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Uma Justiça do Trabalho feminista e antirracista é possível?

Resumo

Este artigo tem por objetivo examinar o contexto histórico em que o direito do trabalho surge e o discurso que o fundamenta. O objetivo é demonstrar como esse direito, apesar do compromisso social, reproduz uma racionalidade comprometida com uma visão branca e masculina de mundo. Analisa-se, também, o quanto essa racionalidade compromete a resposta jurisdicional para diferentes conflitos envolvendo diferentes corpos. Demonstra-se como ações como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero firmado pelo Conselho Nacional de Justiça têm o mérito de colocar luz em questões, cujo potencial para uma mudança de racionalidade não pode ser desprezado. Propõe, porém, ir adiante, fomentando a criação de espaços para a discussão acadêmica de temas sensíveis e a ressignificação de institutos jurídicos, desde uma perspectiva contaminada pelas leituras decoloniais, antirracistas e feministas de mundo.

Palavras-chave:
Direito do trabalho; Feminismo; Antirracismo; Decolonialismo

Abstract

This article aims to examine the historical context in which labor law arises and the discourse that underlies it. The objective is to demonstrate how labor rights, despite the social commitment, reproduces a rationality attached to a white and masculine view of the world. It is also analyzed how much this rationality compromises the jurisdictional response to different conflicts involving different bodies. It demonstrates how actions such as the Protocol for Judgment with a Gender Perspective signed by the National Council of Justice have the merit of shedding a light on issues whose potential for a change in rationality cannot be neglected. It proposes, however, to go further, encouraging the creation of spaces for the academic discussion of sensitive topics and the resignification of legal institutes, from a perspective contaminated by decolonial, anti-racist and feminist readings.

Keywords:
Labor law; Feminism; Anti-racist; Decolonial

1. Introdução

Vive-se hoje uma realidade em que julgamentos judiciais são proferidos sem que seja possível compreender, do texto da decisão, se a questão envolve uma mulher, uma pessoa indígena ou negra, alguém jovem ou velho, com plena capacidade física ou acometido com alguma condição de saúde debilitante. Isso ocorre inclusive no âmbito do Direito do Trabalho. A análise de decisões judiciais em temas sensíveis, como a caracterização de trabalho em condição análoga a de escravo, revelam que também o Direito do Trabalho, fruto do reconhecimento da necessidade de impor limites ao sistema capitalista, capitula diante da estrutura social. Neste artigo, se busca investigar por que quem aplica um Direito social, parido na luta da classe trabalhadora, parece ignorar o fato de que os diferentes corpos são afetados de modo diverso pela imposição de jornadas exaustivas, pela redução de salário, pelas possibilidades de assédio ou pela perda do emprego.

Para isso, é feita uma breve revisão bibliográfica, que tem por objetivo demonstrar as raízes da compreensão que até hoje compartilha-se acerca do que é o Direito em geral, e o Direito do Trabalho em particular. A partir daí, será analisado um caso concreto que permite demonstrar o quanto o Direito do Trabalho ainda permanece alinhado a um discurso que nega as diferentes formas de opressão.

O processo de feminilização do Direito e do processo do trabalho, que se compreende como necessário, é longo e profundo. Depende de percorrer um caminho que já vem sendo trilhado por doutrinadoras, para as quais essa questão se coloca como uma urgência. Sua potência transformadora, por sua vez, não está dada. Não basta um documento estabelecendo parâmetros para julgamento com perspectiva de gênero, nem é necessário desprezar o Direito do Trabalho em toda a sua potência, em razão da obtusidade de quem com ele atua. É preciso implicar-se em um processo de mudança que envolve a linguagem, a escolha de quem ocupa os postos de poder (quem administra, quem julga ou aprova leis) e a alteração radical de pressupostos para a atuação jurídica, hoje naturalizados e ensinados como dogma, em nossas faculdades de Direito.

O caminho proposto é a análise dos pressupostos que estruturam o Direito, e o Direito do Trabalho em especial, para em seguida discutir, a partir de um caso concreto, a dificuldade teórica e jurisprudencial em lidar com as diferenças e reconhecer suas implicações na dinâmica das relações sociais. Por fim, se propõe alguns novos passos, na trilha aberta por autoras que já pensaram sobre o tema, a fim de construir uma racionalidade jurídica feminista, antirracista, antissexista e tensionadora do sistema capitalista, a fim de criar possibilidade de alteração concreta da sociabilidade vigente.

2. Nosso Direito vem de onde? Situando o Direito a partir dos pressupostos da sociedade capitalista

A dimensão do massacre cultural e político dos povos originários, a partir da chegada dos europeus na América Latina, pode ser percebida também através do estudo do Direito. Toda a regulação social, a hierarquia, a forma como problemas de convívio eram resolvidos por aqui, foram ignorados. A regulação europeia foi imposta, assim como a língua, a religião, os hábitos e a cultura. Por isso, até hoje se estudam as Ordenações Filipinas ou o Código Manuelino, que vigeram no Brasil até a promulgação do primeiro Código Civil brasileiro, em 1916. A necessidade dessa imposição foi referida por Hobbes, em seu clássico Leviatã, publicado pela primeira vez em 1651. Ele escreve que os “povos selvagens de muitos lugares da América” não possuem “qualquer espécie de governo”. Evidentemente, não havia a menor preocupação em compreender a regulação social já instituída entre os indígenas. Para Hobbes, as “paixões que fazem os homens tender para a paz” são, entre outras, “o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las através do trabalho”1 1 HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109. .

A horizontalidade das decisões, a comunalidade dos bens, a ativa participação das mulheres e a forma de resolver os conflitos, utilizada por alguns povos indígenas, foi compreendida como ameaça. Em outra obra, Hobbes refere que :

“Se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais controvérsias inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais, pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar”.2 2 HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28.

Essa era uma compreensão útil, mas acima de tudo fundada em um arcabouço teórico, segundo o qual o homem europeu (e suas instituições) devia tornar-se o parâmetro para todas as pessoas e organizações sociais, por supostamente representar a evolução, o desenvolvimento. Em outra passagem, tal ideia fica ainda mais clara:

“Sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela paz e pela sociedade”3 3 HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70. .

Montesquieu, no livro Espírito das Leis, publicado pela primeira vez em 1748, refere que a escravidão ocorria em países da América, em razão do clima, da cor da pele ou do modo dos cabelos. E tratava-se de uma opção política válida em razão do atraso daqueles povos. Porém, nas “nações onde a liberdade civil está geralmente estabelecida”, “como todos os homens nascem iguais”, “a escravidão é contra a natureza”. Apenas “em certos países” está fundada “numa razão natural”. O autor propõe que se distingam tais países, em que “as próprias razões naturais a rejeitam” e nos quais a escravização foi abolida, daqueles nos quais essa prática deve ser tolerada. Ele chega a afirmar, mais adiante, que “tendo os povos da Europa exterminado os da América, tiveram que escravizar os da África para utilizá-los para abrir tantas terras”. Descreve as pessoas escravizadas como “pretos dos pés à cabeça”, com “nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles” e acrescenta que “espíritos pequenos exageram demais a injustiça que se faz aos africanos”4 4 MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 258-268. .

