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“Meu querido mano”: a política nas cartas de D. Maria Teresa e D. Maria Francisca de Bragança

“My dear brother”: politics on the letters of D. Maria Teresa and D. Maria Francisca of Braganza

“Mi querido hermano”: política sobre las cartas de D. María Teresa y D. María Francisca de Bragança

RESUMO

As comemorações acerca dos 200 anos da Independência do Brasil nos dão a chance de revisitar esse momento histórico em todos os seus aspectos: acontecimentos, personagens envolvidos, reverberações. Se a dinâmica entre D. Pedro e D. João já começou a ser explorada por meio de documentos oficiais e de correspondências, ainda há muito a ser descortinado no próprio seio da Família Real. Aos poucos, com novos olhares e novas abordagens, abre-se espaço para conhecer o papel desempenhado pelas infantas filhas de D. João e D. Carlota Joaquina no contexto político do Brasil, de Portugal e da Espanha, especialmente D. Maria Teresa e D. Maria Francisca. Em cartas que amalgamavam o público e o privado, o familiar e o político, é possível observar a representação de diferentes pensamentos, tão característicos do fervilhante século XIX.

Palavras-chave:
Família Real; Independência do Brasil; trajetórias; correspondências; sociabilidades

ABSTRACT

The celebrations of the 200th anniversary of the Independence of Brazil give us the chance to revisit this historical moment in all its aspects: events, involved characters, reverberations. If the dynamic between D. Pedro and D. João has already begun to be explored through official documents and correspondence, there is still much to be unveiled within the Royal Family itself. Slowly, with new perspectives and new approaches, possibilities are being opened to know the role played by the infantas daughters of D. João and D. Carlota Joaquina in the political context of Brazil, Portugal and Spain, especially D. Maria Teresa and D. Maria Francisca. In letters that amalgamated the public and the private, the familiar and the political, it is possible to observe the representation of different thoughts, so characteristics of the bustling 19th century.

Keywords:
Portuguese Royal Family; Independence of Brazil; trajectories; correspondence; sociabilities

RESUMEN

Las conmemoraciones sobre los 200 años de la Independencia de Brasil nos dan la oportunidad de revisitar ese momento histórico en todos sus aspectos: acontecimientos, personajes involucrados, reverberaciones. Si la dinámica entre D. Pedro y D. João ya comenzó a ser explorada por medio de documentos oficiales y de correspondencias, todavía hay mucho a ser develado en el propio seno de la Familia Real. Poco a poco, con nuevas miradas y nuevos abordajes, se abre espacio para conocer el papel desempeñado por las infantas hijas de D. João y D. Carlota Joaquina en el contexto político de Brasil, de Portugal y de España, especialmente, D. María Teresa y D. María Francisca. En cartas que amalgaman lo público y lo privado, es posible observar la representación de diferentes pensamientos, tan característicos del agitado siglo XIX.

Palabras clave:
Familia Real; Independencia de Brasil; trayectorias; correspondencias. sociabilidades

Introdução

Em meio às comemorações do bicentenário da Independência do Brasil, muito se fala acerca das correspondências trocadas entre D. João e D. Pedro, e mesmo entre o último e o irmão D. Miguel. No entanto, pouco é dito a respeito do envolvimento das infantas, suas irmãs, especialmente D. Maria Francisca e D. Maria Teresa, que não ficaram alheias aos acontecimentos de 1822 e suas repercussões. As correspondências das princesas abordavam assuntos cotidianos, mas também questões familiares e políticas. Ainda que houvesse diferenças entre a educação dos príncipes e a das princesas, as filhas de D. João e D. Carlota Joaquina receberam ensino muito próximo ao dos irmãos, D. Pedro e D. Miguel.

Com nascimentos muito anunciados e celebrados, há no entanto certo vazio documental acerca da vida das infantas, que muitas vezes reaparecem somente em documentos relativos a seus casamentos. Não obstante, é importante dar espaço ao contexto em que viveram antes desses matrimônios. Suas infâncias e juventudes nada tiveram de usual, mesmo para senhoritas da nobreza: depois de nascerem sob os auspícios da Revolução Francesa e a ascensão de Napoleão Bonaparte, as infantas viram-se de mudança para um novo continente, onde deram seguimento à sua educação.

As princesas portuguesas aprendiam os ensinamentos de virtude e honestidade, boas maneiras, saberes cristãos, além de fiar, costurar, bordar. Mas, tal como acontecia na Corte espanhola, também estudavam letras e música. Vale lembrar que o conhecimento da leitura e do latim servia ao estudo dos livros de horas e devoção e edificação moral, além de prepará-las para acompanhar de perto a educação de seus filhos (BUESCU, 2010BUESCU, Isabel. Na corte dos Reis de Portugal: saberes, ritos e memórias - Estudos sobre o século XVI. Lisboa: Edições Colibri, 2010., p. 39-41). Ainda que muitas vezes ficassem circunscritas a leituras vigiadas e ligadas ao ambiente religioso, as infantas não estavam fadadas à ignorância e ao quase analfabetismo. Apesar da imagem negativa acerca da educação de D. João e de seus filhos, sabe-se que todos tiveram aulas de música, equitação, pintura e desenho e letras (português, inglês e francês). Embora paire a ideia da figura iletrada de D. João VI, seria difícil admitir que alguém como D. Carlota Joaquina deixasse as filhas beirarem o analfabetismo. A rainha fora criada dentro da tradição da nobreza espanhola, que julgava indispensável uma boa educação para alcançar um bom casamento; recebiam aulas de educação religiosa e outros conhecimentos necessários para prepará-las para a vida na Corte: etiqueta, pintura, música, dança, doutrina cristã e conhecimentos fundamentais de história (AZEVEDO, 2003AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 52). Conjectura-se que D. Carlota desejou colocar todas as filhas em tronos pela Europa, dedicando-se a cuidar de sua educação para além do que a historiografia supõe. Por sua vez, D. João, então príncipe regente, também garantiu aos filhos aulas de educação moral, literária e artística, tanto em Lisboa quanto no Rio de Janeiro (PEREIRA, 1938PEREIRA, Ângelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938., p. 154).

De maneira geral, as infantas tiveram papel mais expressivo na política de casamentos, o que não impediu que Portugal visse algumas mulheres assumirem sua regência desde sua formação. A quarta filha de D. João VI e D. Carlota Joaquina, D. Isabel Maria, foi regente entre 1826 e 1828, após a morte do pai, ficando no centro das disputas entre D. Pedro e D. Miguel pela coroa. A Lei Sálica, legislação que proibia às mulheres o direito sucessório ao trono e a terras, esteve presente nas leis portuguesas desde o século XV e nunca foi totalmente revogada; porém, apesar de estar ligada a graves problemas dinásticos, nem sempre foi um empecilho.

Além disso, havia os fortes exemplos de D. Maria I e D. Carlota Joaquina, respectivamente avó e mãe das infantas. D. Maria I, cuja trajetória também foi negligenciada pela historiografia, foi a primeira mulher a assumir o governo do reino de Portugal (1777-1816) como rainha de fato e de direito, e não foi a beata que reverteu todas as ações iluministas do marquês de Pombal, como se costumava descrevê-la, tendo criado diversas escolas nas cidades de Lisboa e do Porto, além da Real Biblioteca Pública da Corte e do Reino, e dedicado esforços à criação de obras de beneficência pública (BOURDON, 2013BOURDON, Albert-Alain. História de Portugal. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2013., p. 80-81). Por sua vez, D. Carlota Joaquina mostrou-se figura forte e de grandes aspirações políticas. Sua trajetória confundiu-se com momentos fundamentais das relações entre Portugal e Espanha, e mesmo de Portugal com o restante da Europa. Tentou atuar como mediadora entre as duas monarquias ibéricas durante a crise política e diplomática pela qual passaram, e se envolveu em movimentações e conspirações que correspondiam a essas aspirações (AZEVEDO, 2003AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 16-17). Tendo como exemplos sua avó e sua mãe, apesar dos vazios e desvalorizações em suas trajetórias, percebe-se que as infantas se envolveram na política de sua época, sendo muito mais do que meros joguetes na política de casamentos.

