Acessibilidade / Reportar erro

As figurações de rei e a caracterização de "puritano" e "papista" em Basilikon Doron

Resumos

Atualmente, os estudos sobre pensamento político dos séculos XVI e XVII têm valorizado a possibilidade de leituras de textos clássicos fora da chave teleológica da "modernidade política" ou "secularização", o que explica o recente interesse em referenciá-los, mais atentamente, aos seus fundamentos teológicos e ao contexto de embates por autoridade frente ao cisma religioso na Europa desse período. Nesse sentido, este ensaio pretende analisar, em chave teológico-política, os motivos retóricos utilizados por James I na obra Basilikon Doron (1599) para figurar a dignidade régia e as "ameaças" (puritana e papista) à sacralidade da dignidade régia, o que também inclui estudar as proposições e os conselhos régios a respeito dos modos e costumes adequados à constituição da dignitas principesca.

auctoritas; Basilikon Doron; Reforma; Antigo Regime.


The studies about 16th and 17th Century Political Thought have currently paid attention of new possibilities of interpretations of classical references without emphasizing teleological approaches as "political modernity" or "secularization". Such a mainstream explains the new interests of studying classical references of 16th and 17th Century Political Thought, but relating them to the background and breakdown of religious and political authorities in Early Modern Europe. So, this article intends to analyse the rhetorical motives used by James I in Basilikon Doron (1599) to represent sacred kingship and to figure its opposites (namely "puritans" and "papists"), also including a study of king's propositions and advices to his son on the ways of fashioning princely manners.

auctoritas; Basilikon Doron; Reformation; Ancient Regime.


Texto completo disponível apenas em PDF.

Full text available only in PDF format.

  • ASCH, Ronald; DUCHHARDT, Heinz (eds.). El Absolutismo: un Mito? Barcelona: Idea Books, 2000.
  • BERCÉ, Yves-Marie. O rei oculto: salvadores e impostores. Mitos políticos populares na Europa Moderna. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial de São Paulo, 2003.
  • CALVIN, John. Commentaries to Bible. Disponível em <http://www.ccel.org/c/calvin>. (s/d)
    » http://www.ccel.org/c/calvin
  • CALVINO, João. A instituição da religião cristã, t. 2. São Paulo: Unesp, 2009.
  • DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989.
  • DIEHL, Huston. "Infinite Space": Representation and Reformation in "Measure for Measure". Shakespeare Quarterly, v. 49, n. 4, 1998, p. 393-410.
  • DIEHL, Huston. Staging Reform, Reforming the Stage: Protestantism and Popular Theater in Early Modern England. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997.
  • DOELMAN, James. King James I and the Religious Culture of England. Rochester: D.S. Brewer, 2000.
  • ELIAS, Norbert. Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
  • ERASMUS, Desiderius. Education of a Christian Prince. New York: Octagon Books, 1963.
  • FLETCHER, Anthony et alii. Religion, Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
  • FRIGO, Daniela. "Disciplina Rei Familiariae": a economia como modelo administrativo de "Ancien Regime". Penélope, n. 6, p. 47-62, 1991.
  • GARIN, Eugenio (dir.). O homem renascentista. Lisboa: Presença, 1991.
  • GIDDENS, Eugene. Honourable Men: Militancy and Masculinity in Julius Caesar. Renaissance Forum, v. 5, n. 2, p.(s/d), 2001. Disponível em <http://www.hull.ac.uk/renforum/v5no2/giddens.htm>. Acesso em 12-11-2010.
    » http://www.hull.ac.uk/renforum/v5no2/giddens.htm
  • HAIGH, Christopher. English Reformations: Religion, Politics, and Society under the Tudors. Oxford: Oxford University Press, 1993
  • HARRISS, Gerald. Political Society and the Growth of Government in Late Medieval England. Past & Present, n. 138, p. 28-57, 1993.
  • HATTAWAY, Michael. Blood is their argument: men of war and soldiers in Shakespeare and others. In: FLETCHER, Anthony; ROBERTS, Peter (eds.). Religion, Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. p. 84-101
  • HESPANHA, António Manuel (Org.). Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.
  • HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia. Síntese do milênio. Lisboa: Europa-América, 2003.
  • HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991
  • HOBBES, Thomas. Leviathan. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
  • HOLMER, Joan Ozark. "Draw, if you be men": Saviolo's significance for "Romeo and Juliet". Shakespeare Quarterly, v. 45, n. 2, p. 163-189, 1994.
  • JAMES I. Basilikon Doron. In: McILWAIN, Charles Howard (ed.). Political Works of James I. Cambridge: Harvard University Press, 1918. p. 3-52.
  • KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • KASTAN, David Scott. Proud Majesty made a subject: Shakespeare and the Spectacle of Rule. Shakespeare Quarterly, v. 37, n. 4, p. 459-475, 1986.
  • KERNAN, Alvin. Shakespeare, the King's Playwright: Theater in the Stuart Court, 1603-1613. New Haven & London: Yale University Press, 1995.
  • KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 1999.
  • LOADES, David. Tudor Government: Structures of Authority in the Sixteenth Century. Oxford/Malden: Blackwell, 1997.
  • LUTERO, Martinho. Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
  • MARAVALL, José Antonio. Estado Moderno y Mentalidad Social. Madrid: Alianza, 1986.
  • MORRIL, John et alii. The Oxford Illustrated History of Britain. Oxford/New York: Oxford University Press, 1992.
  • REYNOLDS, Bryan; WEST, William N. (eds.). Rematerializing Shakespeare: Authority and Representation on the Early Modern English Stage. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
  • ROUSSEAU, J.-J. "Economia (Moral e Política)". In: DIDEROT & D'ALAMBERT. Verbetes Políticos da Enciclopédia. São Paulo: UNESP, 2006. p. 83-127.
  • SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006.
  • THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
  • VIANNA, Alexander Martins. Absolutismo: os limites de uso de um conceito liberal. Revista Eletrônica Urutágua, n.14, p.(s/d), 2007. Disponível em <http://www.urutagua.uem.br/014/14vianna.htm>. Acesso em 12-11-2010.
    » http://www.urutagua.uem.br/014/14vianna.htm
  • VIANNA, Alexander Martins. A desfiguração do corpo político em "Ricardo III". História em Reflexão, vol.6, n. 3, p.1-29, 2009. Disponível em <http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/478/348>. Acesso em 12-11-2010.
  • VIANNA, Alexander Martins. A distinção enciclopediana entre "Monarquia Absoluta" e "Despotismo". Espaço Acadêmico, n. 83, p.(s/d), 2008. Disponível em <http://www.espacoacademico.com.br/083/83vianna.htm>. Acesso em 12-11-2010.
    » http://www.espacoacademico.com.br/083/83vianna.htm
  • VIANNA, Alexander Martins. O papel da imagem no combate reformado contra a idolatria e pela consciência. Revista Eletrônica Urutágua, n. 16, p. 55-64, 2008. Disponível em <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Urutagua/article/ viewFile/3958/3277>. Acesso em 12-11-2010.
    » http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Urutagua/article/ viewFile/3958/3277
  • VIANNA, Alexander Martins. Sobre a Relação entre Rei, Lei e Parlamento no Antigo Regime. Espaço Acadêmico, n. 112, p. 67-75, 2010. Disponível em <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/10785/5970>. Acesso em 12-11-2010.
    » http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/10785/5970
  • WARD, David. The King and Hamlet. Shakespeare Quarterly, v. 43, n. 3, p. 280-302, 1992.
  • ZARKA, Yves-Charles (Org.). Aspects de la Pensée Médiévale dans la philosophie politique moderne. Paris: PUF, 1999.
  • 1
    A edição que serve de base para este estudo é: JAMES I. "Basilikon Doron". In: McILWAIN, Charles Howard (ed.).Political Works of James I. Cambridge: Harvard University Press, 1918, p.3-52.
  • 2
    DOELMAN, James. King James I and the Religious Culture of England. Rochester/NY: D.S. Brewer, 2000. Ver também: ERASMUS, Desiderius. Education of a Christian Prince. New York: Octagon Books, 1963.
  • 3
    HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 156-186.
  • 4
    HAIGH, Christopher. English Reformations: Religion, Politics, and Society under the Tudors. Oxford: Oxford University Press, 1993.
