Resumo:
A Exposição Antropológica Brasileira, celebrada em 1882 no Museu Nacional do Rio de Janeiro, é analizada aqui como um intento monumental e espetacular de revalorizar a iconografia indianista do Império que na época parecia ter-se tornado redundante. A evidência material da "realidade" indígena exigia uma reavaliação da utilidade do índio como representante da nação moderna: da mesma forma em que o discurso indianista não pode estar reduzido a um parâmetro ideológico singular e univocal, porém, a reinscrição científica da vida e da cultura nativa parecia expressar mensagens contraditórias, mensagens estas que, disseminadas no nível da esfera pública pela Exposição Antropológica, vieram a se tornar ainda mais diversificadas e complexas. O espetáculo da ciência que dizia substituir os mitos literários ou artísticos sobre o índio, não obstante retomava as dicotomias tradicionais entre bons e maus selvagens, tupis e tapuias, passado e presente. No presente artigo se tentará traçar o percurso deste campo científico emergente, primeiramente contrapondo os novos discursos sobre "raça" e civilização pré-colombiana presentes na tradição indianista, para oferecer logo uma observação mais atenta sobre o modo em que essas diferentes instâncias operavam no nível de ordem dos objetos expostos. A partir daí será discutida a proliferação das representações visuais de objetos, homens e mulheres indígenas presentes na exposição em pintura, escultura, fotografia e caricatura.
Palavras-chave:
antropologia; indianismo; museus; exposições; cultura visual.
Abstract
The Brazilian Anthropological Exhibition, celebrated in 1882 in Rio de Janeiro's National Museum, is analyzed here as a monumental and spectacular attempt to re-evaluate the indianist iconography of the imperial state, which seemed to have become redundant at the time. The material evidence of indigenous "reality" demanded a reappraisal of the Indian's utility as a symbol of the modern nation. Yet, just as indianist discourse cannot be reduced to a single, univocal ideological stance, scientific reinscriptions of native life and culture sent out contradictory messages, which were further complicated and diversified in the uses that were made of the Anthropological Exhibition in the public sphere of Rio de Janeiro. The spectacle of science that supposedly replaced literary and artistic myths of the Indian, in fact reproduced traditional dichotomies between noble and ignoble savages, tupis and tapuias, past and present. The present article charts the emerging field of anthropology as a symbolic arena for the tensions over the identity and status of self and other to be played out, first by counterposing the new discourses on race and pre-Columbian civilizations to the indianist tradition, and then by looking more closely at how their different stances operated at the level of the order of display. It goes on to discuss the proliferation of visual representations of the objects and of the indigenous men and women present at the exhibition in painting, sculpture, photography and caricature
Key Words:
anthropology; indianism; museums; exhibitions; visual culture.otas
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Meus agradecimentos a Aquiles Alencar Brayner, Alvaro Fernández Bravo, Florencia Garramuño, Gabriela Nouzeilles, Antônio Carlos de Souza Lima e Roberto Said pelos seus comentários e sugestões durante a pesquisa e escritura deste ensaio.
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Como David Treece (2000: 11) sugere, o indianismo "ofereceu uma arena dramática eimaginativa onde estas contradições [as de classe, raça e convicção ideológica] poderiam ser encenadas. A exclusão de grandes setores da sociedade brasileira do poder econômico e político poderia ser identificado com a marginalização histórica e contemporânea das comunidades tribais da sociedade nacional." O poema épico inacabado de Gonçalves Dias, Os Timbiras, para citar um exemplo, ainda que se referisse ao passado ameríndio imediatamente antes da chegada dos portugueses, apresentava enquanto pano de fundo os massacres e escravização em massa dos membros desta tribo originária do Maranhão (local de nascimento do poeta) que tinha como objetivo a utilização de áreas indígenas para a expansão de pastos beneficiando os criadores de gado.
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Sobre Alencar, ver, em além dos trabalhos de Treece e Brookshaw citados anteriormente, Bosi, 1992: 176-193; e Schwarz, 2000: 33-79.