A utilização de casamentos como forma de alianças políticas foi prática comum no reino de Portugal desde sua fundação. A dinastia de Bragança esteve ligada por esses laços a quase todas as outras da Europa, gozando assim do prestígio dos Habsburgos e de uma aproximação calculada dos Bourbons. O casamento dos infantes de Bragança, D. João e D. Mariana Vitória, com os infantes espanhóis aconteceu em 1785. Retomou-se a prática das alianças com a Espanha, convenientes não apenas pelas ligações que já dividiam, mas por manter uma atmosfera de aparente equilíbrio entre as políticas dos dois reinos. Procurou-se unir os herdeiros portugueses com seus primos espanhóis, o que ficou conhecido como “a troca das infantas”: D. Mariana Vitória casou-se com D. Gabriel, indo residir na Espanha; ao passo que D. João desposou D. Carlota Joaquina, que foi morar na Corte portuguesa. O rei D. Carlos III estendia sua influência a Portugal, e também seu controle, ao mesmo tempo em que o pequeno reino buscava refrear seus ímpetos de conquista (CALMON, 1935CALMON, Pedro. O Rei do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935., p. 23-25).

Os portugueses, que tinham dentre suas grandes preocupações a questão sucessória, não viram com bons olhos a espécie de assimetria dos casamentos: D. Mariana Vitória era uma jovem princesa e D. Carlota era uma menina de dez anos. O povo de Portugal exclamou que havia dado uma pescada à Espanha, mas em troca havia recebido uma sardinha (CHEKE, 1949CHEKE, Marcus. Carlota Joaquina (a rainha intrigante). São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1949., p. 11-13). Por sua vez, após sete anos de temor pela falta de sucessores, D. Carlota deu à luz a primeira dos nove herdeiros de D. João VI e da descendência portuguesa. D. Maria Teresa nasceu em 1793, acalmando os ânimos decorrentes do rescaldo da Revolução Francesa, dos sinais de loucura de D. Maria I e da regência não formalizada de D. João (PEDREIRA; COSTA, 2008PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 59-61). A gestação foi acompanhada com todo o fervor católico do reino, assim como aconteceu com a celebração do nascimento. A dinastia estava salva, e Portugal estava resguardado de uma regência espanhola. Ainda que algumas das infantas filhas de D. João e D. Carlota tenham se engajado nas questões políticas entre Brasil, Portugal e Espanha, suas primeiras incursões nesse cenário ocorreram por meio da política de casamentos.

O primeiro desses matrimônios foi o de D. Maria Teresa com o primo, D. Pedro Carlos de Bourbon. Ocorreu em 13 de maio de 1810, com as bençãos de D. João e à revelia de D. Carlota, que planejava casá-la com seu irmão e tio da infanta, D. Fernando, futuro rei da Espanha. A união já havia sido cogitada em 1806, após a morte da primeira esposa do então Príncipe das Astúrias (RODEZNO, 1928RODEZNO, Conde de. La Princeza de Beira y los hijos de D. Carlos. Madrid, [s.n.], 1928., p. 20-22), porém, o projeto não foi levado adiante, provavelmente por conta dos acontecimentos que culminaram com a mudança da Família Real portuguesa para o Brasil. As negociações do casamento entre os primos tornaram as desavenças entre D. João, D. Rodrigo de Souza Coutinho e D. Carlota Joaquina, simbolizadas na figura de D. Pedro Carlos, ainda mais explícitas. A inserção do nome do infante espanhol nos planos foi uma exigência de D. Rodrigo como forma de refrear as manobras de D. Carlota com relação aos territórios do Rio da Prata e sua fidelidade aos interesses espanhóis. O Príncipe Regente e o Conde de Linhares decidiram pela reivindicação dos direitos do infante D. Pedro Carlos. Este, ainda que herdeiro espanhol, tendia ao lado dos Bragança, e por isso sua presença serviria de esteio aos auspícios luso-portugueses. Como forma de mais uma garantia, deu-se início às negociações do casamento do infante com a prima D. Maria Teresa, representando um grave empecilho aos desejos de D. Carlota em assumir a regência da região. Não obstante, tia e sobrinho assinaram juntos um manifesto pedindo a proteção de D. João ao projeto de reclamação do Prata (CALMON, 1935CALMON, Pedro. O Rei do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935., p. 152-159).

D. Maria Teresa e o primo D. Pedro Carlos de Bourbon eram primogênitos da referida “troca das infantas”, os casamentos cruzados entre os descendentes de Espanha e Portugal (1785). D. Maria Teresa foi definida como uma jovem saudável, e que “ao mesmo tempo em que é dotada de aspecto nobre e voluntarioso, é afável, bondosa, e inspira o maior respeito”. (PEREIRA, 1938PEREIRA, Ângelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938., p. 44). Por sua vez, D. Pedro Carlos foi descrito, na época, como “ignorante, grosseiro, desconfiado, de linguagem ordinária e não raro indecente, mas por quem D. João tinha uma simpatia especial”. Ainda que a historiografia sempre se refira aos bons sentimentos do Príncipe Regente pelo sobrinho e a grande antipatia por parte da princesa, nos últimos anos do século XVIII, foi D. Carlota, juntamente com D. Maria I, quem pediu à Corte espanhola para que o infante fosse enviado para ser criado e educado na Corte portuguesa (PEREIRA, 1938PEREIRA, Ângelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938., p. 23-44).

D. João e D. Maria Teresa defenderam o projeto do casamento contra os protestos de D. Carlota Joaquina. Se a historiografia atribuiu a esta infanta o papel de filha favorita e secretária de D. João, seus atos políticos mostraram que ela era na verdade primogênita de D. Carlota Joaquina por inteiro. Infatigável e absolutista como a mãe, é de se admirar que tenha ficado ao lado do pai na questão do casamento com o primo D. Pedro Carlos. “A grande animadora das causas carlistas”, como a definiu Ângelo Pereira (1938PEREIRA, Ângelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938., [s.p.]), foi baluarte do miguelismo e do carlismo, dois movimentos icônicos do ultrarrealismo ibérico (PEREIRA, 2012PEREIRA, Miriam Halpern. Do Estado Liberal ao Estado-Providência: um século em Portugal. Bauru: Edusc, 2012., p. 82). Foi capaz de romper relações com ele em favor das causas carlistas, e não há certeza de que tenham se reconciliado.

Apesar da derrota com o matrimônio de sua filha mais velha, continuaram as engendrações para o que talvez tenha sido seu único projeto bem-sucedido ao longo de sua vida: D. Carlota lutou por suas vontades nas negociações e resoluções dos enlaces de D. Maria Isabel e D. Maria Francisca de Assis. Os casamentos das infantas ocorreram em 1816, e ao período subsequente (os anos de 1817 e 1818) atribuiu-se a qualidade de terem sido os mais faustosos da estadia da Corte no Brasil, ainda que não totalmente tranquilos. Os fluminenses tiveram a oportunidade de presenciar os festejos e os efeitos do casamento do herdeiro da Coroa e da aclamação do novo Rei, nos moldes tradicionais europeus, como nunca se havia visto nas antigas terras coloniais (MALERBA, 2000MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 91-93). Antes, porém, de eclodirem revoluções liberais tanto no Brasil quanto em Portugal, e dos movimentos que culminariam no regresso da Corte joanina a Portugal e na declaração da Independência, D. Carlota lutou por garantir o lugar das filhas na Corte espanhola.

Nesse período conturbado, D. Pedro garantiu as boas relações com a Áustria através do matrimônio com D. Leopoldina de Habsburgo-Lorena, ao passo que D. Maria Isabel e D. Maria Francisca de Assis reforçaram os laços com a Espanha ao desposar respectivamente o rei D. Fernando VII e seu irmão, o infante D. Carlos Maria Isidro Benito (MACHADO; NEVES, 1999MACHADO, Humberto Fernandes; NEVES, Lúcia Maria Bastos P. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999., p. 54-55). O sucesso das negociações com a Espanha, anunciado nos fins de 1814, trouxe bons auspícios e alegria à Princesa do Brasil, que veria uma de suas filhas rainha de Espanha e a outra casada com o segundo na sucessão ao trono espanhol. Além disso, duas filhas viajando à Europa para residir na Espanha poderia significar a chance de retornar junto com elas, acompanhando-as (AZEVEDO, 2003AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 328-330). As frustrações viriam mais uma vez, com o falecimento de D. Maria I e o impedimento da rainha D. Carlota em retornar à Europa.