Nesses textos encontramos explícita toda a base do que ainda hoje é o Direito reproduzido nas faculdades e praticado nos tribunais. A ideia do medo como afeto central e, portanto, do Estado como necessariamente repressor. O pressuposto de que a propriedade é privada e individual, bem como de que tudo pode ser consumido como propriedade (animais, plantas, rios, minérios). A noção de que só existe racionalidade entre os seres humanos e de que são plenamente capazes somente os homens com propriedade. A ideia de desenvolvimento ou progresso como assimilação da forma europeia de convívio social. E, por fim, a ideologia do Direito como algo natural e indispensável.

O dogma da neutralidade é também fruto dessa racionalidade. Ser neutro ou imparcial é, no fim das contas, ser passivo diante das desigualdades e perversidades sociais produzidas pela forma como nos organizamos. Como refere Ovídio Baptista, o Direito “é uma ciência da cultura”, produzido para um determinado tipo de sociedade com o objetivo de viabilizar a troca. Trabalha com verdades contingentes, “situando-se muito distante da matemática e muito próximo das ciências históricas”5 5 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 27-8. . Ainda assim, precisamos fingir que se trata de algo exato, capaz de conferir certeza e, sobretudo, descomprometido com a ideologia e o poder.

No amplo estudo que faz acerca da situação das mulheres durante o processo de acumulação primitiva, que se dá no período que hoje chamamos de Idade Média e que compreende séculos de muita organização e revolta contra a dominação, Silvia Federici apresenta a hipótese de que o capitalismo deve ser compreendido como a reação conservadora às possibilidades alternativas de organização social. Uma reação materializada através do desapossamento, da instituição da obrigatoriedade do trabalho, da “constituição do corpo proletário em uma máquina de trabalho”, da “perseguição das mulheres como bruxas” e da criação da figura dos “selvagens” e dos “canibais”. Ela refere o episódio da greve dos trabalhadores têxteis de Ypres (Flandres), ainda em 1377, para afirmar que quando eles “se levantaram empunhando armas contra seus empregadores”, “não apenas foram enforcados como rebeldes, mas também foram queimados pela Inquisição como hereges”6 6 FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017, p. 73-98. , evidenciando a manipulação política da posição religiosa, algo tão presente ainda hoje.

Hannah Arendt, em seu livro A Condição Humana, diz que três eventos constituíram ou permitiram a constituição do que hoje compreendemos como modernidade. A descoberta da América e a forma de exploração e dizimação posta em marcha sobre as populações indígenas e negras; a Reforma Protestante e a invenção do telescópio, “ensejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo”7 7 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 260. . São questões imbricadas, pois as descobertas científicas, viabilizadas pela extração de minérios da América Latina, alteraram a forma de compreender o mundo e viabilizaram as grandes navegações. Aliaram-se à necessidade de refrear as insatisfações decorrentes do processo de industrialização de algumas cidades europeias e, pois, de superexploração de quem já dependia do trabalho para sobreviver.

O uso da perseguição religiosa serviu à finalidade de consolidar o processo de transformação da sociedade, evitando o enfrentamento real da dominação. Foi através da religião que um forte movimento de resistência se organizou, segundo demonstra Federici. Os hereges difundiam entre o povo uma concepção nova da sociedade que “redefinia todos os aspectos da vida cotidiana (o trabalho, a propriedade, a reprodução sexual e a situação das mulheres)”. A resposta foi uma guerra santa, institucionalizada pelo Estado. Um potente instrumento político de combate a essas revoltas, direcionado contra os corpos femininos e pobres. A novidade da pesquisa de Federici, em relação ao trabalho de Marx, está justamente em demonstrar que o processo de acumulação primitiva foi uma “acumulação de diferenças, desigualdades, hierarquias e divisões que separaram os trabalhadores entre si”, e que atuou especialmente sobre determinados corpos, instituindo, como elemento central para a manutenção do domínio, a racialização e a dominação sexual das mulheres. A caça às bruxas, por exemplo:

“Destruiu todo um universo de práticas femininas, de relações coletivas e de sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista, assim como a condição necessária para sua resistência na luta contra o feudalismo”8 8 FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017, p. 205; 259. .

As mulheres dominavam as ervas medicinais e abortivas, faziam partos e em vários lugares organizavam-se, produziam alimentos e viviam coletivamente sem estarem sob a condição de esposas ou filhas de algum homem. A instituição do modelo de troca de salário por capital, através do qual até mesmo o alimento só podia ser obtido pela compra, bem como a racionalidade cientificista que separa e depura os conhecimentos, exigindo métodos (criados por homens) para que práticas sociais (políticas, médicas, econômicas) fossem consideradas válidas, passou pela espoliação desses saberes femininos e pelo subsequente confinamento do maior número possível de mulheres ao espaço doméstico. As que resistiram, foram queimadas como bruxas.

A centralização da dominação sobre os corpos feminilizados foi facilitada por uma história de opressão masculina que antecede esse período histórico e se revelou útil e necessária, na medida em que eram principalmente as mulheres a provocar, com suas práticas, formas de resistência coletiva que desafiavam o poder. O Direito, tal como o praticamos hoje, é fruto desse tempo histórico. Suas principais categorias (propriedade privada, sujeito de direitos e contrato) legitimam um convívio social que privilegia a minoria que seguiu detendo poder. Como refere Carole Pateman, a liberdade (e poderíamos acrescentar também a igualdade) civil é “atributo masculino e depende do direito patriarcal”9 9 PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 17. . Basta pensar como as relações sociais são disciplinadas pelo direito de família ou o fato de que a escravidão se apoiou, em países como o nosso, em ampla regulação que a tornava legítima, de tal sorte que a principal discussão jurídica em 1888 era a necessidade ou não de o Estado indenizar os proprietários que perderiam suas mercadorias com a abolição. Tanto as mulheres quanto as pessoas não-brancas escravizadas estavam ligadas aos homens por meio de um contrato. Não eram sujeitos de direito com plena capacidade civil10 10 Idem, p. 175. .

A ciência jurídica foi construída desde essa perspectiva antropocêntrica, dentro da qual os eventos apontados por Hannah Arendt, antes mencionados, implicaram-se mutuamente para promover profunda alteração na forma como as pessoas se compreendiam e se relacionavam em comunidade. Essa ciência assume como suas, as mesmas características atribuídas aos homens: razão, poder, objetividade, ação, cultura e universalidade. Enquanto as características que passam a ser designadas como femininas (irracionalidade, passividade, emoção, sensibilidade, concretude e particularismo) precisam ser expurgadas das ciências em geral, e do Direito em particular11 11 OLSEN, Frances. El sexo del derecho. In: RUIZ, Alicia (ed.). Identidad feminina y discurso jurídico. Buenos Aires: Biblos, 1990. p. 24-43. . A noção de verdade como algo que pode ser obtido ao final de um procedimento judicial e a análise de decisões jurídicas como certas ou erradas, sob uma perspectiva lógico-matemática que simplesmente não corresponde ao que realmente o Direito é enquanto produção cultural e administração de poder, são elementos dessa racionalidade12 12 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 16-17. .

