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A ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS ESTADUAIS NA DEFINIÇÃO DOS GASTOS EDUCACIONAIS: ENTRE A MUDANÇA INSTITUCIONAL E A PRODUÇÃO DE DESIGUALDADES REGULATÓRIAS

The role of Brazilian state courts of accounts in the definition of educational expenditure: Between institutional change and regulatory inequality

La actuación de los Tribunales de Cuentas Estatales en la definición del gasto educativo: Entre el cambio institucional y la producción de desigualdad regulatoria

RESUMO

As previsões federais de vinculação de recursos para Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) na Constituição Federal e a sua tipificação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) levaram à redução das desigualdades educacionais entre os entes federativos, contudo, os Tribunais de Contas podem produzir posicionamentos sobre as despesas com MDE que alteram normas federais. Os objetivos deste artigo são identificar o posicionamento dos tribunais acerca da definição dessas despesas, verificar se estas alteram as previsões da norma federal e identificar a natureza da mudança institucional que realizam, assim como as implicações para as desigualdades na regulamentação do financiamento da educação. Para isso, foram analisados os instrumentos normativos dos tribunais. Os resultados demonstram que os tribunais podem criar tipificações das normas federais sem suprimi-las, produzindo mudanças institucionais do tipo layering. Essas mudanças ampliam as desigualdades regulatórias do financiamento da educação, na medida em que cada governo estadual passa a dispor de novos parâmetros de gastos com MDE.

Palavras-chave:
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino; implementação; mudança institucional; gastos educacionais; desigualdades

ABSTRACT

The federal forecasts for earmarking resources for the Maintenance and Development of Education (MDE) in the Federal Constitution and its typification in the Law of Guidelines and Bases of Education (LDB) led to the reduction of educational inequalities between federative entities, however, the Courts of Accounts can produce positions on MDE expenses that change federal regulations. The objectives of this article are to identify the position of the courts regarding the definition of these expenses, to verify if they change the predictions of the federal norm and to identify the nature of the institutional change they carry out, as well as the implications for the inequalities in the regulation of education financing. For this, the normative instruments of the courts were analyzed. The results demonstrate that the courts can create typifications of federal norms without suppressing them, producing layering-type institutional changes. These changes increase the regulatory inequalities of education financing in the states as each state government nowadays has a new parameter for defining MDE expenditures.

Keywords:
education maintenance and development; implementation; institutional change; educational expenditure; inequalities

RESUMEN

Las previsiones federales de destinación de recursos para el Mantenimiento y Desarrollo de la Educación (MDE) en la Constitución Federal y su tipificación en la Ley de Directrices y Bases de la Educación (LDB) propiciaron la reducción de las desigualdades educativas entre las entidades federativas, sin embargo, los Tribunales de Cuentas puede generar posiciones sobre los gastos del MDE que modifican las reglamentaciones federales. Los objetivos de este artículo son identificar la posición de los tribunales en cuanto a la definición de estos gastos, verificar si modifican las previsiones de la norma federal e identificar la naturaleza del cambio institucional que realizan, así como las implicaciones para las desigualdades en la regulación del financiamiento de la educación. Para ello, se analizaron los instrumentos normativos de los tribunales. Los resultados demuestran que los tribunales pueden crear tipificaciones de normas federales sin suprimirlas, produciendo cambios institucionales del tipo layering. Estos cambios amplían las desigualdades regulatorias en el financiamiento de la educación, ya que cada gobierno estatal ahora tiene nuevos parámetros para gastar en MDE.

Palabras clave:
Mantenimiento y Desarrollo de la Educación; implementación; cambio institucional; gasto educativo; desigualdades

INTRODUÇÃO

O arranjo federativo que se conformou na Constituição Federal de 1988Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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conjugou elementos centralizadores e descentralizadores no Estado brasileiro. Enquanto as expectativas do contexto de redemocratização se amparavam no entendimento de que o novo federalismo seria excessivamente descentralizador e culminaria na paralisia decisória em virtude do poder de veto dos entes subnacionais, Arretche (2012)Arretche, M. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Editora Fiocruz e Editora FGV. demonstra que essas expectativas não se manifestaram empiricamente. Segundo a autora, o que se descentralizou em 1988 foi a implementação das políticas públicas (policy making), enquanto o seu desenho e formulação (policy decision making) permaneceram centralizados, denotando assim o caráter do federalismo brasileiro. Arretche (2012)Arretche, M. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Editora Fiocruz e Editora FGV. ainda observa que a expectativa de paralisia decisória não se concretizou, pois o poder de veto dos entes subnacionais não se expressa nas arenas de tomada de decisão mais importantes, ainda que essas arenas disciplinem a atuação dos entes subnacionais, de modo que o “jogo comece e termine em Brasília”.

A conjugação da descentralização da implementação das políticas públicas e da centralização da sua formulação produz efeitos para os resultados das políticas públicas e para os fenômenos que as permeiam, como as desigualdades. Para Arretche (2010)Arretche, M. (2010). Federalismo e igualdade territorial: Uma contradição em termos? Dados, 53(3), 587-620. https://doi.org/10.1590/S0011-52582010000300003
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, o desenho do federalismo brasileiro engendrou duas dinâmicas que são aparentemente paradoxais. Enquanto a centralização do modelo tende a produzir redução das desigualdades, expressa na uniformidade do desenho das políticas públicas produzido pela União, associada à sua capacidade de regulá-las, a descentralização produz um movimento no sentido oposto, uma vez que a autonomia conferida aos entes subnacionais resulta em atuações particulares e díspares entre si, produzindo dessa forma desigualdades. Nesse sentido, Arretche (2010)Arretche, M. (2010). Federalismo e igualdade territorial: Uma contradição em termos? Dados, 53(3), 587-620. https://doi.org/10.1590/S0011-52582010000300003
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constata que as políticas mais reguladas, ou seja, aquelas que estão mais contingenciadas pelas normas federais, como saúde e educação, são menos suscetíveis a desigualdades do que as políticas não reguladas, como as de infraestrutura e zeladoria.

No âmbito da política educacional, a Constituição Federal garantiu vinculação de no mínimo 25% dos impostos do Distrito Federal, estados e municípios para Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) (Constituição Federal, 1988Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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), resultando assim em condições para que os entes subnacionais tivessem menor nível de desigualdade no financiamento da educação. A despeito dessa previsão, é facultada ao poder executivo de cada nível de governo a majoração desse percentual de vinculação no momento de elaboração das suas leis orçamentárias.

Em virtude dos controversos entendimentos acerca da tipificação dos gastos educacionais, em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) previu em seus artigos 70 e 71 os gastos que seriam e não seriam, respectivamente, considerados para fins de MDE, entretanto observa-se empiricamente que a institucionalização da definição dos gastos educacionais não foi suficiente para que os entes subnacionais a cumprissem, uma vez que dispondo de discricionariedade acabam realizando interpretações próprias das normas federais, adequando-as aos seus contextos particulares. Por sua vez, esses movimentos particularistas são suscitadores de desigualdades regulatórias, já que com cada estado e município fazendo as suas próprias tipificações de gastos se criam condições para que as suas ações sejam díspares entre si.