Voltando aos casamentos de D. Maria Isabel e Maria Francisca, serviram aos envolvidos por motivos distintos, sendo o pretexto compartilhado o estreitamento dos laços entre as casas de Bragança e de Bourbon. Os auspícios de conquista por parte de Portugal e Espanha um pelo outro fizeram necessária a existência de uma barreira diplomática sutil, ainda que não oficializada através de tratados formais: a tônica dos casamentos dos descendentes das famílias reais da Península Ibérica tornou-se o casamento entre as duas famílias. Tornava-se cada vez mais difícil definir quem era Bragança e quem era Bourbon, tamanha a mistura. Talvez por isso os laços de cordialidade selados por meio dos matrimônios tenham mantido intactos seus territórios europeus.

Com relação ao envolvimento das infantas nos acontecimentos políticos do período, os casamentos com os infantes de Bourbon foram o primeiro passo para suas próprias lutas. D. Maria Francisca ficou na Espanha e defendeu com todas as forças os direitos do marido e dos filhos, vivendo no exílio sem esmorecer, até o dia de seu falecimento. D. Maria Teresa defendeu com ardor os direitos do filho, D. Sebastião, na Corte espanhola, e lá se envolveu com as questões sucessórias concernindo D. Carlos Maria Isidro Benito e os sobrinhos. Chegou a se casar com o cunhado após a morte da irmã. Antes disso, D. Maria Isabel conquistara seu lugar como rainha admirada pelos espanhóis, por sua doçura e inteligência, porém não viveu o suficiente para afastar D. Fernando VII das más influências, como esperavam os liberais, nem deixou descendência, o que acarretaria nos problemas sucessórios em que se envolveriam suas irmãs (CHALLICE, 1909CHALLICE, Rachel. The secret history of the court of Spain during the last century. Londres: John Long, 1909., p. 80-83). Mesmo com a presença de uma nova rainha espanhola após a morte da irmã, não cederam seus lugares na corte de Aranjuez: enquanto conseguiram, ficaram para lutar por seus lugares no turbilhão do poder e da política da Península Ibérica e do Brasil.

Infantas absolutistas, realistas, jamais inertes

D. Maria Francisca, assim como a irmã mais velha, seguia uma posição absolutista. Apesar de não ter se destacado nas atividades políticas da mesma forma que D. Maria Teresa, a presença de D. Maria Francisca foi constante na Corte de Madri. Acompanhou o marido em todas as suas empreitadas, desde o casamento até o exílio na Inglaterra, vendendo joias e pertences para tal (RODEZNO, 1928RODEZNO, Conde de. La Princeza de Beira y los hijos de D. Carlos. Madrid, [s.n.], 1928., p. 75-77). A infanta habitou o Palácio do Oriente durante o breve reinado da irmã, D. Maria Isabel, e também após a morte desta. Embora afastadas da família, as missivas encontradas indicam que as infantas trocavam correspondências assiduamente com o pai e com a mãe, geralmente enviadas separadamente. Desde sua chegada em Cádiz, escreveram contando pormenores de seu cotidiano e sobre suas impressões acerca da nova vida. D. Maria Francisca e D. Maria Teresa continuaram a exercer influência sobre o tio, D. Fernando VII, ainda após o novo matrimônio com D. Josefa Amália da Saxônia, algo que só se alteraria devido às questões sucessórias. Em suas muitas cartas, D. Maria Francisca combinou os assuntos familiares com as preocupações com os entes queridos, compartilhando com o pai as tristezas acerca da morte da irmã. Na correspondência trocada com D. Carlota Joaquina, a infanta preocupou-se ainda em relatar seu contentamento com a situação em que se encontrava. Afirmou estar feliz na Corte espanhola e satisfeita com o casamento arranjado pela mãe, sempre se despedindo do pai ou da mãe como “Filha muito obediente”.1 1 Carta de D. Maria Francisca a D. Carlota Joaquina. Madri, 18 nov. 1819. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-20.03.1819-MF.P.c 1-5 (D04)

D. Maria Francisca usou papel timbrado de luto por alguns meses após o falecimento de D. Maria Isabel, da mesma forma como o fez na ocasião da morte de D. João VI. Eram recorrentes em suas correspondências os protestos de que não recebia cartas dos pais e dos irmãos tanto quanto deveria e gostaria. Parte disso provavelmente se deveu ao fato de que a Espanha passou por conturbações internas que podem ter dificultado a troca de missivas. As infantas chegaram a sua nova Corte em meio a um período de muitas disputas entre liberais e absolutistas. Nesse ambiente, tanto D. Maria Teresa quanto D. Maria Francisca lutaram ao lado de D. Carlos pelo absolutismo e pela volta das antigas instituições. Em meio a estes acontecimentos, D. Maria Francisca dividiu-se entre os assuntos familiares e os assuntos políticos, relatando à D. Carlota suas apreensões de mãe. Em correspondência para o pai, perguntou-lhe acerca de sua saúde e seu incômodo na perna, dividindo também seus conhecimentos acerca do que se passava na Espanha:

O meu homem faz os seus cumprimentos a V.M. Ele e os meus filhos estamos bons; porém com bastantes sentimentos apesar de que esperamos em Deus que pronto tenha misericórdia de nós e de V.M.

A mana Maria Teresa já está quase boa, o Sebastião é que está com o olho direito doente.

Remeto a V.M. uns papéis que publicou a Regência de Catalunha para que V.M. esteja ao corrente de tudo; aqui é um crime ter estes papéis, porém eu os tenho escondidos e quero que V.M. os leia e depois tenha o maior cuidado de que ninguém os veja.

Peço a V.M. que deite a sua benção a esta que se preza de der de V.M. Filha muito amante e obediente.2 2 Carta de D. Maria Francisca a D. João VI. Madri, 21 set. 1822 (apud PEREIRA, 1938, p. 82).

Cerca de um ano antes, a infanta havia relatado a situação da Corte espanhola:

Senhor, as nossas circunstâncias são as mais dolorosas, pois nos achamos no fim de esta triste revolução. Publicamente se diz nos tribunais das sociedades patrióticas que El Rei é um tolo que não serve para reinar, e que é preciso fazer com ele o mesmo que com Luís 16, e que ao meu homem é absolutamente necessário fazer lhe o mesmo pois é contra o sistema constitucional; e tudo isto seguindo os mesmos passos que a revolução Francesa, por que até temos a desgraça de ter um na nossa família um que faça o Papel do Duque de Orleans, pois sabemos com toda a certeza que Francisco de Paula tem ido aos Clubs, a Lojas dos Pedreiros Livres, e lhe tem pedido auxilio, pondo-se nas suas mãos para que eles o defendam.3 3 Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 14 jun. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4

Interessante notar que D. Maria Francisca não fez apenas um relatório dos acontecimentos, mas compartilhou com o pai as impressões que tinha daqueles que a cercavam. Independentemente de suas relações azedas com a cunhada D. Luiza Carlota, a infanta estava atenta e possuía opiniões fortes. Queixando-se de que estavam todos muito exaltados e que não havia como saber qual seria o resultado da revolta, apelou dramaticamente ao pai que lhe escrevesse uma carta que os poderia livrar daquela situação. Pediu que o fizesse sem mostrar que estava a par dos acontecimentos, pedindo licença a D. Fernando VII para enviar suas filhas a Lisboa para reencontrá-las e conhecer genro e netos. Mas que o fizesse sem denunciar que fora um pedido da infanta. Em seu desespero, afirmou ao final da missiva que arcariam com todos os gastos da estadia, e que D. João não deixasse que ninguém soubesse dos planos.4 4 Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 17 jul. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4 O recado parece ter chegado a D. João, pois em carta de 24 de julho de 18215 5 Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 24 jul. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4 , a infanta agradeceu o convite do pai para reencontrá-la e conhecer o genro e os netos. Conjectura-se que houve tentativas para realizar o esquema proposto por D. Maria Francisca, pois ela agradeceu novamente o convite em carta de 10 de agosto de 18216 6 Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 10 ago. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4 . Não obstante, a mesma requisição foi repetida dois anos depois.