Era preciso superar uma visão de mundo baseada em crenças, na observação da natureza, no reconhecimento de outros seres como igualmente dotados de razão, compreensão e dignidade. Ou seja, havia um intuito deliberado em expurgar a visão de mundo que hoje muitas de nós buscam resgatar através da aproximação com culturas indígenas, de matriz africana ou orientais. A verdade, que antes era encontrada nas crenças, na observação dos sentidos e na tradição, é posta em xeque pelas descobertas científicas13 13 Hannah Arendt refere-se à construção do telescópio como algo revolucionário, pois a partir dele foi possível compreender que não era a terra que girava em torno do sol, o que implicava concluir fossem falíveis os sentidos humanos, para fazer alcançar a verdade. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 289-300. . Segundo Descartes, que escreveu na primeira metade do século XVII14 14 O Discurso do Método foi publicado pela primeira vez em 1637. , é apenas o pensamento humano que permite a compreensão da nossa existência. O método cartesiano para descobrir a verdade das coisas pressupunha a absoluta separação entre sujeito e objeto de estudo, verdade e mentira, certo e errado15 15 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, pp. 288-291. .

Não se trata, portanto, apenas de uma racionalidade construída por homens brancos europeus como Descartes, Hobbes e outros, embora o fato de que sejam sempre eles a nos explicar o que é o Estado e o Direito tenha significado. Trata-se de uma perspectiva que só compreende o Homem como sujeito e que nega todas as peculiaridades capazes de excepcionar regras gerais. O pressuposto é o de que se a mente humana só pode conhecer aquilo que ela produz e retém, deve buscar o conhecimento matemático, “destituído do senso comum”16 16 Idem, p. 297. . A verdade se revela quando o processo correto é aplicado17 17 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, pp. 300-303. . Quem escolhe qual é o processo adequado, porém, é esse mesmo Homem. Nas chamadas ciências exatas, como a matemática, esse método tem eficácia. Quando se trata da cultura, da produção de conhecimento ou da regulação do convívio social, a utilização desse racionalismo científico revela-se problemática e bastante perniciosa.

Há uma espécie de autovalidação, que talvez, inclusive, seja uma das causas profundas para o que hoje compreendemos como pós-verdade. Mas essa já é uma reflexão para outro artigo. Aqui, pontua-se o quanto o Direito e o processo estão mergulhados nessa lógica racionalista e o quanto ela é visceralmente masculina, porque pensada pelos e para os homens e porque endereçada a manter a hegemonia e o poder desse mesmo segmento da sociedade. A direta influência desse racionalismo cartesiano branco e masculino é percebida na formulação das principais categorias jurídicas. Os direitos “naturais” pressupõem transcendência do momento histórico e da sociedade para a qual destinados18 18 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 68. . Classe, raça e sexo desaparecem, para dar lugar ao Sujeito de direitos. Kelsen afirmará que os juízos jurídicos, “não podem ser reduzidos a afirmações sobre fatos presentes ou futuros da ordem do ser, pois não se referem de forma alguma a tais fatos”. Referem-se, antes, a um dever-ser19 19 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 52. . Estão fora do mundo concreto, como prescrições abstratas que servem a todas as pessoas, algo que a realidade desmente com facilidade.

Hegel, por sua vez, dirá que “o direito é forma” e a forma Direito “é determinada pela forma sujeito de direito”, concebida como “necessariamente universal”20 20 HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 46. . A propriedade surge como decorrência de uma liberdade que se realiza através da personalidade jurídica. Trata-se de uma construção teórica realizada como uma “exigência mais ampla pela erradicação de tudo que resta dos privilégios feudais”. Hegel afirma textualmente que “tudo aquilo em que a vontade livre se exterioriza há de ser propriedade do sujeito dessa vontade21 21 HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 94. .

Embora não seja possível aprofundar a análise da teoria hegeliana acerca da liberdade, é interessante perceber como ele justifica teoricamente a nova concepção do Direito. Hegel escreve que “só pela plenitude do seu corpo e do seu espírito, pela conscientização de si como livre”, é que se entra “na posse de si e se torna a propriedade de si mesmo por oposição a outrem”. Sob essa perspectiva, justifica-se então “ceder a outrem aquilo que seja produto isolado das capacidades e faculdades particulares da minha atividade corporal e mental”, sempre por um tempo limitado, pois assim se estabelece uma relação extrínseca “com a minha totalidade e universalidade”22 22 Idem, p. 56. . Ele define, portanto, a compra e venda de força de trabalho como expressão da liberdade individual e prova da nossa condição de proprietários. Um novo conceito de autonomia surge daí e irá influenciar o olhar para as relações sociais de trabalho até hoje. No mesmo sentido, Locke irá defender que a primeira propriedade que possuímos é a capacidade de trabalho e apenas o proprietário pode, portanto, dela dispor. Quando o faz, exerce sua liberdade23 23 PATEMAN, op. cit., p. 108. .

Aparentemente, o que estava ocorrendo era a superação dos privilégios de casta que identificavam o chamado Antigo Regime. A partir da nova ordem capitalista, todos passaram a ser proprietários desde que nascem, já que possuem força de trabalho. E, portanto, todos são livres e iguais, já que a liberdade passa a ser identificada com a possibilidade de negociar a propriedade. Note-se que sequer se problematiza o fato de que algumas pessoas nascem sem condição de vender essa força de trabalho, em função de características físicas ou psíquicas peculiares. Essas pessoas, dentro da perspectiva em que o sistema capitalista se consolida, são não-sujeitos, a ordem jurídica e social simplesmente não as considera. Apenas bem mais tarde a construção de regulação previdenciária buscará dar conta disso, sem entretanto questionar a base do próprio conceito de liberdade ou de sujeito de direitos. E limitando-se a vincular a possibilidade de amparo estatal às pessoas inseridas na condição de contratantes, vendedoras de força de trabalho.

Essa convicção de que somos proprietários da força de trabalho é o que permite naturalizar o fato de que o acesso à comida, roupa, remédio ou casa só se dá através da troca por salário. E esse só será obtido se a propriedade privada for negociada no mercado24 24 SEVERO, Valdete Souto. Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho. 2ª edição. E-book, São Paulo: ESA, 2020, p. 27. . Até mesmo a família, como bem lembra Carole Pateman, passará a ser compreendida sob a forma de um contrato em que o proprietário, não por acaso, é homem (pai, marido, senhor de escravos)25 25 PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 2008. . O Direito do Trabalho irá aparecer em um momento posterior justamente tensionando esse disfarce. Terá, também, compromisso com o discurso racionalista cartesiano em que sujeitos livres e iguais são aqueles detentores de propriedade privada que efetuam trocas através de contratos, mas explicitará o disfarce.

3. O Direito do Trabalho está imerso nessa mesma racionalidade capitalista

As referências teóricas antes citadas, às quais tantas outras poderiam somar-se, são já suficientes para que se compreenda porque questões trabalhistas como jornada e remuneração não são consideradas da perspectiva de quem detém a incumbência do trabalho de cuidado, nem se problematiza, em uma sociedade de trabalho obrigatório, a existência de tarefas domésticas não remuneradas atribuíveis às mulheres. Se o trabalho de cuidado é essencial à reprodução da força de trabalho e se interessa ao sistema construir a ideia de que são as mulheres que devem exercê-lo, seria intuitivo que se estabelecessem diferenças significativas de extensão da jornada para as mulheres, por exemplo, desde sua primeira regulação pelo Estado.

A questão é que não apenas a atribuição do trabalho de cuidado não remunerado às mulheres as confina ao âmbito privado, como também garante a hegemonia masculina, pois sua sobrevivência passa a depender dos salários recebidos pelos companheiros. Importa, então, invisibilizar as diferenças e reforçar a natural habilidade feminina para o cuidado. Ao mesmo tempo, importa manter a falsa igualdade, quando se trata de regular o tempo de trabalho, seja para desestimular o trabalho assalariado feminino, seja para promover a extenuação do tempo e da força física e mental das mulheres que, desse modo, acumulam as atividades laborais e de cuidado, seja, ainda, para que a centralidade do trabalho de reprodução passe desapercebida.

