descobre mitos”, evoca arquétipos, joga com a polissemia, na perspectiva de engendrar certezas, o que explica muito da fascinação que seus textos causam e exige um exercício de leitura que confronte os conceitos com o campo semântico no qual circulam, para alcançar a dupla dimensão polêmica e poética codificada na sua obra. (CUMIN, 2008CUMIN, David. Carl Schmitt: biographie politique et intelectuelle. Paris: CERF, 2008., pp. 24-28).

Na medida em que ele visava objetivos práticos, sua doutrina não pretendia passar por ciência, mas se definia como tomada de posição na “luta” [kampf] pela redefinição de conceitos [begriff] e categorias (mentais e jurídicas) - engajamento expresso na fórmula Positionen und Begriff im Kampf. Tratava-se de atrair para a causa, de modo interno, aqueles que a rejeitavam, além de mobilizar os espíritos contra o sistema liberal, o que explica as oscilações de acordo com o destinatário; em particular, ele escreve para a centro-direita, que se aliou ao regime a contragosto, para os Vernunftrepublikaner (republicanos de razão) e para os conservadores do liberalismo nacional (Deutsche Volkspartei), a fim de dizer que Weimar “traiu seu ideal”. Schmitt oferece uma crítica de aparência liberal contra um parlamento reputado degenerado ao distinguir democracia e liberalismo e jogar a primeira contra o segundo. Em seguida, uma crítica do mesmo teor, sob a aparência de defesa da democracia, que opõe a identidade e a representação. Enfim, ele formula a crítica no tom dos que comungam com ele a mesma visão de mundo (Weltanschaung) conservadora, opondo a decisão à “discussão” (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1.).

3. Os adversários de Carl Schmitt

O princípio elementar da retórica envolve a eleição dos adversários e a exposição das inconsistências de suas teses ou a contradição entre a teoria a refutar e a realidade empírica. Se a finalidade da retórica é provocar a adesão a um determinado objetivo, é mobilizar, o ataque às ideias aptas impedir a mobilização consiste em um dos atos retóricos essenciais. A leitura da obra de Carl Schmitt permite perceber a presença da tonalidade discursiva de natureza retórica, pois Schmitt, desde sua juventude, não cessou de eleger adversários: o liberalismo, o normativismo positivista, o formalismo, o anarquismo, o comunismo, o socialismo, o marxismo, a representação política, os regimes mistos, o parlamentarismo, a abstração conceitual, a neutralidade despolitizante, o judaísmo8 8 Embora não seja incomum a tese que atribui a Schmitt um antissemitismo tardio decorrente de sua adesão ao nacional-socialismo, em um dos primeiros textos de juventude, intitulado Schattenrisse, publicado em 1913 sob o pseudônimo Johannes Negelinus, o futuro Kronjurist já promovia imprecações antissemitas, posteriormente reforçadas em seu Glossarium, cujos textos foram escritos entre 1947 e 1951, ou seja, após a derrota do nazismo. A esse respeito, ver TERTULIAN, 2004, p. 158. e o pensamento da imanência, categoria tão ampla a ponto de abranger todos os adversários anteriormente mencionados.

O pensamento da imanência sofreu dura oposição de Schmitt, já em sua Teologia Política, que dirigiu sua retórica contra as resultantes teóricas do imanentismo. Em um certo sentido, todos os demais opositores eleitos por Schmitt eram declinações do primeiro movimento de abstração e de neutralização da política, instaurado no século XVII pelos “metafísicos da imanência”, dentre os quais o mais ultrajante foi Baruch Spinoza (TERTULIAN, 2011_______. Carl Schmitt: teologia política e o princípio do líder. Verinotio, n. 13, ano VII, abr. 2011., p. 07)9 9 Schmitt manifestou horror em relação à obra de Spinoza em seu Glossarium em razão da célebre fórmula Deo sive Natura (Deus, ou seja, a natureza) contida na parte I da Ética de Spinoza. Curiosamente, Schmitt, em sua Teoria da Constituição (SCHMITT, 2013, p. 215) se valeu das noções de natureza naturante e natureza naturada de Spinoza para demonstrar o fundamento metafísico de sua Teologia Política, pois Spinoza teria prenunciado, mediante tais noções, a distinção entre poder constituinte e poder constituído, só formulada um século depois por Sieyès. Na medida em que é impossível chegar às noções de natureza naturante e natureza naturada sem passar pelo princípio do raciocínio spinozano, sintetizado na fórmula Deo sive Natura, o uso da distinção possuía finalidade retórica, e não conceitual. . A metafísica do século XVII haveria promovido uma virada decisiva no pensamento e na prática política da Europa, pois decorreu do primeiro grande esforço de construção de um “âmbito neutro no qual os conflitos pudessem ser solucionados e alguma concordância assegurada” (FERREIRA, 2012_______. Exceção e história no pensamento de Carl Schmitt. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 105, Belo Horizonte, jul./dez. 2012., p. 362). A história schmittiana da modernidade, cujas primeiras e fundamentais linhas encontram-se em sua Teologia Política e posteriormente foram desenvolvidas em A era das despolitizações e das neutralizações, narra um processo de sucessivas e fracassadas tentativas de afastamento do fundamento objetivo, religioso e transcendente da vida social e política em direção a princípios cada vez mais imanentes da vida coletiva (FERREIRA, 2012, p. 374). A formação, na modernidade, de uma metafísica, de um saber econômico e de um discurso sobre a técnica representariam etapas históricas do esforço intelectual imanentista.

Ao criticar o pensamento da imanência, Schmitt não formulou uma análise de ordem científica ou dotada de cientificidade organizada apenas em torno de sua percepção sobre a realidade concreta. Sua crítica “científica” era a face visível de um projeto ao qual sua retórica se subordinava: a instituição de uma ordem política capaz de repor o fundamento objetivo e transcendente do político. Se o pensamento da imanência foi responsável pela queda do pensamento e da sociedade no ocidente, era preciso retornar ao princípio, derrotar todas as declinações imanentistas e reinstituir as bases teóricas e práticas do mundo teológico. Se a decadência começou no Dezessete, a idade do ouro schmittiana situava-se entre o medievo e o século XVI, um mundo de antagonismos dotados de tamanha concretude que chegaram a tingir o Sena de vermelho com o sangue das vítimas da noite de São Bartolomeu; um mundo no qual sequer Hobbes seria bem-vindo. Sua aliança teórica com Joseph de Maistre e com Donoso Cortés10 10 Cortés era, nas palavras de Renato Lessa, um dos heróis intelectuais de Carl Schmitt. Lessa também registra que Cortés difundiu uma antropologia negativa que propugnava pela “absoluta pecaminosidade da depravação humana” (LESSA, 2003, p. 29). A antropologia negativa absorvida por Schmitt foi decisiva para a construção do dispositivo despótico-paranoico exposto em O conceito do político e que serviu de base para Schmitt pensar a política a partir do conflito existencial e da promoção da homogeneidade social. representa um inequívoco sinal de sua radical oposição à modernidade e a um de seus eventos mais relevantes: a revolução francesa. A retórica schmittiana é um caso exemplar de síntese de diversos vetores contrarrevolucionários do pensamento reacionário alemão e europeu que, desde 1789 (TERTULIAN, 2004TERTULIAN, Nicolas. Carl Schmitt vu par les chercheurs allemands. Cités: Philosophie, Politique, Histoire, n. 17, vol. 01, 2004, Paris, PUF., p. 164), se ergueram contra as consequências intelectuais, sociais e políticas do imanentismo conceitual criado pela metafísica do século XVII.

A compreensão do sentido da retórica schmittiana requer a análise de dois momentos de sua obra: os textos publicados durante a República de Weimar e os textos publicados na década de 1930, após a adesão ao NSDAP, ocorrida em 1º de maio e 1933. Embora seja comum a separação desses dois momentos da produção intelectual de Schmitt, há um fio que atravessa essas duas etapas da vida intelectual do Kronjurist, um fio de ordem teleológica e prática: a obra de Schmitt buscava provocar a adesão ao projeto de destruição das consequências práticas do pensamento da imanência (o parlamentarismo, o liberalismo de Weimar e a representação política) e a reinstituição de um fundamento transcendente do poder político e do direito. A desqualificação teórica dos adversários era uma das etapas primordiais do projeto.

A investigação dos objetivos da retórica de Carl Schmitt exige o conhecimento do sentido de sua crítica aos efeitos do pensamento da imanência: o parlamentarismo, o positivismo, o liberalismo e a representação política. Trata-se de fenômenos políticos e maneiras de pensar que estruturavam a república derrotada em 1933, o que confirma a relação entre a perspectiva negativa schmittiana sobre a modernidade e sua oposição à república de Weimar, síntese de todos os elementos da modernidade imanentista.

A crítica ao liberalismo e ao positivismo não se dirigiam à empiria, mas àquilo que Schmitt chamava de “fundamento espiritual último”, ou seja, a estrutura de pensamento dessas correntes de pensamento, e não o que eram, de fato, o liberalismo e o positivismo (FERREIRA, 2013FERREIRA, Bernardo. O totalmente outro: alguns aspectos da crítica de Carl Schmitt ao liberalismo. Ágora filosófica, Ano 13, n. 01, jan./jun/ 2013, Departamento de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco, Recife., p. 140). Desde sua Teologia Política, Schmitt acusava a burguesia liberal de neutralizar a política e evitar a decisão política. Essa estratégia da “classe discutidora” buscava suprimir os antagonismos sociais e elevar a status político “contraposições despojadas de toda carga polêmica” (FERREIRA, 2013, p. 141). O sistema de pensamento liberal representaria uma maneira de privatização da vida pública e da existência política, pois o indivíduo não seria mero limite da ação do Estado, mas também sua própria razão de existência (Ibid., p. 144). Portanto, a maneira liberal de pensar a relação entre Estado e indivíduo não apenas abria brechas nas quais o interesse privado individual se refugiava das decisões políticas do Estado, mas estabelecia um novo parâmetro de legitimidade do Estado, que residiria na tomada de decisões neutras em relação ao livre jogo dos interesses individuais.