Nós todos estamos bons graças a Deus, aqui temos os franceses no Porto de Santa Maria e no Porto Real, este último está de aqui duas léguas, aqui se fazem muitos preparativos para a defensa da Ilha de Cádiz, não sabemos em que isto parará, pois estes homens são muito maus e capazes de cometerem qualquer atentado conosco, e assim muito desejamos que V.M. nos escreva uma carta dizendo que a deseja que a Mana Maria Teresa, eu e os meus filhos vamos fazer uma visita a V.M., pois este é o único modo de poder cortar algum golpe contra a família Real pois já nos tem todos os varões nas suas mãos.7 7 Carta de D. Maria Francisca a D. João VI. Cádiz, 25 jun. 1823 (apud PEREIRA, 1938, p. 83-84).

Além dos pedidos de socorro, pode-se perceber que a supostamente apática D. Maria Francisca tinha interesses na política, e fazia questão de expressar suas opiniões ao pai a respeito do liberalismo:

Muito desejo saber que aí se vai arranjando tudo, e que V.M. vai separando do seu lado a todos aqueles conhecidos amantes do terrível sistema (como o Marques de Loulé e o Conde de Vilaflor) pois de outro modo V.M. não está seguro e a Coroa estará a pique de se tornar a ser arrancada da Real cabeça de V.M. Não se fie V.M. de aqueles que vendo-se já perdidos, afetarão nos últimos momentos de serem amantes de V.M. pois estes mesmos serão os primeiros que em tendo ocasião cravarão o punhal no peito de V.M. e o tornarão a reduzir ao terrível estado em que antes se achava.8 8 Ibidem, p. 83-84.

Pedindo desculpas pela sinceridade e pelo modo direto com que expusera suas opiniões, a infanta afirmou que apenas desejava ver o pai em seu lugar de direito e gozando do que lhe era devido. E antes de encerrar a carta com pedidos de preces por todos eles nos conventos de Portugal, não se esqueceu de louvar ao irmão absolutista: “Peço a V.M. dê muitas saudades ao Mano Miguel, pois cada dia sou mais sua amiga, por ele ter sabido ser bom Filho e bom Vassalo, e muito me lisonjeio de que ele seja meu Irmão”.9 9 Idem.

É importante destacar como os âmbitos particular e público da vida das infantas se misturavam em suas cartas ao pai e rei D. João VI. No cativeiro vivido nos anos de 1820 a 1823, embaralhavam-se também as alegrias da maternidade com as tensões políticas e o medo de perder a própria vida. Em carta de 1821, revelou a consciência de que sua correspondência era vigiada: “A mana Maria Teresa informará a V.M. do estado das coisas de aqui, eu não o faço em descritura a V.M. por não molestar a atenção de V.M. e por que me parecesse que é mais seguro deste modo que faço”.10 10 Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Escorial, 22 out. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4

As manifestações mais diretas com relação à Independência vieram posteriormente. Provavelmente aguardaram o reconhecimento do TratadoTRATADO de Amizade e Aliança entre El-Rei o Senhor D. João VI e D. Pedro I, Imperador do Brasil, feito por mediação de Sua Majestade Britânica, assinado no Rio de Janeiro a 29 de agosto de 1825, e ratificado por parte de Portugal em 15 de novembro e pela do Brasil em 30 de agosto do dito ano. Disponível em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/1825/b_2/
http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-intern...
de 1825, e, portanto, seu reconhecimento oficial. Vale lembrar que D. Miguel e D. Carlota não perderam o apoio das infantas após as tentativas frustradas da Vilafrancada (1823) e da Abrilada (1824). As ações e missivas denotam apoio a D. Miguel em detrimento a D. Pedro, além de uma afinidade com a mãe, o irmão e a Corte de Madri. Não se pode excluir a possibilidade de ter havido uma reação à forma como ocorreram os acontecimentos, e os ideais neles contidos, uma vez que talvez os atos de traição de D. Miguel fossem menos afrontosos por terem sido feitos em moldes absolutistas, ou amenizados por terem ocorrido após a sedição da América. Se D. Pedro havia sido perdoado por D. João por roubar o Brasil, e até louvado por seus atos, não havia motivo para criticar D. Miguel por tentar fazer o mesmo com Portugal. Especialmente quando o irmão que se afirmou “brasileiro” fizera um movimento sedicioso nos abomináveis moldes liberais, ao passo que o infante depois exilado seguira as irrefutáveis tradições absolutistas.

D. Maria Teresa e D. Maria Francisca defenderam D. Miguel e os ideais absolutistas a despeito dos golpes de 1823 e 1824. Não se sabe se as infantas tinham conhecimento da correspondência entre D. Pedro e D. João, especialmente porque residiam na Espanha. Apesar da polidez encontrada nas correspondências enviadas ao irmão imperador, a carta dirigida ao pai em 1825 denota outros sentimentos:

Meu Pai, e meu Senhor do meu maior respeito, e amor, pelo correio passado não tive a honra de escrever a V.M. porque quando cheguei do Escorial tinha muita dor de cabeça, mas não foi nada, graças a Deus. As notícias que li nas gazetas portuguesas a respeito do Brasil, me têm causado a maior pena possível, pois vejo que não se conduziram os negócios, como todos os que amamos a V.M. desejávamos, e que V.M. só fica Imperador no nome; certamente que o Mano Pedro tem sido um Filho muito infiel a seu Pai, e que já se não podia esperar que o seu alucinamento chegasse ao ponto de dizer ainda a que V.M.I Tome para si o Nome de Imperador, pois estas não são palavras que se digam a um Pai, e muito menos a um Soberano e Pai, e o que ele quer mostrar é que recebeu a Coroa do Povo, e não de V.M. muito sinto em tudo isto, e muito mais sinto que no Reinado de V.M. se perdessem aquelas ricas terras, e que um filho imponha a lei a seu Pai.11 11 Carta de D. Maria Francisca, infanta de Portugal e Espanha a D. João VI, rei de Portugal e imperador do Brasil. Madri, 25 nov. 1825 [s.p.]. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-25_11_1825-MF-E.c

No entanto, ainda que se declare fiel súdita e filha, utilizando o título de Imperador no corpo da carta, D. Maria Francisca guardava bem seus deveres para com o tio D. Fernando VII (Sua Majestade Católica): “V.M. não estranhe que eu não ponha a V.M. no sobre escrito o título de Imperador, pois até que S. M. C. reconheça o tratado não o posso eu fazer”.12 12 Carta de d. Maria Francisca, infanta de Portugal e Espanha a d. João VI, rei de Portugal e imperador do Brasil. Madri, 25 nov. 1825 [s.p.]. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-25_11_1825-MF-E.c

Ao mesmo tempo em que criticou as ações de D. Pedro na correspondência com o pai, D. Maria Francisca se posicionou de maneira firme diante do irmão D. Miguel. Cartas trocadas entre a segunda metade do ano de 1825 e os fins de 1826, antes e depois da morte do pai, deixam perceber claramente a orientação política do “núcleo absolutista” da Família Real Portuguesa. Nas conversações entre D. Maria Francisca, D. Maria Teresa, D. Carlota Joaquina e D. Miguel, havia a consciência da vigilância sobre as missivas, chegando-se a comentar que o escaler de uma embarcação portuguesa trazendo notícias fora atacado e incendiado, no ano de 1823. E não apenas a mãe e a filha mais velha fizeram questão de declarar suas opiniões políticas acerca da sucessão portuguesa. D. Maria Francisca escreveu com frequência a D. Miguel, às vezes com tom de doçura:

Meu querido Mano do meu coração, recebi a sua carta pelo Casa-flores, e muito lhe agradeço o cinto e pulseiras que me mandou, que são lindas, e melhor que tudo a lembrança.

Tenho tido o maior gosto de ouvir falar ao Casa-flores mil bens do mano, do seu comportamento, e do respeito que mostra sempre por meu Pai; continue o mano a ser bom filho, e bom vassalo, e será feliz neste mundo, e no outro, que é o principal.13 13 Carta de D. Maria Francisca a D. Miguel. Aranjuez, 12 jun. 1825 (apud PEREIRA, 1938, p. 94-95).