Esse movimento é analisado por Clune (1987)Clune, W. H. (1987). Institutional choice as a theoretical framework for research on educational policy. Educational Evaluation and Policy Analysis, 9(2), 117-132. https://doi.org/10.2307/1163725
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como uma mudança institucional contínua, visto que a concepção do legislador federal não necessariamente será interpretada da mesma maneira pelos diferentes entes implementadores, especialmente em ambientes federativos. Assim, quanto maior o espaço de interpretação, maior a desigualdade regulatória possível.

Enquanto Arretche (2012)Arretche, M. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Editora Fiocruz e Editora FGV. distingue conceitualmente as dimensões do policy making do policy decision making e observa que o que se descentralizou em 1988 foi a implementação das políticas públicas, Bichir (2018)Bichir, R. (2018). Governança multinível. Boletim de Análise Político-Institucional, 19, 49-55. Recuperado de https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8969/1/bapi_19_cap_07.pdf
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destaca que no processo de implementação também ocorre a sua formulação, já que os implementadores necessitam tomar decisões que modificam a política pública. Somado a isso, a autonomia dos governos estaduais ainda lhes permite prever em suas constituições estaduais percentuais próprios de recursos vinculados para MDE, que, segundo Peres, Capuchinho e Tibúrcio (2021)Peres, U. D., Capuchinho, C. B., Tibúrcio, R. M. L. (2021). Efeitos da complementação da União no Fundeb na desigualdade interestadual de receitas da educação básica: uma análise de 2009 a 2020. Anais do 45º Encontro Anual da Anpocs., são majorados em seis das 27 constituições estaduais e distrital.

Além das mudanças formais em relação ao regramento federal, Peres, Pereira e Capuchinho (2021)Peres, U. D., Pereira, L. S., & Capuchinho, C. (2021). Comparação das despesas estaduais por etapa de ensino e os desafios para avançar no novo Fundeb. Boletim de Análise Político-Institucional, 5. também observam que os governos estaduais realizam mudanças na classificação das suas despesas estaduais educacionais para que elas se adequem aos parâmetros de classificação federal determinados pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação, denotando, dessa forma, divergências de classificação de despesas com MDE entre os estados.

Apesar de os entes subnacionais realizarem modificações institucionais que afetam o financiamento da política educacional e as suas desigualdades, também há organizações que participam desse processo e contribuem para a mudança institucional, como os Tribunais de Contas Estaduais (TCEs), que são responsáveis por julgar as contas dos governos estaduais e orientar a sua gestão orçamentária. Nesse sentido, Peres e Machado (2020)Peres, U. D., & Machado, G. S. (2020). Quando dissenso cria desigualdade: a ação dos Tribunais de Contas no gasto em educação. Nexo Políticas Públicas. Recuperado de https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2020/Quando-dissenso-cria-desigualdade-a-ação-dos-Tribunais-de-Contas-no-gasto-em-educação
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analisam a atuação de 12 TCEs e identificam três tipos de posicionamento acerca da definição dos gastos educacionais com base no regramento federal, tanto em relação às despesas permitidas como às despesas não permitidas: há replicação integral da norma federal, mudança da norma federal, ou então ausência de posicionamento.

Levando-se em conta a importância dos TCEs para orientar a gestão orçamentária dos estados e o peso que possuem nesse processo, uma vez que o seu julgamento orienta a aprovação ou reprovação das contas do poder executivo pelo poder legislativo e, portanto, tende a ser a referência dos governos estaduais para a tomada de decisão, presume-se que o seu posicionamento tende a produzir efeitos sobre o financiamento da educação nos estados e, assim, sobre as desigualdades no financiamento no que tange a outros estados.

Diante dessas considerações, os objetivos deste artigo são identificar o posicionamento dos TCEs no que concerne à definição dos gastos com MDE, verificar se estes alteram as previsões das normas federais (LDB) e, nesses casos, identificar a natureza das mudanças institucionais, para que com base nisso se possa pensar nas potenciais consequências para o financiamento da educação. Os resultados demonstram que os tribunais podem criar tipificações das normas federais sem suprimi-las, produzindo assim mudanças institucionais do tipo layering e, em alguma medida, mudanças do tipo conversion, quando avaliam as contas do poder executivo. Essas mudanças ampliam as desigualdades potenciais do financiamento da educação nos estados na medida em que cada governo estadual passa a dispor de um novo parâmetro de definição das despesas com MDE, além do parâmetro nacional, que é comum a todos os governos.

Além desta introdução, este artigo possui outras cinco seções. A primeira apresenta o referencial teórico. A segunda seção dispõe da metodologia. A terceira seção apresenta os principais aspectos da estrutura de funcionamento dos TCEs e como eles costumam lidar com as despesas educacionais. A quarta seção traz os resultados, e a quinta, a sua discussão. Por fim, há as considerações finais e as referências.

REFERENCIAL TEÓRICO

A centralidade do institucionalismo e do neoinstitucionalismo nas ciências sociais no século passado se tornou muito evidente na busca do entendimento dos fenômenos sociais. As instituições, que são compreendidas como regras, são variáveis explicativas desses fenômenos e foram exploradas de diferentes perspectivas em vários campos do conhecimento e resultaram em diversas correntes teóricas, como o neoinstitucinalismo sociológico, o neoinstitucionalismo da escolha racional e o neoinstitucionalismo histórico (Hall & Taylor, 2003Hall, P. A., & Taylor, R. C. R. (2003). As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (58), 193-223. https://doi.org/10.1590/S0102-64452003000100010
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). Todas essas correntes se amparam no entendimento de que as mudanças institucionais ocorrem de forma abrupta e em virtude de fatores externos às próprias instituições.

Alternativamente a essa perspectiva, Mahoney e Thelen (2009)Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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propõem um modelo teórico que considera as mudanças graduais das instituições e os fatores endógenos às próprias instituições como responsáveis por moldá-las. Para os autores, as instituições estão em um movimento dinâmico de constante mudança e estabilidade. Ou seja, sobre as instituições operam a todo momento forças que buscam moldá-las e forças que buscam mantê-las, criando desse modo certa volatilidade.

A operacionalização dos movimentos que moldam as instituições, por sua vez, não é aleatória nem fruto do acaso; ela se dá por meio de organizações, que são integradas por um conjunto de indivíduos com objetivos comuns e interesses compartilhados ou individuais. Assim, à medida que as instituições limitam a ação dessas organizações e frustram a conquista de determinados objetivos, essas organizações utilizam diferentes mecanismos com vistas a moldar as instituições, lograr os seus objetivos e assim fazer prevalecer os seus interesses. Nessa perspectiva, cabe considerar ainda que as instituições são distribuidoras de poder, ou seja, elas delimitam as capacidades de ação das organizações e dos indivíduos, de modo que a depender de como essa configuração se estabelece as unidades de análise dispõem de mais ou menos recursos (Mahoney & Thelen, 2009Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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).