  • 5
    Desde 1568, Mary Stuart (1542-1587) era cativa na Inglaterra e fora acusada, em 1586, de conspirar o assassinato da rai-nha Elizabeth, sendo decapitada em 8 de fevereiro de 1587. No entanto, a desgraça política da mãe de James I começou muito antes disso: com apenas 18 anos, tornara-se a rainha-viúva de Francisco II (1544-1560) da França, depois do falecimento do jovem rei em 5 de dezembro de 1560. Ao retornar da corte francesa para a Escócia, em 1561, manteve uma política de tolerância religiosa. Em 1565, contraiu segundas núpcias com Henry Stuart (1545-1567), conde de Darnley, com quem concebera James, que nasceu em 19 de junho de 1566. No entanto, o casamento não fora bem recebido na Inglaterra, pois Elizabeth era contrária ao casamento de Mary com um membro do tronco colateral Tudor. Desde o seu retorno à Escócia, Mary Stuart demonstrava pretensões ao trono da Inglaterra. No entanto, o seu casamento também representou a ascensão, na corte da Escócia, dos nobres da família Lennox, à qual pertencia o conde de Darnley. Em março de 1566, quando houve, perante a rainha, o assassinato de seu secretário e confidente, David Riccio (1533-1566), Mary entendeu que poderia ser o próximo alvo se não estivesse grávida. Assim, com o apoio de seu suposto amante, James Hepburn (1535-1578), conde de Bothwel, a rainha conspirou o assassinato do seu marido. Na noite de 9 de fevereiro de 1567, o pai de James morreu em situação inconclusiva. Três meses depois, Mary casaria com Bothwell, mas, em 15 de junho de 1567, foi presa na pequena ilha de Loch Leven, sendo formalmente deposta em favor do infante James, que fora sagrado rei da Escócia em 24 de julho de 1567. Em 1568, depois de um breve período de liberdade, Mary tentou conspirar para retornar ao trono da Escócia, mas foi derrotada, sendo obrigada a fugir do país em meados de maio, quando, impulsivamente, buscou refúgio na Inglaterra, sendo mantida cativa pela rainha Elizabeth desde então. Em 1586, Mary Stuart foi acusada de conspirar o assassinato de Elizabeth I, com apoio papal e do rei Felipe II (1527-1598) da Espanha. É importante lembrar que Felipe II fora marido da meia-irmã mais velha de Elizabeth, Maria I (1516-1558), e pleiteava o trono da Inglaterra desde a morte da Maria I, que fora sucedida por Elizabeth. Depois desse episódio, Elizabeth entendeu que Mary Stuart seria uma permanente ameaça à estabilidade de seu poder e, por fim, ordenou que fosse decapitada por conspirar o seu assassinato. Depois disso, Felipe II tentou invadir a Inglaterra e depor Elizabeth, mas sofreu uma infamante derrota em 1588, o que destruiu o mito de sua Armada Invencível. Todas essas informações são importantes para entendermos os exemplos que James I enfatizará para seu filho em Basilikon Doron.
  • 6
    Durante a sua menoridade, James teve sucessivos regentes: os condes de Moray, Lennox, Mar e Morton. Moray, também chamado James, era meio-irmão de Mary Stuart, mas era bastardo e havia perdido influência na corte escocesa quando Mary casara-se com seu primo Henry Stuart, conde de Darnley, membro da família Lennox. Os períodos de menoridade régia são sempre conturbados para a estabilização de redes clientelares efetivamente favoráveis ao rei, pois muitas famílias nobres disputam entre si o posto de regência.
  • 7
    A partir das seguintes edições: CALVINO, João. A instituição da religião cristã, t.2. São Paulo: Unesp, 2009; CALVIN, John. Commentaries to Bible. Disponível em <www.ccel.org/c/calvin>.
  • 8
    DIEHL, Huston. "Infinite Space": Representation and Reformation in "Measure for Measure". Shakespeare Quarterly, v. 49, n. 4, p. 393-410, 1998; WARD, David. The King and Hamlet. Shakespeare Quarterly, v. 43, n. 3, p. 280-302, 1992.