Afirmou que esperava confirmar o recebimento da carta para que pudesse continuar escrevendo ao irmão. E se havia espaço para a amabilidade, também havia para a severidade de irmã mais velha. Não se deixou intimidar pelo infante:

Apesar de que com grande sentimento meu vejo que alguém tem influído no seu ânimo para que o mano não goste que eu lhe fale senão de minha saúde, eu não posso em consciência deixar de lhe dizer o que acento que lhe convém, porque tenho mais anos, e mais experiência que o mano, e assim tenha paciência e ouça o que esta Irmã cheia de Amor e interesse pelo Mano lhe diz: Tenha muito cuidado meu rico mano que ninguém lhe introduza no seu espírito máximas incompatíveis com a nossa Santa Religião, olhe que está em um país protestante, e no qual os poucos Católicos Apostólicos Romanos que há são maçons, e os que não são, tem uma relaxação muito grande, em ponto a religião; em matérias políticas não se meta, veja que já por se meter nelas está separado de meu Pai, que é a maior desgraça que lhe podia suceder; olhe que nesses países os mais realistas têm muitas ideias democráticas, e peço-lhe pelo amor de Deus não se deixe alucinar deles, pois tudo o que não é um governo inteiramente monárquico é muito prejudicial para o Trono, e mais que tudo para o Altar.14 14 Carta de D. Maria Francisca a D. Miguel. Escorial, 10 nov. 1825 (apud PEREIRA, 1938, p. 95-96).

A infanta posicionou-se como absolutista e realista. No entanto, em seu último conselho, deixou claro que jamais assumiria o papel de usurpadora:

Tenha cega obediência a meu Pai, e não se meta a emendar nada, pois um filho, e um Vassalo, em obedecendo faz o que Deus manda, [...] e só no caso que meu Pai lhe perguntasse o que lhe parecia ao mano de tal ou tal coisa, então lhe devia dizer a verdade, e o que a sua consciência lhe ditasse, enfim o seu lema deve ser, Deus, e o Rei, e de tudo o que for contrário a estas duas coisas deve o mano fugir.15 15 Carta de D. Maria Francisca a D. Miguel. Escorial, 10 nov. 1825 (apud PEREIRA, 1938, p. 95-96).

Também D. Carlota Joaquina se correspondeu com os filhos, fazendo transitar informações entre eles.

Minha querida filha do meu coração; recebi com o maior prazer a tua carta de 6 do presente, mas ao mesmo tempo desconsolou-me muito a frialdade que há de toda parte; se a tua atividade, a do Carlos e a de Maria Teresa não fizer nada, então requiescat in pace.

Eu refiro-me à carta da Maria Teresa, e só tenho que acrescentar que no caso de vir alguma ordem o Miguel para aqui ou declaração das Potências a nosso favor ou que o mano Fernando faça o que é de razão e justiça, e para seu bem; peço-te que me mandem também dizer tudo, diretamente a mim, para o meu governo.16 16 Carta de D. Carlota Joaquina a D. Maria Francisca. Queluz, 18 set. 1826 (apud PEREIRA, 1938, p. 96-97).

A rainha relatou ainda o ambiente vigiado em que vivia e afirmou que era preciso cautela, pois não desejava que ninguém fosse punido por segui-la. Em suas correspondências pediu notícias da Espanha, cautela com os carbonários liderados pelo Dr. Abrantes e por João Carlos de Saldanha, além de avisar que Canellas tinha em mãos correspondência do marquês de Palmella com Torlade, e ressaltou que seria bom se a filha as tivesse em seu poder para que pudessem conhecer os propósitos deles, incitando assim seu envolvimento. Lamentou uma Espanha entregue aos Constitucionais, mas que poderia ser freada se algo fosse feito logo. Nessa troca de correspondências, D. Maria Francisca era peça fundamental para a comunicação entre a mãe e o irmão. Recebendo carta urgente de D. Carlota Joaquina para o infante, remeteu-a prontamente ao irmão, aproveitando para escrever sua própria, com maior rapidez possível. E rogar-lhe:

Pelo amor de Deus que remedie os males da nossa Pátria, e da Espanha, pois o mano é quem pode, e deve remediá-los, só com que o mano não jure, nem consinta casamento, é uma grande coisa, pois tem na maior confusão a todos os Revolucionários. Faça da sua parte tudo para livrar a nossa augusta Mãe do estado tão lamentável em que se acha, salve a nossa Santa Religião, que está já quase acabada, e por fim, salve a sua Pátria, e os bons Portugueses, pois tem a obrigação de o fazer. Não se deixe enganar, olhe o que o hão de querer apanhar para o levarem com o mano Pedro, e para lhe fazerem fazer alguma coisa que depois de feita seja quando o mano conheça o mal que fez. Lembre-se de que é Cristão, que é da casa de Bragança, e que é Português, e não faça nada que possa ficar mal a nenhuma dessas três coisas. Eu já não deveria dizer-lhe nada, pois conheço que o mano não gosta, mas não importa a minha consciência, e o amor que lhe tenho me obrigam a fazê-lo.17 17 Carta de D. Francisca a D. Miguel. São Lourenço, 5 nov. 1826 (apud PEREIRA, 1938, p. 97-98).

Após o falecimento do pai, em 10 de março de 1826, a infanta D. Maria Francisca parece ter sido a primeira a se comunicar com D. Pedro, em carta de 4 de maio. Em elegante papel rendado e marcado de luto, dirigiu-se ao “Muito querido mano de meu coração” para lhe dar os pêsames pelo falecimento do pai e felicitá-lo pela ascensão ao trono de Portugal. Manifestou saudades de D. Leopoldina e assinou como “mana muito amiga”. Seguiu-se a essa gentil carta a seguinte nota:

Esquecia-me dizer-lhe que como o mano é agora quem determinará o modo de repartir o que haja que herdar de meu Pai, não se esqueça de mandar que se reparta comigo do mesmo modo que com os outros Manos, e desculpe que eu lhe fale disto, porém o Mano bem sabe que tenho três filhos, e que tenho obrigação de olhar pelos interesses que são meus, e como agora mesmo Minha Mãe acaba de receber a herança de seu Pai, acho que eu estou no mesmo caso, e assim confio no Mano, que não se esquecerá de mim nesta ocasião.18 18 Carta de Maria Francisca, infanta de Portugal e de Espanha a D. Pedro I, imperador do Brasil. Aranjuez, 4 maio 1826.

Em breve contraponto às duas irmãs absolutistas, destaco a atuação de D. Isabel Maria. Regente de Portugal por ocasião do falecimento de D. João VI, não teve dúvidas em reconhecer os direitos do irmão mais velho enquanto legitimo herdeiro, sem questionar os desejos do pai, e defendê-los. Da mesma forma, não se levantaram prontamente vozes contra esses desejos, declarados publicamente pelo soberano tantas vezes antes de sua morte (BRANCATO, 1999BRANCATO, Braz A. A. D. Pedro I de Brasil, Posible Rey de España (Una conspiración liberal). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999., p. 259). O próprio D. Pedro voltou imediatamente seu interesse para a questão portuguesa, procedendo como se tivesse no comando da administração tanto do Brasil quanto de Portugal, e assinando os despachos do último como D. Pedro IV - o que não deixou de incomodar os brasileiros (LUSTOSA, 2006LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 278). Nem a irmã mais velha.

D. Maria Teresa, ainda que desgostosa do irmão sedicioso, se pronunciou a ele em carta de 9 de maio, escrito no mesmo papel elegante e enlutado que usara D. Maria Francisca. O envelope estava endereçado “A Sua Majestade Fidelíssima El Rei de Portugal meu querido irmão”, a quem a infanta não deixou de desejar que voltasse ao bom caminho de um governo que acabasse com os revolucionários. Ressaltou que dessa vez o lugar que ocupara no trono era legítimo, ainda que sua opinião se modificasse algum tempo depois. A missiva, porém, foi breve e de uma polidez distante:

Meu querido Mano do Coração: como já saberá a desgraça da morte do nosso querido Pai, aproveito esta ocasião para por este modo lhe dar os pêsames; recorramos pois, a nossa Santa, e consoladora Religião, para acharmos algum alívio, ao nosso tão justo sentimento, e ofereçamos ao Céu, nossas fervorosas orações, pelo descanso da Alma do nosso saudoso Pai.

Dou-lhe os parabéns, pela sua legítima subida ao trono, desejando que Deus N. Senhor lhe dê um felicíssimo Reinado, Luz, e acerto para governar os seus Vassalos, fazendo a sua verdadeira felicidade, e forças para acabar por uma vez, com a Infernal raça dos Inimigos da Religião, e dos Tronos.