Manter as mulheres sob o jugo dos homens, com os quais firmam os contratos (de matrimônio) que garantirão a coação estatal caso queiram sair dessa lógica, é, portanto, uma condição para a consolidação e o desenvolvimento do modelo de sociedade em que vivemos, no qual o Direito do Trabalho existe e é aplicado. Algumas autoras feministas apontam o trabalho não remunerado em âmbito doméstico como uma forma política central de dominação, consolidada mediante a ressignificação do conceito de família, que passa a exercer uma tríplice função: “sexual, reprodutiva e socializante (o mundo da mulher) abraçadas pela produção (o mundo do homem) - precisamente uma estrutura que em última análise é determinada pela economia”26 26 MICHELL, Juliet. Mulheres: a Revolução mais longa. Revista Gênero. Niterói, v. 6, n. 2 - v. 7, n. 1, p. 203-232, 1. - 2. sem. 2006, disponível em https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2013/01/G%C3%AAnero-J-Mitchell.pdf. .

Sempre é bom ressaltar que as mulheres, objeto deste projeto político de dominação patriarcal são, em regra, as brancas. As mulheres indígenas e negras terão suas vidas atravessadas pela outra forma de opressão instrumental ao sistema: a escravização. Isso não significa aliviá-las da condição de assujeitadas no âmbito do contrato sexual, nem livrá-las, portanto, dessa função política que lhes é imposta. Significa que como escravizadas ou descendentes de escravizadas, essas mulheres não brancas estão diante de uma contingência que muitas vezes as coloca, inclusive, em posição de antagonismo em relação às mulheres brancas.

O processo de subjugação dos corpos femininos desde a lógica da ressignificação da família e do confinamento ao âmbito doméstico, com a imposição das tarefas de cuidado e a sujeição ao salário recebido por um homem é um retrato da realidade capitalista que não pode ser simplesmente transposto para a compreensão das relações de trabalho e de dominação no Brasil. Aqui, como em outros países colonizados, mulheres não brancas foram tratadas “como homens”, no que tange à exploração da sua força de trabalho. Não estão abrangidas pelo mito da fragilidade feminina e seus corpos são considerados territórios à disposição da satisfação fisiológica e sexual dos homens, brancos ou não. Em relação a elas, os mitos sobre a mulher e sobre o negro se somam e por vezes se excluem.

Esses mitos exercem uma função ideológica importante para a compreensão das relações sociais, em especial das relações de trabalho. Eliminam competidores, “sobretudo, nas áreas de atividades mais valorizadas socialmente”, exercendo a função de verdadeiro “requisito funcional da sociedade de classes”27 27 SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Vozes, 1976, p. 72. . O Direito (e o Direito do Trabalho em especial), sustentado nesses mitos e orientado à naturalização do trabalho obrigatório, é masculino e branco. Isso tem consequências profundas, especialmente em uma sociedade na qual “nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negroide” e compartilhar, com os povos originários, a mesma história de “desenraizamento, escravidão e discriminação racial” não garante sequer a construção de uma identidade. Ao contrário, tornar-se negro “tomando consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada” é uma tarefa dolorida e demorada28 28 SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da Identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 77. . A ideia de que o ser diferente, “inferior e subalterno”, “o feio, o ruim, o sensitivo, o superpotente e o exótico”29 29 Idem, p. 27. será aquele que pertence à categoria das pessoas não-brancas, é o que permite, por exemplo, que “cidadãos de bem” não se escandalizem com o fato de que 86% das pessoas mortas pelo Estado, através da polícia, no Rio de Janeiro, são pretas e pardas, embora elas representem pouco mais de 50% da população daquela cidade30 30 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/12/14/estudo-diz-que-86percent-dos-mortos-em-acoes-policiais-no-rj-sao-negros-apesar-de-grupo-representar-517percent-da-populacao.ghtml, acesso em 12/1/2022. .

Os mitos que reificam caraterísticas de pessoas não-brancas ou feminilizadas permitem a disseminação do medo como afeto político e a construção da ideologia de que o Estado, através do Direito, deve proteger as pessoas brancas desses não-sujeitos ameaçadores. A ideologia do branqueamento, representada emblematicamente pela vinda dos trabalhadores europeus no período da abolição formal da escravização, e o mito da democracia racial, reforçam a suposta superioridade racial e cultural branca31 31 Ver a propósito: GONZALEZ, Lelia. Por um feminismo Afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. , viabilizando uma produção, interpretação e aplicação estruturalmente racista e sexista do ordenamento jurídico.

Uma decisão recente do Tribunal Regional do Trabalho da 9o Região é interessante para refletirmos sobre isso. Andrey dos Santos, trabalhador negro contratado como técnico em segurança do trabalho, foi instado por três vezes a cortar o cabelo, que utilizava em estilo black power. Quando se recusou a cortar o cabelo pela terceira vez, ele sofreu despedida. Esse trabalhador ingressou com demanda pleiteando reintegração e indenização.

Na sentença, o juiz entendeu comprovada a “determinação reiterada de corte de seu cabelo, em três oportunidades”. Como a empresa alegou que a determinação se deu em razão da dificuldade de uso do capacete de segurança, o juiz produziu prova técnica para demonstrar que o corte de cabelo não provocava problema algum para o uso desse EPI. Diante da conclusão pericial e da prova oral produzida, concluiu tratar-se, a imposição da empregadora acerca de como o trabalhador deveria usar o cabelo, de “determinação abusiva, com potencial de restrição indevida à identidade étnica e autodeterminação corporal”. Não restituiu o emprego, mas condenou a empresa a indenizar o valor de R$ 35.000,00. Em sede de recurso, o Relator votou pela manutenção da sentença, com redução do valor de indenização para R$ 20.000,00. O voto vencedor, porém, do Desembargador Archimedes Castro Campos Junior, foi de que “embora tenha havido a determinação de corte de cabelo”, a exigência estava justificada “em razões de segurança do trabalho pertinentes ao uso adequado dos EPIs”, ainda que a prova pericial tenha concluído o contrário. Logo, para esse juiz, não foi possível “concluir que a atitude da ré foi ilícita, uma vez que apenas teve o zelo de preservar pela segurança do empregado, que é sua obrigação”. Acrescenta que “não parece ter havido constrangimento, que nas duas primeiras vezes o autor aceitou cortar o cabelo e fez a entrevista de emprego com o cabelo curto”. A decisão não apenas exclui a condenação, mas também condenou o trabalhador a pagar custas de R$ 9.904,56 e honorários de R$ 49.522,81 ao advogado da empregadora32 32 Processo nº 0000634-56.2019.5.09.0130 (ROT), Tribunal Regional do Trabalho da 9o Região, acessível em https://www.trt9.jus.br/portal/, consulta em 12/1/2022. .