Do ponto de vista liberal, haveria uma condição para a preservação dos direitos individuais: a criação de um sistema de freios e contrapesos entre as esferas de ação do Estado. Tal sistema vinculava a defesa dos direitos individuais à independência de juízes, desde que sustentassem suas decisões na própria lei, na abstrata vontade do legislador, jamais em outra pessoa, órgão ou instituição (FERREIRA, 2013FERREIRA, Bernardo. O totalmente outro: alguns aspectos da crítica de Carl Schmitt ao liberalismo. Ágora filosófica, Ano 13, n. 01, jan./jun/ 2013, Departamento de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco, Recife., p. 143). Na opinião de Schmitt, o liberalismo formulou uma maneira de pensar a legitimidade centrada na forma da lei, em uma racionalidade formal-legal weberiana, uma forma vazia oriunda de uma discussão perpétua cuja função era postergar qualquer decisão substancial e conferir status jurídico a conflitos de baixa intensidade, incapazes de afetar as grandes questões políticas substanciais de sociedades de massa abaladas por convulsões sociais e crises econômicas de grande envergadura.

A crítica schmittiana ao liberalismo não poderia prescindir de uma crítica ao positivismo jurídico e, sobretudo, à forma normativista do positivismo, defendida e divulgada por um de seus mais notórios alvos: o jurista austríaco Hans Kelsen, um expoente do positivismo jurídico, doutrina responsável pelas guarda teórica do liberalismo e sustentada no esquema de pensamento metafísico cunhado no século XVII e no iluminismo do século XVIII. No que se refere à ideia de lei, o iluminismo e o positivismo, tanto em sua versão mais ortodoxa do final do século XIX quanto em sua versão normativista mais flexível do início do século XX, optaram por substituir Deus por uma concepção demiúrgica de lei, de razão ou de ciência. “A secularização iluminista ou positivista, conforme Schmitt, não havia secularizado o decidir e o agir políticos, mas os havia transferido, respectivamente, para uma vontade racional do indivíduo ou da lei” (CASTELO BRANCO, 2017CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas. Decisão e secularização na reflexão de juventude de Carl Schmitt. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 60, n. 04, 2017., p. 1149). Iluminismo e positivismo eram a continuação da metafísica por outros meios. A metafísica fundada na razão e na vontade de um Deus onipotente se transformou em uma metafísica assentada na razão e na vontade do indivíduo ou da lei.

A natureza metafísica da estrutura de pensamento positivista comprovaria seu caráter abstrato, pois a vontade do legislador corresponderia a uma idealidade cuja função era substituir a decisão concreta, de carne e osso, oriunda de um ator político responsável por suas consequências. Só uma decisão concreta seria capaz de pôr uma ideia no mundo, jamais uma vontade de um legislador abstrato, fundamento igualmente abstrato da ordem jurídica. “A decisão é o veículo da secularização por meio do qual o direito adquire visibilidade frente à crença no direito concebido como vontade sagrada” (CASTELO BRANCO, 2017CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas. Decisão e secularização na reflexão de juventude de Carl Schmitt. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 60, n. 04, 2017., p. 1148).

As objeções ao parlamentarismo e à representação política não apontam para uma estrutura de pensamento, mas para contradições inerentes a esses dois fenômenos políticos em torno dos quais se ergueu a República de Weimar. A exposição de tais objeções precisa partir de uma premissa: no pensamento de Carl Schmitt, o parlamentarismo fustigado é de matriz liberal, cujo funcionamento supõe a representação política. Há uma indissociabilidade entre parlamentarismo, liberalismo e representação, pois, na opinião do jurista, o regime de Weimar seria uma espécie de regime misto - uma república parlamentar, liberal e representativa -, categoria central para compreender o sentido da crítica de Carl Schmitt ao parlamentarismo e à representação.

A noção de regime misto na obra de Schmitt possui dois sentidos, ambos conexos. Em sua primeira acepção, regime misto significa a combinação de dois princípios distintos de legitimação do poder, o princípio da representação política, oriundo da monarquia, pois o monarca representa a unidade política, e o princípio da identidade entre governantes e governados, fundamento da democracia na visão de Schmitt. Em sua segunda acepção, regime misto é aquele que se encontra entre os dois polos das formas de governo, monarquia e democracia. Assim, o regime misto equivaleria à aristocracia11 11 Schmitt expõe a tese do caráter aristocrático ou oligárquico da representação parlamentar pluralista e de sua contradição com a democracia em sua Teoria da Constituição (SCHMITT, 2013, p. 356) e em O guardião da constituição (SCHMITT, 2007, p. 212). .

Um dos momentos mais evidentes da oposição de Schmitt aos regimes mistos se encontra nas teses expostas em O guardião da constituição sobre a posição do presidente em Weimar. Para Schmitt, o presidente, poder neutro, capaz de pairar acima das disputas político-eleitorais e dos interesses setoriais que povoavam o parlamento, exercia, por meio da escolha popular e temporariamente, função de natureza monárquica, a quem deveria caber a decisão sobre os graves conflitos políticos e sociais da República de Weimar por meio do exercício da função de guardião da constituição12 12 Embora Schmitt afirmasse que a legitimidade do poder do presidente da República de Weimar residiria no princípio democrático (ver SCHMITT, 2007. Capítulo 10), a posição do presidente no interior da ordem política concebida por Schmitt era, nitidamente, uma posição monárquica. Não foi mero acaso a retomada da tese de Constant de que o chefe de Estado reina, mas não governa, na medida em que sua função é representar a permanência e a continuidade do Estado (SCHMITT, 2007, p. 199). Apenas excepcionalmente, nas situações de emergência, o poder neutro presidencial assume função ativa (SCHMITT, 2007, p. 200). O presidente, em situações normais, reina ao representar a unidade do Estado; excepcionalmente, governa por meio do art. 48 da Constituição de Weimar. Somente assim seria possível evitar a neutralização da política de caráter conciliador denunciada no Capítulo 8 do texto (no mesmo sentido, ver SCHMITT, 2013. Capítulo 22, p. 430). É preciso registrar, no entanto, que Schmitt apresentou em sua Teoria da Constituição (SCHMITT, 2013, Capítulo 27, p. 498 e p. 499) tese oposta à desenvolvida em O guardião da Constituição, pois, ao analisar a situação do parlamentarismo de Weimar, reconheceu que o presidente não possuía poder neutro, na medida em que precisava se submeter ao poder do chanceler, cuja eleição dependia da formação de uma coalizão partidária. . Ainda que a constituição de Weimar previsse as consultas diretas, o que demonstrava a incorporação do princípio democrático pela república e uma via de decisão capaz de afastar os interesses setoriais parlamentares, Schmitt via na função neutra e monárquica presidencial a única alternativa de solução da crise permanente da república. Ou seja, o raciocínio schmittiano defendia o princípio monárquico e abandonava o princípio democrático, a fim de recusar qualquer legitimidade do suposto regime misto de Weimar.

Apesar das teses de caráter monárquico expostas em O guardião da constituição, Schmitt também formulou crítica aparentemente democrática à constituição de Weimar. Do ponto de vista formal, o regime misto weimariano reproduzia o projeto polibiano ao combinar formas de governo e princípios de legitimação do poder distintos em um mesmo sistema político. No entanto, a posição do Parlamento em Weimar subordinaria o povo ao Parlamento, instauraria uma espécie de absolutismo parlamentar em que o poder constituinte do povo se confundiria com o poder constituído em benefício deste - exercido pelo Parlamento - e em detrimento do poder constituinte popular (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1., p. 11). Foi esse argumento que levou Schmitt a cunhar sua segunda concepção de regime misto acima exposta, que revela uma grave contradição de seu discurso jamais corrigida: a constituição de Weimar, segundo a tese apresentada em O guardião da constituição, seria uma constituição de aparência democrática e substancialmente monárquica e, ao mesmo tempo, uma constituição parlamentarista aristocrática. Na verdade, a presença de tamanha contradição confirma que o objetivo central da obra era provocar a adesão das mais distintas forças políticas ao projeto de destruição da legitimidade da constituição e da república de Weimar.

Em suma, a opinião aparentemente democrática do Kronjurist possuía um alvo evidente: a existência do Parlamento. Embora a constituição de Weimar combinasse distintos princípios de legitimação do poder - a representação e a identidade - e as formas de governo clássicas em uma única estrutura política, uma estrutura polibiana (a monarquia, a aristocracia e a democracia; presidente, Parlamento e consultas diretas ao povo) ela conteria um risco: a soberania do Parlamento, o absolutismo parlamentar, apto a sufocar o princípio da identidade, razão de ser da democracia. Essa tendência elitista de Weimar inocularia um caráter aristocrático na realidade concreta da república. Portanto, a tendência da República de Weimar seria a instauração de uma aristocracia, um regime igualmente misto, o justo meio entre a democracia e a monarquia. Qualquer dos caminhos de Weimar levaria ao regime misto, ainda que essa profecia pretensamente democrática fosse radicalmente contraditória com a defesa aberta da guarda presidencial da constituição. Para Schmitt, Weimar não era apenas uma república sem republicanos, mas uma república sem democracia e um Estado sem rei, ainda que a síntese das últimas duas faltas contrarie a lógica mais elementar, pois não há república onde houver monarquia.

Como demonstrado, as críticas de Schmitt acima expostas contêm incoerências e insuficiências. A compreensão do sentido verdadeiro dessas críticas passa pela análise de tais problemas, que também se encontram na considerável equivocidade daquilo que Schmitt entendia por pensamento da imanência.