O Sebastião lhe faz os seus cumprimentos. Não sou mais extensa, para não o incomodar, porém peço-lhe que esteja persuadido que sou Sua Irmã e verdadeira amiga.19 19 Carta de Maria Teresa, princesa da Beira a D. Pedro I, imperador do Brasil. Aranjuez, 9 maio 1826.

Assim como D. Maria Francisca, D. Maria Teresa fora absolutista e defensora das questões da Corte espanhola. O envolvimento de D. Maria Teresa com esta, afora o próprio parentesco por parte de sua mãe, começou com o referido casamento com o primo D. Pedro Carlos, que durou apenas dois anos (1810-1812). A morte prematura do infante de Espanha deixou-a viúva com 19 anos, incluindo-a nos planos de D. Carlota Joaquina em casar as filhas com os irmãos D. Fernando VII e D. Carlos Maria Isidro Benito. Supõe-se que a princesa já nutrisse a ideia de residir na Corte espanhola, mas apenas para garantir os direitos do filho e cuidar de seu futuro.

Ainda que tenha recebido do tio por real decreto todas as honras inerentes à sua qualidade de princesa, D. Maria Teresa chegou à Espanha em um período turbulento em que liberais e apostólicos disputavam o poder. A Família Real espanhola encontrava-se sitiada em Cádiz, isolada pelos liberais. A infanta seguiu a Corte até Sevilha e depois para Cádiz, sempre acompanhada do filho. Após 1823 passou a usufruir a situação que lhe cabia, junto com a irmã, o cunhado e os sobrinhos, tendo como objetivo principal resguardar os interesses do filho enquanto herdeiro dos Bourbon (PEREIRA, 1938PEREIRA, Ângelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938., p. 47-48). D. Fernando VII outorgou à sobrinha todas as honras de infanta de Espanha. Imediatamente após sua chegada, fez circular uma comunicação afirmando que a Princesa da Beira, enquanto viúva de D. Pedro Carlos, passaria a gozar das mesmas considerações, honras e prerrogativas que todas as demais infantas (RODEZNO, 1928RODEZNO, Conde de. La Princeza de Beira y los hijos de D. Carlos. Madrid, [s.n.], 1928., p. 42-43).

A infanta absolutista da Europa parece distinta da jovem que viveu no Brasil, cujas opiniões eram consideradas consonantes às do pai. Assim como D. Maria Francisca, não concordava com as tentativas de golpe do irmão mais novo contra o pai. Mas talvez fosse demais apoiar um irmão com acepções liberais. Não obstante sua fase política mais amena ou a feroz absolutista, seus ideais sempre estiveram de acordo com o realismo. Escolheu o nome do filho em homenagem a um dos reis mais marcantes da história portuguesa: D. Sebastião. E foi para dar notícias do filho e de seus direitos sucessórios que D. Maria Teresa escreveu duas pequenas cartas afáveis ao irmão D. Pedro, afirmando que era um prazer receber as cartas dele. Congratulou-o também pelo nascimento da filha D. Januária, não sem tocar brevemente em um assunto financeiro:

Dou-lhe os parabéns pelo bom sucesso da Mana, e lhe peço que da minha parte dê muitos abraços em ambas as suas filhas.

Meu Pai, minha Mãe, e todos nós estamos bons, e espero em Deus nos há de conservar para gozarmos os bens que o Mano nos prometeu.

Dou-lhe parte que o Sebastião venceu inteiramente a Demanda da sua Casa, e que parte para a Espanha até o princípio de agosto, porém meu Pai determinou que eu deferisse a minha ida para daqui a algum tempo. Se o Mano quiser alguma coisa ou daqui ou de Espanha, mande me dizer, pois tanto eu quanto o Sebastião temos o maior gosto em o servir.

A Deus meu querido Mano peço que se lembre sempre com Amizade desta

Sua Mana e amiga verdadeira.

P.S.

Dê recados ao Padre Mestre e diga ao Antônio Telles que eu ainda me demoro por este Reino.20 20 Carta de D. Maria Teresa a D. Pedro. Queluz, 12 mar. 1822. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-12.3.1822-MT.c 1-2 (D02).

Em carta anterior, também de março de 1822, D. Maria Teresa se regozijou nas notícias de boa saúde do irmão e da cunhada, e avisa que ela e os demais estão todos bem. Aproveita para expressar satisfação pela volta de D. Pedro a Portugal:

Eu desejo muito que não haja dificuldade na sua vinda, pois tenho muitas saudades suas e dos meus Sobrinhos, aos quais lhe peço que dê muitos abraços da minha parte.

A Deus meu Mano peço-lhe que nunca se esqueça desta que é

Sua Mana e verdadeira amiga.

P.S.

Peço-lhe que diga ao Sarmento que me mande pagar o dinheiro das Letras que o necessito muito pois tenho gasto todo o que tinha com a Demanda, e se o fizer lhe ficarei no maior reconhecimento.21 21 Carta da princesa da Beira, Maria Teresa, a D. Pedro. Queluz, 12/03/1822. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. I-POB-12.3.1822-MT.c 1-2

O tom das missivas se tornou mais sério nas cartas subsequentes, tanto ao falar de D. ­Pedro para o pai, quanto ao tratar dos acontecimentos políticos. Sempre encerrando as cartas como “filha obedientíssima”, em 19 de novembro de 1823 a infanta enviou breve notícia da repercussão da Vilafrancada na Corte espanhola. Ainda que seja uma carta pequena, pode-se depreender a influência que D. Maria Teresa exercia sobre o tio, o rei D. Fernando VII, ao falar sobre a concessão de condecorações aos ministros portugueses em troca da promessa do mesmo a dois nobres espanhóis. Interessante notar que os dois ministros portugueses condecorados seriam figuras fundamentais em 1824 no desenrolar das intrigas da Abrilada. Antes de comentar sua participação em defender o bom nome do conde de Palmella, a infanta colocou-se ainda em posição de conselheira, ou ao menos, demonstrou sua preocupação de filha (ou de absolutista convicta):

Torno a repetir a V.M. que muito bom foi que V.M. se explicasse com os Ministros de Áustria, e Rússia, para que os Soberanos Aliados fiquem certos dos verdadeiros sentimentos de V.M., a respeito da grande intriga que tinham feito ao Marquês de Palmela, a qual já chegava até nem longe, como eu o reconheço por um fiel vassalo de V.M. tenho trabalhado muito e muito para desfazê-la, mostrando o que ele sofreu no tempo da Infernal Constituição, e igualmente que ele sempre tinha sido muito fiel a V.M., e o que eu presenciei no Rio de Janeiro no desgraçado dia 26 de Fevereiro, porém tenho o prazer de segurar a V.M. que consegui desfazê-las.22 22 Carta da princesa da Beira, Maria Teresa, a D. João VI. Madri, 19 nov. 1823. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. I-POB-19_11_1823-MT.P.c [A P01]

A orientação absolutista de D. Maria Teresa pode ser percebida em seu desgosto com relação ao juramento prévio da Constituição realizado por D. João no Rio de Janeiro em 26 de fevereiro de 1821. Repudiava constituições em quaisquer dos lados do Atlântico, e provavelmente também o fato de Palmella ter sido um dos responsáveis pelo projeto de Carta constitucional apresentado a D. João alguns dias antes, em 22 de fevereiro. De qualquer forma, os eventos da Abrilada deixaram no ar as intenções de D. Carlota Joaquina e de D. Miguel, que só se manifestariam novamente em 1826. Porém, como de costume, as ocorrências não demoraram a ser comentadas por D. Maria Teresa em suas cartas ao pai. Três dessas foram enviadas com um curto espaço de tempo entre elas; a primeira, remetida de Aranjuez em 3 de junho; as demais partiram de Madri a 23 e a 24 de junho. Sem comentar acerca do papel de D. Miguel ou de D. Carlota Joaquina, a primeira preocupação da infanta é a de reforçar ao pai a importância de uma postura absolutista. Tamanho é seu desgosto com o liberalismo, que se refere ao momento em que vive em um “século das trevas”:

Ainda mal que tudo quanto eu tenho prevenido a V.M., se tem verificado, porém graças a Deus V.M. com o seu Juízo tudo remediou, mas agora, por diferentes modos, mais que nunca, se estenda a total ruína de V.M., e como só eu verdadeiramente me interesso por V.M., sem atender a considerações algumas, nem comprometimentos, pois tudo me é inferior, ao dever de filha, e Vassala, sentido como próprios todos os desgostos e revezes que V.M. possa sofrer, me atrevo a descobrir com franqueza, e verdade quanto sei, que pode prejudicar, e comprometer a V.M., não hesito um momento, em crer, que não saiu de V.M., a terrível lembrança, de convocar as antigas Cortes, que já antes deste desgraçado Século das Trevas, para o meu modo de ver, diminuía a autoridade Real, quanto mais agora, que as Cabeças estão tão exaltadas, ver-se-ia V.M., sem o poder remediar, reduzido ao infernal Jugo das Cortes, e os Realistas, desmaiando no conceito que agora formam de V.M., eu sei com aquela certeza, e verdade com que costumo falar a V.M., que se tal medida se toma, V.M. perde tudo, que tem ganho, para com as Potências, e levam ao fim os projetos que os Maçons, e outros que fingem não o serem.23 23 Cartas (3) de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a D. João VI. Aranjuez, 3 jun.1824. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. Ref: I-POB-03_06_1824-MT.P.c 1-3

Nessas três cartas de D. Maria Teresa para D. João VI observa-se uma defesa ferrenha dos ideais absolutistas. Constam recriminações à postura constitucional do pai, a preocupação de que ele se distancie dos ideais absolutistas e uma grande preocupação de que a carta fosse mantida em sigilo. De fato, ainda que não seguissem a mesma orientação política, as correspondências da infanta demonstram constantemente seu respeito e preocupação com D. João, cobrando-lhe uma postura mais assertiva e mais absolutista, recomendando que tomasse para si as rédeas da política antes que fosse tarde. Além de agir como espécie de mediadora entre D. João VI e D. Fernando VII, parece aconselhar a D. João que não desperdice a graça de ter visto a Constituição ser abolida e as Cortes extintas, e que não trilhe um caminho que não tem chance de funcionar:

Agora não posso, como boa filha, e fiel vassala de V.M., deixar de pedir a V.M., que remedie enquanto lhe seja possível, esta resolução, que não convoque Cortes pelo amor de Deus, pois se o fizer V.M. está perdido sem remédio, pois como desgraçadamente; o espírito revolucionário, é quase geral, se aproveitarão dessas Cortes, para intrigarem, e em pouco tempo, lhe darem toda a força, de modo, que quando V.M. as queira dissolver, não possa, e fique outra vez reduzido ao Infernal jugo dos liberais.24 24 Cartas (3) de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a d. João VI. Madri, 24 jun. 1824. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. Ref: I-POB-03_06_1824-MT.P.c 1-3

No ano seguinte, D. Pedro dispôs os termos do Tratado do Rio de Janeiro, em 29 de agosto de 1825. Ratificado por D. João em 15 de novembro, apaziguou as relações entre pai e filho (PEDREIRA; COSTA, 2008PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 417-420). Porém, se D. João havia feito as pazes com D. Pedro, D. Maria Teresa não perdoou tão facilmente. Talvez pior por ter sido uma traição de cunho liberal, uma vez que ela parece ter relevado facilmente os acontecimentos da Vilafrancada e da Abrilada. O reconhecimento diplomático da Independência pela Inglaterra e demais potências reacendeu o furor absolutista, constituindo um ponto nevrálgico, senão a ruptura nas relações entre os irmãos. Com o Tratado do Rio de Janeiro não havia mais volta para a separação entre Brasil e Portugal, e o referido documento parece ter provocado uma indignação pungente em D. Maria Teresa, como pode ser visto em carta escrita ao pai com data pouco posterior ao Tratado:

Agora peço a V. M. que me desculpe, o não pôr no sobrescrito a V.M. o Título de Imperador, pois nos disseram que sem que El Rey reconhece-se a V.M., como Imperador não o devíamos fazer, essa é a razão porque assim o faço, V.M. apesar de injustiça que me faz de duvidar da minha fidelidade, para com V.M., não deixa de conhecer que eu sempre tenho tido por V.M. todo o amor, e respeito que devo, não o digo por gabar-me, pois nisso, só tenho feito o meu dever, e portanto seguro a V.M. que muito estimaria a ver V.M. Imperador, não como o é, mas sim com todo aquele decoro que corresponde a Augusta Pessoa de V.M. com aquela verdade com que sempre lhe falei, confesso a V.M. que me horrorizou ver em um artigo do Tratado que o mano Pedro diz, que anui a que V.M. use do Título de Imperador q. desgraça meu senhor ser Tratado deste modo por um Filho! Por que Deus destinou a V.M. para sofrer, e assim espero q. lhe dará forças para resistir e triunfar, pois como é sumamente justo, não ajudará um filho rebelde.25 25 Carta de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a D. João VI, rei de Portugal. Madri, 29 nov. 1825. Arquivo do Museu Imperial [s.p]. I-POB-29_11_1825-MT.c [P01]

O segundo artigo do Tratado utiliza precisamente o verbo anuir para se referir ao título de imperador concedido a D. João: “Sua Majestade Imperial, em reconhecimento de respeito e amor a seu augusto pai o Senhor D. João VI, anuiu a que sua Majestade Fidelíssima tome para a sua pessoa o título de Imperador”.26 26 Tratado de Amizade e Aliança entre El-Rei o Senhor D. João VI e D. Pedro I, Imperador do Brasil, feito por mediação de Sua Majestade Britânica, assinado no Rio de Janeiro a 29 de agosto de 1825, e ratificado por parte de Portugal em 15 de novembro e pela do Brasil em 30 de agosto do dito ano. Disponível em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/1825/b_2/ A infanta parece ter julgado que a “anuência” de D. Pedro era um insulto maior a D. João que outras tentativas de lhe roubar o governo. O Tratado era a declaração pública de que havia um liberal na família. D. João, por sua vez, adicionou o título de Imperador à sua assinatura, assim como o fez D. Carlota Joaquina, e utilizou a extensão até a data de sua morte, apenas alguns meses mais tarde.

Considerações finais

Para perceber o envolvimento das infantas D. Maria Teresa e D. Maria Francisca com a Independência do Brasil e suas repercussões, foi preciso resgatar suas trajetórias públicas e políticas. Deixadas em segundo plano pela historiografia, são personagens ricos e interessantes, longe de estarem à margem dos acontecimentos. D. Maria Teresa, que se mostrou uma mulher forte ao tomar parte nas negociações de seu casamento com o primo D. Pedro Carlos, foi considerada uma liberal por parte da historiografia. No entanto, suas ações e palavras, especialmente no tocante aos atos dos irmãos D. Pedro e D. Miguel, provaram o oposto. D. Maria Francisca, em geral vista à sombra da irmã mais velha, também soube manifestar suas opiniões e vontades políticas, agindo como mediadora entre o grupo absolutista da Família Real Portuguesa.

A importância de ambas na política de casamentos, especialmente entre as famílias Bragança e Bourbon, não pode ser deixada de lado. Foi a partir deles que as princesas começaram a tomar parte nos acontecimentos políticos, a construir sua trajetória pública, a se mostrar envolvidas com o que acontecia entre Brasil, Portugal e Espanha. Tiveram figuras femininas fortes como exemplo, D. Maria I e D. Carlota Joaquina. Receberam uma educação adequada, apesar dos rumores contrários. Colocaram suas opiniões diante da ebulição dos acontecimentos das primeiras décadas do oitocentos. Fosse lutando pelos direitos sucessórios de seus entes queridos ou buscando encontrar seu lugar nas Cortes Portuguesa e principalmente Espanhola, atuaram com paixão em todos os acontecimentos nos quais se envolveram. Não poderia ser diferente com o movimento de Independência.

Personagens de destaque por fazerem parte da realeza, e ainda mais por estarem envolvidas em questões sucessórias, demonstraram em suas missivas que em seu mundo o público e o privado se confundiam, assim como o familiar e o político. Longe de serem ignorantes ou despreparadas, podem não ter sido educadas diretamente para governar, mas sem dúvida foram preparadas para fazerem parte de governos, para serem rainhas (ainda que consortes), para não serem inertes, como se pode perceber por meio dos planos de D. Carlota Joaquina. Sendo assim, tiveram mais voz do que a historiografia costumava lhes creditar. Agiram como críticas, mediadoras, fizeram suas opiniões serem ouvidas por seu pai, sua mãe e seus irmãos.