Retomando a proposta de Mahoney e Thelen (2009)Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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para compreender as mudanças graduais das instituições, que segundo os autores também podem se dar de forma incremental, com base em alguns estudos eles tipificam quatro tipos de mudança institucional: displacement, layering, drift e conversion. Essas mudanças são provenientes de dois fatores, que são as características do contexto político e as características da própria instituição. Destaca-se ainda que as mudanças institucionais não dizem respeito necessariamente a alterações substantivas de determinadas regras.

A mudança por displacement ocorre quando há a substituição de uma regra antiga por uma regra nova. Esse processo pode ser abrupto, mas também gradual, e ocorre quando os apoiadores do antigo sistema não conseguem evitar a introdução de novas regras por meio da substituição (Mahoney & Thelen, 2009Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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). Já as mudanças por layering “ocorrem quando novas regras são anexadas às regras existentes” (Mahoney & Thelen, 2009Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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, p. 18), criando dessa forma camadas de regras sem excluir as antigas. “Diferente do displacement, o layering não introduz instituições ou regras totalmente novas, mas envolve emendas, revisões ou acréscimos às existentes” (Mahoney & Thelen, 2009Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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, p. 18).

Quanto ao drift, a sua expressão dá-se quando, mesmo sem mudanças formais na regra, as mudanças contextuais propiciam mudanças no impacto da regra, fazendo com que, apesar das mudanças contextuais que em tese demandariam adaptações das regras para a manutenção dos seus impactos, a inação diante dessa situação culmina em mudanças de impacto. Por fim, as mudanças por conversion ocorrem mediante novas interpretações de uma mesma regra, sem que elas tenham mudado em seu sentido formal. A natureza da regra que propicia esse tipo de mudança é o seu nível de ambiguidade, de modo que regras mais ambíguas tendem a dispor de maior margem de interpretação e, portanto, sofrer esse tipo de mudança (Mahoney & Thelen, 2009Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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).

Além de tipificar as mudanças graduais das instituições, Mahoney e Thelen (2009)Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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inserem em seu modelo analítico os fatores que determinam cada tipo de mudança, que são basicamente o contexto no qual se inserem e as suas próprias características. No âmbito do contexto político, destacam-se as variações entre forte e fraca possibilidades de mudança. Ou seja, a depender da força dos pontos de veto se produzem um tipo específico de mudança e, no âmbito das características das instituições, o seu baixo ou alto nível de discricionariedade para interpretação (Mahoney & Thelen, 2009Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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). A Figura 1 identifica o tipo de mudança pelas características do contexto político e características da instituição.

Figura 1
Características contextuais e das instituições do modelo analítico de Mahoney e Thelen

Pelo modelo analítico proposto por Mahoney e Thelen (2009)Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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, é possível identificar os tipos de mudança que as organizações operam e sob quais condições eles se dão. Esse entendimento ganha centralidade à medida que as mudanças institucionais produzem efeitos sobre os resultados das políticas públicas e fenômenos derivados, como as desigualdades regulatórias estudadas nesta pesquisa.

METODOLOGIA

Em consonância com o objetivo deste artigo de identificar o posicionamento dos TCEs acerca da definição das despesas com MDE, foram analisados os normativos legais dos próprios tribunais a respeito dos critérios de vinculação para avaliação das contas dos governos estaduais, sendo esses normativos sobretudo instruções normativas e resoluções. A escolha desses instrumentos justifica-se por serem tendencialmente perenes e por expressar o posicionamento dos tribunais em relação ao tema analisado, porém deve-se considerar que eles não esgotam os referidos posicionamentos e que os tribunais não analisados podem ter as suas posições expressas por outros meios.

As dimensões analisadas nos instrumentos normativos dos TCEs foram centralmente o percentual de vinculação de receitas considerado para fins de MDE, que no âmbito nacional está previsto no artigo 212 da Constituição Federal (Brasil, 1988); as despesas consideradas como MDE, que no âmbito nacional estão previstas no artigo 70 da LDB (1996); e as despesas não consideradas como MDE, previstas no artigo 71 da LDB (1996). Em relação às despesas, foi analisada centralmente a consideração ou não dos inativos como MDE, que até a promulgação da Emenda Constitucional nº 108/2020 não possuía previsão legal.

Os regramentos próprios dos tribunais utilizados para amparar o seu posicionamento acerca da temática foram obtidos de buscas realizadas nos sites de cada um dos 27 TCEs do país, sem restrição de período. No entanto, como a busca dos normativos se deu entre os meses de janeiro e fevereiro de 2020, os normativos identificados se limitam até esse período. Ao todo, foram encontrados 11 tribunais que possuem algum tipo de regra sobre o percentual de receitas vinculadas e as tipificações de despesas como MDE ou não.

Os TCEs que no momento da pesquisa dispunham de normativos próprios com regras de vinculação para MDE foram os de Minas Gerais (TCEMG), Espírito Santo (TCEES), Sergipe (TCESE), Pernambuco (TCEPE), Maranhão (TCEMA), Rio Grande do Sul (TCERS), Mato Grosso (TCEMT), Rondônia (TCERO), Pará (TCEPA), Roraima (TCERR) e Amapá (TCEAP).

OS TRIBUNAIS DE CONTAS ESTADUAIS E OS GASTOS EDUCACIONAIS

O controle da administração pública e mais especificamente das contas públicas é uma prerrogativa democrática, tendo em vista sobretudo a responsividade que os gestores públicos devem ter com a sociedade. Para operacionalizar esse controle, foram criados órgãos específicos com naturezas diversas, o que remete à primeira metade do século passado. Entre eles, destacam-se os tribunais de contas, que “são constitucionalmente estruturados sob a forma de órgãos de auxílio, não vinculados a nenhum dos poderes e, portanto, sem submissão ao Poder Legislativo, com o objetivo de fiscalizar a execução orçamentária e o patrimônio público” (Fernandes, Fernandes, & Teixeira, 2018Fernandes, G. A. A. L., Fernandes, I. F. L. A., & Teixeira, M. C. (2018). Estrutura de funcionamento e mecanismos de interação social nos tribunais de contas estaduais. Revista do Serviço Público, 69, 123-150. https://doi.org/10.21874/rsp.v69i0.3585
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, p. 126).