O princípio da equívoca ideia de imanência contida na obra de Schmitt reside na atribuição de uma secularização de superfície promovida pelo pensamento da imanência. Ao buscar a neutralização das disputas teológicas, essa corrente intelectual teria criado a metafísica, a maior das abstrações produzidas, da qual todas as outras resultariam13 13 Sobre a questão das neutralizações teóricas da política e do papel da metafísica nesse processo, ver SCHMITT, 1996, p. 89. . Na obra de Schmitt, o outro nome da abstração é metafísica. Em sua Teologia Política, no entanto, Schmitt faz menção a Descartes, um fundadores da metafísica do Dezessete, e identifica na filosofia cartesiana a presença da criação divina ex nihilo, noção essencial para a ideia de decisão e de soberania (SCHMITT, 1985_______. Political Theology. Massachusetts: The MIT Press, 1985., p. 46 e p. 48). Ou seja, em uma de suas obras mais célebres de crítica à imanência, Schmitt vê na metafísica cartesiana um elemento fundamental para a construção de sua percepção sobre o direito. Paradoxalmente, um dos pais fundadores da metafísica moderna socorre Schmitt na tarefa de salvar a transcendência.

A filosofia cartesiana foi útil para Schmitt revelar o fundamento teológico da modernidade, que seria uma espécie de medievo envergonhado, e para construir as bases de sua noção de secularização em sentido profundo, cujo sentido adequado seria o seguinte: “Secularizar, à luz da perspectiva schmittiana, correspondia, entre outros aspectos, à necessidade de emancipar a decisão de seus pressupostos normativos (...) a transferência da decisão de homens de carne e osso à vontade da lei tolhe a responsabilidade do agir e decidir políticos na realidade da vida humana” (CASTELO BRANCO, 2017CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas. Decisão e secularização na reflexão de juventude de Carl Schmitt. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 60, n. 04, 2017., p. 1158).

Duas dúvidas conexas decorrem dessa noção de secularização: por que Schmitt busca na transcendência da criação ex nihilo o fundamento de seu raciocínio se a secularização diz respeito à ação no mundo de homens de carne e osso? Qual a razão da insistência na relevância da secularização para sustentação de teses que inscrevem a soberania em um fundamento transcendente? A criação ex nihilo fornece os elementos necessários à formulação da noção de decisão soberana na Teologia Política. Se a decisão soberana não se vincula a qualquer norma, ela nasce, do ponto de vista normativo, do nada. A transcendência divina se encarna no soberano, o sujeito da decisão. Eis o sentido da secularização schmittiana: homem não é, apenas, o lobo do homem, mas também o deus do homem.

Voltemos à segunda pergunta: qual a razão da defesa de uma secularização concreta quando se advoga pelo retorno encarnado do fundamento objetivo transcendente? A retórica de Schmitt explica esse movimento intelectual. O esforço de mobilização se sustentava em um discurso duplo: de um lado a defesa a cientificidade de suas teses; de outro, enunciados reveladores da verdade, uma gnose desobrigada de qualquer demonstração racional e assentada em signos, imagens e arquétipos. A defesa da secularização da transcendência consistia em condição da cientificidade de seu discurso. Ao atribuir a seu próprio pensamento um caráter secular radical, Schmitt buscava provocar a adesão de defensores da modernidade a suas opiniões, enquanto fazia passar de contrabando imagens e símbolos que revelariam a verdade inacessível à razão e o sentido último do direito e do político. Essa estratégia buscava alcançar, simultaneamente, setores conservadores ilustrados e não ilustrados da sociedade alemã, a fim de convencê-los da necessidade de engajamento na luta contra os efeitos teóricos e práticos da metafísica imanentista.

4. O sentido da crítica ao liberalismo, ao positivismo, ao parlamentarismo e à representação política: a derrota de Weimar e os aspectos da retórica reacionária

As críticas de Schmitt ao positivismo e ao liberalismo, aos quais atribuía um formalismo vazio e uma despersonalização da ação política, demonstram que a cientificidade de sua obra não impunha uma conduta teórica de mera descrição dos fatos. Sua obra era, assumidamente, uma empreitada de construção de uma realidade na qual as bases da República de Weimar e a modernidade imanentista não eram bem-vindas, o que se verifica pela defesa do procedimento fascista de aprovação aclamatória das medidas de governo (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1., p. 29 - p. 30).

O entusiasmo de Schmitt com a ditadura de Mussolini confirma uma de suas máximas - ditadura não é o contrário da democracia (SCHMITT, 1990_______. Sobre el parlamentarismo. Madri: Editorial TECNOS, 1990., p. 36) -, pois a democracia schmittiana supunha a identidade entre o governante e os governados, uma espécie de vínculo intenso e irracional, sustentado em um mito fundador e conservado por meio de permanente propaganda (RABAULT, 2011RABAULT, Hugues. Carl Schmitt et l’influence fasciste: relire la Théorie de la Constitution. Revue française de droit constitutionnel, n. 88, 2011/4., p. 711). Em suma, modelo autoritário de caráter fascista era a alternativa schmittiana a Weima14 14 Hugues Rabault (RABAULT, 2011) registrou as diversas passagens da obra schmittiana em que a admiração pelo sistema político de Mussolini é perceptível. Segundo Rabault, no período de 1922 a 1933 foi o fascismo italiano que serviu de modelo político para Carl Schmitt (RABAULT, 2011, p. 710). Schmitt não era um conservador, em nenhum momento haveria se dedicado a preservar a república de Weimar, tese que certos leitores de O guardião da constituição difundem. Na verdade, o modelo de Estado total que sustenta o discurso exposto nessa obra é o Estado fascista. O projeto de Schmitt era transformar radicalmente o Estado alemão, que deveria tornar-se um Estado abertamente autoritário (RABAULT, 2011, p. 718). O autoritarismo inerente ao Estado total imaginado por Schmitt se revela por meio da proposta de abolição de qualquer espécie de esfera de despolitização e neutralização das condições de decisão política, causas da ausência do Estado das esferas religiosa, cultural, científica e econômica (RABAULT, 2011, p. 718). Portanto, para Schmitt, a decisão política que determina o amigo e o inimigo seria uma maneira de afirmação do Estado total por ser capaz de tornar novamente políticas todas as esferas sobre as quais recaíram o véu da neutralização desde a invenção da metafísica, base da revolução científica do século XVII. A natureza fascista da concepção de política schmittiana também foi percebida “a quente” por Hermann Heller. Na visão de Heller, o conceito do político formulado por Schmitt tornava impossível “uma base de discussão ou de acordo entre tais inimigos políticos (...) falar não é mais possível - o que permanece possível é apenas o fato da imposição” (HELLER, 2001, p. 195). Ou seja, não é apenas o modelo de ordem política que atesta a filiação de Schmitt ao fascismo, mas também sua concepção existencial de conflito político. r.

Renaud Baumert, com base nos elementos do discurso reacionário descritos por Albert Hirschmann, encontra na obra weimariana de Schmitt três táticas discursivas de caráter reacionário dirigidas contra adversários teóricos: a acusação de fragilidade ou inutilidade teórica, de efeito perverso de uma teoria e de perigo quanto a suas consequências (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1.). Para cada discurso, um público determinado. A subordinação do discurso aos anseios do auditório se fez presente na obra schmittiana weimariana e nos textos publicados após a nazificação do Kronjurist. Schmitt lapidou seus argumentos para se aproximar dos diversos grupos de leitores de seus textos, sobretudo aqueles cuja adesão Schmitt julgava possível obter15 15 Um problema a explorar envolve possível relação entre a polissemia dos conceitos de Schmitt e seu esforço retórico de conquista da adesão ao projeto de derrubada da República de Weimar. Seria a variação semântica schmittiana uma prova de que o telos da obra era mais relevante do que o sentido da obra? . Eis a razão variação contínua entre um discurso conservador e um discurso de ruptura. Quando o argumento visava a atingir setores conservadores, eram expostos os efeitos perversos da república liberal e parlamentar de Weimar (BAUMERT, 2008, p. 15 - p. 16). Quando os textos incitavam o ânimo da extrema esquerda radical e da extrema direita, denunciava-se o risco à democracia e a tendência elitista do parlamentarismo liberal (BAUMERT, 2008, p. 23). Em um caso e no outro, Schmitt conduzia os distintos auditórios a uma única conclusão: a República de Weimar e sua constituição eram insustentáveis.

A hipótese schmittiana da fraqueza teórica do liberalismo e do positivismo já foi exposta acima. O liberalismo e o formalismo positivista não estariam à altura do tempo de convulsões sociais e grandes transformações vivenciado na década de 1920. As alterações promovidas pelo parlamentarismo liberal de Weimar não alteraram em nada a situação política e social alemã. A neutralização da política e o mundo da técnica permaneceram, embora a República de Weimar houvesse promovido muitas alterações formais por meio de uma nova constituição. Já o positivismo jurídico, ao conter o poder constituinte do povo nos limites da constituição e da representação política, impedia a implantação de mudanças substanciais na República de Weimar e favorecia a despolitização liberal. Entretanto, Schmitt não levou adiante esse raciocínio, pois sua oposição ao liberalismo e ao positivismo era mais profunda e exigia um outro tipo de desqualificação para conquistar adesões ao projeto autoritário. Não bastava dizer que o liberalismo parlamentarista e o positivismo representavam mais do mesmo. Na visão de Schmitt, era necessário denunciar os efeitos perversos e os perigos dessas maneiras de pensar e de agir (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1., p. 33).

No caso da denúncia dos efeitos perversos do parlamentarismo liberal, Schmitt mais parecia um liberal utópico do que o admirador da ditadura mussoliniana. Eram dois os efeitos perversos do parlamentarismo liberal. O primeiro desses efeitos consistia na penetração de interesses setoriais no Parlamento e na consequente derrocada da defesa parlamentar do bem comum. A discussão racional entre os indivíduos protegidos das ameaças do Estado contra suas próprias opiniões e crenças, em razão da impossibilidade de tomada de decisão política permanentemente adiada pela discussão infinita da classe discutidora (a burguesia), levou à penetração de grupos privados de interesse no interior do Estado que passaram a tomar as decisões políticas mediante nocivas tratativas ocultas (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1., p. 16). O segundo efeito decorria do primeiro. Embora o liberalismo defendesse a separação entre a sociedade e o Estado, o parlamentarismo de Weimar, ao permitir a penetração, no Estado, de interesses setoriais de natureza privada, levou o Estado a se intrometer em assuntos de ordem privada e impediu que qualquer esfera social escapasse da intervenção do Estado. Tratava-se do Estado total quantitativo, um reflexo perverso do parlamentarismo liberal de Weimar, responsável pela destruição das fronteiras entre a sociedade e o Estado (BAUMERT, 2008, p. 22).