É clara a postura de negação do racismo na sociedade brasileira. E não apenas pela naturalização do absurdo que é permitir que o empregador defina como o trabalhador pode usar o cabelo, seguida da constatação de que sequer conseguiríamos imaginar o contrário: empregados exigindo que o empregador não usasse seu cabelo de determinado modo. Ou pela linguagem utilizada na referida decisão judicial. Também não apenas pelo rigor desproporcional entre o que seria reconhecido como dano ao trabalhador negro (R$ 35.000,00 ou R$ 20.000,00, como votou o relator) e o que lhe foi imposto como prejuízo por ter acessado o Poder Judiciário trabalhista (quase sessenta mil reais). Há um número expressivo de estudos sobre a importância ideológica de identificação cultural do cabelo em estilo black power. Existe, pois, uma história de opressão por trás dessa ordem imposta a Andrey. Mas o que importa aqui salientar é como o Direito do Trabalho serve a essa postura negacionista, exatamente porque invisibiliza raça, gênero, classe, condição física, tudo o que diferencia os diversos sujeitos para os quais uma decisão judicial é produzida.

Como ensina Ovídio Baptista, quando trata da origem do processo civil, a igualdade (assim como a liberdade e a fraternidade) é uma abstração construída para dificultar a percepção da dominação e da forma como essa dominação é exercida pelo Estado, através do Direito. O resultado desse disfarce é “despir o homem concreto da riqueza do seu ser individual”, formando e aplicando sistemas jurídicos que se assentam nessa abstração, “na fuga do individual, como o seu pressuposto metodológico”, de sorte a supor que “cada caso concreto seja a expressão individual de uma série de casos idênticos”33 33 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 303. . O resultado é o grande hiato entre a justiça supostamente perseguida pelo Estado através de sua atuação judicial e a realidade em que injustiças se acumulam, especialmente, quando a(o)s destinatária(o)s da decisão são mulheres, pessoas pobres ou pessoas não-brancas.

Nem mesmo quando a raça é a questão processual central, como no caso antes referido, consegue-se obter do Judiciário o reconhecimento de que essas diferenças são estruturais e determinantes para o modo como atuamos nas diferentes relações sociais. Ao contrário, a resposta é branca: o superior imediato preocupava-se com o uso do equipamento de proteção, o que torna justificada a sua intromissão no modo como trabalhador dispõe do próprio corpo. O exemplo de um homem negro trabalhador é propositadamente escolhido para que fique ainda mais nítida a necessidade de que a feminilização do direito do trabalho compreenda um processo amplo, que não atente apenas para situações envolvendo mulheres trabalhadoras, mas compreenda a ressignificação do Direito e de seus institutos, desde uma compreensão transversal das opressões34 34 Na linha do que já ensinava Saffioti, ao referir que “O nó formado pelo patriarcado-racismo-capitalismo constitui uma realidade bastante nova, que se construiu nos séculos XVI-XVIII, e que não apenas é contraditória, mas também regida por uma lógica igualmente contraditória. Não é possível pensar o econômico desvinculado do político, e o próprio Marx foi explícito a este respeito. Enquanto a dimensão política de uma classe social não for constituída, ela não é verdadeiramente uma classe capaz de lutar por seus interesses. Foi, por conseguinte, o próprio Marx que me ensinou a pensar o nó, embora em sua época não lhe tenha sido possível fazê-lo”. SAFFIOTI, Heleieth. Quem tem medo dos esquemas patriarcais de pensamento? Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, 2000, p. 71-75. .

O Direito do Trabalho, que é fruto da organização da classe trabalhadora, tem o mérito de evidenciar a exploração coletiva, a perversidade da lógica que opõe os com e os sem propriedade. Já surge tensionando os dogmas do Direito comum, como a falácia da neutralidade. É fruto da identidade de uma mesma situação de trabalho forçado, na qual as pessoas encontram a energia necessária para a luta, que resulta a regulação dessa relação social, minimizando seus efeitos nocivos. Essa identidade se revela, porém, apenas parcialmente, em sua condição de pessoas que vivem do trabalho. As demais camadas da dominação (gênero e raça) são silenciadas e naturalizadas, estabelecendo, com isso, dentro desse grupo de pessoas, diferenças fatais para a luta coletiva, que condicionam a regulação estatal. Os sindicatos surgem como fruto desse tempo histórico e, exatamente porque imersos na mesma racionalidade, têm dificuldade em perceber a importância central que o sexismo e o racismo assumem na exploração de classe.

Isso não ocorreu por falta de militância e denúncia de mulheres trabalhadoras. Flora Tristan, em 1843, já denunciava que as mulheres trabalhadoras tinham a condição de pária na sociedade. Por isso, reivindicava ao movimento sindical a compreensão da centralidade do machismo, inclusive para que fosse possível aos trabalhadores a alteração da lógica de exploração a que estavam submetidos35 35 TRISTAN, Flora. União Operária. (publicado pela primeira vez em junho de 1843). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 39 e 62. . Do mesmo modo, Alexandra Kollontai36 36 KOLLONTAI, Alexandra. Os fundamentos sociais da questão feminina. Extratos. Publicado pela primeira vez em 1907. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1907/mes/fundamentos.htm. e tantas outras mulheres denunciaram a estrutura patriarcal e racista da sociedade de trocas, colocando a condição de sujeição dos corpos feminilizados e não brancos como elemento central para uma luta coletiva que pudesse superar a exploração capitalista. Seus esforços tiveram eco, mas não a força suficiente para uma regulação jurídica que desse conta ou que fosse aplicada a partir da compreensão dessas opressões.

Em texto publicado em 1922, por exemplo, Clara Zetkin postula a mudança no comportamento da organização coletiva das trabalhadoras e trabalhadores, como condição para o avanço37 37 ZETKIN, Clara. Organizando Mulheres Trabalhadoras. Publicado em 1922. In International Socialism (1st series), No. 96, Março 1977, pp. 22-24. - https://www.marxists.org/archive/zetkin/1922/ci/women.htm. . Vozes como a dela não foram suficientes para, até agora, alterar a face asséptica e masculina das prescrições jurídicas e nem mesmo para extirpar a racionalidade machista de dentro das organizações sindicais. Ainda assim, criaram fissuras e formaram uma base importante para que outros passos sejam dados. Na linha da compreensão expressada por Eliane Brum38 38 BRUM, Eliane. Banzeiro Òkòtó. Uma viagem à Amazônia centro do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , a produção da miséria e da emergência climática, num cenário de negacionismo patológico, imprime uma urgência que nos convoca a atuar. E quando compreendemos que esse esgotamento é fundado e naturalizado em uma ideologia sustentada pelo Estado também através do Direito, impedindo a maioria de nós de perceber o óbvio, compreendemos que “a luta contra a destruição da floresta e a luta contra a destruição das mulheres é a mesma luta”39 39 Idem, p. 62. , assim como a luta por uma outra forma de sociabilidade possível é, necessariamente, a luta pela desconstrução desse parâmetro de racionalidade que nos aprisiona e destrói.

4. Algumas perspectivas que já estão sendo construídas para feminilizar o Direito do Trabalho

Já existem autoras pensando um direito que problematize e enfrente as diferentes formas de opressão. Frances Olsen, depois de afirmar que a divisão sexual é decisiva para a construção do Direito, propõe alterar o modo como examinamos questões ligadas à discriminação e incluir a esfera doméstica no âmbito das reflexões e decisões jurídicas40 40 OLSEN, Frances. El sexo del derecho. In: RUIZ, Alicia (ed.). Identidad feminina y discurso jurídico. Buenos Aires: Biblos, 1990. .