Ao tratar das especificidades do controle realizadas pelos tribunais de contas do Brasil, que incluem os TCEs, Almeida Fernandes e Teixeira (2020)Almeida Fernandes, G. A., & Teixeira, M. A. C. (2020). Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sobre a atuação dos órgãos de controle nos municípios brasileiros. BASE: Revista de Administração e Contabilidade da Unisinos, 17(3), 456-482. https://doi.org/10.4013/base.2020.173.04
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demonstram que as suas ações são principalmente do tipo compliance, ou seja, restringem-se à verificação do cumprimento das normas legais, entre as quais podemos ressaltar a “conformidade dos gastos efetuados em educação com o previsto na Constituição Federal” (Almeida Fernandes & Teixeira, 2020Almeida Fernandes, G. A., & Teixeira, M. A. C. (2020). Accountability ou Prestação de Contas, CGU ou Tribunais de Contas: o exame de diferentes visões sobre a atuação dos órgãos de controle nos municípios brasileiros. BASE: Revista de Administração e Contabilidade da Unisinos, 17(3), 456-482. https://doi.org/10.4013/base.2020.173.04
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, p. 466). Os autores ainda afirmam que outro tipo de controle é aquele realizado pela Controladoria-Geral da União, que é do tipo performance e também se preocupa com o controle dos resultados.

A estrutura dos tribunais de contas é composta basicamente de “Conselheiros, Pleno, Presidência, Auditores, Ouvidoria, Ministério Público, Corregedoria e Secretaria de Controle Externo” (Fernandes, Fernandes, & Teixeira, 2018Fernandes, G. A. A. L., Fernandes, I. F. L. A., & Teixeira, M. C. (2018). Estrutura de funcionamento e mecanismos de interação social nos tribunais de contas estaduais. Revista do Serviço Público, 69, 123-150. https://doi.org/10.21874/rsp.v69i0.3585
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, p. 131). Desses cargos, o de maior destaque é o de conselheiro, pois compõe o topo da estrutura dos tribunais e é o responsável por julgar as contas do governador por meio de parecer prévio de contas, sendo o seu julgamento efetivo realizado pelo legislativo.

Ao contrário do que comumente se pensa, dos sete conselheiros que compõem os tribunais, apenas um é de escolha livre do governador, sendo os outros dois de sua escolha obrigatoriamente um auditor do próprio tribunal de contas e um procurador do Ministério Público de Contas, enquanto os outros quatro são indicados pela Assembleia Legislativa. Ainda sobre a estrutura de funcionamento dos tribunais, cabe destacar que, apesar de serem muito próximos entre si, o seu funcionamento, fluxo de processos, forma de tomada de decisão e atividades internas são particulares a cada um dos tribunais e definidos internamente (Fernandes et al., 2018Fernandes, G. A. A. L., Fernandes, I. F. L. A., & Teixeira, M. C. (2018). Estrutura de funcionamento e mecanismos de interação social nos tribunais de contas estaduais. Revista do Serviço Público, 69, 123-150. https://doi.org/10.21874/rsp.v69i0.3585
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, pp. 131-132).

A prerrogativa de autonomia conferida aos tribunais de contas confere aos conselheiros a capacidade de atuar com certo grau de liberdade, para que de acordo com seu juízo possam fazer as suas interpretações das normas federais e julgar as contas do executivo. Essa liberdade, por sua vez, culmina muitas vezes na produção de mudanças institucionais das regras federais que disciplinam os gastos com MDE para os entes subnacionais, como demonstra sistematicamente Nicholas Davies a partir dos anos 2000. Analisando o caso de São Paulo, Davies (2006)Davies, N. (2006). Os tribunais de contas de São Paulo e sua avaliação dos gastos governamentais em educação. EccoS - Revista Científica, 8(1), 173-192. https://doi.org/10.5585/eccos.v8i1.464
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observa que o TCESP permite desde 1998 gastos com inativos como MDE.

Davies (2009)Davies, N. (2009). O tribunal de contas da Paraíba e a verificação da aplicação dos recursos vinculados à educação. Raízes: Revista de Ciências Sociais e Econômicas, 27(1), 129-136. https://doi.org/10.37370/raizes.2008.v27.293
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também aponta que entre os anos de 1997 e 2000 o TCE da Paraíba deixou de apresentar pareceres contrários às contas do executivo pelo descumprimento da LDB quando tais ações não eram acompanhadas de dolo ou má-fé, além de confundir as despesas com educação (que são uma categoria abrangente) com MDE (categoria mais específica), embora não incluísse os inativos na conta de MDE. Em relação ao percentual de vinculação de receitas, Davies (2010b)Davies, N. (2010b). Os procedimentos adotados pelo Tribunal de Contas do Piauí para a verificação das receitas e despesas vinculadas à educação. Educação e Sociedade, 31(110), 93-111. https://doi.org/10.1590/S0101-73302010000100006
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observa que a posição do TCE do Piauí varia no tempo, já que até 1998 considerava apenas 25%, mesmo a Constituição estadual prevendo vinculação de 30%. Em 1999 passou a considerar 30% e em 2004 voltou a considerar 25%. Além disso, o tribunal não considera os inativos para fins de MDE e utiliza os gastos educacionais e com MDE de forma intercambiável.

Nesse mesmo sentido, o TCE da Bahia tampouco distingue as despesas com educação de MDE, além de não definir precisamente o que considera como MDE (Davies, 2010cDavies, N. (2010c). Os procedimentos adotados pelos Tribunais de Contas da Bahia para a verificação das receitas e despesas vinculadas à educação. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas Em Educação, 18(66), 139-156. https://doi.org/10.1590/s0104-40362010000100008
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), assim como o TCEMG, que, fora variar as suas definições acerca das despesas com MDE, não segue necessariamente o que é previsto na LDB nem na Constituição Federal (Davies, 2013Davies, N. (2013). A fiscalização das receitas e despesas do ensino em minas gerais. Cadernos de Pesquisa, 43(149), 518-541. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000200008
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).

Utilizando mecanismos e artifícios parecidos ou iguais com os que foram apresentados até aqui, tribunais como o de Ceará, Goiás, Santa Catarina, Amapá, Amazonas, Rondônia, Roraima e Tocantins também produzem mudanças institucionais das regras federais, por meio das suas definições das despesas com MDE (Davies, 2010aDavies, N. (2010a). A fiscalização pelos Tribunais de Contas de Goiás das receitas e despesas vinculadas à educação. Revista Inter. Ação, 35(2), 437-460. https://doi.org/10.5216/ia.v35i2.13123
https://doi.org/10.5216/ia.v35i2.13123...
, 2011Davies, N. (2011). A frágil confiabilidade do tribunal de contas de Santa Catarina na fiscalização dos recursos da educação: governo estadual deixou de aplicar mais de R$ 2,1 bilhões em educação de 1998 a 2008 mas TC aprovou as contas estaduais. Perspectiva, 29(1), 193-226. https://doi.org/10.5007/2175-795x.2011v29n1p193
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, 2012Davies, N. (2012). Os Tribunais de Contas do Acre, Amapá, Amazonas, Rondônia, Roraima e Tocantins e seus procedimentos de contabilização da receita e despesa em educação. Revista HISTEDBR On-Line, 12(45), 200-222. https://doi.org/10.20396/rho.v12i45.8640145
https://doi.org/10.20396/rho.v12i45.8640...
, 2015Davies, N. (2015). A fiscalização das contas da educação pelos Tribunais de Contas do Ceará. Revista de Educação Pública, 24(55), 153-175. Recuperado de https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/view/1569
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
). Entre as ações dos TCEs, destaca-se a definição das despesas com inativos, que até a promulgação da Emenda Constitucional nº 108/2020, que trata do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), não era disciplinada por nenhuma norma federal e, portanto, não era permitida nem proibida de ser aplicada como MDE.