  • 9
    Aliás, no terceiro livro de Basilikon Doron, depois de uma série de considerações sobre companhia e habilidades régias, James retoma o tema da acessibilidade à pessoa régia: para aumentar a sua majestade, um rei não deveria facilitar o acesso à sua pessoa a todo tempo, mas também não deveria agir como os reis da Pérsia, que se trancavam e afastavam-se de seus súditos. Tal como em outros espelhos de príncipes de sua época, James fazia a mesma associação retórica (estereotipada) entre "soberanos persas" ("mouros" ou "turcos") e tirania idólatra. Como alternativa às formas "bárbaras" e "idólatras" de corte, James propõe que um bom rei deveria sempre agir com razão, apontando horas específicas para audiências públicas.
  • 10
    VIANNA, Alexander Martins. Sobre a relação entre Rei, Lei e Parlamento no Antigo Regime. Espaço Acadêmico, n. 112, p. 67-75, 2010. Disponível em <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/10785/5970>. Acesso em 12-11-2010.
  • 11
    ASCH, Ronald; DUCHHARDT, Heinz (eds.). El Absolutismo: Un Mito? Barcelona: Idea Books, 2000; HARRISS, Gerald. Political Society and the Growth of Government in Late Medieval England. Past & Present, n. 138, p. 28-57, 1993; HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia - Síntese do Milênio. Lisboa: Europa-América, 2003; HESPANHA, António Manuel (Org.). Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993; LOADES, David. Tudor Government: Structures of Authority in the Sixteenth Century. Oxford/Malden: Blackwell, 1997; VIANNA, Alexander M. Absolutismo: os limites de uso de um conceito liberal. Revista Eletrônica Urutágua, n. 14, (s/d), 2007. Disponível em <http://www.urutagua.uem.br/014/14vianna.htm>. Acesso em 12-11-2010; VIANNA, Alexander Martins. A distinção enciclopediana entre "Monarquia Absoluta" e "Despotismo". Espaço Acadêmico, n. 83, (s/d), 2008. Disponível em <http://www.espacoacademico.com.br/083/83vianna.htm>. Acesso em 12-11-2010.
  • 12
    Podemos observar, em chave austera, este tema ser tratado por Lutero em seu sermão "Sobre a autoridade secular" (1523), mas também na edição de 1559 de Instituição da religião cristã, de Calvino (capítulos XI, XII e XIII do quarto livro). Em chave cômica, explorando os mesmos motivos que observamos nas obras de Lutero, Calvino e James I, observamos o tema do uso "over precise" da lei ser explorado na peça shakespeareana Medida por medida. Segundo Alvin Kernan, esta peça fora encenada no Whitehall em dezembro de 1604, ou seja, poucos meses depois da polêmica de James I com os puritanos em Hampton Court. Ver KERNAN, Alvin. Shakespeare, the King's Playwright: Theater in the Stuart Court, 1603-1613. New Haven & London: Yale University Press, 1995. p. 50-70. Ver também DIEHL, Huston. "Infinite Space": Representation and Reformation in "Measure for Measure". Shakespeare Quarterly, v. 49, n. 4, p. 393-410, 1998.
  • 13
    Supra nota 5.
  • 14
    KASTAN, David Scott. "Proud Majesty made a subject: Shakespeare and the Spectacle of Rule". Shakespeare Quarterly, v. 37, n. 4, p. 459-475, 1986.
  • 15
    LUTERO, Martinho. Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
  • 16
    Como notara Keith Thomas, a maioria dos escritores mais requintados dos séculos XVI e XVII desprezava as profecias. Aliás, durante a primeira sessão do Parlamento sob o reinado [1485-1509] de Henrique VII (1457-1509), todos os tipos de profecias tinham sido classificados como crime, mas foram Henrique VIII (1491-1547) e seus sucessores protestantes que tomaram medidas mais firmes contra qualquer tipo de profecia política: uma lei de 1541/1542 declarava criminosas todas as pessoas que buscassem prever o futuro daqueles que tinham certos animais em seus símbolos heráldicos, assim como fazer profecias a partir das letras em seus nomes; essa lei foi revogada em 1547, porém, em 1549, no início do curto reinado [1547-1553] de Eduardo VI (1537-1553), outra lei impusera multas e penas de prisão àqueles que fizessem circular profecias com a intenção de provocar rebeliões ou perturbações à ordem civil; essa lei foi relaxada com a ascensão ao trono de Maria I (1516-1558), mas foi renovada por um estatuto de 1563 do reinado [1558-1603] de Elizabeth I (1533-1603). Ver THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 322-323.