Romina Lerussi propõe abandonar a ficção jurídica do “sujeito universal”, sempre humanizar/contextualizar; revisar a categoria da dependência ou subordinação; repensar a organização sindical e associativa. Propõe, ainda, produzir mais discussões sobre a teoria do valor e as supostas diferenças entre trabalho produtivo e reprodutivo e, a partir disso, tratar da renda universal, reformular a seguridade social e a definição de salário, além de repensar a noção de jornada (incluindo o cuidado)41 41 LERUSSI, Romina Carla. Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. ESTUDIOS DEL TRABAJO N° 56. Julio-Diciembre 2018 Disponível em https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/. .

O exemplo da terceirização no Brasil pode ser lembrado. Enquanto atingia apenas mulheres não-brancas e pobres, que realizavam atividades de limpeza e conservação, já na década de 1960, não parecia preocupar os intérpretes aplicadores do Direito do Trabalho, nem tampouco os legisladores. Quando passou a atingir homens não brancos e pobres, nos serviços de portaria e vigilância, sua visibilidade aumentou, mas ainda assim não comoveu boa parte de quem atua o mundo do Direito, aí incluídos sindicatos. Apenas quando atividades de tecnologia da informação e outras, exercidas por pessoas brancas de classe média, também foram atingidas, é que o problema parece ter atingido a dimensão apropriada.

Romina Rossi propõe, também, a análise dos mercados nocivos, como os de exploração de trabalho sexual ou tráfico de drogas. Também propõe examinar a feminização do trabalho enquanto categoria de análise. Ou seja, o estudo mais profundo dos elementos que levam à mulher a ingressar no mercado de trabalho; a razão pela qual algumas atividades são quase exclusivamente exercidas por mulheres; a razão porque se considera feminino todos os trabalhos relacionados ao cuidado e as novas formas mais precarizadas de trabalho que atingem mais profundamente as mulheres. Por fim, propõe como eixo de reflexão a questão da vulnerabilidade42 42 Idem. . Um conceito alinhado com aquele proposto por Judith Butler, que não se refere à condição particular ou episódica de um ser humano, e sim a um “modo de relação”, em que não há como pensar de forma dissociada cada corpo, pois “é a sua dependência de outros corpos e de redes de apoio” o que o constitui, o que viabiliza a sua existência43 43 BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2018, p. 144. . A ideia de economia do cuidado dialoga com isso, pois propõe a superação da noção de que programas sociais devam ser dirigidos a quem fracassa sob a lógica da troca. Parte do pressuposto de que há um direito universal ao cuidado. E propõe “la tutela y educación de las mujeres pobres”, “el cuidado como una necesidad y un derecho universal para hombres y mujeres”. Pensa, portanto, o cuidado como política pública, inclusive, para reconhecer o trabalho em âmbito doméstico como trabalho que deve ser remunerado.

Regina Stela refere a importância de pensar os conceitos cuidado, gênero e reprodução social em todas as questões judiciais a serem enfrentadas. Propõe reconhecer a implicação do trabalho doméstico não remunerado para as questões do vínculo de trabalho, discutir, desmistificar, reconhecer e regular o trabalho sexual. Refere ser função do Direito do Trabalho acabar com as dicotomias entre trabalho público e privado ou entre trabalho assalariado e não remunerado, as quais sistematicamente desfavorecem as pessoas que se dedicam ao cuidado e ao trabalho doméstico e reforçam os papéis tradicionais de gênero. Ressalta, ainda, a necessidade de superar a divisão trabalho/família, sobre a qual repousa o Direito do Trabalho, a partir do reconhecimento da necessidade de repensar o trabalho de cuidado, mecanismo-chave que permitiu que os trabalhadores homens se engajassem no trabalho remunerado de forma exclusiva e sem restrições de tempo44 44 VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Teoria feminista do Direito do Trabalho: uma introdução. In Desafios presentes e futuros do direito do trabalho: buscas entre intersecções por um novo alvorecer. Organizadores Regina Stela Corrêa Vieira, Robison Tramontina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2020. pp. 85-92. .

É certo que nada disso terá força suficiente para alterar a forma como o Direito é produzido e aplicado, se não compreendermos a íntima imbricação desse modelo de regulação jurídica com o sistema do capital. Ainda assim, como refere Natalia Díaz, situar o tema do cuidado a partir da perspectiva das mulheres indígenas, negras, mestiças, de algum modo subalternizadas, impõe visibilidade a outros pontos de vista. Algo, portanto, com potência para pavimentar a estrada para mudanças mais profundas45 45 DÍAZ, Natalia Quiroga. Economía del cuidado. Reflexiones para un feminismo decolonial. In MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. CORREAL, Diana Gómez. MUÑOZ, Karina Ochoa. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014. .

A assimilação dessas demandas pelo Direito do Trabalho implicaria uma reformulação radical de seus fundamentos e uma potência maior de sua capacidade de tensionamento do sistema capitalista. O Direito do Trabalho já tem essa função de viabilizar a fala à classe trabalhadora e de explicitar o conflito. As alterações legislativas promovidas nos últimos anos vêm boicotando essa finalidade, distorcendo a própria razão histórica pela qual existem regras trabalhistas. Tal desmanche sistemático e cada vez mais agressivo precisa ser contraposto por uma racionalidade que vá além daquilo que já foi desvelado pelo direito social, tal como o conhecemos e praticamos.

Para além dessas propostas, é preciso feminilizar decisões proferidas na Justiça do Trabalho. A partir da abertura democrática e especialmente com a promulgação da Constituição de 1988, instaurou-se um discurso que, apesar de estar longe de romper com a dominação disfarçada através do Estado e do Direito, assumiu - ainda assim - compromisso com objetivos que no mínimo tensionam nossa forma de sociabilidade. Preservar a dignidade humana, proteger quem vive do trabalho, erradicar a miséria ou mesmo reduzir desigualdades, em um Estado fundado na lógica da exploração dos corpos femininos, negros e indígenas até o seu completo esgotamento, não é pouco. Daí porque foi possível, mesmo apesar da transição conciliada que fez permanecer no poder pessoas profundamente implicadas com a ditadura civil-midiático-empresarial-militar, ver surgirem decisões judiciais que reconhecem a presença do racismo estrutural e da misoginia como elementos que estruturam as relações sociais e que precisam ser enfrentados.

Os avanços, tanto na esfera das decisões judiciais quanto naqueles da regulação jurídica ou da construção de políticas públicas de inserção social, foram importantes. Como exemplo, a política de cotas mudou a face das universidades públicas e, por consequência, os temas dos trabalhos de conclusão e das pesquisas científicas. Corpos e vozes femininas, indígenas, negras, LGBTQIA+, pobres passaram a ocupar bancos escolares, funções de chefia, comissões e parlamentos. Esse não é um processo histórico que se resolve em duas ou três gerações, mas alguns de seus efeitos podem ser sentidos de imediato. O caminho, porém, ainda é longo e difícil. Mesmo em questões sensíveis, nas quais não há necessidade de alteração legislativa para que a opressão seja reconhecida e considerada, a maioria das decisões judiciais seguem reproduzindo uma lógica estéril que recalca os marcadores de dominação.