Engajadas na política, buscaram ser fiéis aos seus ideais absolutistas e, ao mesmo tempo, leais à família. Tiveram uma atuação importante nos desdobramentos que a Independência causou no mundo Ibérico. Lutaram pelo miguelismo quando este já não caracterizava uma afronta ao pai, e sim uma disputa com o irmão que, em sua ótica, virou as costas ao absolutismo, a Portugal e a D. João. Ainda que suas tentativas de ação não tenham mudado os rumos do processo de Independência, é interessante observar que buscaram ser ouvidas, influenciar os acontecimentos. Observar que suas tentativas de se envolver ou alterar os rumos políticos são, além de uma perspectiva nova de abordagem das personagens, também a possibilidade de perceber que representavam os ideais absolutistas em um momento no qual as palavras “constituição” e “liberal” estavam cada vez mais na ordem do dia. Suas ações, ainda que ao fim não tenham atingido os objetivos esperados, influenciaram os rumos das sucessões às coroas portuguesa e espanhola e alteraram a história de ambos os reinos.

Conhecer as trajetórias e atuação das infantas torna mais rico o conhecimento acerca delas, dos demais personagens e do próprio movimento de Independência. Descortina-se uma nova forma de olhar para o processo, de compreender os envolvidos, de apreender a riqueza dos fatos e do contexto histórico em questão. Acima de tudo, enriquecem as perspectivas e sentimentos, trazendo mais corpo ao debate acerca dos projetos e visões de um Brasil que buscava sua Independência, sua identidade e seu lugar no mundo.

Referências

  • AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
  • BOURDON, Albert-Alain. História de Portugal Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2013.
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  • CALMON, Pedro. O Rei do Brasil Rio de Janeiro: José Olympio, 1935.
  • CHALLICE, Rachel. The secret history of the court of Spain during the last century Londres: John Long, 1909.
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  • LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • MACHADO, Humberto Fernandes; NEVES, Lúcia Maria Bastos P. O Império do Brasil Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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  • PEREIRA, Ângelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI Lisboa: Editorial Labor, 1938.
  • PEREIRA, Miriam Halpern. Do Estado Liberal ao Estado-Providência: um século em Portugal. Bauru: Edusc, 2012.
  • RODEZNO, Conde de. La Princeza de Beira y los hijos de D. Carlos Madrid, [s.n.], 1928.

Fontes

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  • Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 14 jun. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 17 jul. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 24 jul. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 10 ago. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Escorial, 22 out. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • Carta de D. Maria Teresa a D. Pedro. Queluz, 12 mar. 1822. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-12.3.1822-MT.c 1-2
  • Carta da princesa da Beira, Maria Teresa, a D. João VI. Madri, 19 nov. 1823. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. I-POB-19_11_1823-MT.P.c
  • Cartas (3) de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a D. João VI. Aranjuez, 3 jun.1824. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. Ref: I-POB-03_06_1824-MT.P.c 1-3
  • Cartas (3) de d. Maria Teresa, princesa da Beira, a D. João VI. Madri, 24 jun. 1824. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. Ref: I-POB-03_06_1824-MT.P.c 1-3
  • Carta de d. Maria Francisca, infanta de Portugal e Espanha a D. João VI, rei de Portugal e imperador do Brasil. Madri, 25 nov. 1825 [s.p.]. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-25_11_1825-MF-E.c
  • Carta de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a D. João VI, rei de Portugal. Madri, 29 nov. 1825. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. I-POB-29_11_1825-MT.c
  • Carta de Maria Francisca, infanta de Portugal e de Espanha a D. Pedro I, imperador do Brasil. Aranjuez, 4 maio 1826 [s.p.]. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-04_05_1826-MF-E.c
  • Carta de Maria Teresa, princesa da Beira a D. Pedro I, imperador do Brasil. Aranjuez, 9 maio 1826 [s.p.]. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-09_05_1826-MT.P.c
  • TRATADO de Amizade e Aliança entre El-Rei o Senhor D. João VI e D. Pedro I, Imperador do Brasil, feito por mediação de Sua Majestade Britânica, assinado no Rio de Janeiro a 29 de agosto de 1825, e ratificado por parte de Portugal em 15 de novembro e pela do Brasil em 30 de agosto do dito ano. Disponível em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/1825/b_2/
    » http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/1825/b_2/
  • 1
    Carta de D. Maria Francisca a D. Carlota Joaquina. Madri, 18 nov. 1819. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-20.03.1819-MF.P.c 1-5 (D04)
  • 2
    Carta de D. Maria Francisca a D. João VI. Madri, 21 set. 1822 (apud PEREIRA, 1938, p. 82).
  • 3
    Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 14 jun. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • 4
    Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 17 jul. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • 5
    Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 24 jul. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • 6
    Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Madri, 10 ago. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • 7
    Carta de D. Maria Francisca a D. João VI. Cádiz, 25 jun. 1823 (apud PEREIRA, 1938, p. 83-84).
  • 8
    Ibidem, p. 83-84.
  • 9
    Idem.
  • 10
    Cartas de D. Maria Francisca a D. João sobre a situação política na Espanha e outros assuntos. Escorial, 22 out. 1821. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-14_06_1821-MF.P.c 1-4
  • 11
    Carta de D. Maria Francisca, infanta de Portugal e Espanha a D. João VI, rei de Portugal e imperador do Brasil. Madri, 25 nov. 1825 [s.p.]. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-25_11_1825-MF-E.c
  • 12
    Carta de d. Maria Francisca, infanta de Portugal e Espanha a d. João VI, rei de Portugal e imperador do Brasil. Madri, 25 nov. 1825 [s.p.]. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-25_11_1825-MF-E.c
  • 13
    Carta de D. Maria Francisca a D. Miguel. Aranjuez, 12 jun. 1825 (apud PEREIRA, 1938, p. 94-95).
  • 14
    Carta de D. Maria Francisca a D. Miguel. Escorial, 10 nov. 1825 (apud PEREIRA, 1938, p. 95-96).
  • 15
    Carta de D. Maria Francisca a D. Miguel. Escorial, 10 nov. 1825 (apud PEREIRA, 1938, p. 95-96).
  • 16
    Carta de D. Carlota Joaquina a D. Maria Francisca. Queluz, 18 set. 1826 (apud PEREIRA, 1938, p. 96-97).
  • 17
    Carta de D. Francisca a D. Miguel. São Lourenço, 5 nov. 1826 (apud PEREIRA, 1938, p. 97-98).
  • 18
    Carta de Maria Francisca, infanta de Portugal e de Espanha a D. Pedro I, imperador do Brasil. Aranjuez, 4 maio 1826.
  • 19
    Carta de Maria Teresa, princesa da Beira a D. Pedro I, imperador do Brasil. Aranjuez, 9 maio 1826.
  • 20
    Carta de D. Maria Teresa a D. Pedro. Queluz, 12 mar. 1822. Arquivo do Museu Imperial. Ref: I-POB-12.3.1822-MT.c 1-2 (D02).
  • 21
    Carta da princesa da Beira, Maria Teresa, a D. Pedro. Queluz, 12/03/1822. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. I-POB-12.3.1822-MT.c 1-2
  • 22
    Carta da princesa da Beira, Maria Teresa, a D. João VI. Madri, 19 nov. 1823. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. I-POB-19_11_1823-MT.P.c [A P01]
  • 23
    Cartas (3) de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a D. João VI. Aranjuez, 3 jun.1824. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. Ref: I-POB-03_06_1824-MT.P.c 1-3
  • 24
    Cartas (3) de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a d. João VI. Madri, 24 jun. 1824. Arquivo do Museu Imperial [s.p.]. Ref: I-POB-03_06_1824-MT.P.c 1-3
  • 25
    Carta de D. Maria Teresa, princesa da Beira, a D. João VI, rei de Portugal. Madri, 29 nov. 1825. Arquivo do Museu Imperial [s.p]. I-POB-29_11_1825-MT.c [P01]
  • 26
    Tratado de Amizade e Aliança entre El-Rei o Senhor D. João VI e D. Pedro I, Imperador do Brasil, feito por mediação de Sua Majestade Britânica, assinado no Rio de Janeiro a 29 de agosto de 1825, e ratificado por parte de Portugal em 15 de novembro e pela do Brasil em 30 de agosto do dito ano. Disponível em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/1825/b_2/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2022
  • Aceito
    13 Jun 2022
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