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O declínio do indianismo na literatura, sob a pressão da nova conceitualização de raça, assumindo uma vertente biológica e evolucionista, e a partir dos novos preceitos estéticos do naturalismo, coincidiu com o seu ápice nas artes visuais e performáticas. O Guarani, a adaptação operística de Carlos Gomes subsidiada pelo Estado, foi estreada no teatro Scala di Milano em março de 1870, sendo amplamente aclamada, para depois estrear no Rio em dezembro do mesmo ano. A adaptação pitoresca de Iracema, produzida por José Maria de Medeiros, foi mostrada pela primeira vez em 1881, representando a figura de uma mulher nua saindo de uma floresta escura observando curiosamente a espada de Martim Soares Moreno enfiada nas areias da praia, numa síntese alegórica à conquista territorial e sexual. Da mesma forma, o corpos mortos de Moema - a moça índia rejeitada do poema Caramuru, de José de Santa Rita Durão, afogada depois de jogar-se ao mar ao tentar seguir o navio que levava Diogo Álvares, o conquistador português, de retorno à sua terra natal - e o corpo de Aymbiré, o último índio Tamoio no poema épico de Magalhães, recebendo os sacramentos funerários do padre Anchieta, aparecem nas pinturas homônimas de Victor Meirelles e Rodolfo Amoedo, produzidas em 1866 e 1883 respectivamente, lavados por praias idílicas, seus corpos formando uma ponte simbólica ou uma plataforma de desembarque que demonstra suas funções na narrativa como catalisadores da transformação dos heróis brancos em brasileiros, herdeiros legítimos de seu novo país (Ver Schwarcz, 1998: 144-50).
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Algumas amostras de crânios dos Botocudo e dois esqueletos completos haviam sido mandados, em 1875, pelo Museu Nacional Brasileiro a Rudolf Virchow em Berlim e Armand de Quatrefages em Paris. Outros renomados fisiologistas europeus, como Blumenbach e Serres, também receberam restos humanos enviados à Europa por colecionadores brasileiros ou trazidos por cientistas europeus em viagens ao Brasil.
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Ver também Schwarcz, 1993: 49-54. De acordo com a sugestão de Felix Driver, a "antropologia" no contexto das novas sociedades, não significava somente um novo paradigma científico, mas também uma nova forma radicalizada da sociabilidade masculina da alta classe que iria se aparecer nos primórdios do modernismo. Ver Driver, 2001: 96-99.
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O artigo de Ihering "A antropologia do Estado de São Paulo", que defendia a exterminaçãodos índios Caingang como um obstáculo ao progresso do interior paulista, foi publicado pela primeira vez na contribuição oficial do estado ao pavilhão brasileiro na Exposição de Louisiana em 1905. Ele foi mais tarde reimpresso tanto na Revista do Museu Paulista quanto no Diário do Estado de São Paulo. A passagem controversa (a qual Ihering negaria mais tarde haver intencionado uma recomendação aberta ao genocídio), aparece no texto da seguinte forma: "Os índios do estado de São Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso. Como também nos outros estados do Brasil, não se pode esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados, e como os Caingang são um empecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio de que se possa lançar mão, senão o seu extermínio [...] É minha convicção de que é devido a essas circunstâncias que o estado de São Paulo é obrigado a introduzir milhares de imigrantes, pois não se pode contar de modo eficaz e seguro com os serviços dessa população indígena, para os trabalhos que a lavoura exige." Um fator significante, contudo, é que mesmo recomendando o aniquilamento dessa vida real, o Museu Paulista contribuiria com a Exposição Nacional de 1908, exatamente com uma exposição de "grupos vivos" das mesmas comunidades indígenas consideradas obsoletas pelo seu diretor. O catálogo da exposição menciona "3 cabanas rústicas, de índios Caingangs ou Coroados, Cayuás e Chavantes. As primeiras construídas no mato e as dos últimos na base do morro da Urca, numa gruta natural. Em cada uma está uma casa silvícola de tamanho natural com os respectivos utensílios e apetrechos de guerra, pesca e caça." As fotografias da exposição foram publicadas no Catálogo do estado de São Paulo, editado na ocasião para o evento. Desta forma, a simulação da vida nos povoados indígenas constituía a própria evidência para demonstrar (de maneira negativa) sua aptidão para a sobrevivência. Ver Castro Faria, 1993: 64; Souza Lima, 1989.