A crítica ao parlamentarismo de Weimar construída a partir dos pressupostos liberais confirma o esforço de Schmitt de difundir entre os conservadores liberais a crença de que a República de Weimar era a causa da crise. Não foi um acaso a ausência de análise, nos textos publicados enquanto a república se manteve de pé, dos possíveis efeitos positivos do parlamentarismo liberal weimariano. A incapacidade de Schmitt de reconhecer qualquer virtude de uma constituição que serviu de modelo a um novo tipo de constitucionalismo e à qual, ainda hoje, se atribui papel relevante no esforço de composição entre direitos civis, políticos, sociais e econômicos comprova que o objetivo de Schmitt não era propriamente salvar o liberalismo e reformar o parlamentarismo, mas derrotar a república.

Já a insistência de Schmitt em denunciar os perigos representados pelo parlamentarismo liberal e pela representação política visava a envolver em seu projeto distintas forças políticas e sociais - conservadores, liberais desiludidos, segmentos populares - por meio da denúncia do caráter elitista da república e da apropriação das decisões políticas por grupos privados ocultos.

Formalmente, a representação política em Weimar se orientaria pela moderação e racionalidade dos debates parlamentares, virtudes inerentes a regimes aristocráticos. A representação política impediria a realização da democracia, na medida em que negaria a identidade entre governantes e governados e estimularia as divisões sociais, negando a homogeneidade substancial entre os membros da comunidade que, aliada à identidade entre governantes e governados, constituiria o fundamento da democracia. Outro ponto de sustentação da representação política seria o positivismo normativista que, ao interpretar a constituição de Weimar de um ponto de vista formalista, impedia que o povo exercesse o poder constituinte por si mesmo e, consequentemente, alterasse, a qualquer tempo, a constituição. Para Schmitt, no quadro da hermenêutica positivista, sequer as consultas populares previstas na constituição de Weimar eram democráticas, pois os representantes eram responsáveis pela formulação das perguntas (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1., p. 20). Em resumo, o apego à lógica contida na norma constitucional e o parlamentarismo liberal seriam, na verdade, manifestações de elitismo.

A denúncia do perigo do liberalismo, do parlamentarismo e do positivismo à democracia escondia o verdadeiro receio de Schmitt: a destruição do Estado. O grande risco vislumbrado era a fragmentação social, a impossibilidade de materialização da homogeneidade social e a realização da antropologia negativa na qual se sustentava sua teoria. O homem era existencialmente perigoso, pois as divisões sociais poderiam conduzir à destruição do Estado, que possuiria uma função teórica híbrida de pressuposto lógico-transcendental de qualquer ordem normativa e realização do espírito absoluto. O parlamentarismo liberal era perigoso não porque ameaçava a democracia, mas porque punha em risco a existência do próprio Estado, sem o qual não haveria norma alguma. A democracia schmittiana mais parecia uma ditadura do que propriamente uma democracia porque uma democracia que não fosse uma ditadura propiciaria riscos ainda maiores à existência do Estado do que o parlamentarismo ao afirmar que o conflito social é constitutivo da ordem política, que nele se funda e dele se nutre. Schmitt, por sua vez, embora reconhecesse a existência do conflito16 16 Muitas vozes ainda hoje se manifestam para defender os acertos de Schmitt ao definir a política a partir do conflito. É o caso de Chantal Mouffe, que tece considerações elogiosas sobre o conceito schmittiano de política, uma vez que Schmitt haveria reconhecido a existência de identidades coletivas e a impossibilidade de negar o conflito político (MOUFFE, 1992, p. 89). , via na identidade entre governantes e governados e na homogeneidade substancial nacional uma via de resolução definitiva das fraturas que conduziriam à destruição do Estado. Curiosamente, ao aderir ao NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães ou simplesmente Partido Nazista) levar sua teoria às últimas consequências, Schmitt legitimou uma experiência política e social responsável pela futura divisão territorial e política da Alemanha, cuja reunificação ocorreu quarenta e cinco anos após o fim da Segunda Guerra e não foi por ele testemunhada. A desventura nazista entregou os rumos do território da Alemanha nas mãos daqueles a quem Schmitt combatia: os russos, os ingleses (corsários, no jargão schmittiano) e os franceses, herdeiros da modernidade revolucionária difamada pelas grandes referências de Schmitt, Donoso Cortés e Joseph de Maistre. Ainda participaram da partilha os descendentes dos povoadores da Nova Inglaterra, um povo formado de corsários degredados. A considerar esses fatos históricos, certamente não foi o parlamentarismo de Weimar que representou o maior risco à existência do Estado alemão.

5. O golpe na Prússia: efeitos concretos da retórica reacionária

A retórica reacionária schmittiana encontrou, em 1932, seu momento propício, situação política em que se revelou seu projeto oculto: o golpe desfechado contra o governo social-democrata de Otto Braun, na Prússia. Dois personagens se destacaram na intervenção federal decretada pelo presidente Paul von Hindenburg contra a Prússia, que interrompeu o governo de Otto Braun: Franz von Papen17 17 Na ocasião da intervenção federal na Prússia, Franz von Papen foi investido no cargo de interventor por Hindenburg. Em 30 de janeiro de 1933, após convencer Hindenburg a nomear Adolf Hitler chanceler da Alemanha, integrou o gabinete de Hitler ao assumir o cargo de vice-chanceler. A aliança selada no golpe da Prússia entre a direita conservadora e o partido nazista foi decisiva para a conquista da chancelaria pelo líder do NSDAP. , então chanceler, integrante da direita conservadora católica alemã, se aproximara do NSDAP e via na intervenção uma possibilidade de conter o avanço da centro-esquerda e dos comunistas, pois, pela primeira vez na história, um partido à esquerda do espectro político, o partido social-democrata alemão, governava a Prússia, o então maior estado da Alemanha; Carl Schmitt, jurista responsável pela justificação jurídica de um golpe sem fundamento jurídico, o Kronjurist, formulou uma síntese de suas teses para fornecer os argumentos jurídicos em defesa do golpe que precipitou a destruição da República de Weimar ao derrotar o partido social-democrata e abrir um enorme flanco para o avanço das forças de extrema-direita representadas pelo partido nazista.

Embora haja quem defenda a intenção de Schmitt de salvar a República de Weimar da ofensiva do KPD (Partido Comunista Alemão) e do NSDAP18 18 Segundo Renaud Baumert, Alain de Benoist é defensor dessa tese. Na opinião de Baumert, ainda que Schmitt se opusesse a Hitler antes de seu perfilamento, tal tese se sustenta em um falso silogismo: “todos os opositores de Hitler eram partidários do regime (de Weimar); Schmitt era um opositor de Hitler; logo, Schmitt era partidário do regime. A premissa maior é falsa e a premissa menor se tornaria falsa, no mais tardar, no primeiro de maio de 1933; a conclusão contém um erro, senão uma manipulação” (BAUMERT, 2008, p. 32). , era razoavelmente previsível que o golpe contra a Prússia feriria mortalmente a federação alemã, enfraqueceria o partido social-democrata e pavimentaria o caminho do extremismo de direita do partido nazista ao eliminar do jogo político o maior partido de esquerda alemão19 19 “O governo social-democrata da Prússia era um dos grandes bastiões da resistência contra o nacional-socialismo (na ocasião da extinção do Estado da Prússia, Goebbels celebrou por meio de seu jornal); sua derrocada representou a derrota da Prússia democrática (instaurada pela República de Weimar) e a vitória da Prússia reacionária, da qual Schmitt foi um apóstolo zeloso.” (TERTULIAN, 2004, p. 161). . Se Schmitt fundava a política no conflito de forças sociais, certamente era capaz de intuir que, ao afastar a maior força política de oposição ao nazismo, o NSDAP sairia fortalecido do episódio.

A retórica de Schmitt encontrou no golpe da Prússia um elemento de síntese das diversas táticas discursivas desenvolvidas até então em suas obras. Em razão do estado de agitação e convulsão social provocado pelos conflitos entre militantes do partido nazista e do partido comunista, Schmitt lançou mão da noção de guardião da constituição, cunhada em sua Teoria da Constituição (1928) e na obra de mesmo nome (1929). Nesses textos, Schmitt retomou a ideia de exceção para interpretar - e alargar - o alcance dos poderes presidenciais. Para tanto, invocou a ideia de poder neutro, de autoria do defensor da restauração monárquica na França, Benjamin Constant, para sustentar a possibilidade de o presidente da república suspender a vigência da constituição de Weimar com base no uso do art. 48 do texto normativo aprovado em 1919. De acordo com a interpretação de Schmitt, a presidência reuniria condições de intervir em conflitos políticos intensos e graves porque não seria parte dos conflitos político-partidários parlamentares, conflitos esses corrompidos pelos interesses privados escusos e ocultos que assaltavam o bem comum nas negociações ocorridas no Parlamento. No caso da Prússia, a desordem social causada pelos distúrbios políticos exigia uma intervenção do poder neutro presidencial, pois o governo do estado da Prússia não se mostrara capaz de debelar as causas da situação anormal. Era chegada a hora de decretar a exceção, de realizar concretamente o poder soberano. As obras schmittianas mais famosas da década de 1920, Teologia Política, Teoria da Constituição e Guardião da Constituição, foram sintetizadas por Schmitt em obra publicada a dez dias do Golpe na Prússia: Legalidade e legitimidade. Nesse texto, Schmitt defendeu os plenos poderes presidenciais de intervenção nos Estados, pois, em sua opinião, a federação não era um princípio “sacrossanto” na constituição de Weimar (SCHMITT, 2012_______. Légalité et légitimité. Montreal: Les Presses de l'Université de Montréal, 2012., 116). Trata-se do momento de sua obra em que se faz presente aberta pregação da ditadura e de seu corolário, a máxima extensão dos poderes presidenciais (SCHMITT, 2012, p. 122).