No entanto, como é demonstrado sistematicamente por Souza (2019)Souza, F. A. (2019). Inativos da educação: despesa da educação? Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, 35(3), 1018. https://doi.org/10.21573/vol35n32019.95884
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, a maior parte dos conselheiros dos TCEs do país permitia a inclusão das despesas com inativos da educação no montante de despesas com MDE, mesmo quando os técnicos auditores desses tribunais recomendavam a sua não inclusão.

ANÁLISE DO PAPEL DOS 11 TRIBUNAIS DE CONTAS ESTADUAIS NA DEFINIÇÃO DOS GASTOS EDUCACIONAIS ESTADUAIS

Percentual mínimo de recursos destinado à MDE

Em relação ao percentual mínimo de vinculação de receitas para despesas com MDE, a Constituição Federal (1988Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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) prevê 25% das receitas totais de impostos para os estados e municípios, no entanto as Constituições estaduais comumente passaram a estabelecer valores iguais ou superiores a ele, sendo por isso objeto de previsão normativa de alguns TCEs.

O TCEMG estabelece que o governo do Estado deve destinar no mínimo 25% das suas receitas de impostos e transferências para MDE, como prevê a Constituição Federal, ou percentual superior caso seja previsto na Constituição estadual (TCEMG, 2008Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG). (2008). Instrução Normativa 13/2008. Recuperado de: https://tclegis.tce.mg.gov.br/Home/Detalhe/978166
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). Nesse mesmo caminho, o TCESE, o TCEMA e o TCERO determinam que os respectivos estados gastem no mínimo 25% da sua receita de impostos com MDE, em conformidade com a Constituição estadual, Constituição Federal e LDB, no entanto não proferem um posicionamento a respeito da eventual circunstância em que a respectiva Constituição estadual preveja um percentual de vinculação superior a 25% da receita total de impostos e transferências.

Em sentido mais restritivo, o TCEMT (s.d.)Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso (TCEMT). (s.d.). Súmula 16. Recuperado de https://www.tce.mt.gov.br/conteudo/download/sumula-no-16-processo-no-2193042016/75750
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determina que o estado gaste no mínimo 25% das receitas de impostos e transferências, independentemente do que esteja previsto nas leis regionais. Ou seja, caso a Constituição estadual preveja um percentual de vinculação superior a 25%, para fins de controle das contas estaduais, o TCEMT levará em conta apenas o limite mínimo de 25%.

Dos 11 TCEs analisados, apenas cinco apresentaram alguma previsão normativa a respeito do critério utilizado para consideração do percentual mínimo de receitas vinculadas com MDE, variando entre três: consideração de no mínimo 25% ou percentual superior previsto na Constituição estadual; no mínimo 25%, sem mais considerações; e consideração de apenas 25%, independentemente do que prevê a Constituição estadual.

Despesas consideradas para fins de MDE

Em relação às despesas consideradas para fins de MDE, ou seja, aquelas consideradas para fins de cumprimento do percentual mínimo de vinculação, as posições dos TCEs variam entre reafirmar o que é previsto na LDB e complementá-lo com outras considerações. Nesta subseção, ao se analisar as despesas consideradas como MDE se dará atenção especial à despesa relativa aos inativos, já que até a aprovação da Emenda Constitucional nº 108, de 2020, que trata do novo Fundeb, ela não esteve presente no artigo que permite nem no que não permite tal tipo de gasto para fins de vinculação das receitas. No âmbito nacional, as despesas consideradas para fins de MDE são previstas no artigo 70 da LDB (1996):

  • Art. 70. Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a:

  • I - remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação;

  • II - aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino;

  • III - uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino;

  • IV - levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino;

  • V - realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino;

  • VI - concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas;

  • VII - amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto nos incisos deste artigo;

  • VIII - aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar.

O TCEMG prevê em sua instrução normativa todas as previsões realizadas pela LDB e, complementarmente, faz algumas considerações em alguns incisos, como por meio de exemplificações de tipos de gasto, além de ter adicionado o inciso IX, que nada mais é do que uma fragmentação do inciso VIII do artigo 70 da LDB, e os parágrafos terceiro e quarto, que versam sobre as despesas com instituições filantrópicas e as etapas de execução orçamentária das despesas, respectivamente.

Ainda sobre o TCEMG, em um documento de aviso de 2003, o tribunal comunicou que os gastos com inativos serão considerados como despesas com MDE até que se tenha definição definitiva sobre a matéria (TCEMG, 2003Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG). (2003). Aviso 01/2003. Recuperado de https://tclegis.tce.mg.gov.br/Home/Detalhe/978805
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). Oito anos depois, a Instrução Normativa nº 09/2011 estabeleceu que as despesas com inativos não serão consideradas para fins de MDE.

Já o TCEES não reproduz em detalhes o que é previsto no artigo 70 da LDB, porém reitera que a aplicação dos recursos deve ser realizada segundo ele. Complementarmente, o tribunal prevê que serão consideradas como MDE “despesas com as contribuições previdenciárias de responsabilidade dos entes, incidentes sobre as remunerações dos servidores ativos vinculados ao ensino” (TCEES, 2012), o que não altera as disposições do artigo 70 da LDB; apenas especifica um tipo de despesa já prevista, que é a que versa sobre remuneração de pessoal.

Assim como o TCEMG e o TCEES, o TCESE (2007)Tribunal de Contas do Estado de Sergipe (TCESE). (2007). Resolução nº 243/2007. Recuperado de http://antigo.tce.se.gov.br/sgw/resolucao.ler.php?r=243/2007
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reproduz o que é previsto no artigo 70 da LDB e faz algumas complementações com detalhes e adição de alguns incisos e parágrafos. Entre as inserções, destacam-se as despesas com entidades comunitárias, confessionais e filantrópicas conveniadas com o setor público (inciso XIII) e despesas para realização de concursos seletivos de professores e pessoal administrativo (inciso XI). Além disso, os parágrafos adicionais especificam a forma de uso das despesas tipificadas.