Em um estudo sobre a representação judicial do trabalho escravo contemporâneo, Daniela Muller mostra que o discurso presente nas sentenças ainda reproduz “uma pretensa natureza indolente, bruta e pouco afeita ao trabalho das classes populares, que acabam por condicionar certa leitura da norma legal”. A representação judicial do trabalho escravo é, ainda hoje, “estreitamente vinculada à carga simbólica das juízas e dos juízes”, relacionadas a sua origem social, cultural e econômica46 46 MULLER, Daniela Valle da Rocha. Representação judicial do trabalho escravo contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2021, p. 185. . Por isso, é possível encontrar decisões nas quais se afirma que as condições de trabalho no meio rural são naturalmente duras, para o efeito de justificar a prática de maus tratos. A autora cita casos de alojamentos sem banheiro, trabalhos por 14 horas consecutivas sob o sol, camas improvisadas com tijolos e madeiras, que não foram reconhecidos como de situação análoga a de escravo47 47 Idem, p. 93 e 112. .

A avaliação do número de processos judiciais em que pessoas foram resgatadas em condição de escravização e houve acordo, por valores pouco significativos, ou apenas parcial procedência do pedido, também dá conta da eficiência da ideologia que disfarça a dominação e permite que o Poder Judiciário se estabeleça como agente de conservação de uma ordem social racista.

Quanto ao perfil ideológico de quem julga, as referências simbólicas de juízas e juízes acerca da escravidão, referidas no livro de Muller, também revelam uma visão eurocentrada, masculina e branca48 48 MULLER, Daniela Valle da Rocha. Representação judicial do trabalho escravo contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2021, p. 171. . A forma de seleção, a adoção da chamada "nota de corte” e a realização de provas objetivas que privilegiam o conteúdo de súmulas e textos legais constituem fatores que colaboram para um Poder Judiciário conservador. Esse poder de Estado é objetivamente formado, em sua maioria, por homens brancos. Uma pesquisa realizada em 2008, pelas sociólogas Elina Pessanha e Regina Morel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pela pesquisadora Angela de Castro Gomes, da Fundação Getúlio Vargas do Rio, após entrevistar 2.746 juízes trabalhistas no país, revelou que 43% das magistradas eram mulheres, sendo que em segundo grau de jurisdição esse número caía para 36,5%. Metade dos juízes tinham menos de 40 anos, 86% se declararam de cor branca. Apenas 1,2% se diziam negros49 49 https://www.conjur.com.br/2008-mai-04/juiz_trabalhista_jovem_branco_progressista, acesso em 14/1/2022. . Onze anos depois, o Conselho Nacional de Justiça publicou diagnóstico sobre a participação das mulheres na magistratura, no qual mostra que na Justiça do Trabalho, “as mulheres representaram 49,4% dos juízes em atividade e, em 2018, superou a metade do quadro, atingindo 50,5% quando avaliados somente os magistrados ativos”. Ainda, assim, as juízas ocuparam apenas “de 33% a 49% dos cargos de Presidente, Vice-Presidente, Corregedor ou Ouvidor, nos últimos 10 anos”50 50 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/05/cae277dd017bb4d4457755febf5eed9f.pdf, em 14/1/2022. .

Outro estudo, mostra que apesar da Resolução 203 do CNJ, e, portanto, dos 115 concursos realizados desde 2015 observando a política de cotas, “o percentual de magistrados(as) negros(as) que ingressaram no cargo" subiu de 12% em 2013, para 21% em 202151 51 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario-150921.pdf, acesso em 14/1/2022. . Embora importante, esse aumento é ainda irrisório para um país de maioria não branca. Alterar essa realidade é também um caminho necessário para que tenhamos decisões judiciais comprometidas com a limitação e mesmo a superação das diferentes opressões, pois quem decide também constrói a norma e, portanto, tem condições de incidir sobre a realidade. Como refere Severi, “os corpos das juízas, por portarem atributos de um gênero estranho ao do referencial hegemônico, desafiam as regras de neutralidade do profissionalismo”52 52 SEVERI, Fabiana Cristina. O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro,Vol.07, N.13, 2016, p. 81-115. . O mesmo pode ser dito de corpos não brancos ou não binários, travestidos, etc.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero53 53 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf, acesso em 11/1/2022. é outra iniciativa no sentido de mudar essa realidade. Apresenta técnicas e sugestões para julgamentos judiciais em que a questão de gênero seja percebida e problematizada. Reconhece a necessidade de interpretação e aplicação a partir da compreensão de que existem pessoas, há dor, sofrimento, investimento afetivo envolvidos em cada demanda judicial. Propõe, de certo modo, a superação - ou no mínimo o questionamento - de dogmas como o da neutralidade. Traz, pois, contribuições importantes para evidenciar a necessidade de mudança.

Em decisão recente, proferida pela Justiça do Trabalho, uma servidora pública teve reconhecido o direito à redução da jornada, sem redução de salário, para cuidar do filho com deficiência54 54 https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2022/01/juiza-de-sc-manda-reduzir-de-jornada-de-mae-de-crianca-com-deficiencia/, acesso em 14/1/2022. . Eis um fruto do movimento feminista que se expressa também através do Protocolo firmado pelo CNJ, referido pela juíza, na aludida decisão. Sem dúvida um avanço importante, especialmente em tempo de obscurantismo e retrocesso social como o que vivemos. Mostra que a estrada já está sendo construída, embora seja preciso avançar ainda mais, mudando inclusive a face da magistratura brasileira, em especial no campo do Direito do Trabalho. E, enquanto isso não ocorre, provocar discussões acadêmicas, nas faculdades e escolas judiciais, acerca da urgente necessidade de corporificar as análises jurídicas, retirando o Direito do pedestal em que foi colocado.

Isso implica abandonar fórmulas prontas, expressões em latim, toda uma linguagem que distancia e uniformiza. Implica também investigar, em cada caso concreto, quem são as pessoas envolvidas, qual a sua realidade, que circunstâncias levaram essas pessoas a buscar uma solução judicial. Nesse sentido, a preservação da oralidade do processo do trabalho, com a escuta amorosa e empática das partes, pela juíza ou juiz é ponto fundamental. A inquirição no processo do trabalho não constitui meio de prova, ou pelo menos certamente não é só isso. É o momento processual em que a discussão se concretiza nos corpos que performam a condição de reclamante e reclamado. Pessoas, cujas vidas foram afetadas de diferentes modos pela relação social de trabalho. Enxergá-las e ouvi-las é condição para uma interpretação/aplicação feminista e antirracista das normas jurídicas.

Além disso, as peças processuais também precisam estar livres dos modelos e fórmulas que nada transmitem. Elas constituem veículos importantes para um tensionamento que obrigue julgadoras e julgadores a reconhecer a exclusividade de cada processo. Chamar as partes por seus nomes, contar suas histórias de forma direta e pessoal, reconhecer-lhes como seres únicos, também faz diferença.

5. Conclusão

Há importantes avanços, que decorrem dos estudos das últimas décadas sobre a necessidade de uma postura crítica, feminista e antirracista, também na produção judicial, como importante elemento para tensionar a ordem vigente e, com isso, viabilizar uma profunda e necessária mudança social. O Direito do Trabalho, em seu aspecto material e processual, segue profundamente comprometido com os falsos pressupostos racionalistas, que apenas disfarçam práticas de opressão. A forma como são selecionados juízes e juízas e ensinadas as advogadas e advogados em nossas faculdades recalcam essa realidade. A lógica de metas e o volume excessivo de trabalho contribui para impedir mudanças.