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Ver Netto, 1870: 250-2; 1877. De fato, um decreto baixado pelo governo imperial em1876, ano da indicação de Netto como diretor do Museu Nacional (o mesmo posto que ele havia ocupado numa base interina desde 1869), ordenava a criação de um museu arqueológico e etnográfico, sem que no entanto nenhuma medida concreta fosse tomada nem tampouco nenhum fundo oferecido.
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Sobre o desenvolvimento do 'grupo vivo', ver Jacknis, 1985: 75-111; Kirshenblatt-Gimblett, 1992: 400-404.
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"Todas as questões de antropologia se resumem, como os senhores o sabem, em doisproblemas essenciais. O primeiro tem por objetivo a determinação da gênese humana; o segundo, que se encontra intimamente ligado ao primeiro, consiste na discussão das hipóteses do monogenismo ou do poligenismo, em conexão com as leis da evolução na escala zoológica. [...] A dúvida do pensamento confuso [indicado] pelo famoso to be or not to be, a angústia de um cérebro em luta consigo mesmo no abismo do desconhecido, eis aí o que melhor exprime o estado de espírito e do coração daqueles que se dedicam ao estudo dos povos antigos do nosso continente" (Netto, 1885a: 11-12).
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"É verdade que desde 1867, inspirado pelo trabalho de Louis Lartet que, naquela épo-ca, me incentivara a seguir os estudos comparativos entre a cerâmica dos Celta-ibéricos e a olaria primitiva do Brasil, e me encontrei engajado quase que involuntariamente nos estudos deste gênero. Eu o fazia como simples colecionador de materiais dispersos e não enquanto pesquisador experiente e seguro [do seu trabalho]; eu o fazia, enfim, pelo nome e interesse do Museu Nacional, ajudado pela imprensa, graças a qual aquele estabelecimento poderá, mais cedo ou mais tarde, a prioridade das pesquisas desta espécie no Brasil" (Netto, 1885a: 7).
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"Charles Hartt começara a exercer desde então sobre o meu espírito uma justificação suficiente de reservas premeditadas que haviam sido indicadas em relação às questões etnológicas do nosso continente. Porém, seja pela conseqüência do próprio caráter da natureza humana ou seja por uma outra razão, não me foi possível submeter-me totalmente à maneira tão restrita de ver [a etnologia] conforme muitos etnólogos americanos o fazem. Outro motivo que não me permitia fazê-lo foram os inumeráveis documentos que passaram sob os meus olhos, questionando a razão das suas analogias e de suas admiráveis semelhanças com as antiguidades de outros povos primitivos, senão do velho mundo, pelo menos do nosso continente. Eu não poderia negar estas semelhanças, pois elas saltavam aos olhos..." (Netto, 1885a: 9).
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Ver Turazzi, 2000; também Kossoy, 1980; Vasquez, 2002.
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Os fotógrafos, assim explica Turazzi, competiam nas exposições nacionais por medalhas tanto na categoria de belas-artes quanto, na de produtos industriais (ao contrário de participarem sob a nova categoria de "arte industrial", como ocorria nas feiras mundiais de Paris).
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O álbum do Brasil, que poderia ser adquirido em conjunto ou em imagens individuais, foi a obra-prima da carreira de Ferrez enquanto fotógrafo. Este álbum foi constantemente editado e reorganizado durante a vida dele. Na versão de 1899, que consistia em 72 impressões em albumina, as primeiras cinco fotografias eram retratos tirados em estúdio de chefes indígenas, assim como também de homens e mulheres negras da Bahia, um tipo de prólogo visual antes que Ferrez partisse para o seu tema favorito, as vistas urbanas do Rio de Janeiro. O álbum termina com fotografias de viadutos ferroviários e das colheitas de café em São Paulo e Minas Gerais: um vôo espaço-temporal de norte a sul, e de um passado marcado por colonialismo e escravidão até o presente (já capturado numa atmosfera de nostalgia elegíaca) do Império tropical, em direção a um futuro de modernidade agroindustrial representado pelos dois estados do café que detinham na época o poder político da nação.
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Uma violência de fato compartida por Ferrez: pelo menos uma das suas fotografias das estátuas de gesso foi mais tarde incluída no seu álbum brasileiro como o "retrato de um chefe indígena".
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Dez 2004