O TCEMA (2007)Tribunal de Contas do Estado do Maranhão (TCEMA). (2007). Instrução Normativa nº 14/2007. Dispõe sobre a fiscalização dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e dos demais recursos destinados ao ensino, nos âmbitos estadual e municipal, e dá outras providências. está entre aqueles que assumem papel restrito na normatização dos recursos atrelados à MDE. Em relação às despesas consideradas como MDE, o tribunal menciona em sua instrução normativa que leva em conta o que é previsto no artigo 70 da LDB para fins de fiscalização da aplicação dos recursos educacionais por parte do executivo estadual.

Diferentemente dos tribunais analisados até aqui, que reiteram ou reproduzem parcialmente a previsão da LDB, o TCERS (2019)Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCERS). (2019). Instrução Normativa nº 02/2019. Recuperado de https://atosoficiais.com.br/tcers/instrucao-normativa-n-2-2019-altera-os-anexos-i-a-v-da-instrucao-normativa-no-4-de-23-de-maio-de-2018-que-dispoe-sobre-as-condicoes-necessarias-a-emissao-e-a-disponibilizacao-das-certidoes-de-que-trata-a-resolucao-no-1089-de-25-de-abril-de-2018?origin=instituicao&q=02
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faz uma reprodução literal dos oito incisos presentes no artigo 70 da LDB, assim como o TCERO (2007)Tribunal de Contas do Estado de Rondônia (TCERO). (2007). Instrução Normativa nº 22/2007. Dispõe sobre as informações e documentos a serem encaminhados pelos gestores estaduais e municipais responsáveis pelas áreas de Educação e Saúde, e dá outras providências. e o TCEAP (2000)Tribunal de Contas do Estado do Amapá (TCEAP). (2000). Resolução Normativa nº 102/2000. Recuperado de https://www.tce.ap.gov.br/uploads/resolucao/Resolucao_Normativa_102_2000.pdf Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCEES). (2012). Resolução nº 238/2012. Institui novos mecanismos adequados à fiscalização quanto ao pleno cumprimento do disposto no artigo 212 da Constituição Federal e art. 60 do seu ADCT, bem como nos artigos 26, inciso II, e 27 da Lei Federal nº 11.494/07
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.

O TCERR, além de reiterar algumas das previsões da LDB, detalha e especifica algumas delas, como as relativas a gastos com pessoal e aquisição e manutenção de equipamentos e estabelecimentos permanentes. Apesar de não introduzir novas tipificações de despesa, o tribunal detalha os tipos de despesa que são consideradas como MDE. Quanto às despesas com pessoal, preveem-se as relativas “a contratos temporários previstos em lei, e os encargos sociais incidentes” (TCERR, 2014Tribunal de Contas do Estado de Roraima (TCERR). (2014). Instrução Normativa nº 02/2014. Recuperado de https://www2.tce.rr.leg.br/arquivos/2014/06/a7b023c1f36f78c2085a2755b1281c69.pf
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) e as que versam sobre o pessoal que oferece apoio pedagógico. Quanto às despesas permanentes, destaca-se que elas devem ser voltadas exclusivamente à educação, e há um detalhamento acerca da sua natureza. Pelas análises realizadas, observa-se que as posições podem ser divididas em cinco: reprodução integral dos incisos previstos no artigo 70 da LDB; reprodução integral dos incisos previstos no artigo 70 da LDB com algumas complementações e exemplificações; reprodução parcial dos artigos da LDB com algumas complementações; apenas citação do artigo 70 da LDB; e citação do artigo 70 da LDB com complementação.

Despesas não consideradas para fins de MDE

Enquanto a seção anterior tratou das despesas consideradas pelos TCEs como MDE, esta seção dispõe sobre as despesas que não são consideradas como MDE para os TCEs. Assim como a subseção anterior, esta dá destaque especial para a não consideração das despesas com inativos como MDE. As despesas não consideradas para fins de MDE estão previstas no artigo 71 da LDB:

  • Art. 71. Não constituirão despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino aquelas realizadas com:

  • I - pesquisa, quando não vinculada às instituições de ensino, ou, quando efetivada fora dos sistemas de ensino, que não vise, precipuamente, ao aprimoramento de sua qualidade ou à sua expansão;

  • II - subvenção a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial, desportivo ou cultural;

  • III - formação de quadros especiais para a administração pública, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos;

  • IV - programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social;

  • V - obras de infra-estrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar;

  • VI - pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino.

O TCEMG (2008)Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG). (2008). Instrução Normativa 13/2008. Recuperado de: https://tclegis.tce.mg.gov.br/Home/Detalhe/978166
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, sob o respaldo do artigo 71 da LDB, faz uma consideração complementar, determinando que não somente as despesas que não dizem respeito à educação não sejam consideradas como MDE, mas também aquelas que não se pode comprovar que foram alocadas na educação. No tocante aos gastos com pesquisa, o tribunal faz uma reprodução integral do que é previsto na LDB acerca desse tema e não considera as despesas com inativos como MDE.

Já o TCESE optou por reproduzir os seis incisos do artigo 71 da LDB, complementando-os quando cabível, e adicionou mais sete incisos com as previsões a respeito dos gastos não considerados como MDE. Entre eles, destacam-se gastos de caráter permanente, como obras de médio e grande portes, e gastos de caráter festivo alheios à atividade pedagógica:

  • Art. 11. Não são consideradas como despesas de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, aquelas realizadas com:

  • [...]

  • VI - investimentos não vinculados à unidade educacional, como construção de museu, centro cultural ou comunitário, quadra poliesportiva, e biblioteca pública, e gastos com Rádio e TV Educativa, ainda que integrados à unidade de ensino, exceto o custeio da veiculação de programas educacionais;

  • VII - Desapropriação de áreas de acesso às escolas;

  • [...]

  • IX - Propaganda ou qualquer outra forma de divulgação da administração pública, exceto aquelas relacionadas ao ensino básico, cuja publicidade e divulgação são obrigatórias para os atos de gestão do ensino básico, por força de lei;

  • X - Despesas com manifestações religiosas;

  • XI - Confraternizações e coquetéis;

  • XII - Coffee-breaks, exceto quando previstos na realização de eventos de qualificação e aperfeiçoamento de profissionais da educação;

  • XIII - Atividades culturais, folclóricas e recreativas, exceto quando destinadas a atividades pedagógicas integrantes do sistema de ensino (TCESE, 2007Tribunal de Contas do Estado de Sergipe (TCESE). (2007). Resolução nº 243/2007. Recuperado de http://antigo.tce.se.gov.br/sgw/resolucao.ler.php?r=243/2007
    http://antigo.tce.se.gov.br/sgw/resoluca...
    ).