Heller, adversário político e jurídico da tese schmittiana em defesa do golpe contra a Prússia, ao denunciar suas incoerências, demonstrou que o edifício teórico schmittiano ruíra quando da defesa do golpe de Estado. Segundo Hermann Heller, o golpe na Prússia padecia de grave inconstitucionalidade, pois sua motivação residia na aproximação de Von Papen e Hitler. Seu motivo fora exclusivamente político, era uma intervenção parcial e subjetiva, o que contrariava a constituição de Weimar, inclusive na versão schmittiana do art. 4820 20 O Artigo 48 determinava que o presidente do Reich poderia intervir, com a ajuda das forças armadas, em um Land que não cumprisse os deveres constitucionais, quando a segurança e a ordem pública fossem gravemente perturbadas - cabendo ao presidente do Reich tomar as medidas necessárias para seu restabelecimento. Para isso ele poderia suspender total ou parcialmente os direitos e garantias fundamentais (liberdades individuais e de expressão, inviolabilidade do domicílio, não retroatividade da lei, sigilo postal, direito de reunião e de associação, além do direito à propriedade). , que alargava desmedidamente os poderes presidenciais. O jurista que denunciou a neutralidade política liberal não apenas contradisse suas imprecações antiliberais ao defender, teoricamente, a neutralidade política do presidente em Guardião da constituição, que deveria ser responsável pela tomada de uma decisão objetiva e imparcial. O Kronjurist também fez tábula rasa dessa neutralidade soberana, ao apoiar uma decisão responsável pela derrota do partido social-democrata, pela perseguição dos militantes do partido comunista, rival histórico do NSDAP, e pela precipitação do fato político necessário à aliança da direita conservadora com o nazismo (JOUANJAN, 2012JOUANJAN, Olivier. Et si l’on ne faisait rien de Carl Schmitt?. Philosophiques, n. 39(2), 2012., p. 478).

No calor dos acontecimentos, Heller demonstrou a incoerência mais aguda do discurso schmittiano: o golpe contra a Prússia não se legitimaria sequer por Schmitt, caso ele próprio levasse a sério sua teoria. Cabe, no entanto, uma observação sobre a investigação das incoerências de um autor. Um jurista do calibre, da erudição e da inteligência de Schmitt certamente tinha plena consciência da presença dessas incoerências em sua obra e das polissemias nela contidas. Um autor que não conseguir identificar suas próprias incoerências não é digno de ser estudado. Portanto, toda incoerência e toda polissemia podem ser afastadas ou explicadas. No caso de Schmitt, a saída se encontra na análise das razões de seu discurso21 21 Sobre as “acrobacias intelectuais”, a “polissemia de superfície” do discurso de Schmitt e a finalidade antirrepublicana de sua obra, ver BAUMERT, 2008, p. 36. .

A tese de que ele pretendia “salvar a República” não se verifica nos escritos nem nos registros da historiografia desse período em que a Alemanha vivia uma guerra civil informal nas ruas em que ocorriam confrontos sangrentos entre nazistas e comunistas22 22 Sobre a posição de Schmitt acerca do conflito entre nazistas e comunistas, sobre a necessidade de intervenção na Prússia e o uso da distinção entre amigo-inimigo para resolver o conflito, ver SÉGLARD, 1995 p. 22. .

Sua ação está documentada em artigos como o Die Verfassungsmässigkeit der Bestellungeines Reichskommissars für das Land Preussen (“A constitucionalidade da nomeação de um Comissário do Reich para o Land da Prússia”), de 1 de agosto de 1932, bem como sua intervenção em outubro do mesmo ano na Corte de Leipzig [publicada em Positionen und Begriffe, 1940], que veladamente favorecia o NSDAP. Na sua defesa do governo central, e do ato de força de von Papen, ele reservava seus ataques apenas aos comunistas como responsáveis pelos conflitos e fustigava o governo socialdemocrata, que se opunha não apenas ao KPD, mas também ao NSDAP. Vertentes revisionistas do período atribuem protagonismo ao general Schleicher23 23 Kurt von Schleicher (1882-1934), militar de carreira, chega ao posto de general e participa ativamente da política nos últimos momentos da República de Weimar. Schleicher foi designado Chanceler em dezembro de 1932 pelo presidente do Reich, o Marechal Hindenburg. Era um defensor de um modelo de regime autoritário. Durante seu curto período como Chanceler, propõe uma reforma agrária nas propriedades dos Junkers, socializando as terras improdutivas ao leste do rio Elba para diminuir as tensões sociais na região. Foi assassinado juntamente com sua esposa durante a chacina perpetrada pelos nazistas conhecida como a Noite dos longos punhais. Para um relato detalhado do episódio cf. GALLO, 2007. Na ocasião, Schmitt perpetrou um artigo defendendo a ação do Führer. Sobre o envolvimento de Schmitt no episódio cf. TERTULIAN, 2001, p. 37-47. Para uma versão francesa do texto: SCHMITT, 2003b. , e não a von Papen (também aconselhado por Schmitt), que desejava barrar o caminho dos nazistas, e apresentam o jurista na condição de opositor a estes últimos, naquele momento.

Esse episódio é uma das cenas do “primeiro ato do Terceiro Reich” (BROSZAT, 2012BROSZAT, Martin. L’État hitlérien. Paris: Fayard/Pluriel, 2012., p. 34), quando são eliminadas a administração e o governo republicano mais importante. A possibilidade de proclamação de um “estado de urgência” era cogitada por todos os governos conservadores e presidencialistas - dos quais Schmitt era conselheiro oficial, ou oficioso. E para o golpe na Prússia o Artigo 48 permitiu ao presidente do Reich (Hindenburg) nomear por decreto o chanceler von Papen comissário para confrontar a “incapacidade” dos socialdemocratas de manterem a ordem na região. A ideia de um “golpe preventivo” contra a extrema direita, no entanto, foi apenas um objetivo secundário, pois o governo von Papen partilhava com os meios empresariais o desejo de um “novo Estado”, cujas características eram objeto de disputa não apenas semântica: “Estado autoritário”, “liberalismo autoritário”, “Estado Total”. É certo que a ação de Schmitt, advogando em favor do Reich contra a Prússia, é mais um componente da violência jurídica e política contra as instituições que ainda resistiam ao avanço nazista (MONOD, 2000_______. Présentation à Carl Schmitt, in SCHMITT, Carl. La dictature. Paris: Seuil, 2000., pp. 29-30).

O ambiente era propício, pois as políticas conduzidas por Brunning e Von Papen já apresentavam essa ênfase nacional conservadora e autoritária, internamente e nas relações internacionais, por se apoiarem nas elites tradicionais (industriais e latifundiários) cujo consenso, apesar das eventuais divergências, era exterminar a República. Não se tratava de uma reação à crise (política e econômica, agravada pelo crash de 1929), mas de seu uso - e seu agravamento - para impor seus objetivos. Se conseguiram destruir a república e bloquear qualquer alternativa democrática ainda possível, não capitalizaram o movimento contra Weimar, que preferiu o Führer, como lembra Detlev Peuker: Hitler needed power, and the old elites needed mass suport” (PEUKERT, 1996PEUKERT, Detlev. The Weimar Republic: The crisis of classical modernity. Nova Iorque: Hill & Wang, 1996., p. 265).24 24 A obra de Peukert apresenta um balanço da “erosão das opções” que marcou o final da República, cf. Peukert, 1996, cap. 14. Esse é o contexto no qual Schmitt contribui com a hostilidade permanente contra Weimar, com seus textos do período sempre próximos dos ultraconservadores que desejavam se desembaraçar da República, e subverter a ordem constitucional de modo contrarrevolucionário.

Jean-Pierre Faye recorda a conferência proferida pelo jurista na Langname Verein (literalmente “União de nome longo”, ou “União para a conservação dos interesses econômicos comuns da Renânia e Westfalia”, sindicato patronal composto pelos magnatas da indústria alemã), em novembro de 1932. Nessa ocasião, segundo Faye, Schmitt defendeu a necessidade de direção política de alguns setores econômicos e a despolitização de outros tantos, que visaria a consolidar a transição para o “Estado total” e quebrar a influência anárquica corporativista (FAYE, 1972FAYE, Jean-Pierre. Langages Totalitaires. Paris: Hermann, 1972., p. 699).

Stefan Breuer, por sua vez, assinala que “Schmitt ensaiou, no último momento, tomar um novo rumo e conter a ameaça de ditatura de um partido instaurando uma ditadura presidencial soberana. Mas o fato dessa tentativa ocorrer em circunstâncias nas quais ela tinha poucas chances de ter êxito era justamente uma consequência desse sistema pelo qual o próprio Schmitt tinha tanto trabalhado” (BREUER, 1996BREUER, Stefan. Anatomie de la Révolution conservatrice. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l'homme, 1996. p. 193), pois eliminar o parlamentarismo era mais importante do que o risco nazista25 25 Sobre a relação entre as teses apresentadas na crise da Prússia e o discurso formulado durante o período de estabilidade republicana, ver BEAUD, 1997, p. 237. .