  • 17
    VIANNA, Alexander Martins. A desfiguração do corpo político em "Ricardo III". História em Reflexão, vol.6, n. 3, p. 1-29, 2009. Disponível em <http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/478/348>. Acesso em 12-11-2010.
  • 18
    Veremos, mais adiante, que tal tema se desdobra na forma que o rei James I define como deveria ser as companhias e con-selhos do príncipe.
  • 19
    Para um estudo histórico-literário comparativo das tópicas do rei sacrificial e pai protetor dos súditos, ver: BERCÉ, YvesMarie. O rei oculto: salvadores e impostores. Mitos políticos populares na Europa Moderna. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial de São Paulo, 2003.
  • 20
    Ao longo de seu discurso, James I aciona várias vezes o motivo retórico do microcosmo do corpo orgânico como metá-fora ou sinédoque do corpo político, o que significa a expectativa da necessária relação complementar e equilibrada entre humores/potências desiguais. Nesses termos, um rei da justiça/equidade deverá saber conter os afectos (as paixões) de si e dos súditos que pudessem conturbar a ordem pública, criando unidade através da desigualdade entre os súditos. Daí, qualquer demanda por igualdade seria entendida como desagregadora do corpo político. Portanto, tornar o corpo político pensável a partir do motivo retórico do microcosmo do corpo orgânico tem como consequência a metaforização como "doença/enfermidade" de tudo aquilo que pudesse conturbar o equilíbrio (hu)moral da estrutura de autoridade do corpo político.
  • 21
    Na Escócia e na Inglaterra, uma "regalia" correspondia a uma circunscrição jurisdicional que somente poderia ser criada pelo rei, que garantia domínios jurisdicionais a um súdito nobre in liberam regalitatem, o que lhe conferia jurisdições (civil e criminal) equivalentes aos xerifes régios, mas eram mais extensíveis em matérias criminais, pois tornavam a corte dominial equivalente à Alta Corte Régia de Justiça. Desse modo, o portador de uma "regalia" tinha um amplo arco de poder jurisdicional, o que o colocava, na maior parte das matérias de justiça, com exceção dos casos de traição, na posição de última instância de recurso. Além disso, no caso de uma baronia estar inserida numa "regalia", o portador dessa jurisdição poderia exercer seu poder sobre os barões, não cabendo recurso ao rei - com exceção, como já se apontou, dos casos de traição. Como desde o século XIV houve a tendência de os "senhores de regalias" usurparem a autoridade régia, exercendo uma autoridade local quase independente, isso explicaria a solução proposta por James I ao final do século XVI: não conceder, na Escócia, novas "regalias" em caráter hereditário à medida que fossem vagando por interrupção de descendência masculina direta. O parlamento britânico aboliria as regalias somente em 1746.
  • 22
    Não por acaso, os puritanos eram recorrentemente estereotipados na Inglaterra, em chave cômica, nas peças teatrais do solace régio. Ver VIANNA, Alexander Martins. O papel da imagem no combate reformado contra a idolatria e pela consciência. Revista Eletrônica Urutágua, n.16, p. 55-64, 2008. Disponível em <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Urutagua/ article/viewFile/3958/3277>. Acesso em 12-11-2010.
  • 23
    Aliás, vale lembrar que, nas peças shakespeareanas Ricardo III e Macbeth, personagens da realeza que se fiam em profecias cometem várias injustiças, com desenlaces necessariamente sangrentos. O rei Eduardo IV (em Ricardo III) e o rei usurpador Macbeth, por exemplo, têm uma marca moral negativa comum: deixam-se conduzir por mulheres e/ou nobres bajuladores.