O discurso asséptico, que desumaniza e generaliza as sujeitas e os sujeitos atingidos por decisões judiciais, tem força material. Uma força que determina quais são os corpos para os quais determinadas decisões são proferidas, garantindo direitos, e quais são aqueles para os quais o Estado aparece apenas em sua face opressora. Nos últimos anos, há uma explicitação da lógica que reafirma e aprofunda a dominação de classe, raça e gênero. Por isso mesmo, as conquistas, representadas por estudos feministas e antirracistas e seus efeitos na produção judicial, provocam instabilidade e fúria em quem, confortável em sua posição social, não quer que as coisas se alterem.

Na Justiça do Trabalho, o movimento em razão do trabalho de mulheres que vêm insistindo na necessidade de feminilizar o Direito, e que resultou entre outras coisas a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, pelo CNJ, têm surtido efeito importante. Ainda há, porém, um longo caminho pela frente. Um caminho que demanda o prosseguimento dos estudos, a criação de espaços para a discussão acadêmica de temas sensíveis e a ressignificação de institutos jurídicos.

Um Direito do Trabalho feminista e antirracista é vivo, dolorido, pungente. Não é uma escolha, é um imperativo de sobrevivência. É a única forma de superarmos essa sociabilidade autofágica, que já atingiu um ponto em que insistir nela implica comprometer definitivamente o futuro.

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  • VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Teoria feminista do Direito do Trabalho: uma introdução. In Desafios presentes e futuros do direito do trabalho: buscas entre intersecções por um novo alvorecer. Organizadores Regina Stela Corrêa Vieira, Robison Tramontina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2020.
  • ZETKIN, Clara. Organizando Mulheres Trabalhadoras. Publicado em 1922. In International Socialism (1st series), No. 96, Março 1977.
  • 1
    HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 109.
  • 2
    HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 28.
  • 3
    HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 70.
  • 4
    MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979., p. 258-268.
  • 5
    BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 27-8.
  • 6
    FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017, p. 73-98.
  • 7
    ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002., p. 260.
  • 8
    FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017, p. 205; 259.
  • 9
    PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 2008PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 2008., p. 17.
  • 10
    Idem, p. 175.
  • 11
    OLSEN, Frances. El sexo del derecho. In: RUIZ, Alicia (ed.). Identidad feminina y discurso jurídico. Buenos Aires: Biblos, 1990. p. 24-43.
  • 12
    BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 16-17.
  • 13
    Hannah Arendt refere-se à construção do telescópio como algo revolucionário, pois a partir dele foi possível compreender que não era a terra que girava em torno do sol, o que implicava concluir fossem falíveis os sentidos humanos, para fazer alcançar a verdade. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002., p. 289-300.
  • 14
    O Discurso do Método foi publicado pela primeira vez em 1637.
  • 15
    ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002., pp. 288-291.
  • 16
    Idem, p. 297.
  • 17
    ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002., pp. 300-303.
  • 18
    BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 68.
  • 19
    KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p. 52.
  • 20
    HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 46.
  • 21
    HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 94.
  • 22
    Idem, p. 56.
  • 23
    PATEMAN, op. cit., p. 108.
  • 24
    SEVERO, Valdete Souto. Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho. 2ª edição. E-book, São Paulo: ESA, 2020, p. 27.
  • 25
    PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 2008PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 2008..
  • 26
    MICHELL, Juliet. Mulheres: a Revolução mais longa. Revista Gênero. Niterói, v. 6, n. 2 - v. 7, n. 1, p. 203-232, 1. - 2. sem. 2006, disponível em https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2013/01/G%C3%AAnero-J-Mitchell.pdf.
  • 27
    SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Vozes, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Vozes, 1976., p. 72.
  • 28
    SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da Identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 77.
  • 29
    Idem, p. 27.
  • 30
  • 31
    Ver a propósito: GONZALEZ, Lelia. Por um feminismo Afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020GONZALEZ, Lelia. Por um feminismo Afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020..
  • 32
    Processo nº 0000634-56.2019.5.09.0130 (ROT), Tribunal Regional do Trabalho da 9o Região, acessível em https://www.trt9.jus.br/portal/, consulta em 12/1/2022.
  • 33
    BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 303.
  • 34
    Na linha do que já ensinava Saffioti, ao referir que “O nó formado pelo patriarcado-racismo-capitalismo constitui uma realidade bastante nova, que se construiu nos séculos XVI-XVIII, e que não apenas é contraditória, mas também regida por uma lógica igualmente contraditória. Não é possível pensar o econômico desvinculado do político, e o próprio Marx foi explícito a este respeito. Enquanto a dimensão política de uma classe social não for constituída, ela não é verdadeiramente uma classe capaz de lutar por seus interesses. Foi, por conseguinte, o próprio Marx que me ensinou a pensar o nó, embora em sua época não lhe tenha sido possível fazê-lo”. SAFFIOTI, Heleieth. Quem tem medo dos esquemas patriarcais de pensamento? Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, 2000, p. 71-75.
  • 35
    TRISTAN, Flora. União Operária. (publicado pela primeira vez em junho de 1843). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 39 e 62.
  • 36
    KOLLONTAI, Alexandra. Os fundamentos sociais da questão feminina. Extratos. Publicado pela primeira vez em 1907. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1907/mes/fundamentos.htm.
  • 37
    ZETKIN, Clara. Organizando Mulheres Trabalhadoras. Publicado em 1922. In International Socialism (1st series), No. 96, Março 1977, pp. 22-24. - https://www.marxists.org/archive/zetkin/1922/ci/women.htm.
  • 38
    BRUM, Eliane. Banzeiro Òkòtó. Uma viagem à Amazônia centro do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
  • 39
    Idem, p. 62.
  • 40
    OLSEN, Frances. El sexo del derecho. In: RUIZ, Alicia (ed.). Identidad feminina y discurso jurídico. Buenos Aires: Biblos, 1990.
  • 41
    LERUSSI, Romina Carla. Escritos para una filosofía feminista del derecho laboral. ESTUDIOS DEL TRABAJO N° 56. Julio-Diciembre 2018 Disponível em https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/.
  • 42
    Idem.
  • 43
    BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2018, p. 144.
  • 44
    VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Teoria feminista do Direito do Trabalho: uma introdução. In Desafios presentes e futuros do direito do trabalho: buscas entre intersecções por um novo alvorecer. Organizadores Regina Stela Corrêa Vieira, Robison Tramontina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2020VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Teoria feminista do Direito do Trabalho: uma introdução. In Desafios presentes e futuros do direito do trabalho: buscas entre intersecções por um novo alvorecer. Organizadores Regina Stela Corrêa Vieira, Robison Tramontina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2020.. pp. 85-92.
  • 45
    DÍAZ, Natalia Quiroga. Economía del cuidado. Reflexiones para un feminismo decolonial. In MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. CORREAL, Diana Gómez. MUÑOZ, Karina Ochoa. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014.
  • 46
    MULLER, Daniela Valle da Rocha. Representação judicial do trabalho escravo contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2021, p. 185.
  • 47
    Idem, p. 93 e 112.
  • 48
    MULLER, Daniela Valle da Rocha. Representação judicial do trabalho escravo contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2021, p. 171.
  • 49
  • 50
  • 51
  • 52
    SEVERI, Fabiana Cristina. O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro,Vol.07, N.13, 2016, p. 81-115.
  • 53
  • 54

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2022
  • Aceito
    20 Jul 2022
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