Após as eleições de novembro de 1932, quando diminuiu a votação no NSDAP, o cenário favoreceu o arranjo aceitável por Hindenburg26 26 Foi com o apoio das massas, que fizeram do NSDAP o principal partido alemão, que os nazistas chegaram ao poder. Mas foi a aliança com as forças conservadoras que permitiu ao chefe do partido realizar a “revolução legal”. Primeiro, com os poderes presidenciais do Artigo 48, depois com os plenos poderes votados com base no artigo 76. Sob a primeira norma o KPD é proscrito, sob a segunda todos os outros são proscritos e o NSDAP é proclamado partido único. Sob o governo presidencial, os dois pilares da tradição prussiana - exército e a burocracia do Estado - foram reforçados, e é neles que se apoia a tentativa de uma reforma autoritária do Estado, o que as beneficiaria ainda mais. O uso rotineiro de decretos modificou o sentido do Artigo 48: a duração limitada da exceção se transformou em prática permanente do governo, com a supressão da divisão dos poderes legislativo e executivo, em favor do segundo. Essa ampliação dos poderes presidenciais para além dos limites constitucionais, por sua vez, reforça o jogo de influências nos bastidores do governo - que nesses últimos momentos da República é tutelado pelo alto oficialato, que se impõe aos governos de Brunning, von Papen e Schleicher. A esse ambiente conspiratório se junta a pressão crescente das forças conservadoras favoráveis à entrada do NSDAP no governo, por considerarem que só um partido de massa forneceria o apoio popular necessário. , e que se concluiu em janeiro do ano seguinte: um governo reunindo os nazistas, von Papen, figuras do DNVP27 27 Partido Nacional Popular Alemão (Deutschnationale Volkspartei), organização formada por monarquistas, antissemitas, representantes dos grandes proprietários de terra (Junkers), altos funcionários, oficiais das forças armadas, parte dos industriais e das camadas médias do Leste da Alemanha. , ministros de governos anteriores - formação resultante de nomeações presidenciais, e não mais de uma maioria parlamentar, e que governará por decretos até 24 de março revertendo progressivamente a ordem constitucional, com base no Artigo 48. A chegada ao poder do NSDAP seria inconcebível sem o recurso à exceção, ainda que o “uso revolucionário” do estado de exceção só se torne efetivo após a consagração do partido nas eleições plebiscitárias de 5 de março de 1933. Então, a “revolução nacional socialista” começara de fato com a “Lei de Concessão de Plenos Poderes” (Ermächtigungsgesetz) de 24 de março, que deu ao chefe de governo outros meios de agir além dos decretos. Antes de julho de 1933, a república estava completamente liquidada. (BROSZAT, 2012BROSZAT, Martin. L’État hitlérien. Paris: Fayard/Pluriel, 2012., pp. 36-45).

O historiador Martin Broszat (Ibid., pp. 105-106) assinala que se o poder não tivesse caído nas mãos dos grupos conservadores e de reacionários de direita - em um movimento que começa com a república e se conclui em 1932 com von Papen e golpe na Prússia - e se o parlamentarismo e os partidos políticos não tivessem perdido seu prestígio, teria sido muito difícil ao NSDAP liquidar pela violência, em um semestre, o regime de partidos e fazer do movimento de massas nacional socialista a única força política na Alemanha. A aliança entre os nazistas e os conservadores previa suprimir o parlamentarismo e estabelecer um governo autoritário estável, além da eliminação total da esquerda comunista e social-democrata. E a fala do Führer na emissão radiofônica de 1 de fevereiro de 1933 declarava os “partidos marxistas” responsáveis pela “desordem que reinava na Alemanha” e não deixava dúvidas sobre as intenções do novo governo (FAVRE, 2014FAVRE, Muriel. La propagande radiophonique nazie. Paris: INA, 2014., p. 39). Os parceiros do NSDAP no governo não compreenderam que a eliminação violenta da esquerda só poderia conduzir à superioridade numérica e ao aumento da força do movimento nazi em relação aos partidos de direita e do Zentrum28 28 Partido Alemão do Centro (Deutsche Zentrumspartei), fundado em 1870 e representante do eleitorado católico. Franz von Papen fez parte dele até 1932. , ainda poupados, mas que preparavam sua própria capitulação. É certo que a agressiva declaração de guerra política lançada contra a esquerda e a expulsão metódica do poder e das responsabilidades políticas do SPD constituíram, antes mesmo de 1933, uma prévia do fascismo na vida pública. E o que desempenhou o papel de alavanca política institucional e legislativa da exceção foi o estrangulamento dos partidos de esquerda. A mesma alavanca seria usada contra os outros partidos e permitiria a instalação do monopólio político nazi. Essa evolução tem duas etapas: entre fevereiro e abril de 1933, a ação ainda coordenada dos partidos governamentais para liquidar a esquerda; depois, por volta de junho-julho do mesmo ano, o período no qual o NSDAP - agora ocupando posições fundamentais no executivo - pressiona os parceiros a renunciarem à independência política.

Schmitt procurava quem pudesse realizar as condições do Estado Total, do qual pensava deter a teoria. Não encontrou quem o fizesse entre os círculos da Reichswehr e das elites financeiras e políticas. Encontraria finalmente aquele que tinha as massas, mas não uma teoria do Estado (SÉGLARD, 1995SÉGLARD, Dominique. Présentation. In SCHMITT, Carl. Les trois types de pensée juridique. Paris: PUF, 1995.).

6. Conclusão

A análise estritamente conceitual da obra de Carl Schmitt publicada durante a República de Weimar padece de um ponto cego: a militância antirrepublicana de Schmitt. Portanto, conforme demonstrado neste trabalho, é importante considerar a natureza retórica de seus discursos, os destinatários, os adversários e seus objetivos. Esse tipo de abordagem metodológica permite evidenciar o sentido histórico da produção intelectual schmittiana. Se todo conceito possui uma história, é indispensável, ao menos, partir da gênese do conceito para extrair seus sentidos possíveis. Assim, é possível concluir que sua obra, a considerar as circunstâncias políticas e sociais de seu tempo e o tipo de atuação teórica e política, se constituiu em um instrumento de combate contra a República de Weimar, ou seja, suas intenções não eram propriamente reformistas, mas reacionárias. Esse dado de realidade precisa ser levado em conta pela investigação do sentido de seus conceitos e pelo esforço de enfrentamento das polissemias e aporias de sua obra.