O TCEPE (2001)Tribunal de Contas do Estado do Pernambuco (TCEPE). (2001). Resolução T.C. nº 0005/2011. Dispõe sobre despesas que não constituem manutenção e desenvolvimento do ensino para fins do artigo 212 da Constituição Federal e dá outras providências. Recuperado de https://atosoficiais.com.br/tcepe/resolucao-n-5-2001-dispoe-sobre-despesas-que-nao-constituem-manutencao-e-desenvolvimento-do-ensino-para-fins-do-artigo-212-da-constituicao-federal-e-da-outras-providencias-2021-07-19-versao-compilada?origin=instituicao
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por sua vez, restringe-se a abordar apenas a questão relativa aos inativos, determinando que as despesas relativas a essa finalidade não podem ser incluídas nas despesas consideradas como MDE. O mesmo é feito pelo TCEES.

Assim como na seção anterior, o TCERS (2019)Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCERS). (2019). Instrução Normativa nº 02/2019. Recuperado de https://atosoficiais.com.br/tcers/instrucao-normativa-n-2-2019-altera-os-anexos-i-a-v-da-instrucao-normativa-no-4-de-23-de-maio-de-2018-que-dispoe-sobre-as-condicoes-necessarias-a-emissao-e-a-disponibilizacao-das-certidoes-de-que-trata-a-resolucao-no-1089-de-25-de-abril-de-2018?origin=instituicao&q=02
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reproduziu em sua integralidade os incisos do artigo 71 da LDB, da mesma forma que o TCERO (2007)Tribunal de Contas do Estado de Rondônia (TCERO). (2007). Instrução Normativa nº 22/2007. Dispõe sobre as informações e documentos a serem encaminhados pelos gestores estaduais e municipais responsáveis pelas áreas de Educação e Saúde, e dá outras providências. e o TCEAP (2000)Tribunal de Contas do Estado do Amapá (TCEAP). (2000). Resolução Normativa nº 102/2000. Recuperado de https://www.tce.ap.gov.br/uploads/resolucao/Resolucao_Normativa_102_2000.pdf Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCEES). (2012). Resolução nº 238/2012. Institui novos mecanismos adequados à fiscalização quanto ao pleno cumprimento do disposto no artigo 212 da Constituição Federal e art. 60 do seu ADCT, bem como nos artigos 26, inciso II, e 27 da Lei Federal nº 11.494/07
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, que também reproduziram na integralidade de seus normativos os incisos do artigo 71 da LDB ao tratar das despesas não consideradas como MDE.

O posicionamento do TCEPA acerca das despesas não consideradas como MDE se expressa em uma resolução formulada com o objetivo de atender a um questionamento do então secretário de Planejamento, Orçamento e Finanças do estado do Pará, que dizia respeito sobre a possibilidade de aquisição de uniforme escolar com recursos do percentual mínimo de 25% destinados à MDE previstos no artigo 212 da Constituição Federal. A referida resolução apontou posicionamento negativo acerca da possibilidade, sob a justificativa de que tal tipo de despesa não está presente no artigo 70 da LDB, que prevê os gastos educacionais considerados como MDE (TCEPA, s.d.Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCEPA). Resolução nº 17.977. Recuperado de http://www.tce.pa.gov.br/busca/Forms/FileViewResolucao.aspx?NumeroResolucao=7
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).

O TCERR enquadra-se entre os TCEs que reproduzem os incisos presentes no artigo 71 da LDB e complementa-os com outros incisos. O primeiro inciso do instrumento normativo analisado desse tribunal é o mesmo formulado pelo TCEMG, que prevê que as despesas que não podem ser certificadas de que foram destinadas à educação não podem ser consideradas despesas. Outro inciso complementar prevê que os gastos com pagamento de inativos não serão considerados como MDE.

Os TCEs analisados posicionam-se de três formas: reprodução integral do que é previsto no artigo 71 da LDB; reprodução integral do que é previsto no artigo 71 da LDB adicionado de alguma complementação; e reprodução parcial do que prevê o artigo 71 da LDB adicionado de alguma complementação.

Despesas com inativos

A seção anterior demonstra que, dos 11 tribunais analisados, apenas o TCEES, TCEPE, TCERR e TCEMG possuem um posicionamento sobre a inclusão dos inativos no cômputo dos 25% vinculados à MDE, e esse posicionamento é negativo. No entanto, por meio de outras estratégias de identificação, a literatura revela que praticamente todos os tribunais possuem uma posição sobre a questão. Conforme a Tabela 1, Souza (2019)Souza, F. A. (2019). Inativos da educação: despesa da educação? Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, 35(3), 1018. https://doi.org/10.21573/vol35n32019.95884
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identifica que, dos 33 tribunais de contas analisados (incluindo tribunais municipais, estaduais e da União), 20 possuem um regramento normativo sobre o tema, dos quais apenas três permitem o gasto dos recursos vinculados com inativos. O autor ainda demonstra que, apesar de não haver posição consensual entre as equipes técnicas dos tribunais, apenas o plenário (formado pelos conselheiros) de um dos tribunais é desfavorável ao gasto dos recursos vinculados com inativos.

Tabela 1
Posição dos tribunais de contas acerca do pagamento de inativos da educação

Discussão dos resultados

A análise do posicionamento dos 11 TCEs acerca da definição dos gastos educacionais com MDE, sintetizada na Tabela 2, varia, em termos gerais, entre apenas reproduzir ou citar a norma federal, ou então fazer isso e adicionar novas categorias de gastos ao texto da LDB sem alterar a própria norma federal. Quanto ao percentual de vinculação de recursos para MDE, previsto normativamente no nível federal pela Constituição, observa-se, em termos gerais, que os tribunais também não contrariam a norma federal em um sentido substantivo, diminuindo o percentual de vinculação, por exemplo, no entanto as especificações ou complementações dadas por alguns tribunais no tocante a essa temática produz alterações em relação ao efeito da LDB, já que a depender das especificações se destinam mais ou menos recursos para MDE.

Tabela 2
Posicionamento dos Tribunais de Contas Estaduais (TCE) acerca dos gastos educacionais com Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE)

A mudança institucional produzida pelos TCEs produz efeitos potenciais para as políticas educacionais e para as desigualdades educacionais e o financiamento da educação entre os estados, que se materializam no momento em que os gestores estaduais e municipais seguem as regras do seu respectivo TCE. Com a criação de uma norma federal que é comum a todos os entes, cria-se a expectativa de que exista a tendência à redução das desigualdades entre eles, uma vez que as ações individuais tendem a ser convergentes no que tange ao regramento que devem seguir. Assim, na medida em que um TCE produz uma mudança institucional que afeta apenas a sua jurisdição, cria-se a tendência de que o ente gestor produza uma ação que gera desigualdade em relação aos outros entes. Essas tendências são parcialmente observadas por Arretche (2010)Arretche, M. (2010). Federalismo e igualdade territorial: Uma contradição em termos? Dados, 53(3), 587-620. https://doi.org/10.1590/S0011-52582010000300003
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, que identifica nas normas formuladas pela União efeitos equalizadores, enquanto as ações individuais dos entes subnacionais são suscitadoras de desigualdades.