  • 24
    Antes do surgimento do tema da "economia política" entre os doutos da segunda metade do século XVIII, quando, definitivamente, foram levantadas críticas que afirmavam que as rei familiariae não poderiam servir como modelo administrativo da res publica (Commonwealth), era um componente obrigatório da boa figuração de rei, nos tratados de governo dos séculos XVI e XVII, estabelecer um vínculo implicativo, ou jogo de espelho, entre bom governo e reprodução da Casa Régia (O economia) e bom governo e reprodução da coisa pública (Política), pois a Casa Régia deveria figurar-se exemplarmente como a sinédoque ou metonímia do Reino. Ver: FRIGO, Daniela. "Disciplina Rei Familiariae": a Economia como Modelo Administrativo de "Ancien Regime". Penélope, n. 6, p. 47-62, 1991; ELIAS, Norbert. Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; ROUSSEAU, J.-J. Economia (Moral e Política). In: DIDEROT & D'ALEMBERT. Verbetes Políticos da Enciclopédia. São Paulo: UNESP, 2006. p. 83-127.
  • 25
    Embora não afirme explicitamente, há aqui uma alusão aos erros político de Mary Stuart, que manteve David Riccio (1533-1566) como seu secretário e confidente. Supra nota 5.
  • 26
    Sobre a visão protestante de casamento na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, ver: FLETCHER, Anthony. The Protestant Idea of Marriage in Early Modern England. In: FLETCHER, Anthony et alii. Religion, Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p.161-181.
  • 27
    Ironicamente, o primogênito de James, Carlos I (1600-1649), casaria, em 1623, com Henriqueta Maria (1609-1669), irmã do rei Luís XIII (1601-1643) da França. Tal casamento não ocorreria sem o consentimento de James I (1566-1625). Depois da morte de James I, Henriqueta de Bourbon - agora rainha - passou a professar abertamente a sua religião na corte régia e, ao que parece, com a tácita anuência de seu marido. Isso foi mais um fator que desgastou a imagem régia perante os seus súditos puritanos mais rigoristas. Ver MORRIL, John. The Stuarts, 1603-1688. In: The Oxford Illustrated History of Britain. Oxford/New York: Oxford University Press, 1992, p. 286-351.
  • 28
    Alvin Kernan fez um trabalho minucioso que justamente demonstrava o interesse de James, já como rei na Inglaterra, pela peça Rei Lear, que teria sido encenada, por exemplo, em Whitehall no natal de 1606. Ver KERNAN, Alvin. Shakespeare, the King's Playwright: Theater in the Stuart Court, 1603-1613. New Haven & London: Yale University Press, 1995. p. 89-105. Paradigmaticamente, ocorre a divisão do reino entre as herdeiras de Lear na primeira cena da peça. A caracterização de Lear como rei senil desejoso de bajulação, quando colocado em contraste (hu)moral com o caracter Cordélia, acentua a sua figuração cênica como pusilânime tirânico.
  • 29
    Alvin Kernan também aponta para a possibilidade de James I ter um interesse específico pela peça Hamlet, que teria sido encenada, por exemplo, em Hampton Court no natal de 1603. No início da peça, o rei usurpador Cláudio é figurado - seguindo o estereótipo da corte dinamarquesa na literatura britânica - como o pivot de uma corte de "nobres embriagados festivos", quebrando o luto pelo rei morto, que era seu irmão mais velho e pai do príncipe Hamlet. Ver: KERNAN, Alvin. Shakespeare, the King's Playwright: Theater in the Stuart Court, 1603-1613. New Haven & London: Yale University Press, 1995. p. 24-49; WARD, David. The King and Hamlet. Shakespeare Quarterly, v. 43, n. 3, p. 280-302, 1992.
  • 301
    HATTAWAY, Michael. Blood is their argument: men of war and soldiers in Shakespeare and others. In: FLETCHER, Anthony; ROBERTS, Peter (eds.). Religion, Culture and Society in Early Modern Britain. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. p.84-10. Ver também HOLMER, Joan Ozark. "Draw, if you be men": Saviolo's significance for "Romeo and Juliet". Shakespeare Quarterly, v. 45, n. 2, p. 163-189, 1994. GIDDENS, Eugene. Honourable Men: Militancy and Masculinity in Julius Caesar. Renaissance Forum, v. 5, n. 2, p.(s/d), 2001. Disponível em <http://www.hull.ac.uk/renforum/v5no2/ giddens.htm>. Acesso em 12-11-2010.
  • 31
    Em Leviathan (1651), por exemplo, Thomas Hobbes (1588-1679) incluiria os "sofistas/escolásticos" da Universidade de Oxford nesta relação de "ameaças" à ordem civil e ao poder soberano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2011
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org