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  • 1
    Olivier Reboul (REBOUL, 1990REBOUL, Olivier. Rhétorique. In AUROUX, Sylvain (org.). Encyclopédie Philosophique Universelle, vol. II, Les Notions Philosophiques. Paris: PUF, 1990.) entende que a retórica é a arte da persuasão pelo discurso e também o ensino e a reflexão crítica e sistemática sobre essa prática; ou seja, trata-se simultaneamente uma técnica utilitária e uma criação estética. Segundo Reboul, na antiguidade grega, a retórica foi uma prática agonística, que envolvia o desempenho daquele que fala e a avaliação dos que o ouvem, por comparação com outros discursos. Não visava a suplantar um único rival, mas subjugar muitos de uma só vez - tratando do que quer que seja, em qualquer lugar, para qualquer um, quase sempre com sucesso. O caráter polêmico e agônico da retórica levou Reboul a indicar que é no exercício da refutação que a raiz comum e a simetria entre philo-sophia e retórica aparecem, dado seu caráter destrutivo. A refutação é a prática agonística que a emergência das instituições democráticas gregas solicitou continuamente sob a forma pública, e não mais restrita às disputas internas das escolas filosóficas. Ao longo do tempo, ocorreu um progressivo refinamento da refutação através da explicitação de normas que intensificam os efeitos devastadores da argumentação - interpelação sobre o que falar quer dizer, ou enfim, o que quer dizer falar? A retórica é o domínio do verossímil e da polêmica, no qual todo argumento encontra seu oposto, e por isso aparenta ser distinta da philo-sophia, mas essa relação é ambígua e pode significar tanto rivalidade (caso platônico) como propedêutica (caso aristotélico). Para Reboul, o problema de um jurista, político ou orador é fundar uma conclusão já dada, ao contrário do procedimento filosófico, que busca alcançar o que não conhece, ou fundar a validade daquilo que conhece. Os usos filosóficos da retórica permanecem problemáticos, dado o pressuposto de suas vocações opostas (busca da verdade ou manipulação pelo verbo para exercício do poder) e a compreensão de que existem situações propriamente retóricas nas quais a verdade não está dada, nas quais prevalece a incerteza e a estratégia polêmica. Deriva daí, na visão de Reboul, uma última diferença entre philo-sophia e retórica: o discurso de um jurista, de um orador político, parcial e polémico, passional e repleto de figuras de linguagem se volta para uma audiência a quem cabe decidir - ele prepara o juízo daqueles que decidem (júri de tribunal, assembleia política). O discurso filosófico, por sua vez, engaja seu autor em cada argumento, pelo qual ele é responsável e lhe cabe “prestar contas”, sem jamais prescindir das estratégias e procedimentos de prova. Como a situação mais frequente na vida é a da incerteza, dos conflitos, das paixões que eventualmente põem em risco as possibilidades de um livre exame dos argumentos, não é incomum que os discursos retóricos atravessem esse limiar a partir do qual a linguagem se degrada em discurso carregado de duplicidade, ambiguidades, energias mortíferas e tonalidades criminógena de enunciados portadores da violência, que justificam e legitimam a ação (falar é fazer). A exposição dos principais aspectos da retórica efetuada por Olivier Reboul é útil para compreender a orientação metodológica deste trabalho. Uma análise da obra schmittiana produzida sob a vigência da República de Weimar que não leve em conta que a natureza de seu discurso é antes retórica do que filosófica não é suficiente para a compreensão das polissemias das obras schmittianas escritas naquele período. Portanto, este trabalho busca elucidar os aspectos da retórica schmittiana no interstício weimariano e fornecer um caminho possível para a intelecção do caráter acentuadamente polissêmico de seus textos.
  • 2
    É preciso compreender o sentido do antirrepublicanismo de Schmitt explicitado em meio a sua concepção sobre a história do pensamento europeu e a história política europeia. A perspectiva teórica schmittiana se sustenta em uma leitura da história do pensamento baseada na ideia de neutralização do antagonismo político de natureza transcendente e teológica pela sucessão dos seguintes movimentos teóricos: a invenção da metafísica e da ciência natural no século XVII, a ascensão da virtude moral no século XVIII, o economicismo do século XIX e o surgimento da “religião da técnica” no século XX, uma crença profunda na possibilidade de domínio humano da natureza por meio do desenvolvimento tecnológico. Tais acontecimentos teóricos representariam uma continuidade do processo de despersonalização e de neutralização da política tal qual experimentada e praticada no século XVI, era de ouro da teologia política na Europa. A perspectiva teológica teria sido abandonada porque era controversa, enquanto a metafísica aspiraria à neutralidade (SCHMITT, 1996SCHMITT, Carl. The age of neutralizations and depolitizations. In Schmitt, Carl. The concept of the political. Chicago: The University of Chicago Press, 1996., p. 89). Portanto, há um aspecto comum a todos os textos de Carl Schmitt que nenhuma das possíveis interpretações de suas fartamente difundidas polissemias pode afastar: a oposição schmittiana ao processo de legitimação teórica das repúblicas europeias fundadas desde o século XVII (Inglaterra e Holanda) até o século XX (República de Weimar). As repúblicas consistiriam em uma experiência deliberativa que, por meio da discussão permanente, afastaria da cena política a decisão, elemento teológico-político fundamental do pensamento contrarrevolucionário de De Maistre e de Donoso Cortés, duas referências inafastáveis da obra de Schmitt. A vitória teórica das correntes filosóficas que sustentaram a legitimidade republicana afastou a possibilidade de restauração da legitimação das monarquias hereditárias do Ancién Regime. Inspirado em Donoso Cortés, Schmitt conclui que, em uma era na qual é impossível legitimar o título de rei sem sustentação na vontade popular, resta a alternativa da ditadura. Portanto, a via política que conduziria à derrota da república era a ditadura, forma de governo sucedânea da monarquia. Como afirma Schmitt, “As soon as Donoso Cortés realized that the period of monarchy had come to an end because there no longer were kings and no one would have the courage to be king in any way other than by the will of the people, he brought his decisionism to its logical conclusion. He demanded a political dictatorship. In the cited remarks of De Maistre we can also see a reduction of the state to the moment of the decision, a pure decision not based on reason and discussion and not justifying itself, that is, to an absolute decision created out of nothingness. But this decisionism is essentially dictatorship, not legitimacy” (SCHMITT, 1985, p. 65 - p. 66).
  • 3
    Filho do célebre sociólogo alemão Werner Sombart (1863-1941), na juventude Nicolaus Sombart (1923-2008) conviveu com Carl Schmitt.
  • 4
    O vai e vem entre discurso conceitual e a magia das imagens, o duplo jogo perpétuo - mas que, seguramente, não aparecia conscientemente sob essa forma - entre conteúdo manifesto e sentido oculto produzia uma espécie de double-talk cujo efeito - estimulante, excitante, irritante - é o de um double-bind: o efeito de ser fisgado. Essa duplicidade, essa dupla linguagem, é a fonte da fascinação que ele exerce. Definida de um ponto de vista puramente formal, ela constitui o efeito secundário inevitável de uma ambivalência existencial, de uma ambiguidade intelectual específica” (SOMBART, 1992SOMBART, Nicolaus. Chronique d’une jeunesse berlinoise. Paris: Quai Voltaire, 1992., 315).
  • 5
    “Muitos leitores ocasionais de Schmitt, muitas vezes nas antípodas das opções políticas e morais do autor, constatam que seus ensaios são de uma “pertinência perturbadora”, que afinal faz pensar. O leitor é atingido pela força de antecipação das análises, mas insatisfeito, não somente em razão das opções reacionárias do autor, mas também por seus raciocínios demasiado elípticos, pela massa de pressupostos, pela má fé camuflada pelo brio da expressão. Tudo isso torna indispensável uma leitura crítica, fora da qual, por outro lado, as análises de Schmitt serviriam para legitimar o que se trata de contestar radicalmente. Esse é o incômodo mais profundo: ele é um autor que é tentador usar contra suas próprias conclusões e valorizações, e que se presta a isso - a história de sua recepção demonstra isso amplamente” (MONOD, 2007MONOD, Jean-Claude. Penser l’ennemi, affronter l’exception: réflexions critiques sur l'actualité de Carl Schmitt. Paris: La découverte, 2007., pp. 12-13).
  • 6
    Pierre Bourdieu assinalou procedimento similar no pensador da Schwarzwald (Floresta Negra): “O que dá ao pensamento de Heidegger seu caráter polifônico e polissêmico é sua aptidão em falar harmonicamente em vários registros ao mesmo tempo. Evocar negativamente o socialismo, a ciência, o positivismo, através de uma crítica puramente filosófica de certas leituras puramente filosóficas... de Kant”. Cf. BOURDIEU, 1988BOURDIEU, Pierre. L'ontologie politique de Martin Heidegger. Paris: Minuit, 1988., p. 69.
  • 7
    “Schmitt, enquanto viveu, sempre refutou os julgamentos políticos sobre sua obra e invocava a liberdade científica de estabelecer diagnósticos. Seus adversários sustentam que, longe de propor diagnósticos, ele agiu como “jurista partidário”. Entretanto, sua obra, que une as duas perspectivas, da ciência e do engajamento político, impede que elas sejam dissociadas. Ele operava um jogo duplo, quando usava - ele, um antipositivista militante - o argumento positivista por excelência da distinção entre juízo de realidade e de juízo de valores para defender-se da acusação de engajamento (quando em Nuremberg). (...) Para conciliar seu ofício com suas posições políticas “inconfessáveis” ele recorre, como virtuoso, às técnicas retóricas destinadas a transmitir, na forma profissionalmente reconhecida dos manuais jurídicos, uma crítica do regime Weimar que um leitor avisado perceberia como radical” (BEAUD, 2013BEAUD, Olivier. Prefáce, in SCHMITT, Carl. Théorie de la constitution. 2a. ed.. Paris: PUF, 2013., p. 94 - p. 95).
  • 8
    Embora não seja incomum a tese que atribui a Schmitt um antissemitismo tardio decorrente de sua adesão ao nacional-socialismo, em um dos primeiros textos de juventude, intitulado Schattenrisse, publicado em 1913 sob o pseudônimo Johannes Negelinus, o futuro Kronjurist já promovia imprecações antissemitas, posteriormente reforçadas em seu Glossarium, cujos textos foram escritos entre 1947 e 1951, ou seja, após a derrota do nazismo. A esse respeito, ver TERTULIAN, 2004TERTULIAN, Nicolas. Carl Schmitt vu par les chercheurs allemands. Cités: Philosophie, Politique, Histoire, n. 17, vol. 01, 2004, Paris, PUF., p. 158.
  • 9
    Schmitt manifestou horror em relação à obra de Spinoza em seu Glossarium em razão da célebre fórmula Deo sive Natura (Deus, ou seja, a natureza) contida na parte I da Ética de Spinoza. Curiosamente, Schmitt, em sua Teoria da Constituição (SCHMITT, 2013_______. Théorie de la constitution. 2a. ed.. Paris: PUF, 2013., p. 215) se valeu das noções de natureza naturante e natureza naturada de Spinoza para demonstrar o fundamento metafísico de sua Teologia Política, pois Spinoza teria prenunciado, mediante tais noções, a distinção entre poder constituinte e poder constituído, só formulada um século depois por Sieyès. Na medida em que é impossível chegar às noções de natureza naturante e natureza naturada sem passar pelo princípio do raciocínio spinozano, sintetizado na fórmula Deo sive Natura, o uso da distinção possuía finalidade retórica, e não conceitual.
  • 10