As mudanças institucionais produzidas pelos TCEs têm como característica principal adicionar regras na lei federal que disciplina a definição das despesas com MDE, seja criando tipificações das despesas que podem ser consideradas ou não MDE, seja especificando as tipificações já determinadas pelo regramento federal. Com base no modelo analítico de Mahoney e Thelen (2009)Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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, podemos classificar essas mudanças como layering, pois, sem mudar o conteúdo formal das regras de referência, se criam camadas de regras que vão sobrepondo-se à norma federal.

No que se refere às condições contextuais destacadas pelos autores, observa-se que, em consonância com os pressupostos do modelo, a mudança ocorre em um contexto de forte possibilidade de veto, e nesse caso podemos entendê-la como uma condição de veto pleno, uma vez que as ações dos tribunais de contas são intransponíveis para mudar uma lei federal, que é a própria LDB, e ao mesmo tempo há pouca margem de discricionariedade para se interpretar o conteúdo da regra, tendo em vista a objetividade da sua natureza. Deve-se levar em conta ainda que as ações dos tribunais possuem baixo poder de veto pelo fato de terem pouco ou nenhum controle externo, baixa permeabilidade social e transparência defasada (Da Rocha, Zuccolotto, & Teixeira, 2020Da Rocha, D. G., Zuccolotto, R., & Teixeira, M. A. C. (2020). Insulated and undemocratic: the (im)possibility of social accountability in Brazilian courts of accounts. Revista de Administração Pública, 54(2), 201-219. https://doi.org/10.1590/0034-761220190294x
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).

No entanto, quando se verifica especificamente a regra federal sobre o percentual de vinculação de recursos, constata-se que a sua pretensa objetividade é acompanhada de certa margem de imprecisão, já que não se pode abstrair de antemão qual é o sentido exato de no mínimo 25%, e uma expressão disso é que o TCEMT especifica que considerará para efeitos de vinculação 25% das receitas de impostos independentemente de outras previsões legais, cabendo destacar ainda que a Constituição Estadual de Mato Grosso vincula 35% das receitas de impostos para MDE. Assim, pode-se considerar que o tipo de mudança institucional produzido pelo TCEMT é uma combinação das mudanças de tipo layering, uma vez que há sobreposição de normas com base em uma especificação, e conversion, uma vez que essa sobreposição é proveniente de uma margem de discrição para interpretação do regramento federal sem alterá-lo em sua substantividade nem necessariamente feri-lo.

Outra circunstância que culmina na combinação das mudanças do tipo layering e conversion é dos gastos com inativos. O primeiro tipo de mudança expressa-se na criação de normas por parte dos tribunais, que visam preencher um vácuo decisório, uma vez que o regramento federal não permitia nem proibia esse tipo de gasto. Já o segundo tipo expressa-se pela interpretação que os tribunais precisam fazer das regras federais nesse contexto de indefinição.

No contexto do federalismo brasileiro, a União é responsável pelo desenho de algumas políticas públicas e os entes subnacionais pela sua implementação (Arretche, 2012Arretche, M. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Editora Fiocruz e Editora FGV.), ainda que o processo de implementação seja permeado de tomadas de decisão, e nesse sentido os governos subnacionais também podem ser considerados formuladores (Bichir, 2018Bichir, R. (2018). Governança multinível. Boletim de Análise Político-Institucional, 19, 49-55. Recuperado de https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8969/1/bapi_19_cap_07.pdf
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). Os resultados deste artigo demonstram que no nível subnacional não apenas os implementadores são formuladores de políticas públicas ao tomar as suas decisões de implementação, mas os TCEs também podem tomar decisões que os alçam à condição de formuladores. Por sua vez, essas decisões podem culminar em mudanças institucionais da regra federal, produzindo efeitos potenciais para implementação das políticas públicas, que neste artigo dizem respeito à política de financiamento da educação. A produção de mudanças institucionais por parte dos tribunais não é trivial nem uniforme e, por isso, deve ser analisada individualmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou demonstrar como os TCEs se posicionam em relação à definição das despesas com MDE e, com base nisso, identificou como os tribunais realizam mudanças da norma federal que trata da temática. Para isso se identificaram os normativos próprios dos tribunais que expressam a sua definição de MDE. Os resultados demonstram que os TCEs possuem diferentes tipos de definição acerca dos percentuais de recursos vinculados para MDE e sobre a tipificação das despesas consideradas e não consideradas para fins de MDE.

A despeito do arranjo federativo brasileiro que centralizou o desenho das políticas públicas e descentralizou a sua implementação (Arretche, 2012Arretche, M. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Editora Fiocruz e Editora FGV.), restringindo assim as margens de decisão dos entes subnacionais e gerando movimentos suscitadores de redução das desigualdades (Arretche, 2010Arretche, M. (2010). Federalismo e igualdade territorial: Uma contradição em termos? Dados, 53(3), 587-620. https://doi.org/10.1590/S0011-52582010000300003
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), a análise do papel de 11 TCEs na definição dos gastos educacionais demonstra que os processos que acompanham a implementação é permeado por dinâmicas que podem alterar as instituições federais e que tendem a gerar efeitos potenciais para as políticas públicas. No caso estudado, esses efeitos dizem respeito à desigualdade no regramento do financiamento da educação entre os estados brasileiros, uma vez que os diferentes TCEs, ao analisar as regras federais e estaduais, as reinterpretam conforme Clune (1987)Clune, W. H. (1987). Institutional choice as a theoretical framework for research on educational policy. Educational Evaluation and Policy Analysis, 9(2), 117-132. https://doi.org/10.2307/1163725
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e produzem diferentes mudanças institucionais em relação à instituição federal (Mahoney e Thelen, 2009Mahoney, J., & Thelen, K. (2009). A theory of gradual institutional change. In J. Mahoney & K. Thelen (Eds.), Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power (pp. 1-37). Cambridge: Cambridge University Press. https://doi.org/10.1017/CBO9780511806414.003
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).

Como este trabalho não analisou a aplicação das normas produzidas pelos tribunais, então não é possível aferir os seus efeitos, de modo que se deve tratar dos seus efeitos potenciais, ou seja, dos seus efeitos caso os gestores subnacionais se amparem nas referidas normas para gerir os recursos educacionais. Uma indicação de trabalhos futuros pode ser o aprofundamento desse entendimento, para que se possa compreender em que medida as definições dos tribunais afetam a gestão local, com a mensuração das desigualdades geradas entre os estados em virtude das diferentes normatizações.

NOTA

  • Este artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto “Variação Estadual nas Políticas Públicas de Ensino Fundamental no Brasil” do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Processo Fapesp: 2013/07616-7).
  • Avaliado pelo sistema double blind review.

REFERÊNCIAS

Editado por

Editora responsável: Andrea Leite Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
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