    Cortés era, nas palavras de Renato Lessa, um dos heróis intelectuais de Carl Schmitt. Lessa também registra que Cortés difundiu uma antropologia negativa que propugnava pela “absoluta pecaminosidade da depravação humana” (LESSA, 2003LESSA, Renato. Agonia, aposta e ceticismo: Ensaios de filosofia política. Rio de Janeiro: UFMG, 2003., p. 29). A antropologia negativa absorvida por Schmitt foi decisiva para a construção do dispositivo despótico-paranoico exposto em O conceito do político e que serviu de base para Schmitt pensar a política a partir do conflito existencial e da promoção da homogeneidade social.
  • 11
    Schmitt expõe a tese do caráter aristocrático ou oligárquico da representação parlamentar pluralista e de sua contradição com a democracia em sua Teoria da Constituição (SCHMITT, 2013_______. Théorie de la constitution. 2a. ed.. Paris: PUF, 2013., p. 356) e em O guardião da constituição (SCHMITT, 2007, p. 212).
  • 12
    Embora Schmitt afirmasse que a legitimidade do poder do presidente da República de Weimar residiria no princípio democrático (ver SCHMITT, 2007_______. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.. Capítulo 10), a posição do presidente no interior da ordem política concebida por Schmitt era, nitidamente, uma posição monárquica. Não foi mero acaso a retomada da tese de Constant de que o chefe de Estado reina, mas não governa, na medida em que sua função é representar a permanência e a continuidade do Estado (SCHMITT, 2007, p. 199). Apenas excepcionalmente, nas situações de emergência, o poder neutro presidencial assume função ativa (SCHMITT, 2007, p. 200). O presidente, em situações normais, reina ao representar a unidade do Estado; excepcionalmente, governa por meio do art. 48 da Constituição de Weimar. Somente assim seria possível evitar a neutralização da política de caráter conciliador denunciada no Capítulo 8 do texto (no mesmo sentido, ver SCHMITT, 2013. Capítulo 22, p. 430). É preciso registrar, no entanto, que Schmitt apresentou em sua Teoria da Constituição (SCHMITT, 2013, Capítulo 27, p. 498 e p. 499) tese oposta à desenvolvida em O guardião da Constituição, pois, ao analisar a situação do parlamentarismo de Weimar, reconheceu que o presidente não possuía poder neutro, na medida em que precisava se submeter ao poder do chanceler, cuja eleição dependia da formação de uma coalizão partidária.
  • 13
    Sobre a questão das neutralizações teóricas da política e do papel da metafísica nesse processo, ver SCHMITT, 1996SCHMITT, Carl. The age of neutralizations and depolitizations. In Schmitt, Carl. The concept of the political. Chicago: The University of Chicago Press, 1996., p. 89.
  • 14
    Hugues Rabault (RABAULT, 2011RABAULT, Hugues. Carl Schmitt et l’influence fasciste: relire la Théorie de la Constitution. Revue française de droit constitutionnel, n. 88, 2011/4.) registrou as diversas passagens da obra schmittiana em que a admiração pelo sistema político de Mussolini é perceptível. Segundo Rabault, no período de 1922 a 1933 foi o fascismo italiano que serviu de modelo político para Carl Schmitt (RABAULT, 2011, p. 710). Schmitt não era um conservador, em nenhum momento haveria se dedicado a preservar a república de Weimar, tese que certos leitores de O guardião da constituição difundem. Na verdade, o modelo de Estado total que sustenta o discurso exposto nessa obra é o Estado fascista. O projeto de Schmitt era transformar radicalmente o Estado alemão, que deveria tornar-se um Estado abertamente autoritário (RABAULT, 2011, p. 718). O autoritarismo inerente ao Estado total imaginado por Schmitt se revela por meio da proposta de abolição de qualquer espécie de esfera de despolitização e neutralização das condições de decisão política, causas da ausência do Estado das esferas religiosa, cultural, científica e econômica (RABAULT, 2011, p. 718). Portanto, para Schmitt, a decisão política que determina o amigo e o inimigo seria uma maneira de afirmação do Estado total por ser capaz de tornar novamente políticas todas as esferas sobre as quais recaíram o véu da neutralização desde a invenção da metafísica, base da revolução científica do século XVII. A natureza fascista da concepção de política schmittiana também foi percebida “a quente” por Hermann Heller. Na visão de Heller, o conceito do político formulado por Schmitt tornava impossível “uma base de discussão ou de acordo entre tais inimigos políticos (...) falar não é mais possível - o que permanece possível é apenas o fato da imposição” (HELLER, 2001HELLER, Hermann. L’Europe e le fascisme (1929). Cités, n. 6, Paris, 2001/2., p. 195). Ou seja, não é apenas o modelo de ordem política que atesta a filiação de Schmitt ao fascismo, mas também sua concepção existencial de conflito político.
  • 15
    Um problema a explorar envolve possível relação entre a polissemia dos conceitos de Schmitt e seu esforço retórico de conquista da adesão ao projeto de derrubada da República de Weimar. Seria a variação semântica schmittiana uma prova de que o telos da obra era mais relevante do que o sentido da obra?
  • 16
    Muitas vozes ainda hoje se manifestam para defender os acertos de Schmitt ao definir a política a partir do conflito. É o caso de Chantal Mouffe, que tece considerações elogiosas sobre o conceito schmittiano de política, uma vez que Schmitt haveria reconhecido a existência de identidades coletivas e a impossibilidade de negar o conflito político (MOUFFE, 1992MOUFFE, Chantal. Penser la démocratie moderne avec, et contre, Carl Schmitt. Revue française de Science politique, 42º ano, n. 1, 1992., p. 89).
  • 17
    Na ocasião da intervenção federal na Prússia, Franz von Papen foi investido no cargo de interventor por Hindenburg. Em 30 de janeiro de 1933, após convencer Hindenburg a nomear Adolf Hitler chanceler da Alemanha, integrou o gabinete de Hitler ao assumir o cargo de vice-chanceler. A aliança selada no golpe da Prússia entre a direita conservadora e o partido nazista foi decisiva para a conquista da chancelaria pelo líder do NSDAP.
  • 18
    Segundo Renaud Baumert, Alain de Benoist é defensor dessa tese. Na opinião de Baumert, ainda que Schmitt se opusesse a Hitler antes de seu perfilamento, tal tese se sustenta em um falso silogismo: “todos os opositores de Hitler eram partidários do regime (de Weimar); Schmitt era um opositor de Hitler; logo, Schmitt era partidário do regime. A premissa maior é falsa e a premissa menor se tornaria falsa, no mais tardar, no primeiro de maio de 1933; a conclusão contém um erro, senão uma manipulação” (BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1., p. 32).
  • 19
    “O governo social-democrata da Prússia era um dos grandes bastiões da resistência contra o nacional-socialismo (na ocasião da extinção do Estado da Prússia, Goebbels celebrou por meio de seu jornal); sua derrocada representou a derrota da Prússia democrática (instaurada pela República de Weimar) e a vitória da Prússia reacionária, da qual Schmitt foi um apóstolo zeloso.” (TERTULIAN, 2004TERTULIAN, Nicolas. Carl Schmitt vu par les chercheurs allemands. Cités: Philosophie, Politique, Histoire, n. 17, vol. 01, 2004, Paris, PUF., p. 161).
  • 20
    O Artigo 48 determinava que o presidente do Reich poderia intervir, com a ajuda das forças armadas, em um Land que não cumprisse os deveres constitucionais, quando a segurança e a ordem pública fossem gravemente perturbadas - cabendo ao presidente do Reich tomar as medidas necessárias para seu restabelecimento. Para isso ele poderia suspender total ou parcialmente os direitos e garantias fundamentais (liberdades individuais e de expressão, inviolabilidade do domicílio, não retroatividade da lei, sigilo postal, direito de reunião e de associação, além do direito à propriedade).
  • 21
    Sobre as “acrobacias intelectuais”, a “polissemia de superfície” do discurso de Schmitt e a finalidade antirrepublicana de sua obra, ver BAUMERT, 2008BAUMERT, Renaud. Carl Schmitt contre le parlementarisme weimarien. Quatorze ans de rhétorique réactionnaire. Revue française de science politique, Vol. 58, 2008/1., p. 36.
  • 22
    Sobre a posição de Schmitt acerca do conflito entre nazistas e comunistas, sobre a necessidade de intervenção na Prússia e o uso da distinção entre amigo-inimigo para resolver o conflito, ver SÉGLARD, 1995SÉGLARD, Dominique. Présentation. In SCHMITT, Carl. Les trois types de pensée juridique. Paris: PUF, 1995. p. 22.
  • 23
    Kurt von Schleicher (1882-1934), militar de carreira, chega ao posto de general e participa ativamente da política nos últimos momentos da República de Weimar. Schleicher foi designado Chanceler em dezembro de 1932 pelo presidente do Reich, o Marechal Hindenburg. Era um defensor de um modelo de regime autoritário. Durante seu curto período como Chanceler, propõe uma reforma agrária nas propriedades dos Junkers, socializando as terras improdutivas ao leste do rio Elba para diminuir as tensões sociais na região. Foi assassinado juntamente com sua esposa durante a chacina perpetrada pelos nazistas conhecida como a Noite dos longos punhais. Para um relato detalhado do episódio cf. GALLO, 2007GALLO, Max. La nuit des longs couteaux, 29-30 juin 1934. Paris: Tallandier, 2007.. Na ocasião, Schmitt perpetrou um artigo defendendo a ação do Führer. Sobre o envolvimento de Schmitt no episódio cf. TERTULIAN, 2001_______.“Le juriste et le Führer”, Cités, n. 6, 2001/2, p. 37-47., p. 37-47. Para uma versão francesa do texto: SCHMITT, 2003b_______. “Le Führer protège le droit”. Cités, n. 14, 2003b, p. 165-171..
  • 24
    A obra de Peukert apresenta um balanço da “erosão das opções” que marcou o final da República, cf. Peukert, 1996, cap. 14.
  • 25
    Sobre a relação entre as teses apresentadas na crise da Prússia e o discurso formulado durante o período de estabilidade republicana, ver BEAUD, 1997______. Les derniers jours de Weimar: Carl Schmitt face à l’avènement du nazisme. Paris: Descartes, 1997., p. 237.
  • 26
    Foi com o apoio das massas, que fizeram do NSDAP o principal partido alemão, que os nazistas chegaram ao poder. Mas foi a aliança com as forças conservadoras que permitiu ao chefe do partido realizar a “revolução legal”. Primeiro, com os poderes presidenciais do Artigo 48, depois com os plenos poderes votados com base no artigo 76. Sob a primeira norma o KPD é proscrito, sob a segunda todos os outros são proscritos e o NSDAP é proclamado partido único. Sob o governo presidencial, os dois pilares da tradição prussiana - exército e a burocracia do Estado - foram reforçados, e é neles que se apoia a tentativa de uma reforma autoritária do Estado, o que as beneficiaria ainda mais. O uso rotineiro de decretos modificou o sentido do Artigo 48: a duração limitada da exceção se transformou em prática permanente do governo, com a supressão da divisão dos poderes legislativo e executivo, em favor do segundo. Essa ampliação dos poderes presidenciais para além dos limites constitucionais, por sua vez, reforça o jogo de influências nos bastidores do governo - que nesses últimos momentos da República é tutelado pelo alto oficialato, que se impõe aos governos de Brunning, von Papen e Schleicher. A esse ambiente conspiratório se junta a pressão crescente das forças conservadoras favoráveis à entrada do NSDAP no governo, por considerarem que só um partido de massa forneceria o apoio popular necessário.
  • 27
    Partido Nacional Popular Alemão (Deutschnationale Volkspartei), organização formada por monarquistas, antissemitas, representantes dos grandes proprietários de terra (Junkers), altos funcionários, oficiais das forças armadas, parte dos industriais e das camadas médias do Leste da Alemanha.
  • 28
    Partido Alemão do Centro (Deutsche Zentrumspartei), fundado em 1870 e representante do eleitorado católico. Franz von Papen fez parte dele até 1932.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2021
  • Aceito
    17 Jul 2022
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